pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: O que é fascismo?
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quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O que é fascismo?

                               

    Vladimir Safatle 
                                                                                                                                                                 

O que é fascismo?

FacebookTwitterEmailPinterestAddthisO fascismo é a implosão da possibilidade de solidariedade genérica (Arte Andreia Freire/Revista CULT)

Nesta eleição, o termo “fascista” foi usado várias vezes para descrever formas de discurso e posições políticas. Mas infelizmente o termo não foi discutido naquilo que ele realmente significa. Como nós podemos identificar claramente um discurso fascista, uma forma fascista de vida?
Há quatro elementos que definem uma forma de vida fascista. O primeiro deles é o culto à violência. Trata-se de acreditar que a impotência da vida ordinária e da espoliação será vencida através da força individual daqueles que enfim teriam o direito de sair armado, sair às ruas de camisas negras, falar o quiser sem se preocupar com o que chamam de ditadura do politicamente correto. O fascismo, nesse sentido, oferece uma forma de liberdade. O fascismo sempre se construiu a partir da vampirização da revolta. Há uma anarquia bruta, um carnaval sempre liberado pelo fascismo.
Mas essa liberdade se transforma em liberação de violência por aqueles que já não aguentam mais ser violentados. O carnaval não é a reversão da ordem, mas a conjugação entre a ordem e a desordem. É a desordem com a fantasia da ordem. É o governo forte que me permite esfolar refugiado, atirar em comunista, falar para uma uma mulher “eu só não te estupro porque você não merece”, brutalizar toda e qualquer relação social. Esse vai ser sempre um dos piores efeitos de um governo fascista: criar uma sociedade à sua imagem e semelhança. Como lembra Freud, não são exatamente os povos que criam seus governos, mas os governos que criam seus povos.
O segundo traço do fascismo é o fato de não haver fascismo sem a ressurreição do Estado Nação em sua versão paranoica. Porque alguém tem que cuidar das nossas fronteiras completamente porosas. Alguém tem que ensinar educação moral e cívica para as nossas crianças para que elas tenham orgulho dessa pátria construída através do genocídio dos índios e da escravidão dos negros. Alguém tem que impedir que sejamos invadidos por mais uma leva de refugiados. O Estado Nação se mostra, aqui, como o último refúgio do que é meu, do que me é próprio. O meu território, o meu país, a minha língua, os meus costumes. Mas é também a minha miséria, a minha violência, é o meu sufocamento. Uma comunidade nacional que é o  avesso do comum. É apenas a figura alargada de uma propriedade que aparece como a expressão básica do medo como afeto político central.

O terceiro elemento do fascismo é que ele será sempre solidário à insensibilidade absoluta em relação à violência com classes vulneráveis e historicamente marcadas pela opressão. É a implosão da possibilidade de solidariedade genérica. Essa insensibilidade expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade da vida social não sejam transformadas. Porque toda política é uma questão de circuitos de afetos e estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode nos afetar, com qual intensidade, através de qual velocidade. E, para tanto, há de se gerir a gramática do visível, a forma com que as existências são reconhecidas. Na vida social, ser reconhecido é existir. O que não é reconhecido não existe. Mas ser reconhecido não significa apenas uma recognição do que já existia. Todo reconhecimento exige que aquele que reconhece mude também, porque ele passa a habitar um mundo com corpos que antes não o afetavam. E isso é o que aparece para alguns como insuportável.
E, por fim, o fascismo sempre será baseado na deposição da força popular em prol de uma liderança fora da lei. Ele é a colonização do desejo anti-institucional pela própria ordem. Esse desejo contra as instituições, quando é realmente liberado, poderia criar poderes que voltam às mãos do povo, democracias que abandonam a representação para transferir a deliberação e a gestão para a imanência do povo. Mas o fascismo faz dessa anti-institucionalidade um clamor pela mão-forte do governo. Expressa uma liderança que parece estar acima da lei, que parece poder falar o que quiser sem culpa, expor os seus piores sentimentos sem preocupação alguma com os efeitos, demonstrar desejos mais baixos de violência como expressão de maior liberdade conquistada. Por isso é necessário que esses líderes sejam cômicos, uma mistura de militar e palhaço de circo. Porque só assim, através dessa ironização, essas proposições podem circular com baixa fricção. Afinal, não é para levar a sério tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve levar, então, exatamente a sério? O que é real e o que é apenas uma bravata? Ninguém sabe a não ser eles mesmos. Isso se chama misturar ordem e desordem, lei e anomia. Isso é fascismo.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

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