Escrevemos
muito sobre a comunidade quilombola de São Lourenço, em Goiana, Mata Norte do
Estado, que costumamos visitar, com os nossos alunos, com certa frequência.
Chegamos até a produzir
artigos científicos sobre o assunto, que foram publicados em periódicos
nacionais. Na realidade, há muitas histórias envolvendo aquele local, inclusive
o fato de a comunidade ser remanescente do antigo Quilombo do Catucá, comandado
por Malunguinho, um dos maiores do Brasil, de acordo com alguns historiadores,
perdendo apenas para o que se formou na Serra da Barriga, em Alagoas.
Malunguinho tornou-se uma entidade do culto Jurema, um ritual religioso de
origem afro-indígena, hoje, praticamente circunscrito à fronteira dos Estados
de Pernambuco e Paraíba, além do Estado de Alagoas.
Sempre que falamos
sobre o assunto, aguçamos a curiosidade de muita gente. As visitas são
extremamente concorridas. Alunos de outras turmas e até os pais dos alunos
querem nos acompanhar, além de participarem, ativamente, da campanha de
donativos que realizamos na cidade onde fica a faculdade. Conheci José do
Nascimento, o Jipe, numa reportagem de uma revista de circulação semanal. As
repórteres da revista passaram uma semana na comunidade para realizarem uma
grande matéria sobre a vida de José do Nascimento, o homem caranguejo, por
ocasião do relançamento da obra do sociólogo pernambucano, Josué de Castro,
ainda no primeiro Governo Lula.
A matéria tinha como
gancho, conforme já afirmamos, o relançamento da obra do sociólogo Josué de
Castro. As repórteres escaladas produziram uma grande reportagem, acompanhando
o cotidiano daquelas famílias, relatando, com riqueza de detalhes, todas as
agruras por ales enfrentadas, como as dificuldades para assegurarem o sustento
econômico das famílias, as precárias condições das escolas públicas da
comunidade, além da quase ausência de e assistência à saúde. A despeito das
oportunidades de trabalho que estão surgindo em Goiana – em razão dos grandes
investimentos previstos – a cadeia de sobrevivência da comunidade continua
concentrada na captura de caranguejos e mariscos, boa parte comercializados na
feira de Rio Doce, em Olinda.
As repórteres
fizeram questão de acompanharem a rotina de trabalho de Jipe. Desceram com ele
aos manguezais, onde foram produzidos belíssimos flagrantes fotográficos.
Apaixonado pelo trabalho de Josué, enxergamos aí uma grande oportunidade de
aula de campo quando estivéssemos discutindo a obra do sociólogo, que escolheu
a fome como núcleo mais importante de suas pesquisas. Josué passou a estudar o
assunto desde o início de sua vida acadêmica, tendo produzido excelentes
pesquisas sobre o tema, como as primeiras pesquisas de natureza mais acadêmica,
além dos livros Geografia da Fome e Geopolítica da Fome.
Apesar de
pessoalmente vaidoso, humildemente admitia que havia aprendido muito com os
moradores dos mangues do Recife. Os bairros alagados da Veneza pernambucana,
como Afogados, Pina, estão presentes em sua obra. Aprendera mais nos mangues do
Recife, dizia, do que em todos os compêndios e manuais da Sorbonne, onde chegou
a dar aula quando esteve no exílio. No Governo João Goulart, por intermédio do
antropólogo Darci Ribeiro, quase foi nomeado ministro de Estado. A conhecida
inveja pernambucana o impediu de assumir o ministério.
Seu Jipe e dona
Sebastiana são pessoas bastante humildes, que sobrevivem através da captura do
caranguejo uçá, hoje escasso na região, sobretudo depois da instalação de
fazendas de criação de camarão em cativeiro, que destruiu um manancial
incomensurável de manguezais, comprometendo a cadeia de sobrevivência da
comunidade remanescente de quilombo. Como agravante, isso já comprovado
cientificamente, a ração utilizada para engorda do crustáceo, que se espalha
nas águas, compromete a reprodução dos caranguejos. Aquela que seria a segunda
maior fazenda de criação de camarão em cativeiro da América Latina, acabou não
dando muito certo. Agiu o espírito de Malunguinho, como acreditam os quilombolas,
assim como ocorreu com a Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara, no
Maranhão, onde vários cientistas brasileiros foram mortos pro ocasião de um
teste. A base fica localizada num antigo cemitério de negros.
À época, denunciamos
o fato, mas a empresa já havia, como sempre, obtido todas as licenças dos
órgãos que, em tese, deveriam coibir o desmatamento de um bioma protegido
constitucionalmente. Nas visitas que fizemos às mais importantes comunidades
quilombolas de Alcântara, no Maranhão, sentimos o mesmo drama. Um líder
quilombola nos relatou que a Aeronáutica, em função da construção da famosa
plataforma de lançamento de foguetes, os afastou tanto de suas fontes de
sobrevivência, que, não raro, quando eles conseguiam chegar às suas comunidades,
depois do trabalho no mar, o pescado já está estragado.
O coco de babaçu,
outra fonte de sobrevivência da comunidade, para ser colhido, somente com
autorização da Base de Alcântara e em momentos específicos. Pelo que apuramos,
a vida nas agrovilas tem sido insustentável. Sempre arrecadamos quantidade
razoável de alimentos e levamos para a comunidade quilombola de São Lourenço.
Somos muito bem recebidos. Os alunos (as), quase todos oriundos da classe média
tradicional, ficam assustados ao saberem que os rebentos da comunidade são
criados com “leite de caranguejo”, ou seja, com o caldo do cozimento do
crustáceo, de onde se obtém, igualmente, um delicioso pirão.
Muito interessante
essas aulas de campo. Chegamos a Faculdade local logo cedinho e, com a logística
da professora Carminha e o apoio decisivo de Serginho, depois de conhecermos a
cidade, nos dirigimos para a comunidade de São Lourenço, onde conhecemos, em
profundidade, a antropologia daquele ambiente: a comunidade quilombola, as resadeiras,
o culto afro-indígena, a colônia de pescadores, as garrafadas de seu Manuel -
que curam de um tudo-, a deliciosa gastronomia local e as manifestações
culturais inerentes.
No final, depois da
caldeirada da Irene - já repararam que em toda zona de culinária praeira há
sempre uma Irene que prepara a melhor caldeirada?. Mergulhamos nas águas mornas
da praia de Ponta de Pedras. Por um momento, as meninas estão todas
"divorciadas', como costumo brincar. O único maridão do pedaço sou eu.
Desliguem os celulares, por favor! O mar está liberado para as meninas e o
salva-vidas é nós!
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