Não
há um acontecimento mais debatido, na imprensa internacional, do que o
ataque as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque. Os EUA tinham sofrido antes as consequências de uma dura guerra civil
que até hoje deixou sequelas raciais no país. 0 ataque ao World Trade Center seria a segunda guerra em solo americano, agravada pela autoria
de agentes externos. Descontados os efeitos da derrota no Vietnã e a
contracultura dos anos 60, o 11 de setembro representou um trauma na
ideia da invulnerabilidade do grande país do Norte.
A maioria dos analistas da política internacional
concordam que o evento e as mortes que ele causou provocaram uma grande
mudança na política externa americana. Após o ocorrido, a política dos
direitos humanos foi servida pelos governos nacionais a lá carte,
no sentido de sua submissão as conveniências estratégicas e econômicas
das grandes nações. Quem o disse foi a alta comissária dos direitos
humanos da ONU. A começar pelos EUA, com a edição do patriotic act,
que no dizer do romancista Gore Vidal, suprimiu na prática as liberdades
civis em solo americano em nome da segurança dos cidadãos. Foi quebrado
o sigilo das comunicações postais e eletrônicas e os estrangeiros foram
(ainda são) vítima de perseguição em razão da cor, da religião ou
da ideologia.
As consequências mais graves, contudo, manifestaram-se na
política externa norte-americana, submetida doravante a agenda "de
guerra ao terror", o que representou uma espécie de carta branca para
invadir, perseguir, matar e destruir os países do Oriente Médio e Ásia
Central, suspeitos aos olhos do Pentágono de colaborar com os militantes
da Al-Qaeda ou Bin Laden. Aventuras militares que arrastaram consigo a
maioria dos países europeus, com exceção da França e da Alemanha. Os
americanos nunca aceitaram o fato de que a União Europeia tivessem uma
política externa independente. A lealdade canina dos ingleses e a
presença militar americana em terras europeias -representada pela OTAN -
mesmo depois do fim da Guerra Fria só tem como explicação a
permanência da influência de Washington no contexto da
política externa da Europa. De nada adiantou o manifesto assinado por
Habermas e Derrida por uma política externa independente. A agenda de
"Guerra ao Terror" triunfou em toda linha arrastando consigo os
principais governos europeus, com a colaboração da Alemanha de Ângela Merkel.
A invasão da Líbia, a guerra civil na Síria e o apoio a
ditadura egípcia que derrubou o governo legítimo da irmandade muçulmana é
a prova inconteste da hegemonia americana na política internacional.
Está agenda tem um pesado custo: a guerra movida pela frente ocidental
contra o estado islâmico tem provocado a morte de muitos civis e forçado
a imigração massiva de velhos, doentes, mulheres e crianças levando os países europeus a fecharam as fronteiras e não
respeitarem as leis humanitária de conceder o direito de refúgio a esses
imigrantes. Numa política de absoluto cinismo e indiferença para com o
sofrimento humano. Aceitam fazer parte da coligação capitaneada pelos
americanos contra governos árabes, mas não aceitam acolher as vítimas
dessa calamidade humanitária. Simultaneamente, os países membros da
"entente" anti-terror tornam-se alvo, por excelência, das ações do
estado islâmico, em represália a esse política anti-terror. Em alguns
casos, o desrespeito cultural alimenta a guerra, como o jornal francês
que publicou charges ofensiva ao islamismo.
O certo é que depois do 11 de setembro o
mundo ficou mais inseguro e inóspito para se viver. Até hoje se debate
as causas verdadeiras do ataque às torres gêmeas, especulando os
motivos internos do governo de George Bush, nos desdobramentos desse
episódio e suas relações com a família de Bin Laden. O fato é que a
política internacional voltou, como nunca, a ser comandada pelos
interesses estratégicos e comerciais dos EUA. e as liberdades
públicas sofreram um enorme golpe, no mundo inteiro.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Girolata Triptych, Joan Mitchell, 1964 (Foto: WikiArt/Domínio Público)
Acha-se num dos contos de Grimm uma
narrativa sobre um moço que saiu a aventurar-se pelo mundo para aprender
a angustiar-se. Deixemos esse aventureiro seguir o seu caminho, sem nos
preocuparmos em saber se encontrou ou não o terrível. Ao invés disso,
quero afirmar que essa é uma aventura pela qual todos tem de passar: a
de aprender a angustiar-se, para que não venham a perder, nem por jamais
terem estado angustiados nem por afundarem na angústia; por isso,
aquele que aprender a angustiar-se corretamente, aprendeu o que há de
mais elevado Soren Kierkegaard – O conceito de Angústia
Uma sensação difusa, próxima de uma ansiedade, mas sem objeto,
parecida também com o medo, mas sem causa específica. Uma inquietude
metafísica, mas sem linguagem organizada. Nem bem um pavor, nem bem
horror ou terror, mas um mal estar, uma falta flutuante, uma ameaça
fantasmática e um sobressalto iminente. Eis o quadro de uma experiência
conhecida individualmente e que hoje se torna um sintoma social. Ele diz
respeito a um conceito filosófico fundamental, a angústia.
A angústia é um sentimento disperso e desagradável e, ao mesmo tempo
que carrega uma inquietação metafísica, é algo paralisante. Um filósofo
que pode nos ajudar a compreendê-la é Kierkegaard que viveu no século 19 na Dinamarca. Kierkegaard vai influenciar muitos pensadores com seu tratado sobre O conceito de Angústia
escrito em 1844 sob o pseudônimo de Vigilius Haufniensis. Nesse livro
ele nos apresenta o conceito de angústia como uma posição fundamental,
talvez a mais essencial no desenho do complexo ser humano. E por que a
angústia seria tão fundamental? Porque ela que nos ensina o que é a
“interioridade existencial”. É a angústia que nos dá a medida da
experiência do sujeito enquanto sujeito humano. No lugar de um “penso,
logo existo”, poderíamos definir a experiência da angústia como aquilo
que está no lugar do pensamento. Como se a angústia fosse o nascedouro
da consciência.
Na visão do filósofo dinamarquês, a angústia é constitutiva da
condição humana. Ela faz parte da vida. Inevitável, ela surge no momento
em que somos confrontados justamente com as possibilidades da vida,
sejam elas boas ou não aos olhos acostumados às sombras das verdades
prontas. Surgirá daí a liberdade como uma condenação, como depois nos
explicarão Sartre, Beauvoir e outros pensadores existencialistas.
A angústia é o efeito do nosso contato com as possibilidades da vida
mais ou menos estreitas conforme as circunstâncias vividas por cada um.
