Vivemos um tempo de sólida, contraditória e agressiva acumulação do capital, que embora presente e persistente na esfera produtiva e de produção de serviços, notadamente se distanciou delas e se agigantou na dimensão da reprodução financeira, com transações em moedas, títulos públicos, ações privadas e novos produtos, os chamados derivativos. A explosão desse processo se deu a partir de 2008, quando a opção pelo alto retorno desses “investimentos” (em derivativos) produziu a destruição de montantes gigantescos de riquezas aplicadas nessas esferas, arrastando patrimônios, instituições e, posteriormente, finanças de governos atingidos pela crise, com o desemprego atingindo milhões e milhões de trabalhadores, sobretudo os mais jovens, em todo o mundo.
Esse novo modo de acumulação traçado pelo capital rouba da esfera produtiva e das receitas públicas massas gigantescas de riqueza. Da esfera produtiva subtrai os fundos que deveriam financiar máquinas, matérias-primas, força-de-trabalho, por lhes oferecer o atrativo da remuneração a juros ou ganhos especulativos fora da produção, do circuito Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro. Das finanças públicas subtrai as receitas, obtidas através da tributação, transferidas do investimento público, do custeio da administração e do financiamento de direitos sociais para a conta da dívida pública e seus encargos, juros, amortizações e refinanciamento, exigindo para isso economia de receitas cavalares através do superávit primário.
Nesse desenho antissocial, improdutivo e contrário ao desenvolvimento, o estado foi aprisionado pelo capital, seja pelas normas jurídicas frouxas ou por aquelas adotadas a favor de sua reprodução ampliada, seja como tutor maior da disciplina fiscal a favor dos compromissos e contratos do ente público com o capital representado pela dívida pública. Embora tenhamos, contudo, vários instrumentos e normas para o desenvolvimento das cidades, da defesa civil ao saneamento, da habitação aos resíduos sólidos e a mobilidade, não se vê regência nem harmonia na aplicação desses instrumentos a favor da maioria dos cidadãos.
Esse estado, embora determinado constitucionalmente a ser o condutor da construção de direitos e de projetos para o bem-estar da sociedade, além de privado dos meios financeiros necessários para tais fins, pelas razões antes expostas, se encontra, também, tutelado pelos interesses de acumulação de frações do capital, operando no espaço urbano, aquelas que se assentam em territórios a partir dos quais instalam suas redes de instituições privadas, voltadas à produção de bens e serviços que alimentam os mercados de consumo, o acesso à “saúde” e à educação enquanto mercadorias, os automóveis importados ou nacionais de grande potência motora, as moradias de luxo, embora cercadas por bairros inteiros insalubres e desprovidos de infraestrutura. Pois bem, é nesse contexto de conflitos e de sequestro do estado a favor da acumulação privada que, em pouco mais de cinco meses, o país escolherá novos Vereadores, Vice-Prefeitos e Prefeitos, que assumirão o desafio de administrar nossas cidades.
Os municípios são hoje o elo fiscal mais frágil da federação. Mesmo capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Porto Alegre dependem de transferências constitucionais e voluntárias da União para assegurarem o necessário ritmo de manutenção e desenvolvimento de políticas essenciais às suas populações. Com déficit monstruosos em habitação com dignidade, transporte público de qualidade, abastecimento de água, saneamento, atenção básica à saúde, acesso universal e de qualidade ao ensino fundamental, a maioria das grandes cidades, contudo, não deixou de ser e oferecer imensos atrativos aos empreendimentos privados que oferecem negócios, serviços e mercadorias às cadeias produtivas do setor terciário e para a construção civil.
