Texto: Rogério Proença Leite
Imagem: Rafael Olinto
Em maio de 2015, o mundo assistiu perplexo o grupo extremista Estado Islâmico (EI) ocupar e depredar templos e torres da histórica cidade de Palmira, situada a 215 km de Damasco, na Síria, cujo sítio arqueológico é considerado um dos mais importantes Patrimônios Culturais da Humanidade, reconhecido pela Unesco. Palmira é considerada uma das cidades mais antigas do mundo e sua história remonta ao neolítico, tendo sido berço de diferentes tempos e culturas que marcam a formação cultural da humanidade: as culturas helenística, romana, hebraica e muçulmana.
O Estado Islâmico não ocupou Palmira por acaso. Ninguém ataca o Patrimônio Cultural de um povo sem motivo. Para o EI, Palmira representava, em seus vestígios arqueológicos, parte da cultura ocidental ao qual o grupo extremista se opunha e queria se sobrepor. A dominação de Palmira era concreta e simbólica. Era um recado para o mundo.
A destruição como dominação é parte bastante conhecida do repertório autoritário humano. Assim agem governantes tirânicos: subjugam e matam as pessoas, e tentam destruir o seu patrimônio cultural, material ou imaterial.
Quando o Terceiro Reich dominou completamente a Alemanha, uma das primeiras ações do seu führer foi designar o arquiteto Albert Speer (1905-1981), também e não por acaso Ministro do Armamento, para pensar a construção de grandes edifícios e boulevards que denotassem a grandiosidade pretendida pelo regime nazista. A arquitetura da dominação também é uma espécie de arquitetura da destruição. O inimigo é arrasado também com o aniquilamento da sua cultura e história, da sua arte, da sua memória.
O esquecimento é, assim, parte do processo de dominação. Esquecer é, nesse sentido, o equivalente a uma demolição: reduz-se algo a nada, ao pó. Do nada, pode-se erguer qualquer coisa, inclusive o falseamento da história vivida.
Com o esquecimento, outras narrativas sobre nosso passado e sobre nossas vivências vão-se sobrepondo e ganhando estatuto forçado de “verdade”, mesmo que não passem de embustes ditos e repetidos. O esquecimento abre o flanco da história para a fraude socialmente compartilhada. Por isso não podemos esquecer do passado, seja ele qual for. Muitos monumentos históricos existem exatamente para isso: o Museu judaico em Berlim, o Cais do Valongo no Rio de Janeiro e o Memorial da Paz de Hiroshima são alguns desses espaços que foram erguidos ou mantidos pela carga simbólica que possuem para nossas necessárias memórias.
Às vezes, a memória que se quer preservar e anunciar através do Patrimônio é motivo de extrema controvérsia porque se refere não ao lado oprimido, mas ao lado opressor de uma determinada história que normalmente envolve processos violentos: massacres, genocídios, extermínios. Depois do assassinato de George Floyd, uma série de manifestações antirracistas aconteceram. Em julho de 2020, foi derrubada a estátua de Jefferson Davis (1801-1889), presidente dos Estados Confederados da América durante a Guerra Civil nos EUA (1861–1865), em Richmond (estado da Virgínia). Neste ano, foram retiradas as estátuas do general confederado Robert E. Lee (1807-1870) nas cidades de Charlottesville, por onde supremacistas brancos passaram ruidosamente em 2017, e Richmond.
A onda de ataques a estátuas e monumentos continuou: estátuas de Cristóvão Colombo (1451-1506) foram pichadas e decapitadas. No Brasil, a reverberação desse movimento atingiu o Monumento em homenagem a Borba Gato (1649-1718), em São Paulo, e a estátua foi queimada, sob argumento semelhante ao caso americano: o bandeirante teria sido responsável por inúmeras mortes e incêndios em aldeias.
Este fato revela a emergência de um debate importante e que é quase inexistente no Brasil, acerca do sentido dos monumentos públicos, e chama a atenção para as narrativas que se embrenham na formação dos patrimônios. O patrimônio é um campo de disputa sobre o que se quer narrar, lembrar, enaltecer ou esquecer.
Em qualquer dos casos, o Patrimônio Cultural existe para nos lembrar de não esquecer alguma coisa; para anunciar as controvérsias da história humana; para reivindicar a plural diversidade da nossa experiência cultural.
Como uma modalidade dinâmica das consciências coletivas, o Patrimônio Cultural sempre foi uma referência relativamente estável, porém aberta e ativa, para a construção renovada de marcos simbólicos para a vida comum em sociedade. Espécie de âncora em movimento, o Patrimônio alicerça referentes estéticos, míticos e metafóricos sobre o passado e o presente, mediante os quais as pessoas e as sociedades elegem e dão sentido às narrativas sobre si e sobre os outros.
Por muito tempo no Brasil, as políticas de patrimônio deram as costas à pluralidade e reconheceram apenas bens culturais associados à etnia branca de origem europeia, católica e militar. Por quase 70 anos, foram tombados e preservados fortes, igrejas, conventos, casarios coloniais, sítios de arquitetura portuguesa e monumentos à elite brasileira. Esqueciam-se convenientemente os contributos artísticos e culturais das diversas culturas africanas e indígenas que se amalgamaram conflituosos na formação do povo brasileiro.
Embora substancialmente ancoradas nas mesmas justificativas históricas europeias dos mitos de fundação nacional, a trajetória das políticas de patrimônio no Brasil surge no Estado Novo, em meados de 1937, com Getúlio Vargas, e assume um lugar de destaque na formulação de uma concepção oficial de cultura, voltada à construção de uma ideia de nação.
Embora limitadas em seu escopo e abrangência, essas políticas de patrimônio posto excluíram deliberadamente parte substantiva das culturas não-europeias. Mas, bem ou mal, foram essas políticas que asseguraram a preservação de todo um riquíssimo conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico e que fundou as bases de uma “concepção oficial de cultura”, cuja criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), hoje Iphan, foi um dos mais importantes marcos institucionais.
Somente nos anos 2000, no contexto de ampliação mundial do conceito de patrimônio, passou-se tardiamente a reconhecer o chamado patrimônio imaterial: bens que se referem a muitos aspectos das culturas antes excluídas: ofícios e modos de saber-fazer; celebrações; formas de expressão; e lugares de tradições e práticas sociais.
Apesar de todo o viés abertamente elitista dos bens materiais reconhecidos e tombados, o Iphan sempre teve que ser uma trincheira aguerrida em defesa desse patrimônio, muitas vezes contra a própria ação depredatória dessa mesma elite para quem o patrimônio nacional foi tombado. Esse paradoxo explica o desinteresse que parte da elite brasileira trata o seu próprio Patrimônio Cultural, e explica o completo descaso em relação ao patrimônio material e imaterial dos outros (povos tradicionais indígenas, descendentes afro-brasileiros, migrantes).
É controverso que o Iphan, órgão estatal com mais de 80 anos de existência, quase sempre tenha necessitado se defender dos abusos ou descasos do poder estatal de governos intolerantes e sem compromisso com a história e a memória do país. A imaturidade política do Estado brasileiro é capaz de gerar esse incrível paradoxo: políticas de Estado necessitam ser defendidas do próprio Estado e dos interesses do mercado que adentram natural e politicamente as instâncias do Estado. De tempos em tempos, o patrimônio brasileiro oscila entre governos sensíveis à pauta cultural e defensores da inclusão da diversidade e governos que menosprezam a cultura e depreciam as minorias que formam a pluralidade da nossa realidade. No momento, estamos a viver este segundo tipo, no qual a cultura, a ciência, a civilidade e paz são renegadas a um campo sombrio de descarte e ataque.
A constante incerteza que ronda as políticas de patrimônio cultural brasileiro revela também a fragilidade institucional das políticas de proteção social da vida, por uma associação direta: parte dos detentores dos saberes e modos de vida que constituem o acervo vivo do patrimônio imaterial são pessoas de culturas historicamente marginalizadas ou excluídas, e em situação de vulnerabilidade social.
Defender a preservação do patrimônio cultural é, assim, duplamente relevante para uma cultura cívica e democrática: por assegurar que possamos rememorar o passado e aprender com ele; e por garantir no presente a visibilidade e sobrevida das culturas em sua amplitude e diversidade.
É inaceitável hoje que uma sociedade que se pretenda minimamente democrática e desenvolvida não preserve seu patrimônio e nem defenda a diversidade de sua cultura. Mas como já sabemos, ninguém ataca o Patrimônio Cultural de um povo sem motivo. E há muitas formas de destruir a cultura e o patrimônio, não necessariamente de forma tão literal quanto o atentado do EI a Palmira.
Destrói-se o Patrimônio também quando se extingue estruturas institucionais voltadas ao incentivo e promoção da cultura, a exemplo da extinção do Ministério da Cultura, em janeiro de 2019. Criado em 1985 no contexto da redemocratização política brasileira, o MinC abrigava o Iphan, a Fundação Nacional de Arte (Funarte), a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural, a Fundação Biblioteca Nacional e a Agência Nacional de Cinema (Ancine), dentre outras não menos importantes.
Destrói-se o Patrimônio também quando para as funções diretivas de órgãos culturais são designadas pessoas sem qualificação adequada ou mesmo com posições contrárias aos interesses que deveriam defender como gestor público, a exemplo da Fundação Cultural Palmares que foi criada em 1988 para promover a cultura de matriz africana e tem hoje na sua presidência um homem negro autodeclarado de direita que critica o próprio movimento negro e afirma ter sido a escravidão terrível, mas benéfica para os descendentes afro-brasileiros.
Destrói-se o Patrimônio também quando se abandona prédios à própria sorte, a exemplo de duas tragédias anunciadas: a que resultou no incêndio do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista (Rio de Janeiro), em setembro de 2018, destruindo um inestimável acervo construído há mais de 200 anos; e a que culminou no recente incêndio da unidade da Cinemateca Brasileira (instituição criada em 1940) situada na zona oeste da cidade de São Paulo, destruindo parte do acervo histórico audiovisual brasileiro.
Destrói-se o Patrimônio também quando se reduz os já escassos recursos a ele destinados, e com isso se pratica uma espécie de política de morte à míngua da cultura, a exemplo das estimativas atuais de cerca de 50% de redução de recursos federais para alguns setores da cultura.
Destrói-se o Patrimônio também quando se põe à venda prédios públicos de alto valor histórico e simbólico, como o recente feirão de imóveis do governo federal que incluiu em sua fúnebre lista nada mais nada menos do que o prédio ícone da história da arquitetura brasileira e do próprio Ministério da Cultura: o Palácio Capanema, no centro do Rio de Janeiro, antigo Ministério da Educação e Saúde Pública. Pôr à venda o Capanema, como é conhecido, é um escárnio.
O prédio é repleto de simbolismo: projetado nos anos 1930 sob o governo de Getúlio Vargas, o Capanema foi concebido no contexto do modernismo brasileiro por uma equipe de arquitetos notáveis, dentre eles Oscar Niemeyer e Lucio Costa, os mesmos que projetaram Brasília. O projeto, inovador em todos os aspectos, foi construído a partir das ideias lançadas por Le Corbusier, o famoso arquiteto modernista suíço, que esteve no Rio de Janeiro com Lucio Costa.
Com afrescos de Cândido Portinari e jardins de Burle Marx, o Palácio Capanema abrigou durante anos, o Iphan, a Funarte, diversos arquivos e bibliotecas. O prédio em si é de valor inestimável patrimônio cultural brasileiro.
Muitas vezes, acontecimentos aparentemente aleatórios guardam mais conexão entre si do que imaginamos. E uma das formas mais eficazes de dominar o outro, é negar-lhe o direito de memorar sua história, de se reconhecer na sua cultura, de brindar sua crença, de falar sua língua, de cultivar a memória impressa na facticidade material e imaterial do seu Patrimônio Cultural.
O reconhecimento cultural de si e do outro é um legado republicano, democrático e libertário, e por isso ninguém ataca o Patrimônio Cultural de um povo sem motivo. E por isso temos motivos de sobra para cada vez mais defendermos o Patrimônio Cultural, sobretudo neste momento delicado em que a democracia é empurrada para mais um desfiladeiro. Já é hora de voar com a sabedoria da luz antes do cair das noites escuras, para não sermos como a Coruja de Minerva de que falava Hegel, que só levanta voo ao cair do crepúsculo.
(Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco, editado pela Companhia Editora de Pernambuco)
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