Ao falar de angústia, estamos diante daquilo que nos oprime, como um
canal estreito, um obstáculo a ser atravessado. Tal é a sua etimologia.
Mas ela é mais do que um sentimento, ela é a posição que implica a
percepção, um certo tipo primitivo de saber sobre o caráter absurdo da
vida e, no meio dele, a consciência do minúsculo ser humano lançado
entre a potência e a impotência, o brilho e o apagamento, a grandeza e a
miséria de sua própria condição. Heidegger, influenciado por
Kierkegaard, dizia que temos que fazer escolhas, mas não temos certeza
de que haverá resultados favoráveis a nós. “A única certeza é a vida de
culpa e ansiedade”, ele dirá em um livro como Ser e tempo (1927).
Talvez o reconhecimento de que há um destino para além da vontade
humana reposicione o ser humano diante da natureza, da história, do
outro e de si mesmo. Talvez a angústia ceda de sua imobilidade diante da
aceitação da finitude. Mas como aceitar a finitude nesse tempo em que
perdemos a capacidade de meditar sobre a morte e, ao mesmo tempo, tudo parece tão morto? Autopedagogia
A angústia nos coloca, portanto, a questão de nossa presença no
mundo. Não se trata apenas da pergunta pelo que somos, ou o que fazemos,
mas o que estamos experimentando. O que recebemos, damos e “levamos”
dessa vida? O que é realmente importante? O que realmente pode ou deve
ser vivido? Como vivemos diante do fato de que estamos necessariamente
relacionados a nós mesmos, além de estarmos relacionados aos outros e à
alteridade como lugar da diferença?
Bem vivida, a angústia é a chance de estabelecer uma relação
autêntica com a gente mesmo. Com o que somos. Ela envolve uma
autopedagogia pessoal.
Nela é que podemos nos perguntar “como me relaciono comigo mesmo?”, que é
algo bem mais complexo do que a crença em um “autoconhecimento”. É a
angústia que pode nos dar as condições de fazer a pergunta “como me
torno quem eu sou?”.
E me faz saber que não posso responder a ela se não avaliar as
demandas, as imposições, as ordens e os modismos que me afastam de mim. É
a angústia, portanto, que me devolve a mim mesmo. Que evita a alienação
à qual nos convida o nosso tempo sombrio.
A ação de despejo movida pelo
INCRA contra o MST, retomando a posse da fazenda Normandia (Caruaru) cumpre
estritamente o programa de retaliação e criminalização dos movimentos sociais
no Brasil, anunciado antes pelo senhor Jair Bolsonaro.
A exemplo das ações
criminosas contra as terras dos indígenas, quilombolas, contra os negros,
homossexuais, a escola pública e o meio-ambiente, este governo pratica um
verdadeiro crime de lesa-sociedade.
O MST é um movimento social
moderno, exaltado por personalidades do mundo inteiro. Faz parte de um comitê
mundial dos povos da terra, tem sido um participante assíduo do fórum social
mundial e contribuído, também, para o avanço da democratização das estruturas
agrárias brasileiras.
A fazenda Normandia é uma
verdadeira escola da mais alta importância para os trabalhadores rurais. As
universidades públicas têm contribuído frequentemente com seus quadros para o
trabalho de formação de agentes sociais. Tem sido também um laboratório de
novas formas coletivas e solidárias de produção autossustentável. As
cooperativas do MST ajudam a colocar comida boa e barata na mesa do povo
brasileiro e ensina os princípios da agroecologia.
É lamentável sob todos os
aspectos essa espécie de vindita social contra os movimentos sociais.Tal medida só pode partir de uma mente insana
a serviço dos grandes agro negociantes, das empresas de alimentos transgênicos
e do agrotóxico. Poucos movimentos sociais granjearam tanta admiração e apoio
da sociedade como o Movimento dos trabalhadores sem-terra. Foi ele considerado
por Manuel Castels um movimento de “identidade de projeto” não apenas de
“reação”.
Chico Buarque de Holanda,
José Saramargo e Sebastião Salgado reconheceram o seu importante papel na
sociedade. Abundam na universidade os estudos sobre a capacidade do MST
produzir fatos políticos através do poder simbólico. Sua tríade: “terra,
trabalho e vida” se opõe como nenhuma coisa a esse capitalismo rentista que faz
da propriedade rural mera reserva de valor, enquanto milhares de brasileiros
morrem de fome ou não tem um chão para plantar.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Silvero Pereira como Lunga em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (Foto: Victor Jucá/Divulgação)
Há algo de profundamente perturbador em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, talvez o mais importante filme contemporâneo sobre o Brasil distópico da era Bolsonaro. Mesmo tendo sido filmado antes das eleições de 2018 e da catástrofe política em andamento, Bacurau
é um filme visionário e violento, uma ficção científica e política que
não tem nada de alegórica. Ao contrário, é explicita e brutal, de uma
lucidez aterradora.
Um filme em que os gêneros faroeste, ficção científica, filme de
terror, filmes de ação hollywoodianos, rambos e exterminadores se
encontram com um rural contemporâneo que explode clichês. Bacurau é um extraordinário remix do imaginário hollywoodiano com a tradição do Cinema Novo brasileiro: a estética da fome, a estética do sonho e a pedagogia da violência de Glauber Rocha com banhos de sangue prêt-à-porter vindos dos filmes de ação e reality shows. Um filme de crítico de cinema, de cinéfilo e de um diretor que chegou ao auge da destreza narrativa. Cinema Transgênero
Com Bacurau Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazem uma
espécie de faroeste transgênero, no sentido dos gêneros do cinema, mas
também ao explodir os clichês dos comportamentos. Um cangaço trans em
que cada espectador projeta suas referências e desejos.
Mas o que o aproxima do Glauber de Deus e o diabo na terra do sol, de 1964, ou de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de
1969? Estamos falando de filmes de invenção de um imaginário rural
brasileiro catártico, que inventam uma mística política vinda do povo.
Vinda dos oralistas, dos interioranos, do inconsciente explodido das
periferias rurais do Brasil.
Mas são muitas as referências: o Godard de Weekend à francesa (1967) ou de Alphaville (1965), ficção cientifica godardiana profundamente distópica. Com a diferença que não há mais nenhum romantismo em Bacurau,
apenas um sarcasmo ou riso vingador ou irônico. Como na cena das
execuções públicas no Anhangabaú, exibidas na TV, cenas que ecoam os
linchamentos midiáticos que são as novas formas de execuções públicas. Mad Max sertanejo
O filme trata de questões urgentes: crise da água e do meio ambiente, empresas e políticos com ethos
milicianos, forças paramilitares ou mercenários globais. Atravessada
por essas forças, uma nova Canudos na beira da estrada ou uma cidade Mad Max
sertaneja. Uma Canudos genérica, pronta para explodir. Tudo filmado
como uma espécie de reality show perverso e alucinatório, com jogos
violentos e extremos e com personagens estranhamente familiares e
“normais”.
Mas do que se trata o filme? Antes de mais nada de um rural
contemporâneo. Um Brasil das cidadezinhas do interior completamente
conectadas com o urbano. Atravessadas por redes de celular, tecnologias
de vigilância e controle, telas de LED, drones, carros e motos
possantes, distribuição de psicotrópicos e remédios que controlam o
humor, uma cidade rústica, mas que poderia protagonizar um episódio de
Black Mirror e que querem apagar do Google Mapa. O que fazer diante do capitalismo gore?
A segunda questão é exatamente essa. O que podem (como agir,
resistir, se governar) as comunidades que estão sendo atacadas e
apagadas pelo capitalismo das “tripas e sangue”? E aqui tomo emprestado o
conceito da mexicana Sayak Valencia para descrever a vida nas
fronteiras de Tijuana, em que comunidades inteiras têm que lidar com o
que nomeia de “capitalismo gore”, um capitalismo mafioso, da
narcocultura, milícias, assassinatos.
Esse capitalismo gore, com suas tripas e sangue, é também uma
construção cultural. O termo tem origem no gênero cinematográfico splatter,
com o uso gráfico e extremo da violência, o grotesco e a violência
explícita como linguagem. O assujeitamento e ações predatórias, onde
se pode infligir dor e violência contra os corpos, mas também pensar a
violência como necroempoderamento.
Diante de um neoliberalismo que fracassou na sua utopia de mercado,
diante de uma democracia em agonia, os sujeitos, os cidadãos, a
comunidade também quer partilhar e participar da violência como forma de
resistência e sobrevivência.
As fronteiras, as cidade das bordas e periferias, as periferias, as
comunidades apelam para um autogoverno e ações extrajurídicas. Como em
Canudos amotinada, novos laboratórios do pós-colonialismo, mas também
das insurreições contemporâneas. Enclaves, tribos, comunidades
distópicas e utópicas se inventando. Sonia Braga como Domingas em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (Foto: Victor Jucá/Divulgação)Os insurgentes em uma democracia em agonia
Diante de fantasias de poder ultraconservadoras, diante de figuras
ultraviolentas como Witzels e Bolsonaros, seres “endriagos”,
demolidores, que surgem produzindo a gestão da morte, as comunidades se
apropriam da violência como ferramenta de empoderamento e de
resistência. Uma saída possível do lugar de vítima para a de vingadores. Bacurau traz de volta o imaginário das guerrilhas dos anos
70 sem fazer qualquer menção, sem qualquer discurso político ou
panfletário, simplesmente a narrativa empurra os personagens às armas!
Mas quem são esses novos heróis de uma Canudos revisitada? O Brasil
que emergiu no ciclo democrático dos últimos 13 anos, as minorias que se
tornaram sujeitos do discurso, os ex-quecidos do Brasil rural,
ribeirinho, periférico, as figuras fronteiriças, como a extraordinária
cangaceira trans, encarnada por Silvero Pereira.
Uma Canudos remixada que traz também personagens de uma dor extrema,
como a mãe diante do filho executado no escuro, com o uniforme do
colégio, uma cena arrepiante que vai entrar para a história do cinema
brasileiro. E toda a comoção da cidade diante das mortes seriais.
Os personagens de Bacurau trazem nos corpos, nos cabelos, na
cor da pele, um Brasil que emergiu e ganhou visibilidade. Homens e
mulheres, negros e negras, trans, putas, os caboclos e povos
originários. Magníficas as cenas de um devir índio dos personagens que
andam e vivem nus nas suas casas de barro, falando com as plantas,
vivendo em uma temporalidade estendida, donos de poderes mágicos e de
uma cosmovisão.
Impossível não ver neste faroeste caboclo sideral os banhos de sangue, as Marielles assassinadas, a potência das mulheres, todo um novo cangaço das lutas de maiorias, minorias e transgêneros. Hiper realismo alucinatório
Não há nada de fantasioso em Bacurau, o filme é de uma
clareza e brutalidade alucinantes, uma espécie de documentário sobre o
imaginário em que estamos. O que poderia ser traumático, o jorro de
sangue, a violência gore, todos os corpos dilacerados, cabeças
decepadas, os requintes de crueldade e o gozo e erotismo diante da morte
se tornam elementos catárticos e redentores ao final do filme.
Diante do trauma político em que estamos. Diante da percepção
cotidiana de que “estamos sendo atacados” em nossos valores, em nossos
impulsos vitais, em nossas vidas, em nossas sexualidades, Kleber
Mendonça apresenta uma guerrilha de bolso. Um laboratório na cidadezinha
do interior de Pernambuco. Bacurau é meio Dogville de Lars Von Trier. Bacurau é Dogville, Alphaville, Canudos, um território
separado geográfica e temporalmente do resto do país. O Brasil, São
Paulo, são ficções distantes. Como a República era uma ficção para o
arraial sertanejo. Como em Os sertões de Euclides da Cunha, Kleber Mendonça nos apresenta a Terra, o Homem e a Luta.
E que emoção ver o cinema glauberiano e o imaginário euclidiano
vivos, reinventados em um presente urgente que atualiza personagens como
Antônio das Mortes, Corisco, Lampião, a mística política presente em um
mesmo filme sem fim que estamos fazendo, uma brasiliana contemporânea. Bacurau traz uma linguagem impactante. Um remix de Glauber
com Tarantino e Godard, e ainda revisita o tropicalismo cinematográfico
de filmes como Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr .,que proclamava em 1969 que “aqui é o fim do mundo” .
Uma ficção científica apocalíptica que é um retrato do Brasil em 2019. Não identificado, a música de Caetano cantada por Gal Costa, que abre o filme, vem diretamente deste espaço sideral, anos 60/70, nossos “negros verdes anos”, de ditadura militar
e do auge de invenções na cultura, uma explosão criativa de
cinemanovismo, tropicalismo etc. Kleber Mendonça revisita o lado B do
tropicalismo solar: distopia, anarquia, um tropicalismo underground e
sombrio que não chegou na cultura de massas. Bárbara Colen como Teresa em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (Foto: Victor Jucá/Divulgação)Efeitos colaterais Bacurau produz efeitos colaterais e sensoriais imediatos.
Seja um estupor melancólico frente ao cenário político que estrebucha na
tela, seja o efeito catártico. Ouvi pessoas que gritam e aplaudem,
urram diante das mortes horríveis, cabeças decepadas e castigos
infligidos aos vilões. Outras despertam eufóricas com as imagens, a
montagem, como se fosse um soco ou um pegar pelos ombros que nos sacode
por inteiro. Ou ainda um choro, uma comoção, não se sabe bem por que,
mas que o filme desata, como esses nós que se desfazem sozinhos depois
que já ferimos os dedos da mão tentando abrí-los.
São muitas as referências ao cangaço, ao sertanejo, aos jagunços, aos
beatos, aos pré-revolucionários de Glauber, os condenados da terra de Frantz Fanon, os resistentes de um Brasil que luta pela terra, pela água, pela comunidade, pela Amazônia, pela vida.
Em Bacurau, o mais importante é a comunidade e o comum. As
lideranças são múltiplas, descentralizadas: a cangaceira trans, a médica
Domingas, o professor, as lideranças espirituais. Muitas cabeças e um
só corpo.
Ao final uma luta, um duelo, um acertar de contas entre essa
diversidade, esse Brasil, esses personagens insurgentes e disruptivos e o
militarismo corporativo, o capitalismo miliciano, o empreendedorismo
gore. Vai faltar caixões?
As comunidades, os enclaves, os indígenas, a juventude periférica, as
esquerdas, os estudantes universitários, os negros e negras, até o
momento desconsideraram o discurso radical, de pegar em armas, usar a
força física, se armar para fazer a disputa política. Mas o que esperar
diante de um Estado que age extra judicialmente e fora da lei?
Quando um governante diz que tem “que mirar bem na cabecinha” e matar
seus “inimigos” como em um filme hollywoodiano ruim, ou chega de
helicóptero sobre um corpo abatido pela polícia e comemora como um gol,
esse imaginário e esse desejo de justiçamento não produzem um imaginário
sem controle e perverso?
Se o Estado pode ter drones fatais que atiram para matar, não veremos
em um futuro imediato um Rio de Janeiro pilotando drones de autodefesa e
ataques? Uma ficção política plausível e aterradora que mostra como se
produz Marighellas, Conselheiros e Zumbis, mas também Mitos, Witzels,
ultra-extremistas de todos os matizes.
Diante de um humanismo que fracassou, Bacurau sintetiza o
Brasil brutal, distópico em que a partilha da violência e a posse de
armas e de justiçamento passa a ser feita não apenas pelo “cidadão de
bem” conservador, mas surge, como na década de 70 – com as guerrilhas
urbanas e ligas camponesas – como uma saída possível, uma reação
coletiva, diante de uma democracia e de um Estado colapsados.
Kleber Mendonça Filho não faz uma leitura piedosa de tudo o que está
ai. Faz um manifesto cinematográfico, com uma linguagem sofisticada, um
apuro estético, uma destreza em conduzir a narrativa. Deixa uma
pergunta. Qual a saída diante da necropolítica? O necroemponderamento? A resistência vital? A violência como uma linguagem e um poder de transformação?
Mas também uma saída mágica, uma mística política. Porque “precisamos
de todos os santos e orixás, amém” para atravessar o deserto e esse
imaginário adoecido. Precisamos acreditar na política e no cinema, na cultura e na arte, na educação, nas resistências cotidianas, nos enclaves e motins.
Afinal o que é um cinema disruptivo? E aqui volto a Glauber e a toda a
radicalidade da arte em tempos de barbárie, “deve ser uma mágica capaz
de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta
realidade absurda”.
Podemos também invocar outro grito de guerra das lutas
contemporâneas, uma guerrilha rural e urbana que se alastra: “As putas
as bi, as travas e as sapatão tão tudo preparadas pra fazer revolução”.
Nesse sentido, Bacurau também tem um forte protagonismo
feminino. Lia de Itamaracá como a liderança política e mística da
comunidade e Sonia Braga, uma médica de pés no barro. Bacurau
despe Sonia Braga de todo um imaginário de glamour construído nos filmes
brasileiros e estrangeiros ao mostrá-la com todas as marcas da idade,
cabelos brancos, um corpo nu, uma mulher na sua maturidade, quase uma
“médica cubana” na sua abnegação e cola comunitária, uma atriz
excepcional que se reposiciona desde Aquarius e, em Bacurau,
transcende e se reinventa. Fazer “desaparecer” uma atriz como Sonia em
uma comunidade de atores incríveis e pouco conhecidos é um feito. Os invasores
Afinal quem são os invasores de Bacurau? “Estamos sob
ataque”, percebem os moradores. A chave não está apenas no grupo de
gringos predadores da água e assassinos, do prefeito corrupto, mas
também na dupla de brasileiros sulistas (em oposição aos moradores
nordestinos) que se identifica com esses grupos ultra conservadores. São
os primeiros a serem sacrificados. Os que se acham “brancos”,
superiores à comunidade local, os que se identificam com seu próprio
opressor. Esses são os descartáveis. A classe média de extrema-direita é
a primeira a ser sacrificada pelos ultraconservadores. Ousem questionar
e virem os inimigos também. Trágico e sarcástico, mas a cena dessa
revelação no filme vale por todo um tratado sociológico. O cinema faz
ver! IVANA BENTES é ensaísta, professora Titular da UFRJ,
pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFRJ e da
Pro Reitoria de Extensão da UFRJ. Autora de Midia-Multidão: estéticas da comunicação e biopolítica (Sulina), entre outros.
Recebi o honroso convite dos meus amigos, professores do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal Rural de
Pernambuco, para abrir a semana de ciências sociais, com uma palestra
sobre "Neoliberalismo e Estado". Logo me vieram à cabeça as longas
discussões dos anos 90 da época de Fernando Henrique Cardoso, do
Consenso de Washington, do social liberalismo, da globalização e,
inevitavelmente,do Estado regulatório ou gerente.Naquela não tão distante época,
recebi de uma organização não-governamental a incumbência de redigir um
texto sobre a "Globalização e o Estado", analisando as implicações da
primeira sobre a soberania nacional dos Estado-nação. O fio condutor da
argumentação era que a globalização dos mercados financeiros destruía a
capacidade regulatória dos governos nacionais em controlar os fluxos de
capital especulativo, reduzindo muito a margem de manobra do Estado em
fazer política monetária, cambial, industrial, de emprego e trabalho
etc. E que a desregulamentação financeira era um pressuposto importante
para a chamada "integração competitiva" nos mercados globais.
A isto, chamava-se "Consenso de Washington". Cabia aos governos, neste então,
abrir a economia, flexibilizar o mercado de trabalho e desregulamentar o
mercado financeiro, sob pena de afastar as empresas e investidores
estrangeiros do país. Esta foi a época também da "crise fiscal" e do
esgotamento das políticas de demandas típicas do keynesianismo e o Estado de bem-estar social, com repercussão direta sobre o nível de
emprego, crescimento econômico, arrecadação etc. O papel dos governos
passou a ser "a criação de um ambiente saudável para os negócios",
através da renúncia fiscal, da privatização das empresas estatais e a
entrega das políticas sociais ao mercado altruístico: ONGs, fundações
empresariais e instituições filantrópicas.Não precisamos dizer quanto o fosso social aumentou, com a
assistencialização privada dos direitos sociais. A par da concentração
de rendas no país. O que produziu uma espécie de ressentimento da
democracia nos mais pobres, como se fosse culpa do regime democrático o
aumento da pobreza e da miséria no Brasil.
Hoje a temática do neoliberalismo voltou
com força em razão da situação internacional e seus reflexos entre nós.
A primeira constatação é que a agente da política norte-americana de
"guerra ao terror" triunfou em toda linha trazendo muita força para a
direita e extrema-direita europeia e norte-americana. Todo esforço
internacional para se livrar da hegemonia política e militar dos E.U.A.
do norte foram baldados, com a derrota de governos socialistas ou
socialdemocratas e o enfraquecimento do multilateralismo nas relações
internacionais e de seus fóruns e órgãos de integração regional: o
Mercosul, os Brics etc. Assistimos, depois da queda do muro, uma segunda
onda de desconstrução de direitos no mundo todo, com sintomas de xenofobia, barreiras contra os imigrantes,
preconceito racial, religioso, de gênero e orientação sexual. Talvez o
melhor exemplo seja o muro que Donald Trump quis levantar na fronteira
com o México, para estancar a imigração dos "chicanos" para os E.U.A..
Na Europa, os partidos de direita ganharam os governos. E na América
Latina, voltou o período dos tratados bilaterais de governos liberais
com o presidente americano. No Brasil, instaurou-se uma contrarrevolução
perigosa, apoiada numa coalizão de militares com a igreja
neopentecostal, a serviço do capital internacional e com a conivência
dos aparelho judiciário.
A volta do neoliberalismo e do
fundamentalismo cristão de mercado passou a ter uma nova
conceitualização na obra de um pensador francês chamado Pierre Dardot e
Cristian Laval, intitulada: A Nova Razão do Mundo. Segundo os autores, o
neoliberalismo não é uma mera continuação do liberalismo clássico de
Adam Smith, John Stuart Mill e Jeremy Bentham. O liberalismo clássico
foi revolucionário na política ( contra o Estado absolutista e a
sociedade de ordens) e na economia (contra as restrições ao livre
movimento dos bens econômicos). Como diria Norberto Bobbio, o
neoliberalismo é uma forma de liberalismo: aberto para a economia, fechado
para a política. Segundo os franceses, o neoliberalismo tem de ser
pensado como uma nova forma de governabilidade
para o capitalismo de nossos tempos. Uma forma de governabilidade que
instaura a competição em todos os níveis da vida social e destrói todas
as motivações para a ação coletiva.
Os sindicatos, os movimentos
sociais, as igrejas todos perdem seus móveis para uma forma de política
coletiva,ao se instalar uma competição de todos contra todos. É uma
espécie de retomada do darwinismo social, a lei do mais forte, ou a
seleção natural. Se cada um for entregue a própria sorte, só restarão os
mais capazes. Lembra Nietzsche, na" Genealogia da Moral", as relações
de força governam a natureza e a sociedade. É lógico que o mais forte
domine o mais fraco. Não se compreende que não o faça. É contra a
natureza do mais forte. Por isto a figura de Cristo é incompreensível.
Quem já se viu um Deus que se deixa escravizar e morrer na cruz. Deus dos
escravos, diz ele, dos resignados e conformados. A lembrança do nome do
Nietzsche não é a toa. É a fonte de inspiração do mais influente
filósofo contemporâneo da crítica à modernidade: Michel Foucault e seu
conceito de bio política. A política do neoliberalismo é uma bio
política. Não se faz pela força, pela persuasão ou mesmo pela
argumentação racional. Faz-se pela escolha de quem deve viver e quem
deve morrer. Política bem exemplificada na saúde, na educação, na
seguridade social. A decisão soberana sobre a vida das pessoas não são
tomadas pelos parlamentos ou legisladores. Não. Ela é fielmente
executada na seleção cotidiana dos que sobreviverão a essa destruição da
rede de proteção social, legada pelo Estado de Bem-estar social. A bio política é
uma espécie de darwinismo social que decide, comanda, escolhe e
determina que vai viver, quem vai morrer.
Naturalmente, os pobres, os velhos, os
deficientes, as etnias residuais, os desempregados não terão mais lugar
no mundo, são populações supérfluas, podem e devem ser eliminadas.
Estamos diante daquilo que o professor Luciano Oliveira, louvando-se na
obra de Hannah Arendt, chamou de "neo-fascismo e neo-miséria". Os novos
miseráveis desse capitalismo selvagem não servem nem para exército de
reserva da mão-de-obra. São repugnantes e amedrontadores. Devem ser
excluídos. Pior é a mentalidade exterminadora que vai se formando entre
"os excluídos sociais". Eles compartilham também desse pensamento
antissocial, agora reforçado pelo credo de algumas igrejas evangélicas
que de cristã não tem nada. Forjou-se uma nova teologia, no lugar da teologia profética da libertação. É a teologia da
prosperidade: quanto mais você dá a Igreja, receberá em dobro. A
prosperidade material do crente é um presente de Deus, como dizem os
irmãos sorridentes da Igreja Universal.
A questão que fica é se é possível
contar o exército cada vez mais crescente desses trabalhadores de
aplicativo, uberizados, precários, autônomos, desempregados para a
organização de um novo movimento social?- Marx nunca alimentou
esperanças que viesse dessa turma alguma resistência. Achava mais fácil
se arregimentado por algum salvador da pátria ou um messias, sem
trocadilho. Mas no século 20, as coisas mudaram. Marcuse e Benjamin
foram os primeiros a dizer que só em nome dos desesperançados, se podiam
ainda alimentar esperanças. E os autores sociais contemporâneos apostam
que a metamorfose desse corpo fabril deve impor uma nova tipologia de
organização. Não é fácil organizar pessoas em condições tão desiguais. O movimento sindical só cresceu e tomou corpo
a partir da generalização da condição fabril (igual) dos
trabalhadores.
A heterogeneidade de base de novo exército se constitui
uma enorme dificuldade para qualquer esforço organizatório. Mais difícil
ainda é o diálogo dos sindicatos dos trabalhadores formais com esses
setores ou com os novos movimentos sociais e suas demandas identitárias
(gênero, etnia, orientação sexual, meio-ambiente etc,) O movimento
sindical é um movimento redistributivo clássico, cego às diferenças. Sua
prioridade é o que é igual. O debate com os novos movimentos é penoso e
cheio de desconfiança. Mas deve ser feito. Se me pedissem um formato
organizativo desses movimentos diria que o Fórum Social Mundial e as
jornadas globalização de Seattle e Davos poderiam servir de aproximação. Mas tem de
reconhecer que o fórum é plural, não tem uma única linha de ação, não
tem um único móvel e bandeira. Nem chefe nem centralização. Sua
estrutura flexível e frouxa é condição de sua existência.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Seria um simples truísmo dizer que a floresta
amazônica é o pulmão da humanidade e por isso deve ser preservada a
qualquer custo. No entanto, ela é mais do que isso: sua vegetação
abundante e robusta ajuda muito absorver a quantidade de carvão
produzido na atmosfera pelo aquecimento global. A destruição da floresta
implica num crime contra a humanidade,não só contra os brasileiros. A
responsabilidade civil e penal pela destruição de um dos maiores biomas
do planeta é, em primeiro lugar dos governos nacionais e estaduais da
região amazônica (Brasil, Peru, Colômbia) que deve envidar todos os
esforços para protegê-lo, reflorestá-lo e punir energicamente os que
atentam contra a sua existência (madeireiros, agropecuaristas,
produtores rurais, empresas brasileiras e estrangeiras). Mas essa responsabilidade vai muito
além das fronteiras nacionais do países que compõem a região amazônica.
A
biodiversidade ali reinante (animais, espécies vegetais e minérios)
constituem patrimônio comum da humanidade e deve ser objeto de proteção
da comunidade internacional, através de "fideicomissos" ou fiscais
encarregados pelas organizações internacionais de velar pela sua
sobrevivência e continuidade. Há tempo que se discute esse patrimônio
comum: os oceanos, o espaço sideral, os cursos de água doce etc. Permitir
que a incúria ou a inércia administrativa de um governante nacional
deixe queimar 10% da floresta é um crime ambiental e internacional. O
que se sabe é que o presidente foi avisado, através de ofício, da
extensão das queimadas na região. E que
uma associação de produtores se movimentou através das redes sociais
para atear fogo na floresta. A pergunta que não quer calar é se esse
crime pirotécnico não contou com a conivência tácita das autoridades
federais e estaduais.
O mais grave é que o atual ministro do
meio-ambiente já demonstrou seu descaso e despreparo (para não dizer
coisa pior) para ocupar o ministério. E que até mesmo o vice-presidente
da República sugeriu que se vendesse a amazônia, em razão da "indolência
" dos seus habitantes originais. Curiosa é a reação do chefe de
governo, ao dizer que a amazônia não vai ser vendida a prestação a
algumas nações do G7, que ofereceram ajuda financeira para a proteção da
floresta. Tal afirmação pode ser interpretada como se ele quisesse
vendê-la a grosso a países ou empresas interessadas em explorar a sua
rica biodiversidade.
O Brasil não vive isolado do mundo. A
defesa do meio-ambiente faz parte de uma pauta internacional, como a
paz, o combate a miséria e a defesa dos direitos humanos. Não se trata
de perder a soberania, por integrar esse conjunto de países e aceitar a
cooperação intergovernamental no que tange à preservação de nossos
recursos ambientais. A pior forma de nacionalismo é o chauvismo
estreito e de conveniência para agradar incautos e idiotas.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Prideaux, SueEu sou dinamite! A vida de Friedrich Nietzsche
TRAD. Claudio Carina
Crítica/Grupo Planeta • 440 pp • R$ 99,90
Caetano Veloso
diz que todas as suas letras são autobiográficas, e que mesmo as que
não são o são. Embora sua vida concreta figure explicitamente em várias
canções, ela está presente até naquelas em que isso não ocorre. Nada
poderia justificar melhor o interesse pela leitura de biografias. Para
além das curiosidades pessoais, elas oferecem pedaços brutos de uma vida
na qual o pensamento ou a obra não estavam prontos, mas ainda nascendo.
Pode-se revelar nelas não somente o que alguém fez, mas também quem
essa pessoa foi.
Esse é o mérito da nova biografia sobre o explosivo
filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), escrita pela historiadora da
arte Sue Prideaux. “Eu sou dinamite!”, dizia o pensador alemão sobre si
mesmo, e esse foi o título escolhido para o livro. A prosa aguda e
desafiadora de Nietzsche, às vezes abusada e violenta, justifica a
relevância filosófica dessa caracterização — ainda que hoje, depois de
testemunharmos tantas explosões da tradição, a atitude possa soar
datada. Denunciando o crepúsculo dos ídolos e olhando uma nova aurora,
para além do bem e do mal, Nietzsche, no fim do século 19, mudou a
história da filosofia e da cultura do século 20 em diante.
Longe de qualquer falsa modéstia, foi o próprio Nietzsche quem, em sua autobiografia Ecce homo (escrita
em 1888), falava da desproporção entre a grandeza de sua tarefa e a
pequeneza de seus contemporâneos, que por isso não o teriam ouvido. É
assim que ele justifica a necessidade de dar um testemunho de si,
dizendo quem era e clamando: “Ouçam-me!”. Talvez a dificuldade estivesse
no fato de que, ao invés de elogiar a humanidade e seu progresso
moderno, ele criticava ambos. Escrevia para abrir no presente um tempo
por vir, apostando na sua potência criadora.
Prideaux, contudo, narra a história da vida de um
homem ao rés do chão. Não é o triunfalismo heroico que prevalece, embora
a coragem extemporânea de Nietzsche — não só na sua época, mas contra
ela — seja destacada. Estamos diante de um homem que tem aflições, mas
ri; tem angústias, mas socializa. Uma pessoa. Com pequenezas, como todos
nós. Há o pai que morre, a mãe cristã, a irmã nazista, as mulheres com
quem se relaciona, as doenças, as roupas que não o vestem bem, o
trabalho, os duelos de esgrima. Tudo humano, demasiado humano.
No núcleo da vida contada por Prideaux está a
amizade que o jovem professor e filólogo, já atuante na universidade,
tivera com o então experiente e consagrado compositor Richard Wagner.
Filósofo e artista se aproximaram. O pensamento e a música também. O
primeiro grande livro escrito por Nietzsche, O nascimento da tragédia
(1872), jamais seria o que foi sem essa amizade. Havia muita troca
intelectual e admiração mútua, com longas conversas em belas paisagens. E
interesses sociais: Wagner se sentia bem com o endosso do novo crítico,
enquanto Nietzsche podia desfrutar da intimidade com o mestre e com seu
círculo cultural amplo.
Prideaux escreve com certo gosto por desfazer mitos
que buscam enaltecer cada momento da vida com uma grandeza particular.
Por isso, assim como sublinha as afinidades espirituais de Nietzsche e
Wagner, observa seus interesses pessoais, já que ambos tinham a ganhar
com a relação que estabeleciam. O procedimento da biógrafa será igual
para explicar a separação dos amigos, motivada não só por diferenças de
ideias, mas também por desavenças afetivas.
É verossímil que, enquanto Wagner permanecia atado
ao nacionalismo germânico, Nietzsche acalentasse, cada vez mais, o
cosmopolitismo europeu. É verdade que as concessões da arte de Wagner ao
cristianismo, especialmente com a ópera Parfisal (1882),
colidiam com o pensamento de Nietzsche, que criticava furiosamente a
religião fundamental do Ocidente por causa de seus ideais ascéticos.
Contudo, mesmo que essas diferenças sugiram o
afastamento entre os dois, para Prideaux, não iluminam seu rompimento
definitivo, cuja causa seria um episódio íntimo. Preocupado com a frágil
saúde de Nietzsche, Wagner o recomendou a um médico amigo, a quem
escreveu cartas com a hipótese de que as doenças provinham de seu
excesso de masturbação — a bizarrice da hipótese nos chama a atenção
hoje, mas parece que, na época, era comum. Pois bem:
Nietzsche descobriu as tais cartas e se ofendeu, o que explicaria o fim da intensa convivência entre ambos.
Descida mundana
O mérito da biografia está nessa interpretação livre
de academicismos e atenta aos detalhes da vida comezinha dos afetos e
dos corpos. É uma descida mundana que restitui a humanidade real dos
personagens, em vez de corroborar sua idealização — e há algo de
nietzschiano em tal operação. Dados empíricos funcionam bem para essa
finalidade, colocando sob suspeita episódios romantizados, e a eles
fazendo um contrapeso, como aquele em que Nietzsche teria abraçado um
cavalo. Contudo, por um outro lado, subestima-se por vezes o quanto o
pensamento decide a vida, especialmente a de alguém que era um pensador.
Nesse contexto, vale destacar que esta é a mais
recente biografia sobre Nietzsche traduzida para o português, mas não a
única. Pela editora Vozes, foi publicado o monumental empreendimento de
Curt Paul Janz, Friedrich Nietzsche (2016), uma caixa com três
volumes. Pela Geração Editorial, Rüdiger Safranski — que escrevera sobre
Heidegger, Schopenhauer e o Romantismo — teve traduzida sua biografia
intelectual de Nietzsche, Biografia de uma tragédia (2001). Nos
dois trabalhos, o homem que se tornou um improvável fenômeno pop há
décadas é reposto em seu contexto histórico e filosófico de origem. E
ainda há outros, que buscam explicar como o eu individual, a história
coletiva e o pensamento se juntam em uma vida.
Para quem se interessa em conhecer, além da vida de
Nietzsche, o que ele entende filosoficamente por vida, vale também
sublinhar que os estudos a seu respeito no Brasil atingiram grande
maturidade e profundidade. Sobre o tema em causa, o livro Nietzsche, vida como obra de arte
(Civilização Brasileira, 2011), de Rosa Dias, é um ótimo exemplo,
explorando de que modo, para ele, vida é vontade de potência — ou seja,
não só adaptação ou conservação, mas sobretudo criação. Poderíamos
perguntar: Nietzsche esteve à altura do desafio que ele mesmo colocou
nesses termos?
Tal pergunta pode estar no pano de fundo da
biografia de Prideaux, à qual falta envergadura teórica, mas que conduz
com habilidade narrativa jornalística a vida de Nietzsche, desde seus
“anos de formação”. O talento da escritora para contar histórias assim
foi precedido pelas biografias que fez sobre o artista Edvard Munch (que
pintou um famoso retrato de Nietzsche) e o dramaturgo August Strindberg
(com quem Nietzsche trocara cartas). Nesta obra, podemos descobrir que
não é apenas pela escrita de Nietzsche que ninguém passa incólume, mas
também por sua vida: perturbada, arriscada, experimental, numa busca
infinita por si mesma. Naturalmente, tal busca não se daria sem
solavancos, tanto intelectuais quanto biográficos.
De aluno a mestre
“Retribui-se mal a um mestre continuando-se sempre
apenas aluno”, Nietzsche já deixara escrito em sua autobiografia. Ele
seguira à risca o aviso, e essa é talvez a chave da narrativa de
Prideaux. Sua ênfase na centralidade de Wagner e da filosofia de
Schopenhauer para o jovem Nietzsche é seguida, assim, pela virada que o
fez abandonar e criticar ambos. Deixando de ser aluno, ele retribuía a
seus mestres. Era seu crepúsculo dos ídolos particular. Se precisara
deles para se tornar quem era, agora devia deixá-los para continuar a se
tornar.
Isso tudo se passou no estilo agressivo de
Nietzsche, que em parte era próprio de seu gênio e em parte uma marca
geracional que começava a se esboçar. Não era só a época da crítica,
como nos casos de Kant, Hegel ou Marx, os grandes filósofos dos séculos
18 e 19. Era a época das vanguardas, como as que criaram movimentos
estéticos já no século 20. Recusou Wagner e Schopenhauer com a mesma
retórica de ruptura pela qual se voltara contra toda a metafísica desde
Platão. O excesso de tradição e moral parecia suspeito, embotando os
espíritos livres.
Pessoalmente, essa liberdade de espírito o encantou
em Lou Salomé, a bela mulher que não se interessava em casar, não dava
bola para a opinião alheia e queria mesmo era épater le bourgeois:
chocar a burguesia. Ela, por sua vez, descreve argutamente o olhar de
Nietzsche: “Para dentro, por assim dizer, ao longe”. Lou despertou o
interesse de Freud, Rilke e outros grandes homens da época. Nietzsche
viveria com ela um triângulo amoroso, do qual participava também seu
amigo Paul Rée.
Se Lou Salomé irrompe na biografia como a principal
mulher a determinar a vida de Nietzsche, é outra, já também muito
importante, que ganha protagonismo decisivo após a sua morte: a irmã
Elisabeth. Ela ficou responsável por toda a organização do espólio de
Nietzsche, e deu à sua obra um tratamento enviesado, obedecendo a suas
próprias preferências políticas nazistas. Boa parte da biografia de
Prideaux se dedica, acertadamente, a esclarecer o mal-entendido, embora
mais uma vez de um ponto de vista sobretudo empírico, não tão filosófico
(diga-se de passagem que, aqui no Brasil, essa tese foi defendida desde
1946 pelo crítico literário Antonio Candido, como está documentado em
um belo artigo no jornal Diário de São Paulo, no qual afirmou ser preciso afastar a propaganda e a ingenuidade que fariam de Nietzsche um precursor do nazismo).
O furor de transformação política talvez não fosse
estranho à linguagem filosófica de Nietzsche, cheia de metáforas
potentes e ameaçadoras. Contudo, Prideaux distancia essa sua energia do
direcionamento nacional-socialista que lhe foi dado pela irmã. O livro A vontade de poder
(1901), por exemplo, é uma costura feita por ela de fragmentos aos
quais Nietzsche jamais deu forma final. Para Prideaux, ela nunca
entendeu o que pensou o irmão, um bufão piadista, e não um santo com
certezas. Cita, para confirmar o argumento, o ideólogo nazista Ernst
Krieck, que observou sarcasticamente que, à parte o fato de não ser
nacionalista nem socialista e contrário ao racismo, Nietzsche bem
poderia ter sido um líder do nacional-socialismo.
Nietzsche se sabia e se queria bombástico: dinamite.
Sua crítica à razão filosófica tradicional foi vivida com tanta verdade
que o levou à loucura. Seu espírito não deixou de estar na origem de
movimentos como o Futurismo ou o Surrealismo e de tantos impulsos do
século 20 que viam na destruição a libertação de uma prisão. Seria uma
destruição criadora. Mesmo no Brasil, o artista Hélio Oiticica ousou
dizer, sobre os seus próprios escritos, que estava sentado em cima de
dinamite. Era ainda filiado a essa retórica da vanguarda provocadora,
que gostaria de explodir seu presente — e da qual hoje já podemos fazer
uma história rigorosa, não sendo o nosso solo cultural contemporâneo,
embora resista no apelo existencial de jovialidade.
Interessa, por isso, descobrir nessa biografia de
Prideaux que o autor destemido também tinha seus momentos de hesitação.
“Minha falta de confiança agora é imensa”, confessa numa carta. Que
diferença para aqueles capítulos deixados em sua autobiografia com
títulos como “por que sou tão inteligente” ou “por que sou um destino”.
Há muito de ironia na escrita de Nietzsche, é claro, porém também há um
movimento constante, que revela uma assertividade não dogmática. E, no
fim, Nietzsche não deixou de ser um destino, embora, ao mesmo tempo,
tenha se tornado a abertura para nos tornarmos algo diferente do que
somos. Um ocaso. Uma travessia.
Nietzsche falou da morte de Deus, da inversão do
platonismo e do super-homem. Suas expressões todas sinalizam essa busca
do novo. Mais importante, contudo, é que ele incorporou essa busca na
linguagem. Seus aforismos, avessos aos auspícios tradicionais do sistema
na filosofia, são fragmentos velozes em que os pensamentos correm
agilmente, como em uma dança. Prideaux o chama de “estilista” por causa
disso, o que atingiria o ponto culminante com o romance filosófico Assim falou Zaratustra
(1883). Essa é, ainda, uma potência da filosofia de Nietzsche, pois
exige do pensamento uma realização estética: que o conteúdo atue com a
forma, e que as ideias estejam vivas na escrita.
(Publicado originalmente na revista dos livros Quatro Cinco Um)
Há alguns meses, escrevi um artigo chamado “sociedade sem
estado”, referindo-me a um fenômeno conhecido por “libanização”. Esta expressão
designa a inexistência de Estado, instituições políticas organizadas, autônomas
e independentes. E manifestava apreensão sobre a inquietante associação do clã
Bolsonaro com milicianos que operam no Estado do Rio de Janeiro. O elo de
ligação seria o assessor do filho de Bolsonaro, cognominado de “Queiroz”, que
nunca prestou depoimento nenhum à polícia sobre as
fantásticas movimentos financeiras na conta do filho mais velho do Presidente.
As
últimas medidas tomadas pelo chefe da nação só alargaram o campo da quela
inquietação original. Intervenção na Polícia Federal do Rio de Janeiro,
intervenção no Coaf, intervenção na Receita Federal. Tudo isso é um forte
indício de desmonte de instrumentos legais de controle e fiscalização de crimes
financeiros e fiscais praticados por bandidos de “colarinho branco” no Brasil
(malandros federais, como dizia a música de Chico Buarque de Holanda). Quando
se sabe que algumas dessas investigações tinha como alvo exatamente as contas
do filho de Bolsonaro, inclusive os bens não declarados à Receita, por ocasião
do registro de sua candidatura na Justiça Eleitoral fluminense, entende-se a
preocupação do chefe em neutralizar a ação investigatória dessas instituições
públicas.
O
significado profundo dessa anomalia administrativa é blindar as operações não
contabilizadas, o verdadeiro duto de recursos que enchem as burras de
integrantes desse clã familiar. O Estado do Rio de Janeiro é conhecido como um
território de guerra entre facções e bandos, por onde flui diuturnamente o
contrabando de armas e drogas. E muita gente se beneficia desse estado de
ilicitude e beligerância. Antigamente, falava-se de um estado pararelo naquela
unidade federativa. Hoje o paralelismo deu lugar a uma unidade entre o legal e
o ilegal, sob as barbas do Poder judiciário brasileiro.
Ao
intervir discricionariamente na cúpula daquelas instituições fiscalizadoras,
acendeu a luz vermelha da ultrapassagem da tênue linha que separava a
contravenção da legalidade, instaurando a primeira no coração das instituições
republicanas. O país não pode e não deve ser governado como uma casa-grande de
uma fazenda ou um distrito rural, onde pontifica a vontade incontrastável de um
déspota ou mandatário, sob pena se tornar inviável a vida republicana, laica e
constitucional. Uma republiqueta de “bananas”, onde a vontade imperial do chefe
manda e desmanda, faz e desfaz, desrespeitando os comandos constitucionais, a
autonomia dos poderes, corrompendo os parlamentares e ameaçando os juízes. E
para coroar: destruindo os nichos do pensamento crítico (as universidades) e os
direitos arduamente conquistados pela população.
É
esta a nova interpretação da história, simbolizada na reabilitação da memória
de um torturador cruel que se quer contar, agora, para a posteridade?
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia