pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Michel Zaidan Filho: O 11 de setembro

terça-feira, 10 de setembro de 2019

O aprendizado da angústia

  


O aprendizado da angústia

Girolata Triptych, Joan Mitchell, 1964 (Foto: WikiArt/Domínio Público)


Acha-se num dos contos de Grimm uma narrativa sobre um moço que saiu a aventurar-se pelo mundo para aprender a angustiar-se. Deixemos esse aventureiro seguir o seu caminho, sem nos preocuparmos em saber se encontrou ou não o terrível. Ao invés disso, quero afirmar que essa é uma aventura pela qual todos tem de passar: a de aprender a angustiar-se, para que não venham a perder, nem por jamais terem estado angustiados nem por afundarem na angústia; por isso, aquele que aprender a angustiar-se corretamente, aprendeu o que há de mais elevado
Soren Kierkegaard – O conceito de Angústia
Uma sensação difusa, próxima de uma ansiedade, mas sem objeto, parecida também com o medo, mas sem causa específica. Uma inquietude metafísica, mas sem linguagem organizada. Nem bem um pavor, nem bem horror ou terror, mas um mal estar, uma falta flutuante, uma ameaça fantasmática e um sobressalto iminente. Eis o quadro de uma experiência conhecida individualmente e que hoje se torna um sintoma social. Ele diz respeito a um conceito filosófico fundamental, a angústia.
A angústia é um sentimento disperso e desagradável e, ao mesmo tempo que carrega uma inquietação metafísica, é algo paralisante. Um filósofo que pode nos ajudar a compreendê-la é Kierkegaard que viveu no século 19 na Dinamarca. Kierkegaard vai influenciar muitos pensadores com seu tratado sobre O conceito de Angústia escrito em 1844 sob o pseudônimo de Vigilius Haufniensis. Nesse livro ele nos apresenta o conceito de angústia como uma posição fundamental, talvez a mais essencial no desenho do complexo ser humano. E por que a angústia seria tão fundamental? Porque ela que nos ensina o que é a “interioridade existencial”. É a angústia que nos dá a medida da experiência do sujeito enquanto sujeito humano. No lugar de um “penso, logo existo”, poderíamos definir a experiência da angústia como aquilo que está no lugar do pensamento. Como se a angústia fosse o nascedouro da consciência.
Na visão do filósofo dinamarquês, a angústia é constitutiva da condição humana. Ela faz parte da vida. Inevitável, ela surge no momento em que somos confrontados justamente com as possibilidades da vida, sejam elas boas ou não aos olhos acostumados às sombras das verdades prontas. Surgirá daí a liberdade como uma condenação, como depois nos explicarão Sartre, Beauvoir e outros pensadores existencialistas.
A angústia é o efeito do nosso contato com as possibilidades da vida mais ou menos estreitas conforme as circunstâncias vividas por cada um. Ao falar de angústia, estamos diante daquilo que nos oprime, como um canal estreito, um obstáculo a ser atravessado. Tal é a sua etimologia. Mas ela é mais do que um sentimento, ela é a posição que implica a percepção, um certo tipo primitivo de saber sobre o caráter absurdo da vida e, no meio dele, a consciência do minúsculo ser humano lançado entre a potência e a impotência, o brilho e o apagamento, a grandeza e a miséria de sua própria condição. Heidegger, influenciado por Kierkegaard, dizia que temos que fazer escolhas, mas não temos certeza de que haverá resultados favoráveis a nós. “A única certeza é a vida de culpa e ansiedade”, ele dirá em um livro como Ser e tempo (1927).
Talvez o reconhecimento de que há um destino para além da vontade humana reposicione o ser humano diante da natureza, da história, do outro e de si mesmo. Talvez a angústia ceda de sua imobilidade diante da aceitação da finitude. Mas como aceitar a finitude nesse tempo em que perdemos a capacidade de meditar sobre a morte e, ao mesmo tempo, tudo parece tão morto?
Autopedagogia
A angústia nos coloca, portanto, a questão de nossa presença no mundo. Não se trata apenas da pergunta pelo que somos, ou o que fazemos, mas o que estamos experimentando. O que recebemos, damos e “levamos” dessa vida? O que é realmente importante? O que realmente pode ou deve ser vivido? Como vivemos diante do fato de que estamos necessariamente relacionados a nós mesmos, além de estarmos relacionados aos outros e à alteridade como lugar da diferença?
Bem vivida, a angústia é a chance de estabelecer uma relação autêntica com a gente mesmo. Com o que somos. Ela envolve uma autopedagogia pessoal.
Nela é que podemos nos perguntar “como me relaciono comigo mesmo?”, que é algo bem mais complexo do que a crença em um “autoconhecimento”. É a angústia que pode nos dar as condições de fazer a pergunta “como me torno quem eu sou?”.
E me faz saber que não posso responder a ela se não avaliar as demandas, as imposições, as ordens e os modismos que me afastam de mim. É a angústia, portanto, que me devolve a mim mesmo. Que evita a alienação à qual nos convida o nosso tempo sombrio.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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sábado, 7 de setembro de 2019

Michel Zaidan Filho: Vindita social

                  
 
A ação de despejo movida pelo INCRA contra o MST, retomando a posse da fazenda Normandia (Caruaru) cumpre estritamente o programa de retaliação e criminalização dos movimentos sociais no Brasil, anunciado antes pelo senhor Jair Bolsonaro.

A exemplo das ações criminosas contra as terras dos indígenas, quilombolas, contra os negros, homossexuais, a escola pública e o meio-ambiente, este governo pratica um verdadeiro crime de lesa-sociedade.

O MST é um movimento social moderno, exaltado por personalidades do mundo inteiro. Faz parte de um comitê mundial dos povos da terra, tem sido um participante assíduo do fórum social mundial e contribuído, também, para o avanço da democratização das estruturas agrárias brasileiras.

A fazenda Normandia é uma verdadeira escola da mais alta importância para os trabalhadores rurais. As universidades públicas têm contribuído frequentemente com seus quadros para o trabalho de formação de agentes sociais. Tem sido também um laboratório de novas formas coletivas e solidárias de produção autossustentável. As cooperativas do MST ajudam a colocar comida boa e barata na mesa do povo brasileiro e ensina os princípios da agroecologia.

É lamentável sob todos os aspectos essa espécie de vindita social contra os movimentos sociais.  Tal medida só pode partir de uma mente insana a serviço dos grandes agro negociantes, das empresas de alimentos transgênicos e do agrotóxico. Poucos movimentos sociais granjearam tanta admiração e apoio da sociedade como o Movimento dos trabalhadores sem-terra. Foi ele considerado por Manuel Castels um movimento de “identidade de projeto” não apenas de “reação”.

Chico Buarque de Holanda, José Saramargo e Sebastião Salgado reconheceram o seu importante papel na sociedade. Abundam na universidade os estudos sobre a capacidade do MST produzir fatos políticos através do poder simbólico. Sua tríade: “terra, trabalho e vida” se opõe como nenhuma coisa a esse capitalismo rentista que faz da propriedade rural mera reserva de valor, enquanto milhares de brasileiros morrem de fome ou não tem um chão para plantar.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

Charge! Folha de São Paulo

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quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Bacurau e a síntese do Brasil brutal


Bacurau e a síntese do Brasil brutal
Silvero Pereira como Lunga em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (Foto: Victor Jucá/Divulgação)

Há algo de profundamente perturbador em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, talvez o mais importante filme contemporâneo sobre o Brasil distópico da era Bolsonaro. Mesmo tendo sido filmado antes das eleições de 2018 e da catástrofe política em andamento, Bacurau é um filme visionário e violento, uma ficção científica e política que não tem nada de alegórica. Ao contrário, é explicita e brutal, de uma lucidez aterradora.
Um filme em que os gêneros faroeste, ficção científica, filme de terror, filmes de ação hollywoodianos, rambos e exterminadores se encontram com um rural contemporâneo que explode clichês.
Bacurau é um extraordinário remix do imaginário hollywoodiano com a tradição do Cinema Novo brasileiro: a estética da fome, a estética do sonho e a pedagogia da violência de Glauber Rocha com banhos de sangue prêt-à-porter vindos dos filmes de ação e reality shows. Um filme de crítico de cinema, de cinéfilo e de um diretor que chegou ao auge da destreza narrativa.
Cinema Transgênero
Com Bacurau Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazem uma espécie de faroeste transgênero, no sentido dos gêneros do cinema, mas também ao explodir os clichês dos comportamentos. Um cangaço trans em que cada espectador projeta suas referências e desejos.
Mas o que o aproxima do Glauber de Deus e o diabo na terra do sol, de 1964, ou de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de 1969? Estamos falando de filmes de invenção de um imaginário rural brasileiro catártico, que inventam uma mística política vinda do povo. Vinda dos oralistas, dos interioranos, do inconsciente explodido das periferias rurais do Brasil.
Mas são muitas as referências: o Godard de Weekend à francesa (1967) ou de Alphaville (1965), ficção cientifica godardiana profundamente distópica. Com a diferença que não há mais nenhum romantismo em Bacurau, apenas um sarcasmo ou riso vingador ou irônico. Como na cena das execuções públicas no Anhangabaú, exibidas na TV, cenas que ecoam os linchamentos midiáticos que são as novas formas de execuções públicas.
Mad Max sertanejo
O filme trata de questões urgentes: crise da água e do meio ambiente, empresas e políticos com ethos milicianos, forças paramilitares ou mercenários globais. Atravessada por essas forças, uma nova Canudos na beira da estrada ou uma cidade Mad Max sertaneja. Uma Canudos genérica, pronta para explodir. Tudo filmado como uma espécie de reality show perverso e alucinatório, com jogos violentos e extremos e com personagens estranhamente familiares e “normais”.
Mas do que se trata o filme? Antes de mais nada de um rural contemporâneo. Um Brasil das cidadezinhas do interior completamente conectadas com o urbano. Atravessadas por redes de celular, tecnologias de vigilância e controle, telas de LED, drones, carros e motos possantes, distribuição de psicotrópicos e remédios que controlam o humor, uma cidade rústica, mas que poderia protagonizar um episódio de Black Mirror e que querem apagar do Google Mapa.
O que fazer diante do capitalismo gore?
A segunda questão é exatamente essa. O que podem (como agir, resistir, se governar) as comunidades que estão sendo atacadas e apagadas pelo capitalismo das “tripas e sangue”? E aqui tomo emprestado o conceito da mexicana Sayak Valencia para descrever a vida nas fronteiras de Tijuana, em que comunidades inteiras têm que lidar com o que nomeia de “capitalismo gore”, um capitalismo mafioso, da narcocultura, milícias, assassinatos.
Esse capitalismo gore, com suas tripas e sangue, é também uma construção cultural. O termo tem origem no gênero cinematográfico splatter, com o uso gráfico e extremo da violência, o grotesco e a violência explícita como linguagem. O assujeitamento e ações predatórias, onde se pode infligir dor e violência contra os corpos, mas também pensar a violência como necroempoderamento.
Diante de um neoliberalismo que fracassou na sua utopia de mercado, diante de uma democracia em agonia, os sujeitos, os cidadãos, a comunidade também quer partilhar e participar da violência como forma de resistência e sobrevivência.
As fronteiras, as cidade das bordas e periferias, as periferias, as comunidades apelam para um autogoverno e ações extrajurídicas. Como em Canudos amotinada, novos laboratórios do pós-colonialismo, mas também das insurreições contemporâneas. Enclaves, tribos, comunidades distópicas e utópicas se inventando.
Sonia Braga as Domingas _ Victor Jucá
Sonia Braga como Domingas em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (Foto: Victor Jucá/Divulgação)
Os insurgentes em uma democracia em agonia
Diante de fantasias de poder ultraconservadoras, diante de figuras ultraviolentas como Witzels e Bolsonaros, seres “endriagos”, demolidores, que surgem produzindo a gestão da morte, as comunidades se apropriam da violência como ferramenta de empoderamento e de resistência. Uma saída possível do lugar de vítima para a de vingadores.
Bacurau traz de volta o imaginário das guerrilhas dos anos 70 sem fazer qualquer menção, sem qualquer discurso político ou panfletário, simplesmente a narrativa empurra os personagens às armas!
Mas quem são esses novos heróis de uma Canudos revisitada? O Brasil que emergiu no ciclo democrático dos últimos 13 anos, as minorias que se tornaram sujeitos do discurso, os ex-quecidos do Brasil rural, ribeirinho, periférico, as figuras fronteiriças, como a extraordinária cangaceira trans, encarnada por Silvero Pereira.
Uma Canudos remixada que traz também personagens de uma dor extrema, como a mãe diante do filho executado no escuro, com o uniforme do colégio, uma cena arrepiante que vai entrar para a história do cinema brasileiro. E toda a comoção da cidade diante das mortes seriais.
Os personagens de Bacurau trazem nos corpos, nos cabelos, na cor da pele, um Brasil que emergiu e ganhou visibilidade. Homens e mulheres, negros e negras, trans, putas, os caboclos e povos originários. Magníficas as cenas de um devir índio dos personagens que andam e vivem nus nas suas casas de barro, falando com as plantas, vivendo em uma temporalidade estendida, donos de poderes mágicos e de uma cosmovisão.
Impossível não ver neste faroeste caboclo sideral os banhos de sangue, as Marielles assassinadas, a potência das mulheres, todo um novo cangaço das lutas de maiorias, minorias e transgêneros.
Hiper realismo alucinatório
Não há nada de fantasioso em Bacurau, o filme é de uma clareza e brutalidade alucinantes, uma espécie de documentário sobre o imaginário em que estamos. O que poderia ser traumático, o jorro de sangue, a violência gore, todos os corpos dilacerados, cabeças decepadas, os requintes de crueldade e o gozo e erotismo diante da morte se tornam elementos catárticos e redentores ao final do filme.
Diante do trauma político em que estamos. Diante da percepção cotidiana de que “estamos sendo atacados” em nossos valores, em nossos impulsos vitais, em nossas vidas, em nossas sexualidades, Kleber Mendonça apresenta uma guerrilha de bolso. Um laboratório na cidadezinha do interior de Pernambuco. Bacurau é meio Dogville de Lars Von Trier.
Bacurau é Dogville, Alphaville, Canudos, um território separado geográfica e temporalmente do resto do país. O Brasil, São Paulo, são ficções distantes. Como a República era uma ficção para o arraial sertanejo. Como em Os sertões de Euclides da Cunha, Kleber Mendonça nos apresenta a Terra, o Homem e a Luta.
E que emoção ver o cinema glauberiano e o imaginário euclidiano vivos, reinventados em um presente urgente que atualiza personagens como Antônio das Mortes, Corisco, Lampião, a mística política presente em um mesmo filme sem fim que estamos fazendo, uma brasiliana contemporânea.
Bacurau traz uma linguagem impactante. Um remix de Glauber com Tarantino e Godard, e ainda revisita o tropicalismo cinematográfico de filmes como Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr .,que proclamava em 1969 que “aqui é o fim do mundo” .
Uma ficção científica apocalíptica que é um retrato do Brasil em 2019. Não identificado, a música de Caetano cantada por Gal Costa, que abre o filme, vem diretamente deste espaço sideral, anos 60/70, nossos “negros verdes anos”, de ditadura militar e do auge de invenções na cultura, uma explosão criativa de cinemanovismo, tropicalismo etc. Kleber Mendonça revisita o lado B do tropicalismo solar: distopia, anarquia, um tropicalismo underground e sombrio que não chegou na cultura de massas.
Bárbara Colen as Teresa _ Victor Jucá
Bárbara Colen como Teresa em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (Foto: Victor Jucá/Divulgação)
Efeitos colaterais
Bacurau produz efeitos colaterais e sensoriais imediatos. Seja um estupor melancólico frente ao cenário político que estrebucha na tela, seja o efeito catártico. Ouvi pessoas que gritam e aplaudem, urram diante das mortes horríveis, cabeças decepadas e castigos infligidos aos vilões. Outras despertam eufóricas com as imagens, a montagem, como se fosse um soco ou um pegar pelos ombros que nos sacode por inteiro. Ou ainda um choro, uma comoção, não se sabe bem por que, mas que o filme desata, como esses nós que se desfazem sozinhos depois que já ferimos os dedos da mão tentando abrí-los.
São muitas as referências ao cangaço, ao sertanejo, aos jagunços, aos beatos, aos pré-revolucionários de Glauber, os condenados da terra de Frantz Fanon, os resistentes de um Brasil que luta pela terra, pela água, pela comunidade, pela Amazônia, pela vida.
Em Bacurau, o mais importante é a comunidade e o comum. As lideranças são múltiplas, descentralizadas: a cangaceira trans, a médica Domingas, o professor, as lideranças espirituais. Muitas cabeças e um só corpo.
Ao final uma luta, um duelo, um acertar de contas entre essa diversidade, esse Brasil, esses personagens insurgentes e disruptivos e o militarismo corporativo, o capitalismo miliciano, o empreendedorismo gore. Vai faltar caixões?
As comunidades, os enclaves, os indígenas, a juventude periférica, as esquerdas, os estudantes universitários, os negros e negras, até o momento desconsideraram o discurso radical, de pegar em armas, usar a força física, se armar para fazer a disputa política. Mas o que esperar diante de um Estado que age extra judicialmente e fora da lei?
Quando um governante diz que tem “que mirar bem na cabecinha” e matar seus “inimigos” como em um filme hollywoodiano ruim, ou chega de helicóptero sobre um corpo abatido pela polícia e comemora como um gol, esse imaginário e esse desejo de justiçamento não produzem um imaginário sem controle e perverso?
Se o Estado pode ter drones fatais que atiram para matar, não veremos em um futuro imediato um Rio de Janeiro pilotando drones de autodefesa e ataques? Uma ficção política plausível e aterradora que mostra como se produz Marighellas, Conselheiros e Zumbis, mas também Mitos, Witzels, ultra-extremistas de todos os matizes.
Diante de um humanismo que fracassou, Bacurau sintetiza o Brasil brutal, distópico em que a partilha da violência e a posse de armas e de justiçamento passa a ser feita não apenas pelo “cidadão de bem” conservador, mas surge, como na década de 70 – com as guerrilhas urbanas e ligas camponesas – como uma saída possível, uma reação coletiva, diante de uma democracia e de um Estado colapsados.
Kleber Mendonça Filho não faz uma leitura piedosa de tudo o que está ai. Faz um manifesto cinematográfico, com uma linguagem sofisticada, um apuro estético, uma destreza em conduzir a narrativa. Deixa uma pergunta. Qual a saída diante da necropolítica? O necroemponderamento? A resistência vital? A violência como uma linguagem e um poder de transformação?
Mas também uma saída mágica, uma mística política. Porque “precisamos de todos os santos e orixás, amém” para atravessar o deserto e esse imaginário adoecido. Precisamos acreditar na política e no cinema, na cultura e na arte, na educação, nas resistências cotidianas, nos enclaves e motins.
Afinal o que é um cinema disruptivo? E aqui volto a Glauber e a toda a radicalidade da arte em tempos de barbárie, “deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda”.
Podemos também invocar outro grito de guerra das lutas contemporâneas, uma guerrilha rural e urbana que se alastra: “As putas as bi, as travas e as sapatão tão tudo preparadas pra fazer revolução”.
Nesse sentido, Bacurau também tem um forte protagonismo feminino. Lia de Itamaracá como a liderança política e mística da comunidade e Sonia Braga, uma médica de pés no barro. Bacurau despe Sonia Braga de todo um imaginário de glamour construído nos filmes brasileiros e estrangeiros ao mostrá-la com todas as marcas da idade, cabelos brancos, um corpo nu, uma mulher na sua maturidade, quase uma “médica cubana” na sua abnegação e cola comunitária, uma atriz excepcional que se reposiciona desde Aquarius e, em Bacurau, transcende e se reinventa. Fazer “desaparecer” uma atriz como Sonia em uma comunidade de atores incríveis e pouco conhecidos é um feito.
Os invasores
Afinal quem são os invasores de Bacurau? “Estamos sob ataque”, percebem os moradores. A chave não está apenas no grupo de gringos predadores da água e assassinos, do prefeito corrupto, mas também na dupla de brasileiros sulistas (em oposição aos moradores nordestinos) que se identifica com esses grupos ultra conservadores. São os primeiros a serem sacrificados. Os que se acham “brancos”, superiores à comunidade local, os que se identificam com seu próprio opressor. Esses são os descartáveis. A classe média de extrema-direita é a primeira a ser sacrificada pelos ultraconservadores. Ousem questionar e virem os inimigos também. Trágico e sarcástico, mas a cena dessa revelação no filme vale por todo um tratado sociológico. O cinema faz ver!
IVANA BENTES é ensaísta, professora Titular da UFRJ, pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFRJ e da Pro Reitoria de Extensão da UFRJ. Autora de Midia-Multidão: estéticas da comunicação e biopolítica (Sulina), entre outros.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 1 de setembro de 2019

Michel Zaidan Filho: Neoliberalismo e Estado.

 
 

Recebi o honroso convite dos meus amigos, professores do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, para abrir a semana de ciências sociais, com uma palestra sobre "Neoliberalismo e Estado". Logo me vieram à cabeça as  longas discussões dos anos 90 da época de Fernando Henrique Cardoso, do Consenso de Washington, do social liberalismo, da globalização e, inevitavelmente,do Estado regulatório ou gerente.Naquela não tão distante época, recebi de uma organização não-governamental a incumbência de redigir um texto  sobre a "Globalização e o Estado", analisando as implicações da primeira sobre a soberania nacional dos Estado-nação. O fio condutor da argumentação era que a globalização dos mercados financeiros destruía a capacidade regulatória dos governos nacionais em controlar os fluxos de capital especulativo, reduzindo muito a margem de manobra do Estado em fazer política monetária, cambial, industrial, de emprego e trabalho etc. E que a desregulamentação financeira era um pressuposto importante para a chamada "integração competitiva" nos mercados globais. 

A isto, chamava-se "Consenso de Washington". Cabia aos governos, neste então, abrir a economia, flexibilizar o mercado de trabalho e desregulamentar o mercado financeiro, sob pena de afastar as empresas e investidores estrangeiros do país. Esta foi a época também da "crise fiscal" e do esgotamento das políticas de demandas típicas do keynesianismo e o Estado de bem-estar social, com repercussão direta sobre o nível de emprego, crescimento econômico, arrecadação etc. O papel dos governos passou a ser "a criação de um ambiente saudável para os negócios", através da renúncia fiscal, da privatização das empresas estatais e a entrega das políticas sociais ao mercado altruístico: ONGs, fundações empresariais e instituições filantrópicas.Não precisamos dizer  quanto o fosso social aumentou, com a assistencialização privada dos direitos sociais. A par da concentração de rendas no país. O que produziu uma espécie de ressentimento da democracia nos mais pobres, como se fosse culpa do regime democrático o aumento da pobreza e da miséria no Brasil.
Hoje a temática do neoliberalismo voltou com força em razão da situação internacional e seus reflexos entre nós. A primeira constatação é que a agente da política norte-americana de "guerra ao terror" triunfou em toda linha trazendo muita força para a direita e extrema-direita  europeia e norte-americana. Todo esforço internacional para se livrar da hegemonia política e militar dos E.U.A. do norte foram baldados, com a derrota de governos socialistas ou socialdemocratas e o enfraquecimento do multilateralismo nas relações internacionais e de seus fóruns e órgãos de integração regional:  o Mercosul, os Brics etc. Assistimos, depois da queda do muro, uma segunda onda de desconstrução de direitos no mundo todo, com sintomas de xenofobia, barreiras contra os imigrantes, preconceito racial, religioso, de gênero e orientação sexual. Talvez o melhor exemplo seja o muro que Donald Trump quis levantar na fronteira com o México, para estancar a imigração dos "chicanos" para os E.U.A.. Na Europa, os partidos de direita ganharam os governos. E na América Latina, voltou o período dos tratados bilaterais de governos liberais com o presidente americano. No Brasil, instaurou-se uma contrarrevolução perigosa, apoiada numa coalizão de militares com a igreja neopentecostal, a serviço  do capital internacional e com a conivência dos aparelho judiciário.
A volta do neoliberalismo e do fundamentalismo cristão de mercado passou  a ter uma nova conceitualização na obra de um pensador francês chamado  Pierre Dardot e Cristian Laval, intitulada: A Nova Razão do Mundo. Segundo os autores, o neoliberalismo não é uma mera continuação do  liberalismo clássico de Adam Smith, John Stuart Mill e Jeremy Bentham. O liberalismo clássico foi revolucionário na política ( contra o Estado absolutista e a sociedade de ordens) e na economia (contra as restrições ao livre movimento dos bens econômicos). Como diria Norberto Bobbio, o neoliberalismo é uma forma de liberalismo: aberto para a economia, fechado para a política. Segundo os franceses, o neoliberalismo tem de ser pensado como uma nova forma de governabilidade para o capitalismo de nossos tempos. Uma forma de governabilidade que instaura a competição em todos os níveis da vida social e destrói  todas as motivações para a ação coletiva. 

Os sindicatos, os movimentos sociais, as igrejas todos perdem seus móveis para uma forma de política coletiva,ao se instalar uma competição de todos contra todos. É uma espécie de retomada do darwinismo social, a lei do mais forte, ou a seleção natural. Se cada um for entregue a própria sorte, só restarão os mais capazes. Lembra Nietzsche, na" Genealogia da Moral", as relações de força governam a natureza e a sociedade. É lógico que o mais forte domine o mais fraco. Não se compreende que não o faça. É contra a natureza do mais forte. Por isto a figura de Cristo é incompreensível. Quem já se viu um Deus que se deixa escravizar e morrer na cruz. Deus dos escravos, diz ele, dos resignados e conformados. A lembrança do nome do Nietzsche não é a toa. É a fonte de inspiração do mais influente filósofo contemporâneo da crítica à modernidade: Michel Foucault e seu conceito de bio política. A política do neoliberalismo é uma bio política. Não se faz pela força, pela persuasão ou mesmo pela argumentação racional. Faz-se pela escolha de quem deve viver e quem deve morrer. Política bem exemplificada na saúde, na educação, na seguridade social. A decisão soberana sobre a vida das pessoas não são tomadas pelos parlamentos ou legisladores. Não. Ela é fielmente executada na seleção cotidiana dos que sobreviverão a essa destruição da rede de proteção social, legada pelo Estado de Bem-estar social. A bio política é uma espécie de darwinismo social que decide, comanda, escolhe e determina que vai viver, quem vai morrer.
Naturalmente, os pobres, os velhos, os deficientes, as etnias residuais, os desempregados não terão mais lugar no mundo, são populações supérfluas, podem e devem ser eliminadas. Estamos diante daquilo que o professor Luciano Oliveira, louvando-se na obra de Hannah Arendt, chamou de "neo-fascismo e neo-miséria". Os novos miseráveis desse capitalismo selvagem não servem nem para exército de reserva da mão-de-obra. São repugnantes  e amedrontadores. Devem ser excluídos. Pior é a mentalidade exterminadora que vai se formando entre "os excluídos sociais". Eles compartilham também desse pensamento  antissocial, agora  reforçado pelo credo de algumas igrejas evangélicas que de cristã não tem nada. Forjou-se uma nova teologia, no lugar da teologia profética da libertação. É a teologia da prosperidade: quanto mais você dá a Igreja, receberá em dobro. A prosperidade material do crente é um presente de Deus, como dizem os irmãos sorridentes da Igreja Universal.
A questão que fica é se é possível contar o exército cada vez mais crescente desses trabalhadores de aplicativo, uberizados, precários, autônomos, desempregados para a organização de um novo movimento social?-  Marx nunca alimentou esperanças que viesse dessa turma alguma resistência. Achava mais fácil se arregimentado por algum salvador da pátria ou um messias, sem trocadilho. Mas no   século 20, as coisas mudaram. Marcuse e Benjamin foram os primeiros a dizer que só em nome dos desesperançados, se podiam ainda alimentar esperanças. E os autores sociais contemporâneos apostam que a metamorfose desse corpo fabril  deve impor uma nova tipologia de organização. Não é fácil organizar pessoas em condições tão desiguais. O movimento sindical só cresceu e tomou corpo  a  partir da generalização da condição fabril (igual) dos trabalhadores. 

A heterogeneidade de base de novo exército se constitui uma enorme dificuldade para qualquer esforço organizatório. Mais difícil ainda é o diálogo dos sindicatos dos trabalhadores formais com esses setores ou com os novos movimentos sociais e suas demandas identitárias (gênero, etnia, orientação sexual, meio-ambiente etc,) O movimento sindical é um movimento redistributivo clássico, cego às diferenças. Sua prioridade é o que é igual. O debate com os novos movimentos é penoso e cheio de desconfiança. Mas deve ser feito. Se me pedissem um formato organizativo desses movimentos diria que o Fórum Social Mundial e as jornadas globalização de Seattle e Davos poderiam servir de aproximação. Mas tem de reconhecer que o fórum é plural, não tem uma única linha de ação, não tem um único móvel e bandeira. Nem chefe nem centralização. Sua estrutura flexível e frouxa é condição de sua existência.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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Michel Zaidan Filho: Piromaquia amazônica

  
 
Seria um simples truísmo dizer que a floresta amazônica é o pulmão da humanidade e por isso deve ser preservada a qualquer custo. No entanto, ela é mais do que isso: sua vegetação abundante e robusta ajuda muito absorver a quantidade de carvão produzido na atmosfera pelo aquecimento global. A destruição da floresta implica num crime contra a humanidade,não só contra os brasileiros. A responsabilidade civil e penal pela destruição de um dos maiores biomas do planeta é, em primeiro lugar dos governos nacionais e estaduais da região amazônica (Brasil, Peru, Colômbia) que deve envidar todos os esforços  para protegê-lo, reflorestá-lo e punir energicamente os que atentam contra a sua existência (madeireiros, agropecuaristas, produtores rurais, empresas brasileiras e estrangeiras). Mas essa responsabilidade vai muito além das fronteiras nacionais do países que compõem a região amazônica. 
 
A biodiversidade ali reinante (animais, espécies vegetais e minérios) constituem patrimônio comum da humanidade e deve ser objeto de proteção da comunidade internacional, através de "fideicomissos" ou fiscais encarregados pelas organizações internacionais de velar pela sua sobrevivência e continuidade. Há tempo que se discute esse patrimônio comum: os oceanos, o espaço sideral, os cursos de água doce etc. Permitir que a incúria ou a inércia administrativa de um governante nacional deixe queimar 10% da floresta é um crime ambiental e internacional. O que se sabe é que o presidente foi avisado, através de ofício, da extensão das queimadas na região. E que uma associação de produtores se movimentou através das redes sociais para atear fogo na floresta. A  pergunta que não quer calar é se esse  crime pirotécnico não contou com a conivência tácita das autoridades federais e estaduais. 
 
O mais grave é que o atual ministro do meio-ambiente já demonstrou seu descaso e despreparo (para não dizer coisa pior) para ocupar o ministério. E que até mesmo o vice-presidente da República sugeriu que se vendesse a amazônia, em razão da "indolência " dos seus habitantes originais. Curiosa é a reação do chefe de governo, ao dizer que a amazônia não vai ser vendida a prestação a algumas nações do G7, que ofereceram ajuda financeira para a proteção da floresta. Tal afirmação pode ser interpretada como se ele quisesse vendê-la a grosso a países ou empresas interessadas em explorar a sua rica biodiversidade.
 
O Brasil  não vive isolado do mundo. A defesa do meio-ambiente faz parte de uma pauta internacional, como a paz, o combate a miséria e a defesa dos direitos humanos. Não se trata de perder a soberania, por integrar esse conjunto de países e aceitar a cooperação intergovernamental no que tange à preservação de nossos recursos ambientais. A  pior forma de nacionalismo é o chauvismo estreito e de conveniência para agradar incautos e idiotas.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

A via como ela é

A vida como ela é

Insegurança, angústia e masturbação excessiva: nova biografia de Nietzsche joga luz no homem comum por trás do pensador brilhante
Pedro Duarte 28ago2019 16h51
 
O pensador alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Prideaux, Sue Eu sou dinamite! A vida de Friedrich Nietzsche
TRAD. Claudio Carina
Crítica/Grupo Planeta • 440 pp • R$ 99,90
Caetano Veloso diz que todas as suas letras são autobiográficas, e que mesmo as que não são o são. Embora sua vida concreta figure explicitamente em várias canções, ela está presente até naquelas em que isso não ocorre. Nada poderia justificar melhor o interesse pela leitura de biografias. Para além das curiosidades pessoais, elas oferecem pedaços brutos de uma vida na qual o pensamento ou a obra não estavam prontos, mas ainda nascendo. Pode-se revelar nelas não somente o que alguém fez, mas também quem essa pessoa foi.
Esse é o mérito da nova biografia sobre o explosivo filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), escrita pela historiadora da arte Sue Prideaux. “Eu sou dinamite!”, dizia o pensador alemão sobre si mesmo, e esse foi o título escolhido para o livro. A prosa aguda e desafiadora de Nietzsche, às vezes abusada e violenta, justifica a relevância filosófica dessa caracterização — ainda que hoje, depois de testemunharmos tantas explosões da tradição, a atitude possa soar datada. Denunciando o crepúsculo dos ídolos e olhando uma nova aurora, para além do bem e do mal, Nietzsche, no fim do século 19, mudou a história da filosofia e da cultura do século 20 em diante.
Longe de qualquer falsa modéstia, foi o próprio Nietzsche quem, em sua autobiografia Ecce homo (escrita em 1888), falava da desproporção entre a grandeza de sua tarefa e a pequeneza de seus contemporâneos, que por isso não o teriam ouvido. É assim que ele justifica a necessidade de dar um testemunho de si, dizendo quem era e clamando: “Ouçam-me!”. Talvez a dificuldade estivesse no fato de que, ao invés de elogiar a humanidade e seu progresso moderno, ele criticava ambos. Escrevia para abrir no presente um tempo por vir, apostando na sua potência criadora.
Prideaux, contudo, narra a história da vida de um homem ao rés do chão. Não é o triunfalismo heroico que prevalece, embora a coragem extemporânea de Nietzsche — não só na sua época, mas contra ela — seja destacada. Estamos diante de um homem que tem aflições, mas ri; tem angústias, mas socializa. Uma pessoa. Com pequenezas, como todos nós. Há o pai que morre, a mãe cristã, a irmã nazista, as mulheres com quem se relaciona, as doenças, as roupas que não o vestem bem, o trabalho, os duelos de esgrima. Tudo humano, demasiado humano.
No núcleo da vida contada por Prideaux está a amizade que o jovem professor e filólogo, já atuante na universidade, tivera com o então experiente e consagrado compositor Richard Wagner. Filósofo e artista se aproximaram. O pensamento e a música também. O primeiro grande livro escrito por Nietzsche, O nascimento da tragédia (1872), jamais seria o que foi sem essa amizade. Havia muita troca intelectual e admiração mútua, com longas conversas em belas paisagens. E interesses sociais: Wagner se sentia bem com o endosso do novo crítico, enquanto Nietzsche podia desfrutar da intimidade com o mestre e com seu círculo cultural amplo.
Prideaux escreve com certo gosto por desfazer mitos que buscam enaltecer cada momento da vida com uma grandeza particular. Por isso, assim como sublinha as afinidades espirituais de Nietzsche e Wagner, observa seus interesses pessoais, já que ambos tinham a ganhar com a relação que estabeleciam. O procedimento da biógrafa será igual para explicar a separação dos amigos, motivada não só por diferenças de ideias, mas também por desavenças afetivas.
É verossímil que, enquanto Wagner permanecia atado ao nacionalismo germânico, Nietzsche acalentasse, cada vez mais, o cosmopolitismo europeu. É verdade que as concessões da arte de Wagner ao cristianismo, especialmente com a ópera Parfisal (1882), colidiam com o pensamento de Nietzsche, que criticava furiosamente a religião fundamental do Ocidente por causa de seus ideais ascéticos.
Contudo, mesmo que essas diferenças sugiram o afastamento entre os dois, para Prideaux, não iluminam seu rompimento definitivo, cuja causa seria um episódio íntimo. Preocupado com a frágil saúde de Nietzsche, Wagner o recomendou a um médico amigo, a quem escreveu cartas com a hipótese de que as doenças provinham de seu excesso de masturbação — a bizarrice da hipótese nos chama a atenção hoje, mas parece que, na época, era comum. Pois bem:
Nietzsche descobriu as tais cartas e se ofendeu, o que explicaria o fim da intensa convivência entre ambos.
Descida mundana
O mérito da biografia está nessa interpretação livre de academicismos e atenta aos detalhes da vida comezinha dos afetos e dos corpos. É uma descida mundana que restitui a humanidade real dos personagens, em vez de corroborar sua idealização — e há algo de nietzschiano em tal operação. Dados empíricos funcionam bem para essa finalidade, colocando sob suspeita episódios romantizados, e a eles fazendo um contrapeso, como aquele em que Nietzsche teria abraçado um cavalo. Contudo, por um outro lado, subestima-se por vezes o quanto o pensamento decide a vida, especialmente a de alguém que era um pensador.
Nesse contexto, vale destacar que esta é a mais recente biografia sobre Nietzsche traduzida para o português, mas não a única. Pela editora Vozes, foi publicado o monumental empreendimento de Curt Paul Janz, Friedrich Nietzsche (2016), uma caixa com três volumes. Pela Geração Editorial, Rüdiger Safranski — que escrevera sobre Heidegger, Schopenhauer e o Romantismo — teve traduzida sua biografia intelectual de Nietzsche, Biografia de uma tragédia (2001). Nos dois trabalhos, o homem que se tornou um improvável fenômeno pop há décadas é reposto em seu contexto histórico e filosófico de origem. E ainda há outros, que buscam explicar como o eu individual, a história coletiva e o pensamento se juntam em uma vida.
Para quem se interessa em conhecer, além da vida de Nietzsche, o que ele entende filosoficamente por vida, vale também sublinhar que os estudos a seu respeito no Brasil atingiram grande maturidade e profundidade. Sobre o tema em causa, o livro Nietzsche, vida como obra de arte (Civilização Brasileira, 2011), de Rosa Dias, é um ótimo exemplo, explorando de que modo, para ele, vida é vontade de potência — ou seja, não só adaptação ou conservação, mas sobretudo criação. Poderíamos perguntar: Nietzsche esteve à altura do desafio que ele mesmo colocou nesses termos?
Tal pergunta pode estar no pano de fundo da biografia de Prideaux, à qual falta envergadura teórica, mas que conduz com habilidade narrativa jornalística a vida de Nietzsche, desde seus “anos de formação”. O talento da escritora para contar histórias assim foi precedido pelas biografias que fez sobre o artista Edvard Munch (que pintou um famoso retrato de Nietzsche) e o dramaturgo August Strindberg (com quem Nietzsche trocara cartas). Nesta obra, podemos descobrir que não é apenas pela escrita de Nietzsche que ninguém passa incólume, mas também por sua vida: perturbada, arriscada, experimental, numa busca infinita por si mesma. Naturalmente, tal busca não se daria sem solavancos, tanto intelectuais quanto biográficos.
De aluno a mestre
“Retribui-se mal a um mestre continuando-se sempre apenas aluno”, Nietzsche já deixara escrito em sua autobiografia. Ele seguira à risca o aviso, e essa é talvez a chave da narrativa de Prideaux. Sua ênfase na centralidade de Wagner e da filosofia de Schopenhauer para o jovem Nietzsche é seguida, assim, pela virada que o fez abandonar e criticar ambos. Deixando de ser aluno, ele retribuía a seus mestres. Era seu crepúsculo dos ídolos particular. Se precisara deles para se tornar quem era, agora devia deixá-los para continuar a se tornar.
Isso tudo se passou no estilo agressivo de Nietzsche, que em parte era próprio de seu gênio e em parte uma marca geracional que começava a se esboçar. Não era só a época da crítica, como nos casos de Kant, Hegel ou Marx, os grandes filósofos dos séculos 18 e 19. Era a época das vanguardas, como as que criaram movimentos estéticos já no século 20. Recusou Wagner e Schopenhauer com a mesma retórica de ruptura pela qual se voltara contra toda a metafísica desde Platão. O excesso de tradição e moral parecia suspeito, embotando os espíritos livres.
Pessoalmente, essa liberdade de espírito o encantou em Lou Salomé, a bela mulher que não se interessava em casar, não dava bola para a opinião alheia e queria mesmo era épater le bourgeois: chocar a burguesia. Ela, por sua vez, descreve argutamente o olhar de Nietzsche: “Para dentro, por assim dizer, ao longe”. Lou despertou o interesse de Freud, Rilke e outros grandes homens da época. Nietzsche viveria com ela um triângulo amoroso, do qual participava também seu amigo Paul Rée.
Se Lou Salomé irrompe na biografia como a principal mulher a determinar a vida de Nietzsche, é outra, já também muito importante, que ganha protagonismo decisivo após a sua morte: a irmã Elisabeth. Ela ficou responsável por toda a organização do espólio de Nietzsche, e deu à sua obra um tratamento enviesado, obedecendo a suas próprias preferências políticas nazistas. Boa parte da biografia de Prideaux se dedica, acertadamente, a esclarecer o mal-entendido, embora mais uma vez de um ponto de vista sobretudo empírico, não tão filosófico (diga-se de passagem que, aqui no Brasil, essa tese foi defendida desde 1946 pelo crítico literário Antonio Candido, como está documentado em um belo artigo no jornal Diário de São Paulo, no qual afirmou ser preciso afastar a propaganda e a ingenuidade que fariam de Nietzsche um precursor do nazismo).
O furor de transformação política talvez não fosse estranho à linguagem filosófica de Nietzsche, cheia de metáforas potentes e ameaçadoras. Contudo, Prideaux distancia essa sua energia do direcionamento nacional-socialista que lhe foi dado pela irmã. O livro A vontade de poder (1901), por exemplo, é uma costura feita por ela de fragmentos aos quais Nietzsche jamais deu forma final. Para Prideaux, ela nunca entendeu o que pensou o irmão, um bufão piadista, e não um santo com certezas. Cita, para confirmar o argumento, o ideólogo nazista Ernst Krieck, que observou sarcasticamente que, à parte o fato de não ser nacionalista nem socialista e contrário ao racismo, Nietzsche bem poderia ter sido um líder do nacional-socialismo.
Nietzsche se sabia e se queria bombástico: dinamite. Sua crítica à razão filosófica tradicional foi vivida com tanta verdade que o levou à loucura. Seu espírito não deixou de estar na origem de movimentos como o Futurismo ou o Surrealismo e de tantos impulsos do século 20 que viam na destruição a libertação de uma prisão. Seria uma destruição criadora. Mesmo no Brasil, o artista Hélio Oiticica ousou dizer, sobre os seus próprios escritos, que estava sentado em cima de dinamite. Era ainda filiado a essa retórica da vanguarda provocadora, que gostaria de explodir seu presente — e da qual hoje já podemos fazer uma história rigorosa, não sendo o nosso solo cultural contemporâneo, embora resista no apelo existencial de jovialidade.
Interessa, por isso, descobrir nessa biografia de Prideaux que o autor destemido também tinha seus momentos de hesitação. “Minha falta de confiança agora é imensa”, confessa numa carta. Que diferença para aqueles capítulos deixados em sua autobiografia com títulos como “por que sou tão inteligente” ou “por que sou um destino”. Há muito de ironia na escrita de Nietzsche, é claro, porém também há um movimento constante, que revela uma assertividade não dogmática. E, no fim, Nietzsche não deixou de ser um destino, embora, ao mesmo tempo, tenha se tornado a abertura para nos tornarmos algo diferente do que somos. Um ocaso. Uma travessia.
Nietzsche falou da morte de Deus, da inversão do platonismo e do super-homem. Suas expressões todas sinalizam essa busca do novo. Mais importante, contudo, é que ele incorporou essa busca na linguagem. Seus aforismos, avessos aos auspícios tradicionais do sistema na filosofia, são fragmentos velozes em que os pensamentos correm agilmente, como em uma dança. Prideaux o chama de “estilista” por causa disso, o que atingiria o ponto culminante com o romance filosófico Assim falou Zaratustra (1883). Essa é, ainda, uma potência da filosofia de Nietzsche, pois exige do pensamento uma realização estética: que o conteúdo atue com a forma, e que as ideias estejam vivas na escrita.

(Publicado originalmente na revista dos livros Quatro Cinco Um)

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Charge!Laerte via Folha de São Paulo

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Michel Zaidan Filho: República de milicianos



 

Há alguns meses, escrevi um artigo chamado “sociedade sem estado”, referindo-me a um fenômeno conhecido por “libanização”. Esta expressão designa a inexistência de Estado, instituições políticas organizadas, autônomas e independentes. E manifestava apreensão sobre a inquietante associação do clã Bolsonaro com milicianos que operam no Estado do Rio de Janeiro. O elo de ligação seria o assessor do filho de Bolsonaro, cognominado de “Queiroz”, que nunca prestou depoimento nenhum à polícia sobre as fantásticas movimentos financeiras na conta do filho mais velho do Presidente.

As últimas medidas tomadas pelo chefe da nação só alargaram o campo da quela inquietação original. Intervenção na Polícia Federal do Rio de Janeiro, intervenção no Coaf, intervenção na Receita Federal. Tudo isso é um forte indício de desmonte de instrumentos legais de controle e fiscalização de crimes financeiros e fiscais praticados por bandidos de “colarinho branco” no Brasil (malandros federais, como dizia a música de Chico Buarque de Holanda). Quando se sabe que algumas dessas investigações tinha como alvo exatamente as contas do filho de Bolsonaro, inclusive os bens não declarados à Receita, por ocasião do registro de sua candidatura na Justiça Eleitoral fluminense, entende-se a preocupação do chefe em neutralizar a ação investigatória dessas instituições públicas.

O significado profundo dessa anomalia administrativa é blindar as operações não contabilizadas, o verdadeiro duto de recursos que enchem as burras de integrantes desse clã familiar. O Estado do Rio de Janeiro é conhecido como um território de guerra entre facções e bandos, por onde flui diuturnamente o contrabando de armas e drogas. E muita gente se beneficia desse estado de ilicitude e beligerância. Antigamente, falava-se de um estado pararelo naquela unidade federativa. Hoje o paralelismo deu lugar a uma unidade entre o legal e o ilegal, sob as barbas do Poder judiciário brasileiro.

Ao intervir discricionariamente na cúpula daquelas instituições fiscalizadoras, acendeu a luz vermelha da ultrapassagem da tênue linha que separava a contravenção da legalidade, instaurando a primeira no coração das instituições republicanas. O país não pode e não deve ser governado como uma casa-grande de uma fazenda ou um distrito rural, onde pontifica a vontade incontrastável de um déspota ou mandatário, sob pena se tornar inviável a vida republicana, laica e constitucional. Uma republiqueta de “bananas”, onde a vontade imperial do chefe manda e desmanda, faz e desfaz, desrespeitando os comandos constitucionais, a autonomia dos poderes, corrompendo os parlamentares e ameaçando os juízes. E para coroar: destruindo os nichos do pensamento crítico (as universidades) e os direitos arduamente conquistados pela população.

É  esta a nova interpretação da história, simbolizada na reabilitação da memória de um torturador cruel que se quer contar, agora, para a posteridade?


Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia