pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Quando a memória pega fogo

 


Em 1999 eu viajei à Grécia. Era meu último ano no curso de Filosofia da UFRN e queria conhecer in loco a terra em que Sócrates, Platão e Aristóteles teriam andado, mais de dois mil anos antes de meu nascimento. Lembro que, ao visitar a Acrópole, fomos, eu e minha esposa, Ana Cláudia, a um pequeno museu perto do Paternon, templo da deusa Atena (ou o que sobrou dele após os turcos terem dinamitado boa parte da construção durante a guerra da independência grega no século XIX). Lá chegando identifiquei de imediato um grupo de brasileiros que estava, como eu, fazendo turismo pelas ruínas. Ao me aproximar, no intuito de trocar algumas palavras em um idioma conhecido, ouvi um sujeito de aproximadamente minha idade, com um forte sotaque paulistano, dizer em alto e bom som algo do tipo: “Não acredito que a gente pagou pra ver esse monte de pedra”.
A frase me doeu nos ouvidos. Foi suficiente para recusar qualquer tipo de interação com compatriotas até o fim da viagem.
Mesmo diante desse tipo muito usual de ferida turístico-narcísica, que muitas vezes nos acomete quando nos deparamos com outros brasileiros em viagens pelo exterior, não deveríamos cair em mitologias culturalistas redutoras diante da tragédia que transformou em cinza milhares de anos de história das Américas em pouco menos de quatro horas. Não deveríamos ser nós, “o povo brasileiro”, essa abstração ideológica, os culpados pela catástrofe que destruiu o Museu Histórico Nacional da Quinta da Boa Vista. Quando a memória de um país pega fogo, culpar todo mundo é a melhor forma de não responsabilizar ninguém.
Mesmo assim não há como negar que o brasileiro médio dá pouco valor a história e não entende que cultura e ciência fazem parte de um capital imaterial de valor incalculável.  Em um país em que proliferam doutrinas ideológicas do tipo “Escola sem partido” que tratam professores como bandidos, em que gente nas redes sociais pede o fim dos cursos de humanas nas universidades federais (supostamente antros de formação de “esquerdopatas”) ou que vibram com força diante do anúncio do desaparecimento de disciplinas como filosofia e sociologia dos currículos do ensino médio, parece fácil entender o porquê de um patrimônio incalculável como o Museu Nacional vinha sendo negligenciado a tanto tempo.
Desde 2014 o museu não recebia os 520 mil reais necessários para sua manutenção. Em 2015, com o corte de gastos e a adoção por parte do governo Dilma da agenda FIESP, que abriu alas para o austericídio do governo Temer, o orçamento caiu para 257 mil. Em 2016 subiu um pouco para cair novamente em 2017 e desabar de modo vergonhoso para 54 mil liberados até agora em 2018.
Se fizemos um passeio pelos arquivos jornalísticos vamos ver que sobram reportagens sobre as más condições do museu, com mofo, goteiras, ameaça de desabamento e infiltrações pelo menos desde 1978.
Por isso, o que todos os governantes que já passaram um dia pelos palácios desse país deveriam fazer de honesto diante dessa tragédia anunciada seria pedir perdão ao povo brasileiro ajoelhados no milho, de preferência se autoflagelando com chicotes de prego.
Mas a santa iniciativa privada não fica por menos. Para a decepção dos adeptos da religião do mercado, que acreditam piamente na competência virtuosa do empresariado brasileiro, fica o gosto de barro na boca quando a gente descobre que entre 2010 e 2018 o Museu Nacional teve 06 projetos aprovados para a captação de recursos pela lei Rouanet no total de 17 milhões de reais mas que conseguiu receber recursos privados em apenas um desses projetos, captando aproximadamente 10% do montante proposto nos oito últimos anos.
Nenhuma empresa privada apoiou o Museu quando a direção tentou ampliar o acesso a seu acervo virtual ou quando tentou reabrir nove salas fechadas há mais de 15 anos. Também não teve empresário que se dispusesse a fornecer dinheiro para a recuperação do telhado do prédio ou a criação de um sistema novo de prevenção de incêndios. Diante de uma queda de 34% no volume de visitas entre 2013 e 2017 os gentis homens do capital tupiniquim talvez não acreditassem que relacionar suas marcas a um museu seria um negócio lucrativo.  
O lado terrível e irônico disso tudo, é que o BNDES programou para esse ano a liberação de 21 milhões de reais para a reforma do museu.
O fogo chegou antes do dinheiro.
Dizem os cronistas antigos, que Heráclito, o grande pensador de Éfeso, teria escrito em pedra seu livro “Sobre a natureza” e afixado suas palavras nas paredes do templo da deusa Hécate. Mesmo assim, a pedra na qual seu livro estava escrito ruiu com o colapso do templo da deusa e tudo que resta de seu pensamento hoje são fragmentos citados por outros autores.
É a consciência dolorosa da impermanência de todas as coisas que faz o ser humano recolher as ruínas da história em pedras, vasos partidos, antigos manuscritos, ossos de animais fossilizados ou estátuas mutiladas. A busca de preservar essas ruínas não apenas é uma espécie de desobediência humana contra o tempo, mas também é uma forma de recuperar os traços de uma narrativa que nos compõe nossa experiência comum. Uma narrativa que explica a nossa origem, cria as impressões de um destino coletivo e lança as bases de um futuro possível.
Museus são como templos. Espaços de desobediência contra o efeito cauterizador da história que reduz toda memória, como em um imensa tempestade de fogo, às cinzas da silenciosa imobilidade do esquecimento.
Ver o Museu Nacional desaparecer no fogo da negligência queima a esperança de todos nós que labutamos diariamente com as humanidades, a ciência  e a cultura em um país onde esquecer parece ser uma obsessão nacional.
Por isso, vou confessar uma coisa, amigo velho, é muito difícil não desistir de um país como esse numa hora dessas.

(Texto originalmente publicado no site Saiba Mais, Agência de Reportagem)
 

Charge! Leo Villanova via Gazeta de Alagoas

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Charge! Jaguar via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Charge! Renato Aroeira

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No táxi com Michel Foucault

                                          
José Castilho Marques Neto
                                                                                                                                                             

No táxi com Michel Foucault


Detalhe do pronunciamento de Michel Foucault na Assembleia Universitária da USP, 1975 (Reprodução)

Naqueles primeiros anos da década de 1970 de reconstrução democrática após a dizimação sangrenta de toda resistência ao arbítrio e à brutalidade da ditadura civil-militar, nós, que recomeçávamos a resistência contra a opressão, não sabíamos pensar ou agir no singular. O plural e o coletivo nos inspiravam e orientavam nossas ações, a despeito das diferenças entre os poucos e aguerridos grupos que reconstruíam o movimento estudantil (ME) na USP.
Escrever um depoimento na primeira pessoa, como me pede a CULT, sobre um inesquecível encontro com Michel Foucault em 1975, é uma difícil tarefa. Além, é claro, da lembrança incômoda de um período no qual muitos de nós tivemos parte da juventude ceifada pela onipresença do arbítrio e da usurpação dos direitos mais fundamentais.
A verdade é que tínhamos muito medo e do medo tiramos uma força solidária que nos fazia vibrar a cada colega que se juntava a nós tornando-se companheiro de luta e resistência, unidade indivisível que expressava uma vontade de liberdade cada vez mais plural. Queríamos mais do que sobreviver, queríamos viver plenamente.
Com esse espírito e vontade comecei meu curso na Filosofia da USP em 1972. O convívio entre os estudantes acontecia em ritmo lento, as conversas contidas se aprofundavam conforme o ritmo da confiança que ganhávamos entre nós pouco a pouco. Os colegas da pós-graduação se achegavam, procuravam nos influenciar sobre as questões do país e da necessidade de reerguer o ME. Engajar-se ou se alienar tentando manter distância dos tímidos movimentos de recriação de espaços representativos como os Centros Acadêmicos foram as primeiras dúvidas quase filosóficas que tive que enfrentar.
Eram tempos de censura às notícias e opiniões políticas nos diários e, ao mesmo tempo, de explosão cultural e transgressões da ordem imposta. Livros proibidos de humanidades eram comprados em outros idiomas na banca do Raul Castell nos “Barracos” da USP ou em algumas livrarias no centro velho, como a Duas Cidades, a Brasiliense, a Avanço, capas embaladas em papel pardo para o caso de alguma “batida” nas ruas paulistanas. Ao mesmo tempo surgiram novos ares na imprensa: “Brasil Mulher”, “Lampião”, “Em Tempo”, “Movimento”, “Nós, mulheres”, “Versus”, “Bondinho”, “ex”, “Jornal da República”, os chamados “nanicos” eram contra a censura e a ditadura, se alinhavam à contracultura, à argumentação oposicionista, aos direitos das mulheres e homossexuais.
Tempos de medo, mas tempos de reação. Tomei a decisão de juntar-me aos colegas que reconstruíam o Centro Acadêmico de Filosofia – CAF, batizado por nós “João Cruz Costa”, o inesquecível professor aposentado da USP que nos acolheu algumas vezes em sua casa para contar histórias da faculdade e nos animar com sua erudição filosófica.
Éramos poucos, mas irmãos quase siameses. De todos, eu e Vânia, e mais tarde Jorge, éramos os mais inseparáveis. No CAF fazíamos murais de notícias, fomentávamos grupos de debates, montávamos mesas-redondas com professores da casa e outros aposentados compulsoriamente, como José Arthur Gianotti. A Filosofia foi a primeira unidade da USP a proclamar um CA livre. Não tínhamos uma diretoria hierárquica, mas um grupo de lideranças que coordenavam os trabalhos.
Pronunciamento de Foucault, 1975
Pronunciamento de Michel Foucault na Assembleia Universitária da USP, 1975 (Reprodução)
Na pauta de lutas estudantis a autonomia universitária, o Decreto 477, o combate ao ensino pago ganharam maior densidade em 17/03/1973 quando os órgãos de repressão assassinaram o nosso colega Alexandre Vanucchi Leme. A missa na Catedral da Sé em sua memória, celebrada por D. Paulo Evaristo Arns, mobilizou 3.500 pessoas que enfrentaram o enorme aparato repressivo que se formou na região. O passar pelo corredor de PMs para entrar na Sé naquele início de noite foi uma das experiências mais assustadoras por que já passei. Mas o ar de solidariedade e revolta ativa que recebíamos ao entrar na catedral enchia nossos pulmões de vontade e força para seguir resistindo.
Desde então o ME avançou em lutas por liberdades democráticas. Em 1974 constituiu-se o Comitê de Defesa dos Presos Políticos e, em 1975, a famosa “greve da ECA” marcou a USP com a primeira concentração estudantil desde o AI-5.
Foi nesse contexto de repressão, medo e resistência ativa, que conheci Michel Foucault em 1975, não como aluno ou pesquisador de sua obra, mas como jovem militante e estudante de filosofia combatente da ditadura militar.
À ousadia das manifestações estudantis em 1975, a ditadura reagiu efetuando várias prisões de estudantes, e fez o mesmo com a resistência civil ao golpe, prendendo jornalistas, professores e sindicalistas, alguns deles membros de partidos clandestinos de esquerda.
Em setembro e outubro essas prisões se intensificaram e, justamente nesse período, Michel Foucault, que acabara de lançar uma de suas mais importantes obras – Vigiar e punir –, estava ministrando um concorridíssimo curso na Psicologia da USP, nos mesmos “Barracos” em que estudávamos.
A primeira vez que eu o vi foi atendendo a um chamado de socorro dos organizadores que me procuraram, e à Vânia, para convencer nosso colega Luiz Gonzaga, que sofria de alguns distúrbios emocionais, a se retirar da frente da mesa onde Foucault ministrava sua conferência. Com uma garrafa de cachaça na mão, já alterado, Luiz falava alto: “Bobagem”, “Mentiras”, para espanto do culto auditório. O clima estava quase hostil para com ele e entre os poucos olhares de compreensão e de aceitação daquela contravenção explícita da ordem, estava o de Foucault. Delicadamente conversamos com nosso amigo e o conduzimos para seu habitat naqueles anos, o CAF. Mas me sobrou o olhar não discriminatório do ilustre palestrante.
A repressão se intensificou, o clima estava tenso e o medo à flor da pele. No dia 22 de outubro a Profa. Marilena Chaui nos procurou e nos informou que Foucault estava disposto a se manifestar contra a repressão de Estado que estávamos sofrendo e gostaria de saber o que sugeríamos enquanto ME. Lembro que de pronto afirmamos que renunciasse às aulas, denunciasse a ditadura militar no exterior e expressasse sua solidariedade aos presos. No dia seguinte, 23, teríamos uma Assembleia Universitária no Salão Caramelo da FAU-USP contra as prisões e convidamos Foucault, que prontamente aceitou. Apenas pediu uma conversa prévia antes do evento.
Coube-me fazer essa conversa e por volta das 8 h do dia 23 de outubro de 1975, às vésperas da prisão e antevéspera do assassinato de Vladimir Herzog, lá estava eu, com 22 anos, em um banco na Praça Roosevelt, aguardando o famoso filósofo e seu colega (e nosso professor) Gerard Lebrun.
Recordo-me de que preparei esse encontro com toda a apreensão do mundo, não porque iria encontrar um filósofo de renome internacional, mas porque o assunto era por demais importante e estratégico para a nossa luta democrática. É incrível como a juventude e a força da época de combate ao arbítrio podem tornar-nos, mesmo muito jovens, avessos ao deslumbramento.
Novamente a atitude de um verdadeiro mestre se impôs perante a notoriedade do filósofo estrelado. Tive dele diálogo objetivo, questionador, respeitoso e atento a um jovem estudante que o escutava, o compreendia em francês, mas que precisava de um tradutor (Lebrun) para fazer-se compreender. Não era um diálogo de intelectuais, entre pares, mas o respeito cidadão se impunha e tivemos uma longa conversação sobre o que estávamos construindo no ME, no foco de nossas lutas, na situação dos presos políticos e no horror cotidiano de estudar e trabalhar sob uma ditadura sanguinária. Ele ouvia, argumentava, questionava. Ao final disse-me: “vamos, estou pronto, podemos ir, farei lá uma declaração renunciando às aulas e denunciarei no exterior o que está se passando no Brasil”.
Tomamos o primeiro táxi que passou, um fusca apenas com o banco traseiro. Sentei-me ao meio, ladeado por Lebrun e Foucault e, naquele momento, senti “cair a ficha”, como se dizia na época. Subia a Consolação com um dos pensadores mais polêmicos e inovadores daquele período e o sentia próximo a nós, à nossa luta, à nossa identidade. Como tantos professores que estavam conosco naqueles tempos, Michel Foucault também era um dos nossos.
A chegada à FAU criou um justificado murmúrio na assembleia que já estava acontecendo. Levei-o aos bastidores onde alguns colegas já nos esperavam. Ele pediu papel, sentou-se à mesa e rapidamente escreveu um pequeno texto de dois parágrafos. Glauco fez a tradução para o português, alguns revisaram e me coube ler a versão para a assembleia ao lado de Foucault que leu o texto em francês. Aplausos emocionados, vibração genuína pelas palavras fortes do filósofo que se recusava a continuar dando aulas num país que prendia e torturava intelectuais e trabalhadores.
No manifesto, o prenúncio do que viria a se tornar realidade nos anos vindouros, a de aproximação do ME com o novo sindicalismo que já se anunciava em 1975 no ABC: “Na defesa dos direitos, na luta contra as torturas e a infâmia da polícia, as lutas dos trabalhadores intelectuais se unem à dos trabalhadores manuais”.
Terminada a leitura nos demos as mãos com energia e olhos emocionados. Nunca mais o vi, apenas o acompanhei ao longe, nas leituras e nas incontáveis polêmicas de sua vida. Mas o garoto aguerrido de 22 anos, ainda em formação, recebeu de Foucault outro tipo de lição que certamente o ajudou a marcar sua própria trajetória intelectual como professor e cidadão. Tempos duros, mas de grandes lições!

JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO é doutor em Filosofia pela USP

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Rio de Janeiro, uma cidade entre ruínas

                                         
Carla Rodrigues
                                                                                                                                                                 

Rio de Janeiro, uma cidade entre ruínas


Museu Nacional: incêndio destruiu 90% do acervo de instituição de 200 anos (Foto: Mauro Pimentel)

“O século 20 é o século dos objetos, e o objeto que melhor representa o século 20 é a ruína, um objeto bem formado, conforme à compreensão comum que se tem do objeto, que ocupa um lugar no espaço, pode ser produzido, ser acessível aos sentidos, ainda que, na prática, este se apresente como ligeiramente desestruturado”, escreveu o psicanalista francês Gérard Wajcman em Lacan, o escrito, a imagem (Autêntica, 2012), a quem vou recorrer para pensar os escombros do Museu Nacional como parte das ruínas que atravessam a cidade do Rio de Janeiro. As ruínas descritas por Wajcman marcam de forma indelével o Rio de Janeiro: é na implicação entre a nossa arquitetura e as nossas ruínas que está hoje o ponto de encontro que se configura como origem e destino da nossa tragédia.
Transformamos em museus ou centros culturais uma imensa quantidade de prédios históricos e temos palácios espalhados por toda a cidade. O Palácio Guanabara foi residência da princesa Isabel, desapropriado na República, fonte de uma batalha judicial até hoje. O Paço Imperial, como diz o nome, foi residência da família Real, em 1808. Temos o Palácio do Itamaraty, o Palácio Laranjeiras – hoje residência oficial do governo do estado – e o Palácio Tiradentes, sede da nossa primeira câmara, ainda no Brasil colônia, e também a cadeia onde Tiradentes ficou preso antes de ser enforcado. Na passagem para a República, abrigou o Ministério da Justiça e o DIPP da ditadura Vargas. Temos ainda Palácio do Catete, transformado em museu depois do suicídio de Getúlio e da transferência da capital para Brasília, a primeira sede do Banco do Brasil, hoje centro cultural, assim como a primeira sede dos Correios.
A tragédia do Museu Nacional era ser parte desse grupo de heranças históricas – virou cinzas a Sala do Trono, usada como gabinete de dom Pedro II – e ao mesmo tempo ser muito mais do que isso. Seu acervo abrigava preciosidades da história da humanidade e por isso provocou manifestações mundiais de pesar, tamanha a importância e raridade das peças e coleções ali perdidas, do incomensurável do que nunca mais poderá ser substituído. A perda é muito aguda para quem vive no Rio de Janeiro, para quem trabalha na UFRJ (universidade cujos prédios estão sendo destruídos pelo fogo há alguns anos), e por isso me parece que o único trabalho de luto possível é insistir na importância do museu para além das terras cariocas, fluminenses ou mesmo brasileiras.
Transformá-lo em metáfora de um país em ruínas é pouco diante do tamanho da perda, é um olhar provinciano sobre o patrimônio mundial que abrigávamos. Penso que as ruínas identificadas por Wacjman na Europa do século 20 chegaram ao continente latino-americano depois, diacrônicos que somos em relação às temporalidades hegemônicas dos países do Norte. Fomos sendo arruinados aos poucos – ao contrário dos países arruinados de uma só vez pelos bombardeios da Segunda Guerra –, destruindo o Morro do Castelo aqui, derrubando o Palácio de Monroe ali, apagando a arquitetura do passado sempre em nome de uma promessa vã de modernização de fachada. Jamais fomos modernos e nem assim fomos capazes de dar valor ao passado, à história, à memória.
O Museu Nacional é, apesar das ruínas, um monumento à ciência, ao valor do conhecimento, à pesquisa. Estar instalado num prédio histórico é, em parte, consequência de como essa ciência começou a ser feita no Brasil, para contar as nossas próprias origens como povo e continente, o que terminou por fazer do museu referência internacional em antropologia e arqueologia. Por isso, mais uma vez  as ruínas de Wacjman me são tão úteis: me ajudam a sustentar como hipótese de que arruinar a história não é um tipo perverso de descaso, é um projeto. Não deste governo, dos governos passados ou retrasados. Arruinar a história é a reafirmação de um processo permanente de colonização, aqui entendida como forma de dominação sobre todos aqueles cujas histórias não podem ser contadas. Ou, como tão bem identificou o filósofo Walter Benjamin diante das primeiras ruínas do século 20: “Os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E o inimigo não tem cessado de vencer.”

Carla Rodrigues é professora do departamento de Filosofia da UFRJ

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Crônica: Guia sentimental de João Pessoa


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José Luiz Gomes

 
Já confidenciei aqui para vocês a nossa paixão por João Pessoa, a capital da Paraíba. Uma das razões é a preservação de suas árvores, o que a torna uma das cidades mais arborizadas do mundo, concorrendo, imaginem, com Paris. Você está ali na Lagoa do Parque Sólon de Lucena, dá apenas uma subidinha até o Tambiá, desce um pouco até o bairro do Roger, já nos proporciona aquele deslumbramento da mata da Bica. Meia volta e você já entra no "Buraquinho", uma das maiores reservas florestais urbanas. Perde apenas para a reserva da Tijuca, no Rio de Janeiro. Depois que começamos a percorrer todos os seus encantos de recantos com o comendador Arnaldo, então, a paixão virou um desse entusiasmo de adolescente. Arnaldo, dona Zélia, sua esposa, os companheiros da confraria tem nos proporcionado as poucas alegrias da vida nesses tempos bicudos que atravessamos. Sou uma pessoa de muita sensibilidade e sofremos muito com tudo isso que estamos enfrentando.

O cara é condenado sem uma prova material sequer, tem suas contas bloqueadas, os bens confiscados, está preso e ainda é cobrado numa quantia exorbitante, superior a 31 milhões, para pagar as custas do processo e danos morais. De quem mesmo?. Isso é desumano. Mas, voltemos à Jampa, que é o assunto desta crônica. Hoje pela manhã a turma da confraria encontrou-se na famosa praça de alimentação que fica ali no bairro da Torre. Depois de encher a pança com cuscuz, carne de bode, café com leite e uma caninha Volúpia de entrada, sempre guiado pelo comendador, vamos curtir um passeio de domingo à tarde pelo centro, no bairro do Varadouro, ali pelo sitio histórico. Dizem que o bairro da Varadouro é um  pouco perigoso, mas o Arnaldo é blindado. Por falar no sitio histórico, outro dia fiquei sabendo que será o único sítio histórico brasileiro a integrar um estudo especifico, realizado por pesquisadores de universidade do exterior.

Arnaldo, jornalista de batente, tendo passado por várias redações, cobrindo desde de brigas de mulheres por macho às partidas de futebol, conhece cada palmo da cidade. Aqui funcionava a pensão de Dona Zefa, que foi abandonada pelo marido e cuidava muito bem dos jovens mancebos que vinham estudar na capital; ali funcionou o nosso  abatedouro, onde se comia gente à beça; aqui funcionou a bodega de Tião, onde a rapaziada se reunia para tomar cachaça com tiragosto de fígado alemão e azarar as prostitutas que adoravam dar para jornalistas. E o escriba aqui anotando tudo. Já antecipou sua disposição em escrever, a quatro mãos, uma espécie de guia sentimental de Jampa. Topamos na hora. 

Charge! Renato Aroeira

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Michel Zaidan Filho: Os desafios do PT





Aos poucos, vai se delineando o quadro das candidaturas efetivamente postas à escolha do eleitor nas eleições presidenciais que se avizinham.A estratégia de isolar a candidatura de Ciro Gomes,persuadir o PCB a retirar sua candidatura à Presidência da República e conseguir uma relativa neutralidade do PSB na corrida presidencial, parece ter dado certo, mesmo a custa do doloroso processo de alijar a vereadora Marília Arraes da disputa pelo  Governo de Pernambuco. O que,aliás, deixou sequelas. A questão que se coloca neste momento é como viabilizar uma candidatura petista, no curto período das propaganda eleitoral e da exposição prévia dos demais candidatos no horário eleitoral gratuito. Se o Partido dos Trabalhadores não registrar definitivamente uma candidatura própria, neste tempo eleitoral que vai se esvaindo e criando fatos consumados, com a ajuda da mídia e das pesquisas de opinião, vai ficando cada vez mais apertadas as margens de manobra para que o partido dispute com força e vigor a possibilidade de ir ao segundo turno e consiga formar uma frente anti-Bolsonaro, com partidos de centro que hesitam em ter de apoiar um candidato de extrema-direita, como ele.

De toda maneira, o tempo urge. As eleições no Brasil são muito influenciadas pela propaganda e os instituto de pesquisa. Está fora desse circuito - que não se confunde com uma verdadeira esfera democrática deformação da opinião pública - pode representar um imenso prejuízo na campanha eleitoral. Naturalmente, o Partido dos Trabalhadores calcula que, não sendo mais possível apresentar o nome do ex-Presidente como seu candidato,o imenso prestígio político, eleitoral e popular de LULA por si só seria suficiente para garantir uma grande transferência de votos do líder petista para o vice ou outro nome indicado por ele. É uma aposta e não convém cruzar os braços, achando que isso vá acontecer sem mais. O PT precisa definir o quanto antes os nomes que comporão a chapa que vai concorrer às eleições e se empenhar de corpo e alma em publicizar ao máximo quem são os candidatos, para que os eleitores saibam que há alternativas, caso o nome de LULA seja vetado. A demora, o faz-de-conta, a presunção da eleição de LULA nada disso ajuda ao partido,numa campanha onde a mídia faz questão de ignorar a imensa importância política do ex-presidente da República para o país. Mais grave, não se discute sequer a ilegitimidade de um pleito eleitoral onde o nome mais popular está proibido de concorrer às eleições.

A despeito do indiscutível favoritismo e a preferência popular por LULA, a eleição não dispensa - muito pelo contrário - um enorme e democrático esforço de convencer o eleitor, sobretudo o eleitor indeciso, de que o nosso candidato é o melhor, o mais republicano e justo. Nunca se ganha uma eleição, por antecipação. Mas se perde eleição, quando se está convencido de que já ganhou. O Partido dos Trabalhadores precisa urgentemente se convencer que é necessário correr para garantir a chance de que é fundamental articular uma grande frente política para barrar a  avalanche de intolerância, autoritarismo e ódio que ameaça a desabar sobre as nossas cabeças.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Crônica: O Quinze, uma literatura para cabra macho?


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 José Luiz Gomes
 
Há pouco, discorríamos aqui sobre as narrativas cruéis e verdadeiras da literatura, o que poderia suscitar um certo remorso ou mal-estar naquele público bem situado, que não gostaria de sentir enjoos ao se banquetearam, lendo textos tão miseráveis, tratando de retirantes, seca e fome. O Quinze, de Raquel de Queiroz, é um desses textos. Até aqui tudo bem, porque essa realidade cruel precisa ser posta de alguma forma e uma dessas formas é através dos textos literários. O que nos causaria surpresa, no entanto, é uma reação um tanto quanto misógina do escritor alagoano, Graciliano Ramos, ao tomar conhecimento sobre a obra. Ele sugere que Raquel só pode ser um homem, quando muito, um pseudônimo de um homem, que, de fato, deve ter escrito aquele livro. Surpreende-nos no escritor essa atitude, mas logo ele se refaz. 

A rigor, a bem da verdade, nunca houve alguma indisposição entre ambos. A impressão que se passa é que esse ato de misoginia - se não há algum exagero aqui - do autor de Vidas Secas estaria relacionado a um periodo em que ele ainda não conhecia a escritora cearense. Outra hipótese seria uma possível ciumeira do “campo”, uma vez que O Quinze entre na mesma seara de Vidas Secas. Aliás, um concorrente de peso quando se está em discussão não apenas as avarezas e sofrimentos do homem nordestino, castigados pelas intempereis da vida agreste, mas à qualidade do texto da cearense. Em ambas as indisposições, essas impressões são logo superadas. Ambos participaram de círculos literários em Maceió e, logo em seguida, por ocasião do lançamento de um outro livro da escritora, Caminhos de Pedra, eles já seriam bem próximos.

É bem verdade, confessa Graciliano, que somente conheceu a escritora cearense depois da publicação de João Miguel. Durante um bom tempo, confessa, em razão de um preconceito arraigado, em sua mente vinha a ideia de que Raquel era homem. Romance de mulher e ainda por cima, mulher nova? Quando foi lançado, ali pela década de trinta, o livro da escritora cearense causou mais assombro do que o romance de José Américo, A Bagaceira, tido como um marco da literatura regional. O livro de Raquel, como se sabe, foi muitíssimo bem recebido pelo crítica literária, alçando a autora à condição de uma das maiores escritoras brasileiras, com assento na Academia Brasileira de Letras.

Sítio do pica-pau vermelho

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     Quem conhece a história de fundação dos partidos políticos brasileiros, sabe que é algo muito melindroso falar sobre o tema. Mas também sabe que a maioria nasceu muito mais por divergências pessoais do que por questões ideológicas. Com relação ao PT, até quem não morre de amores por ele, reconhece que seu nascedouro foi bem diferente dos demais. Infelizmente, suas práticas com o passar dos anos tornaram-se iguais aos demais.

     Acreditando que Lula será candidato e vitorioso nas urnas, o PT tem buscado alianças escusas, visando o retorno ao poder. Dando clara demonstração de que está disposto a qualquer tipo de aliança, visando o resultado eleitoral. Aqui em Pernambuco estamos assistindo uma clara falta de coerência e de espírito republicano. Rifar candidaturas do seu próprio quadro, não é algo novo aos partidos políticos e o PT não está livre disso. Basta lembrarmos a forma como conduziram a candidatura à prefeitura da cidade do Recife em 2008. Parece que o partido acredita que como Pernambuco, segundo as pesquisas, é o Estado onde aparece o melhor desempenho do seu candidato fantasioso, pensa que os pernambucanos estão esquecidos da conduta de alguns aliados de última hora, no processo de impeachment da ex-presidente Dilma.

     A aliança formada entre PT e PSB em Pernambuco tem como principal alvo, garantir a reeleição do governo e do senador paulista, demonstrando que as preocupações com o povo pernambucano são apenas instrumentos de retórica. Na verdade, a não candidatura própria tem um fator maior. O tempo vai passando e o PT pernambucano não renova os quadros e alguns trabalham para que não aconteça, pois ofuscaria velhos companheiros que tanto lutaram pelo desempenho eleitoral do partido em outros momentos da história. O cenário atual foi articulado no Sítio do Pica-pau Vermelho. O povo parece encontra-se entre Cila e Caríbdis.  Se o modelo interpretativo da história utilizado por Maquiavel estiver correto, Pernambuco assistirá um novo 1998.

 

Hely Ferreira é cientista político.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Crônica: Viator ou, simplesmente, Guimarães Rosa.


 
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José Luiz Gomes


A Livraria José Olympio Editora, há alguns anos atrás,  instituiu um concurso literário para homenagear o escritor maranhense Humberto de Campos. O escritor Graciliano Ramos, amigo de José Olympio, integrava o júri desse concurso. Como seria natural, todos os anos, a editora recebia milhares de folhas escritas, de todo o país, com candidatos a escritores procurando um lugar ao sol ou a uma sombra no campo literário. Um desses concursos, realizado no ano de 1938, foi vencido pelo escritor pernambucano Luiz Jardim, que acaba de ganhar um estudo de sua obra, escrito pelo escritor e editor Sidney Rocha, publicado numa das edições da revista Hexágono. Graciliano pegou para ler um calhamaço de mais de quinhentas páginas de contos, assinado por um tal de Viator. O autor de Caetés, num desses momentos de sinceridade, admite que, nessas ocasiões, torcia para que, logo de início, o trabalho fosse rejeitado, em razão da má qualidade das primeiras páginas, evitando o transtorno de ir até o final da obra.

Para a sua surpresa, no entanto, não foi bem isso o que ocorreu com o tal livro assinado com o pseudônimo de Viator, fato que instigou o alagonao a ler todos os contos ali existentes. O livro escrito por Viator não ganhou o concurso, mas mereceu, digamos assim, uma menção honrosa, levando Graciliano a aconselhar a José Olympio a publicá-lo, quem sabe, suprimindo alguns contos que distoavam um pouco da qualidade do texto do livro como um todo. Infelizmente, à época, ninguém conseguiu localizar o tal Viator. Apesar de Viator ter perdido o prêmio para Luiz Jardim, Graciliano reconhecia a qualidade do seu texto. José Olympio chegou a sugerir a Graciliano que escrevesse um artigo, uma espécie de anúncio, mas todas as buscas se mostraram inúteis. Em fins de 1944, escreve Graciliano, Idelfonso Falcão, aqui de passagem, apresentou-lhes a João Guimarães Rosa, secretário da embaixada, recém chegado da Europa.  
- O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.
-Como era o pseudônimo.
-Viator.
-Ah! O senhor era o médico mineiro que andei procurando.
-Idelfonso Falcão ignorava que Rosa fosse médico, mineiro e literato. Fiz camaradagem rápida com o secretário da embaixada.
-Sabe que votei contra o seu livro.
-Sei. Respondeu-me sem nenhum ressentimento.  
O Livro? Sagarana, que depois foi publicado pela Editora Universal, em 1946. A recepção do livro Sagarana pela crítica foi muito boa, embora, evidentemente, não tenha alcançado o mesmo êxito de Grande Sertão:Veredas. Num rompante de deslumbramento com a obra de Guimarães Rosa, em carta ao escritor Fernando Sabino, a poetisa Clarice Lispector assim se expressa: "Aflita de tanto gostar. Nunca vi coisa assim. Adeus, literatura nordestina de cangaço, zélins, gracilianos e bagaceiras: o homem é um mostro para escrever sobre jagunços do interior de Minas e com uma linguagem que nem Gil Vicente, nem ninguém."


P.S.: A leitura da crônica, publicada em Linhas Tortas, não sugere que o escritor Graciliano Ramos tenha votado contra o livro Sagarana, de João Guimarães Rosa. Muito ao contrário. Estabeleceu-se uma contenda e um empate técnico entre o livro de Guimarães Rosa e o livro de Luiz Jardim, não citado. Um voto de minerva é que decidiu a disputa em favor do escritor pernambucano. Convencido da qualidade do texto do escritor mineiro, Graciliano intercedeu junto a José Olympio para publicá-lo, mesmo não tendo vencido o certame literário.

Só a luta popular salva o SUS





André Vianna Dantas



“O orçamento da saúde no Brasil é de R$  130 bilhões, o da educação é de R$ 110 bilhões. Então os cinco maiores bancos cobram, só de tarifa, mais que esses dois orçamentos, quase que o tamanho do déficit brasileiro. Se hoje em dia as pessoas soubessem como funcionam as coisas, os pobres e a classe média fariam uma revolução”.

A contundente afirmação que você acabou de ler não é de um candidato da esquerda à presidência da República, nem de um intelectual universitário ou de um militante do movimento da reforma sanitária brasileira. Seu autor é Eduardo Moreira, economista e ex-sócio do antigo Banco Pactual. Curiosamente, um ex-banqueiro é quem identifica a perda de combatividade da luta popular, que só tem resultado em derrotas.

O Sistema Único de Saúde, parido pela Constituição Federal de 1988, é a política social de maior envergadura da Nova República. De lá pra cá, são 30 anos de um equilíbrio instável entre conquistas e também imposições de limites à sua expansão. O subfinanciamento é a maior expressão dessa tensão. Segundo dados de 2017 divulgados pela Organização Mundial de Saúde, a OMS, os gastos públicos do Brasil com saúde estão entre os mais baixos do mundo, atrás da média de gastos dos países das Américas, da África e da Europa.
É comum entre os sanitaristas a reclamação de que até hoje nenhum governo levou o SUS a sério e tomou para si a tarefa de expandi-lo e consolidá-lo – ainda que em quase metade desse tempo a presidência da República tenha estado nas mãos do PT, originário da mesma luta popular contra a ditadura empresarial-militar da qual emergiu o movimento sanitário.
A produção de estudos sobre o subfinanciamento, a publicação de notas públicas por entidades representativas do setor, a formação de campanhas e frentes políticas defendendo mais recursos e as tentativas de construção de maiorias no Congresso Nacional para a superação desse gargalo não foram poucas.
A realidade parece nos mostrar que o papel do Estado é, em última análise, defender os interesses de manutenção e avanço do sistema do capital.
Será, então, mero acidente de percurso que durante três décadas a tão buscada correlação de forças favorável ao SUS não tenha dado o ar da graça? É a mera existência de cúpulas governamentais descompromissadas e articulações partidárias malsucedidas que explicam a perda de terreno do SUS? Acredito que não.
Um outro caminho de entendimento pode ser buscado no fato de que as reconhecidas lideranças individuais e coletivas do setor saúde, que formularam o projeto da reforma sanitária, se dedicaram à construção do SUS pela via gerencial do sistema por apostarem na harmonização de interesses entre capital e trabalho, acreditando que o Estado poderia ser o fiel da balança dessa convivência pactuada.A realidade parece nos mostrar, sobretudo depois do golpe parlamentar de 2016 que, embora necessária a luta por direitos e democracia, o papel do Estado é, em última análise, defender os interesses do sistema do capital, a despeito de governos e da qualidade de vida dos trabalhadores.
E o que está em disputa hoje é o Fundo Público. Constituído principalmente a partir da arrecadação de impostos e contribuições, representa toda a capacidade de mobilização de recursos que permitem a intervenção do Estado na economia. É, portanto, a principal fonte de financiamento das políticas sociais.
Atualmente, a gestão da dívida pública interna é, disparado, o principal mecanismo de transferência de recursos desse fundo para o capital privado, especialmente os bancos. Segundo dados apurados pela ONG Auditoria Cidadã da Dívida, do orçamento federal executado em 2017, na casa dos R$ 2,483 trilhões, quase R$ 1 trilhão (39,7% do montante) foi destinado ao pagamento de juros e amortizações da dívida.
Em 2017, o bolsa empresário consumiu mais R$ 280 bilhões, mais duas vezes o orçamento federal da saúde previsto para 2018.
O fenômeno não é novo, embora venha se intensificando na medida em que se agravam as condições de saúde do capital. Marx, em 1867, já alertava: “A dívida pública converte-se numa das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como uma varinha de condão, ela dota o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o assim em capital”.
A sangria de recursos não para por aí. As desonerações e subsídios concedidos pelo governo federal a grandes empresas, embutidos em operações de crédito e financeiras, alcançaram a cifra de quase R$ 1 trilhão, entre 2003 e 2016, segundo dados do próprio Ministério da Fazenda.
Em 2017, o bolsa empresário, como é conhecido o programa de incentivo governamental, já consumiu mais R$ 280 bilhões – o equivalente a mais de duas vezes o orçamento federal da saúde previsto para 2018. O golpe de misericórdia no SUS e nas políticas sociais, no entanto, foi a Emenda Constitucional (EC) 95, aprovada em 2016 já sob Temer, que congelou as despesas da União por 20 anos.
Segundo a nova regra, na prática os recursos que anualmente se destinam para a saúde (e educação) deixam de estar atrelados a eventuais aumentos futuros da arrecadação. Isto significa que a participação das despesas dessa natureza diminuirão potencialmente em relação ao PIB, contrariando a lógica de proteção social justamente num momento de crise econômica e das expectativas de crescimento populacional (e consequente aumento de despesas) para as próximas duas décadas. Projeções do economista Francisco Funcia apontam para perdas superiores a R$ 400 bilhões no período de vigência da emenda. Não por acidente, mantêm-se intactos os recursos públicos destinados ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública.
Como parece ficar claro, de pouco adianta clamar por mais recursos para o SUS se ignoramos o verdadeiro centro da disputa. O subfinanciamento do sistema nada mais tem sido do que expressão da nossa derrota na disputa pelo Fundo Público. O Estado, mesmo que disputável nas suas franjas, é estruturalmente operador dessa expropriação.
Se o SUS foi produto de luta social potente, nas ruas, sua defesa não poderá obedecer a outra exigência.
Os tempos estão mais duros, mas o céu nunca foi de brigadeiro. A luta por sobrevivência, melhoria das condições de vida, dos direitos democráticos e a busca da emancipação plena foi sempre uma exigência histórica que pesou sobre os trabalhadores. No Brasil e no mundo, o estudo da história não nos autoriza a apostar em conquistas civilizatórias que não tenham sido produzidas por lutas sociais de peso, para além das eleições e da ocupação de cargos públicos ou em entidades.
Se o SUS foi produto de luta social potente, nas ruas, sua defesa não poderá obedecer a outra exigência. Saídas consensuais, pactuadas, disputas eleitorais, documentos, manifestos, abaixo-assinados e lobbies no parlamento não serão suficientes para conter a reverter a escalada global do drama social e de produção da barbárie que vivemos. Nem na saúde nem fora dela.

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Crônica: Macunaíma




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José Luiz Gomes


Geralmente, Pierre Bourdieu, os “campos” são bastante unidos quando estão em jogo os seus interesses corporativos. Aqui, o discurso é surpreendentemente sincronizado, lançando suas baterias contra aqueles que não estão legitimados para entrarem no “clubinho”. Naturalmente, como o ser humano é bastante vaidoso, existem as disputas internas, notadamente em busca do olimpo, entre os membros de cada "campo" específico, uma disputa que dá não necessariamente orientada por princípios éticos. Chegam ao olimpo aqueles atores que atingem o ápice em cada campo específico, como Marilena Chauí, no campo filosofico, Machado de Assis, no campo literário e Jânio de Freitas, no campo jornalistico. Outro dia um amigo queixava-se que Marilena Chauí atingiu esse estágio sem sequer falar inglês. Imagina? 

Já estamos numa fase final de leitura das crônicas do escritor alagoano, Graciliano Ramos, numa época em que o grande escritor alagoano ainda escrevia para os jornais do Estado. Como se diz lá para aquelas bandas das terras de quilombos onde o autor de Vidas Secas nasceu, agora é que a chapa começa a esquentar. Ontem o alagoano não se conteve e resgou o verbo numa avaliação do romance de estreia de Dinah Silveira de Queiroz, Floradas na Serra apontando que a menina abusava das preposições. Num único parágrafo, usou-as seis vezes. Graciliano não perdoou a falta de criatividade da aspirante ao campo literário. Salvou-a pela construção dos diálogos, que a colocava ao mesmo nível de um Jorge Amado, de uma Raquel de Queiroz e do amigo José Lins do Rego. 

Não se sabe muito bem se guiado por alguma motivação específica, o fato é que, de volta ao Brasil, o escritor de Macunaíma, Mário de Andrade, resolveu elaborar uma lista separando o joio do trigo entre os escritores brasileiros. De uma lado, os bons, os verdadeiros homens do ofício das letras. De outro, os charlatões, de munheca pesada e cérebros turvos, que não escreviam lá grandes coisas. Para ser mais preciso, não sabiam escrever. Em resposta, o cronista sergipano Joel Silveira produziu um longo artigo, rebatendo Mário de Andrade. Polêmicas à parte, não vamos aqui entrar no mérito das assertivas de Mário de Andrade, até mesmo por uma questão de bom senso, além de não reunirmos condições de avaliar a contenda.  
 
Mas, por outro lado, não posso deixar de registrar aqui as observações de Graciliano Ramos sobre essa discussão, carregando pesado na ironia: “Podemos supor que Joel Silveira valha mais de um tostão? Não podemos, razoavelmente, porque ele chegou perto de nós e gritou: Eu sou um tostão. Entretanto, Joel Silveira inventa uns negócios que sujeitos entendidos elogiam. Ora, se Joel, tão arrastado, tão amarelo, tão barato, faz contos e crônicas interessantes, por que não faremos nós coisa igual? Mexamo-nos, fundemos sociedades e pinguemos em revistas cinco vinténs de literatura. Um desastre. É necessário por fim a essa confusão, que nos pode render muito prejuízo. Já existe por aí uma quantidade enorme de livros ruins. E o senhor Joel Silveira não é tostão. Nunca foi. Escreveu um excelente artigo para demonstrar que não saber escrever”.

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

domingo, 26 de agosto de 2018

Crônica: Papa Machado de Assis

 
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José Luiz Gomes
 
Na semana passada li uma grande matéria sobre o centenário do critico literário Antônio Candido. Sem nenhum exagero, o articulista o apontava como um dos grandes intérpretes do Brasil, bem ali ao lado de Gilberto Freyre, Caio Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado. Entre outros, Manuel Correia de Andrade, que, quando vivo, organizou uma série de seminários com os "novos" intérpretes do Brasil. Mas, o núcleo da matéria tratava de sua tese de doutorado, onde o então acadêmico, professor da USP, enfurnou-se numa cidadezinha do interior paulista para estudar o modo de vida daquela comunidade rural. Apesar de ser um estudo de caso, já ali o mestre antecipava as mudanças substantivas que se tornariam a regra das alterações do modo de vida das comunidades rurais no país. Vivo fosse, certamente Antonio Cândido me autorizaria a colocar Machado de Assis na condição de nosso papa, entre os escritores nacionais,assim como ocorre com Ernest Hemingway, em relação aos americanos.
 
Talvez isso não ocorra entre os escritores nacionais, mas, nos Estado s Unidos, os romancistas sofrem de uma espécie síndrome de Ernest Hemingway. Há, entre eles, uma tendência a tentar imitar o seu estilo, quase como uma reverência ao mestre, autor de Por Quem Os Sinos Dobram. Hemingway era muito exigente com a sua escrita. Há relatos que dão conta de que ele não escrevia mais do que 500 palavras por dia, deitado, sempre pela manhã. Confessou certa vez a Scott Fitzgerald que uma dessas páginas era uma obra prima e o resto ele atirava ao lixo. Ao menos se vestia, diferentemente de Victor Hugo e Franz Kafka, que escreviam nus. Um dos seus fãs reescreveu todas as palavras de um dos seus livros para tentar assimilar o seu estilo. Não tenho dúvida de que a incapacidade de escrever precipitou o seu suicídio. O serviço secreto americano desconfiava de sua relação com o governo revolucionário cubano, mas nada ficou devidamente comprovado, exceto que tais perseguições não eram fruto de alguma mente doentia. Fidel encontrou-se com ele uma única vez, durante um concurso de pesca do marlim, vencido pelo escritor. Depois da revolução, sua casa foi confiscada e transformada num biblioteca pública.
 
Sobre o "Papa", reproduzo aqui um trecho de uma crônica do escritor alagoano, Graciliano Ramos, tratando deste assunto: "Tanto se repetiu o nome do velho presidente da academia com a afirmação de que ele influía demais na produção de hoje, que o homem se tornou odioso. Se um sujeito admitia a concordância e não trocava o lugar das palavras, o jornal diria: Bem. Isto e Machado de Assis. Se o camarada evitasse o chavão e não amarrava três adjetivos em cada substantivo, a explicação impunha-se. Muito seco, duro. Esqueleto. Machado de Assis. Faltavam num livro cinquenta páginas de paisagem? Claro. Esse homem aprendeu isso com Machado de Assis. É a história da casa sem quintal. E quando  senhor Marques Rabelo publicou Oscarina. Contos? Machado de Assis. Não há outro."  
 
 

Charge! Renatto Aroeira

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sábado, 25 de agosto de 2018

O pastor e o professor

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     Nascido em Atlanta no dia 15 de janeiro de 1929, Martin Luther King Jr., foi um grande ativista político. Considerado um líder de relevância para o movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos da América. Sua luta se estendeu pelo mundo, defendendo o fim da violência e promovendo a prática da alteridade.

     Em 1955, Luther King esteve à frente do boicote aos ônibus de Montgomery, além de ser cofundador da Conferência da Liderança Cristã do Sul, em 1957. Na famosa Marcha sobre Washington em 1963, proferiu o discurso “I Have a Dream” (Eu Tenho Um Sonho). Mas no a no de 1968, em Memphis, Luther King foi assassinado. Calaram sua voz, mas não seus ideais.

     No dia 18 de julho de 1918, Mvezo (África do Sul), nasceu Nelson Rolihlahla Mandela. Considerado um rebelde, antes de tudo, até hoje, é o mais importante líder da África. Mandela nasceu em uma família nobre, entretanto, aos 23 anos recusou a chefia da tribo, seguindo para Joanesburgo, dando início a sua atuação política. Nelson Mandela passou 27 anos encarcerado, transformando-se no prisioneiro mais famoso do mundo. Provocando movimentos internacionais em defesa da sua liberdade. Ferrenho defensor dos Direitos Humanos, Mandela foi preso por causa da segregação racial que dominava politicamente o seu país. Falecendo no dia 05 de dezembro de 2013, em Joanesburgo, recebeu honrarias de chefe de Estado, pois chegou à presidência do seu país.

      Acontece que o leitor deve indagar o que tem haver Luther king com Mandela? Antes de tudo, ambos foram ativistas políticos que ganharam notoriedade internacional.  Lutaram em defesa dos Direitos Humanos. Se vivessem no Brasil seriam rotulados irresponsavelmente de defensores de bandidos, já que muitos atribuem ser um ramo do Direito que visa exclusivamente proteger facínoras. Ganharam o Prêmio Nobel da Paz. Eram protestantes. Luther King foi pastor e Mandela professor da Escola Bíblica Dominical da Igreja em que era membro. Algo que no Brasil seriam no mínimo acusados de intransigentes ou alienados.  Não é debalde a falta de menção, ora por desconhecimento histórico, ora por questões preconceituosas.  

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Charge! Tacho via Jornalistas Livres

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Crônica: Graciliano, o crítico literário


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José Luiz Gomes

Ao assumir sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, por ocasião do momento protocolar de saudação ao ocupante anterior, o escritor José Lins do Rego quebrou as regras e proferiu um discurso contundentemente crítico sobre a pobreza literária de Ataulfo Paiva. Naturalmente, Bourdieu, isso não ficou nada bem no contexto daquele campo literário, onde as expectativas se orientavam por saudações  meramente protocolares, ensejando, quiçá, rasgados elogios ao antecessor. A repercussão foi tão negativa que, a partir de então, as saudações teriam sido abolidas da cerimônia de posse dos novos imortais. Já àquela época, convém considerar as críticas do escritor de Fogo Morto não apenas a Ataulfo Paiva, mas, a rigor, a própria Academia Brasileira de Letras, cujos critérios de admissão já estavam corrompidos, com eleição de escritores sem livros e, pior, até denúncias de fraudes. Portanto, "A sua vida foi um five o'clock em casa de Dona Luarinda" bem que poderia servir como carapuça aos demais imortais.

Alguns escritores são muito exigentes consigo mesmo. Por vezes, o próprio estilo da escrita denota essa “depuração”, como é o caso, por exemplo, da obra do escritor alagoano Graciliano Ramos. São textos rigorosamente enxutos, por vezes áridos ou agrestes, identificados com a sua personalidade. Até os títulos indicam isso: Vidas Secas, Angustia, Infância. O cronista Graciliano Ramos escrevia para dois jornais alagoanos. Em termos de linha editorial, esses jornais constituíam um binômio de oposição. Um era uma espécie de Diário Oficial, ou seja, concordava com todos os atos do Governo. O outro, um jornal bastante crítico, que não concordava com absolutamente nada. Difícil mesmo, como ele observa, era se equilibrar entre esses dois extremos. Neste último, o ponto de equilíbrio significava, naturalmente, dar vazão à sua verve ácida e meter o pau, com críticas políticas, de costumes e, também, literária. 

Aparentemente, as relações entre Graciliano Ramos e José Lins do Rego eram muito boas. Ambos participaram dos círculos literários de Maceió e, José Lins deu aquele “empurranzinho” para viabilizar a publicação de obras do escritor alagoano. Li, por exemplo, muitos elogios de Graciliano ao colega paraibano, a quem dizia que usava bota de sete léguas, numa referência à sua extensa produção literária. Um segredo de alcova - pouco conhecido, se não não seria de alcova - é que, num desses momentos de sinceridade, Graciliano Ramos deixa escapar uma dura crítica ao conterrâneo: mas se até o José Lins é escritor... Dizia Gracialiano que a coisa mais fácil do mundo é fazer crítica literária. Num texto carregado, pedia aos leitores para retirarem dali os chavões, os galicismos e as tolices e observassem o que restava. Pouca coisa de concreto. Algo que denota apenas a indisposição dos "legitimados" aos calouros que objetivam entrar no "clube".

Sempre condizente com a linha editorial dos dois jornais onde escrevia, um crítico e um a favor, Graciliano brincava com os textos de ambos, quando, por exemplo, analisava os sonetos de uma tal poetisa Mlle.Gertrudes, possivelmente um nome ficcional. Hoje me ocorreu ser bem possível que essa observação ao escritor e amigo José Lins do Rego tenha surgido, possivelmente, no bojo de algum texto seu, quiçá, publicado no jornal do contra, aquele em que, contingenciado pela linha editorial do vespertino, o Velho Graça identificava-se com a franqueza e a imparcialidade que caracterizavam sua personalidade. Talvez. Nunca saberemos.

Charge! Benett via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Le Monde Diplomatique: A economia política do fascismo

O fascismo mais evidente, explicitado politicamente, tende a vir à tona em conjunturas econômicas difíceis

Nos anos 1930, década da maior crise econômico-social já ocorrida no capitalismo, o mundo se viu às voltas com o surgimento e crescimento do nazismo na Alemanha e de ideias e movimentos fascistas, que acabaram por assumir o poder em diversos países – principalmente na Europa, mas não exclusivamente.
A sua consequência mais imediata foi a instalação nesses países de regimes ditatoriais (Estados policiais), que destruíram o Estado de direito típico das democracias liberais: fechamento ou controle dos parlamentos, subordinação do judiciário às necessidades do regime de exceção, extinção da liberdade de imprensa e de opinião, suspensão das garantias individuais do cidadão, proibição de reunião e associação sindical e partidária e, no limite, prisões arbitrárias, torturas e assassinatos.
O seu desdobramento mais deletério foi a Segunda Guerra Mundial, que envolveu praticamente todos os países e regiões do planeta, resultando em 50 milhões de mortos, com a chacina e o genocídio assombroso de populações civis, em especial judeus, ciganos e outras minorias étnicas, homossexuais e deficientes físicos e mentais. Ao final do conflito (1945), o nazismo e o fascismo foram derrotados em todas as frentes (apesar de sua sobrevida em Portugal e na Espanha); mas logo a seguir instalou-se a chamada Guerra Fria, entre o capitalismo (com o seu Estado de bem-estar social nos países centrais, mas não na periferia) e o socialismo soviético – disputa encerrada pelo desmoronamento interno deste último, no início dos anos 1990.
A partir daí, entrou-se em um período de hegemonia absoluta do imperialismo dos Estados Unidos, apoiado no ideário neoliberal e acompanhado pelos processos de reestruturação produtiva e financeirização do capitalismo em escala mundial; ambos difundidos pela mundialização do capital (a chamada globalização). Os resultados daí decorrentes foram ficando cada vez mais explícitos com as sucessivas crises econômicas; primeiro nos países periféricos (anos 1990) e em 2008 no centro do capitalismo (os Estados Unidos).
Ao lado dos avanços tecnológicos até então inimagináveis e do extraordinário crescimento da riqueza material, evidenciou-se o aumento escandaloso da concentração da riqueza e da renda em quase todos os países, crescimento da pobreza, distanciamento cada vez maior entre os países centrais (ditos desenvolvidos) e os países periféricos (subdesenvolvidos), elevação do desemprego estrutural e precarização do trabalho, desmoralização da democracia liberal (dos parlamentos e políticos profissionais, dos judiciários e seus agentes, da mídia corporativa dominada pela plutocracia). Tudo isso acompanhado pela criminalização da política, xenofobia, homofobia, misoginia, racismo e… a volta do fascismo – no mundo e no Brasil.
O filósofo e escritor italiano, Umberto Eco, constatou, acertadamente, que o nazismo foi uma experiência única, localizada na Alemanha na primeira metade do século XX; diferentemente do fascismo, que existiu, e pode existir e se reproduzir, de várias maneiras e formas em distintos lugares e épocas. Mas, ao falarmos de fascismos, no plural, estamos afirmando também que existe um “núcleo duro” comum a todos eles que os igualam. Então, quais seriam as características ou atributos que definem qualquer tipo de fascismo? A resposta a essa questão é decisiva, condição necessária embora não suficiente, para compreendermos fenômenos como, entre outros, Trump nos Estados Unidos, a Frente Nacional na França, a Liga Lombarda na Itália e Jair Bolsonaro no Brasil; bem como termos a exata noção e dimensão do perigo e do fantasma que ameaçam atualmente a convivência civilizada nas sociedades contemporâneas.
O fascismo mais evidente, explicitado politicamente, tende a vir à tona em conjunturas econômicas difíceis (como a brasileira atualmente e o centro do capitalismo desde meados dos anos 2000) de crise (desemprego, precarização do trabalho, queda da renda e aumento da pobreza) que penaliza a maioria da sociedade, especialmente os grupos e camadas que caem na escala social: que descem econômica e socialmente, que mudam para pior o seu status social. É principalmente nessa parte da população, atingida pela crise de modo particular, e também entre aqueles que, potencialmente, podem vir a cair, que o fascismo pode proliferar e recrutar seus apoiadores.
Essa hecatombe social, que atinge duramente o modo de vida desses indivíduos, é sentida como uma derrota pessoal e uma enorme injustiça (o que de fato é); sentimento que pode (não necessariamente, portanto) ser transformado em rancor, ressentimento e ódio contra o status quo (o sistema vigente) – qualquer que seja este último. O fascismo apelará a esse grupo de “perdedores” frustrados com um conjunto de ideias e sentimentos difusos e confusos, como explicação para a situação desfavorável em que se encontram – ignorando e obscurecendo as razões e contradições mais profundas do desenvolvimento capitalista, que levaram à crise.
Em primeiro lugar, o fascismo traz um apelo fortemente emocional contra o “outro”: imigrantes, minorias étnicas (como ciganos), judeus, comunistas, homossexuais, negros, nordestinos no caso do Brasil, mulheres independentes e/ou feministas (misoginia), vagabundos e marginais de todo tipo, moradores de rua, sem teto, sem terra etc. Tudo misturado, o “outro” é o responsável (culpado) direto, ou indireto, pela situação desfavorável vivida pelo indivíduo, o perigo a ser combatido – devendo ser negado liminarmente e, se possível, ser eliminado simbólica e/ou fisicamente.
Em segundo lugar, exatamente pelo fato do “outro” ser tão heterogêneo, os argumentos políticos contra ele, que procuram desqualificá-lo e criminalizá-lo, são sempre toscos, confusos e contraditórios, primários, quase infantis. Por isso, a racionalidade e a coerência não são o forte do fascismo; o que o leva a mobilizar seus potenciais adeptos (o fascismo é fortemente mobilizador!) apelando para o senso comum e sentimentos/emoções irracionais – que não são passíveis de serem entendidos nem explicados minimamente de forma lógica. Essa característica se expressa, de forma inequívoca, no líder fascista – que encarna toda a irracionalidade dessa ideologia regressiva.
Por fim, o fascismo, por definição, é autoritário e antidemocrático pela própria natureza: não admite a presença e a participação do “outro”, podendo, no limite, fazer uso de violência paramilitar. Tem como um dos seus principais aliados os sentimentos de “raiva”, “medo” e “insegurança”: raiva dos que decaíram socialmente e medo e insegurança dos que ainda não desceram na escala social, mas se sentem ameaçados (de fato ou subjetivamente). E, para coroar, apresenta soluções simplórias (e perigosas) para problemas complexos, soluções compatíveis com o senso comum e a diminuta capacidade intelectual de seus militantes e potenciais apoiadores, movidos fundamentalmente por emoções negativas (rancor, ódio e inveja). Exemplo: propor que a população adquira armas, como resposta à insegurança e criminalidade.
No Brasil, na atual conjuntura, o fascismo, além de apresentar as características listadas acima, se constitui também de uma mistura bizarra de moralismo (no âmbito do comportamento, dos costumes e da cultura), fundamentalismo mágico-religioso reacionário (difundido principalmente, mas não apenas, por variadas denominações evangélicas), ideologia da meritocracia e do empreendedorismo (avessa às políticas sociais, aos impostos e a tudo que é público), negação dos direitos humanos e apelo à violência e às formas mais extremadas de repressão policial (justificadas pela necessidade de segurança), e exaltação do individualismo, da competição e do mercado como valores maiores da vida social. É o fascismo brasileiro da era neoliberal, com fortes vínculos religiosos, abertamente pró-capital e que tem apoio e expressão importante no âmbito das instituições do Poder Judiciário e do Ministério Público – que vem contribuindo, juntamente com a “direita moderna neoliberal”, para legitimar a construção de um Estado de exceção no país, cuja ponta de lança, operacional e simbólica, é a Operação Lava-Jato.
Essa estranha mistura ideológica amplia, para além dos “perdedores”, os segmentos sociais potencialmente sensíveis ao fascismo; em especial atinge parte daqueles que conseguiram ascender socialmente (tiveram sucesso) na Era Lula (regredindo ou não posteriormente), mas que acreditam que isso ocorreu exclusivamente por esforço individual e mérito próprio, sem qualquer vínculo com políticas públicas, e cuja sociabilidade se dá fundamentalmente através da religião – e não, ou muito secundariamente, através do trabalho.
Nesse segmento de “classe média baixa”, o sucesso econômico-social, sempre individual, é justificado pelo merecimento (a teologia da prosperidade), um prêmio (uma benção) de Deus àqueles que trabalham disciplinadamente e que seguem os seus ensinamentos (os da igreja). Os que não conseguem obter sucesso (a maioria) é porque não se esforçaram o suficiente e, por isso, não têm o merecimento e a chancela de Deus. A experiência individual é extrapolada, indevidamente, para o conjunto da sociedade através da ideologia da meritocracia, associada também a uma espécie de teologia mercantil: uma troca interessada entre o Deus e o fiel (é dando que se recebe).
Adicionalmente, o “fascismo brasileiro”, na atual conjuntura político-econômica, também tem forte apelo entre segmentos importantes da massa pobre marginalizada, totalmente precarizada e sem qualquer tipo de organização política (trabalhista, partidária etc.). E por fim, o seu atual candidato a Presidência da República, Jair Bolsonaro, sensibiliza parte da população jovem desinformada e despolitizada, mas que tem presença nas redes sociais e que enxerga nele um “comportamento supostamente transgressor”, distinto dos demais políticos profissionais – em geral desmoralizados.
Aqui vale uma observação importante: a maioria das pessoas que faz parte desses grupos, potencialmente sensíveis na atual conjuntura, por diferentes razões, à mensagem fascista, não são politico-ideologicamente fascistas. Na verdade, elas expressam uma decepção enorme com a sua condição de trabalho e de vida, associada à total descrença com a política institucional, os partidos e, no limite, a própria democracia. Os sentimentos de insegurança (em todos os níveis) e impotência conspiram contra a possibilidade de conceber planos e imaginar o futuro de suas trajetórias de vida. Uma ausência completa de perspectiva, restando apenas o aqui e o agora.
Em suma, o fascismo, mais do que um credo político, é uma visão (prática) social do mundo reacionária (anti-iluminista) e um modo de sociabilidade, que procura influenciar e dirigir a vida cotidiana das pessoas – separando-as em grupos dotados, segundo ele, de especificidades irredutíveis. Na atual conjuntura brasileira ele vem acompanhado pelo racismo biológico e/ou cultural (discriminando principalmente negros e nordestinos), machismo, misoginia e homofobia.
Em qualquer lugar, o fascismo situa-se na extrema direita do espectro político-ideológico e se caracteriza pela defesa da propriedade privada de forma absoluta e do capitalismo – sendo visceralmente anticomunista ou mesmo antisocialdemocrata. Por isso, a depender das circunstâncias (como na Itália fascista de Mussolini), pode ser utilizado e apoiado pelo grande capital (hoje, a grande burguesia financeirizada) – quando este se sente fortemente ameaçado em seus interesses de classe. Reuniões recentes de Bolsonaro com agentes do capital financeiro e grandes empresários aplaudindo, rindo e se divertindo são sintomáticas: Mussolini e Hitler, histriônicos como Bolsonaro, no início também eram considerados irrelevantes, “folclóricos” e engraçados, quase que palhaços (com o perdão destes). Na sequência, a história se mostrou trágica.

*Luiz Filgueiras é professor titular da Faculdade de Economia da UFBA. Doutor em Teoria Econômica pela Unicamp e pós-doutorado em Política Econômica pela Universidade Paris XIII. Autor do livro História do Plano Real (São Paulo, Boitempo, 2000; última edição em 2016) e coautor do livro Economia Política do governo Lula (Rio de Janeiro, Contraponto, 2007).

Guernica, Pablo Picasso. Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid