A potencialidade de um acontecimento está necessariamente vinculada à sua capacidade de fazer ressoar dinâmicas históricas que, mesmo cortadas, continuam sempre em latência. Freud costumava dizer que a voz da razão pode ser baixa, mas ela nunca se cala. Isso vale para dinâmicas históricas de transformação estrutural que foram, por um período, paralisadas.
É necessário dizer isso porque nada do que ocorreu no Chile nos últimos anos é compreensível sem que retornemos à experiência do governo de Salvador Allende, entre 1970 e 1973. Pois tal experiência funciona como um campo de latências para o presente, como um corpo espectral que intervém e influencia a ação dos vivos.
Enquanto o resto do continente procurava abrir seu horizonte progressista através de pactos e alianças próprias do populismo de esquerda, acreditando em associações possíveis entre setores das burguesias nacionais e demandas populares, integrando camadas populares ao processo político através da preservação paradoxal de interesses de oligarquias descontentes, o Chile procurava outra via, algo que foi conhecido à época como “a via chilena para o socialismo”. Essa via tinha três características principais e ela quebrava a dicotomia que havia se estabelecido, desde o fim do século 19, entre dinâmica revolucionária e pacto reformista.
Primeiro, a via chilena se fundava na recusa clara de militarizar processos revolucionários. A conquista de poder se dará através de processos eleitorais e a organização que articularia tal vitória, a Unidad Popular, desconhecia centralismo democrático, tendência convergente de partido único e comando de cúpula. Ela era uma frente, mas uma frente composta por estruturas de esquerdas (socialistas, comunistas, radicais, social-democratas, democratas-cristão disssidentes, MIR, MAPU) e movimentos populares. O século 20 havia visto muitos processos revolucionários que se degradavam em sociedades militarizadas, processos que recompõem a lógica social a partir da temática de guerras infinitas. A via chilena foi a mais significativa procura em tentar outro caminho.
Segundo, tratava-se de operar progressivamente com mudanças claras na ordem econômica. Estamos a falar de um governo que estatizou o sistema bancário, estatizou o principal setor da economia chilena de então, as minas de cobre, que impulsionou a autogestão das fábricas através da criação de 61 “cordões industriais”. Ou seja, a lógica em operação não era aquela que conhecemos em coalizações populistas de esquerda e que consiste em “ganhar tempo”, em procurar integrar economicamente parcelas pobres da população sem a modificação das relações de produção. Tratava-se, ao contrário, de implementar um claro programa econômico marxista através de uma dinâmica de conquista gradual.
Por fim, esse processo fora impulsionado por uma efetiva cultura de combate. Não por outro razão uma das figuras mais emblemáticas da violência contrarrevolucionária foi o assassinato do cantor Victor Jara, que teve suas mãos cortadas no Estádio Nacional enquanto militares colocaram um violão a sua frente e disseram-lhe: “Agora, toca”.
Essa história, por mais que tenha sido silenciada, nunca efetivamente passou. Em cada revolta que o Chile conheceu a partir de 2006 (e elas foram muitas) retornavam as palavras de ordem, as imagens, as canções. Isso não era simplesmente uma citação, mas era a consciência clara de que toda dinâmica de transformação é uma repetição.
Pode parece paradoxal associar transformação e repetição, mas o paradoxo inexiste. Para que transformações sejam possíveis é necessário, inicialmente, liberar o passado de seu exílio, liberar os corpos da melancolia. Isso significa reencenar as derrotas e fazer delas vitórias. Já se falou que o tempo histórico não é uma sucessão de instantes. Entender isso é fundamental para compreender de onde vem essa força indescritível quando populações decidem não sair das ruas mesmo quando elas estão sob tiros e tanques. A força vem da incorporação das lutas passadas, vem da encarnação em um corpo político de largo espectro temporal. A força vem da compreensão de que estamos, mais uma vez, a encenar batalhas que ocorreram e que novamente se abriram.
Essa projeção em direção ao futuro mesmo no momento da derrota não é simples “messianismo”. Ela é a última astúcia da inteligência política que usa da projeção temporal para abalar um presente que se fecha. A mesma inteligência que Allende mostrou quando terminou seu último discurso, em pleno golpe, lembrando que: “mais cedo do que tarde de novo se abrirão as grandes alamedas”.
Um processo aberto
Há um documentário sobre o Chile que se chama Chicago boys (2015, Carola Fuentes e Rafael Valdeavellano). Nele, vemos a formação do grupo de economistas que, pela primeira vez, implementará o neoliberalismo no mundo. Em certo momento, quando os entrevistadores perguntam ao futuro ministro da economia de Pinochet, o sr. Sergio de Castro, sobre o que sentiu quando viu o Palácio de La Moneda bombardeado por aviões militares até a morte de Allende, ele diz, sem ocultar suas verdadeiras emoções: “uma alegria imensa. Sabia que isso era o que devia ser feito”.
Essa imagem volta quando, em 2019, o mesmo sr. de Castro é entrevistado pelo jornal La Tercera. Diante de uma insurreição popular contra as consequência do modelo que ele ajudara a implementar, o jornalista lhe pergunta: “Você, que é conhecido como um dos pais do modelo econômico chileno, como o denomina?”. Resposta: “Diria que foi a aplicação racional da teoria econômica”. A resposta era efetivamente muito boa. Ela nos lembrava que a dita aplicação racional da teoria econômica era inseparável da destruição violenta da política e de suas dinâmicas de conflito. Ela era inseparável da insensibilidade absoluta em relação ao sofrimento social que populações em fúria testemunhavam. O que colocava uma equação política maior : “nenhuma felicidade social seria possível sem a destruição dessa ‘racionalidade econômica’”. E destruir tal racionalidade não seria feito através de ajustes, promessas de integração e portas abertas para alguns representantes de populações massacradas que agora encontram lugar à mesa das benesses. Ela seria feita através da modificação estrutural da ordem jurídica. Como se fosse o caso de colocar em marcha um singular “institucionalismo insurrecional”.
Algo dessa natureza já tinha sido tentado em outro país que conhecera uma insurreição popular contra a “racionalidade econômica”, a saber, a Islândia. Essa ilha glacial fora o primeiro país a entrar em bancarrota na crise de 2008 e o único a entender que sair da crise implicava colocar banqueiros na cadeia e mudar a ordem constitucional. No entanto, sua tentativa de criar uma constituição popular acabou por ser barrada. O mesmo caminho seria agora tentado no Chile.
Nesse caso, o processo tem mais possibilidades de ser bem sucedido porque ele é uma repetição. Ele é o aprofundamento da mesma via chilena de cinquenta anos atrás. Mas ao invés da produção de modificações paulatinas do quadro institucional, trata-se de operar por uma refundação nacional. Esse processo, com novos atores sociais, foi um dos principais eixos da vitória eleitoral dos últimos dias.
É claro que riscos existem. A capacidade de transformação social da Frente Ampla não é clara. Esses anos serão de dureza extrema. Pois, como no início dos anos 1970, se a experiência chilena for bem sucedida, ela terá aberto uma via que recolocará a imaginação política mundial em movimento. No entanto, ela é a primeira experiência, no século 21, de uma insurreição popular que conquista o poder com uma votação eleitoral surpreendente (a maior votação da história chilena), que o conquista no meio de um processo de refundação nacional. Ela tem ainda a seu favor a força das repetições históricas. Uma configuração de forças como essa é algo que nós nunca havíamos visto.
Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP
(Publicado originalmente no site da revista Cult)