Para isso, de um lado, o poder público (municipal e estadual) se associa aos investimentos privados na produção da infraestrutura, de modo a lhes assegurar água, saneamento, energia, telefonia, além da recuperação e ampliação de avenidas e vias de acesso a esses empreendimentos, praticando também a redução do ISS para parte desses empreendimentos, como foi o caso dos hospitais privados assim beneficiados. Prova disso são as ações que deram suporte à implantação de shoppings centers, como o RioMar, no início da zona sul em Recife. O mesmo poder público, porém, tem sido incapaz de equacionar a precariedade da moradia em palafitas em área localizada nas proximidades e nos fundos do mesmo grande empreendimento comercial que, como em outras vezes, serviu também para adensar seu entorno com novas construções de imóveis residenciais e comerciais, hipervalorizando o m2 naquela região, fenômeno conhecido em outras cidades e que finda por afastar paulatinamente antigos moradores não proprietários de imóveis que ocupam nas proximidades com esse incremento de valor. O mesmo Recife, que viu surgirem inúmeros empreendimentos privados de educação superior, com subsídios federais (Prouni e Fies) e agora também municipais (como se fosse competência municipal oferecer matrícula no ensino superior com renúncia de arrecadação a favor de faculdades privadas), é a cidade onde vivem mais de 90 mil analfabetos, é a capital que não garantiu acesso às creches sequer a partir das metas definidas no Plano Nacional de Educação de 2001, a Lei 10.172 e onde, um dia desses, o Ministério Público se viu obrigado a propor Termo de Ajustamento para que a gestão local garantisse vagas na educação fundamental às suas crianças e jovens.
Na saúde, também no Recife, ao lado do conhecido “Polo Médico”, com hospitais de grupos empresariais locais paulatinamente adquiridos por redes nacionais, indicadores de saúde pública de países pobres se espalham periodicamente nos dados estatísticos. Nos últimos anos as ocorrências de dengue e agora de chikungunya e zika, com os casos de microcefalia em crianças filhas de mães ( segundo estudo da Fiocruz, 77% dos casos registrados) que habitam em comunidades insalubres do ponto de vista do desenvolvimento urbano, revelam que não temos a cidade que deveríamos ter. Na cultura, a mesma cidade que promove um imenso carnaval, paralisou seu sistema de fomento à cultura há anos, mantem equipamentos culturais fechados, como Teatro do Parque e dispõe de pouquíssimas bibliotecas públicas e equipamentos culturais fora dos shoppings e bairros próximos do centro e zona sul. Por isso é necessário pensar qual é a distância entre a cidade que temos e a cidade que queremos?
Que papel caberá às eleições de 2016, que responsabilidade terão os eleitores, para que as escolhas ao legislativo e ao executivo nos permitam encurtar essa distância na produção de uma cidade pensada e construída de forma democrática, visando a redução das desigualdades e a geração do bem-estar para todos os seus habitantes, ainda que se insiram em faixas de renda e patrimônio diferenciadas? De que forma os eleitos e a sociedade fora do aparelho de gestão pública (Câmara Municipal e Prefeitura) poderão atuar para reduzir o grau de atrelamento do estado-poder local ao processo de acumulação do capital “urbano”? De que forma poderá atuar a sociedade para assegurar o fortalecimento do planejamento urbano integrado, as audiências públicas, a definição de metas de desenvolvimento a serem periodicamente aferidas, construídas a partir de indicadores de direitos sociais essenciais à qualidade de vida na cidade? Como se vê, votar só não basta. É preciso ter clareza de que o voto sem plataforma é voto vazio de significado, é voto que constitui mandatos cujos eleitos votarão depois em projetos no legislativo elogiando suas esposas, famílias, filhos, não sem usar, também, até o nome de Deus em vão, por mero jogo eleitoreiro. Voto sem plataforma, portanto, é mero cumprimento do dever para com a Justiça Eleitoral, o que não representa nada fora do âmbito jurídico-formal.
As campanhas logo vão começar. Nós, da Plataforma de Esquerda, vamos fomentar intensamente esse debate. Como serão escolhidos os candidatos, quais serão suas razões e argumentos para tal, como se formarão as coligações e quais serão suas plataformas são assuntos aos quais devemos ficar atentos, intervindo no debate da cidade, do urbano, da reforma urbana e dos direitos urbanos como direitos humanos. Todo poder emana do povo.
(Paulo Rubem Santiago é presidente da Fundação Joaquim Nabuco)
(Artigo publicado originalmente na Plataforma de Esquerda, aqui reproduzido com autorização do autor)