DIPLOMATIQUE – Em debate na USP realizado em agosto, o senhor
identificou que a esquerda brasileira perdeu a hegemonia no plano
cultural que possuía nas décadas de 1960 a 1980. Como se deu esse
processo?
ANDRÉ SINGER – Parto de artigo famoso do professor Roberto Schwarz1
em que ele sugere a ideia de que houve um fenômeno inesperado depois do
golpe de 1964: em lugar de uma retração da cultura de esquerda, tivemos
um período de expansão e até de hegemonia cultural – não política − da
esquerda. Fiquei com isso na cabeça e me ocorreu, embora nunca tenha
podido escrever a respeito, que talvez essa hegemonia cultural tenha
persistido até o final dos anos 1980. Isso porque, passado o período
mais duro da repressão, que começou com o AI-5 em dezembro de 1968 e foi
até a chamada abertura com o [Ernesto] Geisel em 1974, essa hegemonia
cultural da esquerda voltou. Lembro bem que, no final dos anos 1970 e
começo dos 1980, praticamente não se encontravam pensadores,
articulistas e ideólogos que tomassem posições abertamente de direita.
Estávamos sob hegemonia política da direita, mas no plano cultural a
hegemonia da esquerda continuou e até se acentuou no final dos anos
1970, quando se iniciou o que talvez tenha sido, por sua capilaridade, o
maior movimento grevista ocorrido no Brasil. Esse movimento de base
gerou o que chamo de “onde democrática”, aproximadamente de 1978 a 1988,
com uma profusão de movimentos organizados configurando uma
democratização da sociedade por baixo, e isso acentuou ainda mais a
hegemonia cultural da esquerda. Paralelamente, no final dos anos 1970,
começo dos 1980, tem início no mundo a onda neoliberal.
DIPLOMATIQUE – E o Brasil estava em descompasso com essa tendência.
ANDRÉ SINGER – O neoliberalismo no Brasil foi retardado por essa
conjuntura, cujo emblema maior talvez tenha sido a campanha das “Diretas
já”. Só que, no plano mundial, começou a crescer o neoliberalismo, um
fenômeno ideológico que o [historiador inglês] Perry Anderson classifica
como o de maior sucesso de toda a história. Ou seja, não é apenas um
conjunto de políticas governamentais, mas uma concepção de mundo que
ganhou corações e mentes. Finalmente, entre o fim dos anos 1980 e começo
dos 1990, o neoliberalismo entrou no Brasil.
DIPLOMATIQUE – A eleição de 1989 é um marco dessa inflexão?
ANDRÉ SINGER – É um marco desse processo, que depois foi aprofundado
pelas políticas do governo Fernando Henrique Cardoso. Mas não é só isso,
porque estamos falando de hegemonia cultural. O que acontece é que os
valores de mercado, de ascensão individual, de competição e os valores
ligados a uma intensa mercantilização dos espaços públicos começaram a
se tornar correntes, sobretudo na chamada classe média tradicional e
depois em estratos médios mais amplos. Então, passamos a assistir ao
surgimento de manifestações ideológicas, com articulistas, autores de
livros e até artistas, produtores influentes, que defendiam abertamente
esses pontos de vista, algo que não se encontrava até meados dos anos
1980. Assim, a presença quase total que a esquerda tinha no plano da
cultura foi quebrada e passou a haver uma competição na qual continua
existindo uma esquerda, mas a direita é crescente. Com isso, não quero
dizer que ela necessariamente vai se tornar hegemônica, mas passou a
haver uma competição.
DIPLOMATIQUE – Qual é o papel das Igrejas nesse processo?
ANDRÉ SINGER – Esse é um fator extremamente importante, porque o Brasil
é um país onde o catolicismo era e continua sendo muito forte. É
visível que a inflexão da Igreja Católica para a esquerda nos anos 1960 e
1970 impactou muito no sentido dessa hegemonia cultural. A influência
da Igreja Católica no Brasil era enorme, continua sendo muito grande, e,
quando ela virou para a esquerda, arrastou camadas extensas da
sociedade. Nos anos 1980, a onda neoliberal influenciou a Igreja com uma
virada para a direita que começou com o papa João Paulo II e lentamente
foi entrando no Brasil. Isso é muito importante para entender a
presença da hegemonia cultural da esquerda e depois sua quebra. A esse
fator se soma um segundo, que é a avalanche pentecostal e neopentecostal
no Brasil. O crescimento das confissões evangélicas parece ser
compatível com a proliferação de uma ideologia mais conservadora. É
difícil fazer afirmações categóricas, porque esse universo é muito
diversificado, mas a impressão que tenho é que as confissões
pentecostais e neopentecostais tendem a favorecer uma percepção de que a
melhora das condições de vida depende do esforço individual, não de
movimentos coletivos.
DIPLOMATIQUE – O senhor também identifica outras ondas
conservadoras que extrapolam o plano cultural, especialmente entre a
classe média paulistana. Quais são elas?
ANDRÉ SINGER – Em termos de classe propriamente, não há dúvida de que
esse segmento tem uma propensão conservadora por razões materiais.
Trata-se de uma parcela dentro de uma sociedade muito desigual como a
brasileira, que tem privilégios, que tem o que perder, portanto, há
motivos para uma inclinação no sentido da manutenção da situação que a
beneficia. Porém, o que aconteceu é que uma parte desse segmento, que
estou chamando de classe média tradicional, entrou e participou da
frente antiditadura durante os anos 1970 e 1980, gerando uma simpatia
por posições mais à esquerda. Isso explica também certa entrada que o PT
chegou a ter nesses segmentos no começo de sua trajetória. Essa
situação mudou radicalmente com o surgimento do lulismo, um processo dos
últimos dez anos.
DIPLOMATIQUE – É desse realinhamento que o senhor trata em seu novo livro?2
ANDRÉ SINGER – Tem a ver, mas nesse caso é um fenômeno particular
dentro do realinhamento: a classe média tradicional se fechou em bloco
contra as políticas sociais promovidas pelo lulismo. Parece ser uma
reação ao processo de ascensão social de setores que antes estavam
estagnados numa condição de muita pobreza. É um fenômeno muito recente e
não está bem pesquisado, mas a gente vê, ouve conversas, lê no jornal
essa reação à presença de pessoas de renda mais baixa nos aeroportos. O
que isso significa? Esses espaços eram exclusivos; só pessoas com renda
mais alta podiam frequentar.
DIPLOMATIQUE – Sintomático disso são as reclamações
por parte das classes média e alta sobre uma crescente dificuldade de
encontrar empregados domésticos.
ANDRÉ SINGER – É, isso é o elemento que coloquei no meu livro Sentidos do lulismo.
Chama muito minha atenção também porque houve realmente uma mudança no
trabalho doméstico, com elevação da renda e melhora das condições de
trabalho. Isso tem a ver com o fato de que caiu o desemprego e entraram
em cena programas sociais que criaram um piso, dando a essas pessoas a
possibilidade de escolher não trabalhar por menos de certa quantia, o
que é extremamente importante se considerarmos que existem cerca de 6
milhões de empregados domésticos no Brasil. É um elemento desse conjunto
de mudanças que está ocorrendo no Brasil e, aparentemente, há uma
reação a isso por parte da classe média. Há também uma terceira onda,
que é ainda menos conhecida e mais recente: um neoconservadorismo em uma
parcela bem pequena do conjunto das 30 milhões de pessoas que
ultrapassaram a linha de pobreza nos anos Lula, um segmento que deu um
passo além, subindo não um, mas dois ou três degraus. Um fator disso tem
a ver com o medo da mudança. Essas pessoas teriam certa consciência de
que o processo de ascensão não durará para sempre e, portanto, não
seriam simpáticas a políticas para promover a ascensão de novas camadas,
pondo em risco aquilo que já ganharam. Outro elemento desse
neoconservadorismo é que, às vezes, se nota entre aqueles que sofreram
um processo de ascensão social uma antipatia com os programas sociais. É
curioso. É como se essas pessoas se “dessolidarizassem” daquelas que
ainda precisam da transferência de renda, compartilhando uma impressão
de que o processo de ascensão social decorre do esforço individual, e
não de políticas coletivas. Um terceiro fator, mais específico da cidade
de São Paulo, é a questão do empreendedorismo. Isto é, há uma
quantidade de pessoas envolvidas com pequenos negócios e tentando
melhorar de vida por meio deles. Bom, esse pequeno empreendedor tem uma
tendência conservadora, justamente porque ele só conta consigo mesmo,
diferentemente de um assalariado.
DIPLOMATIQUE – O que organiza esse movimento conservador? Não
há um partido que canalize essas ondas. Pode-se dizer que a mídia cumpre
esse papel?
ANDRÉ SINGER – Essas ondas conservadoras não estão sendo expressas no
plano da política, sobretudo da política partidária. Por quê? Porque
nesse ponto entra em jogo outro fator, que é o realinhamento eleitoral. À
medida que o lulismo obteve uma maioria no país, a oposição foi
obrigada a jogar com as regras do jogo impostas por esse movimento. Essa
é a principal consequência do realinhamento. Ele fixa uma agenda, por
isso o lulismo é tão importante, porque determinou uma agenda no país, e
esta é, fundamentalmente, a redução da pobreza. Sendo essa a agenda, a
oposição não pode expressar nitidamente o ponto de vista de sua base
social, porque assim ela perderia as eleições. Essa é a razão pela qual o
candidato do PSDB em 2010, o ex-governador José Serra, propôs duplicar o
número de pessoas atendidas pelo Bolsa Família, em lugar de combatê-lo,
como gostaria a classe média tradicional. Desse modo, ocorre um
fenômeno curioso: há um crescimento da ideologia conservadora na
sociedade, mas ela não encontra expressão na política. Quanto aos meios
de comunicação, nós precisamos entender o seguinte: o conservadorismo no
Brasil é muito antigo e tem um lastro histórico profundo. O diferente
nessa história foi o período de hegemonia cultural da esquerda. Agora,
estamos voltando para um momento anterior, mas que é de uma certa
normalidade, porque o Brasil tem esse lastro conservador. Os meios de
comunicação têm um papel nisso? Certamente. Mas é preciso também
considerar que a análise dos meios de comunicação não deve ser feita em
bloco; eles não são uma coisa só, há certa heterogeneidade. [Porém,]
Partes do sistema de mídia certamente compõem essa primeira onda
conservadora que está quebrando a hegemonia cultural da esquerda.
DIPLOMATIQUE – Como o lulismo, um fenômeno tão contraditório, opera nessa chave?
ANDRÉ SINGER – O lulismo é uma nova síntese que junta elementos
conservadores e não conservadores. Por isso é tão contraditório e
difícil de entender. O lulismo pegou um apreço pela manutenção da ordem
que tem ressonância nos setores mais pobres da população. Nesse ponto,
retomo a questão de que, na formação social brasileira, se tem um vasto
subproletariado que, por estar aquém da condição de proletário, não tem
como participar da luta de classes, a não ser em situações muito
especiais e definidas. Assim, o que o lulismo fez foi juntar esse apreço
pela ordem com a ideia de que é preciso mudar. Que tipo de mudança? A
redução da pobreza por meio da incorporação do subproletariado ao que
chamo de cidadania trabalhista. Desse modo, o lulismo propõe
transformações por meio de uma ação do Estado, mas que encontra
resistência do outro lado. Basta prestar atenção no noticiário para ver
como o embate político está posto o tempo todo nas decisões econômicas,
no braço de ferro a cada momento em que se precisa baixar os juros,
aumentar o gasto público ou controlar o câmbio. Essas decisões passam
por um tremendo embate político que não está nas ruas; é preciso ler o
jornal com atenção para perceber. O lulismo propõe mudanças, mas sem
radicalização, sem um confronto extremado com o capital e, portanto, com
a manutenção da ordem. Nesse sentido, é um fenômeno híbrido, que
captura um tanto desse conservadorismo. Por isso uma análise mais
simplista e dicotômica não consegue dar conta da complexidade da
situação que estamos vivendo.
DIPLOMATIQUE – Em 2010, o senhor deu uma entrevista destacando a
importância de o PT se manter na esquerda para politizar esse
subproletariado.3 É isso que pode frear essas ondas conservadoras?
ANDRÉ SINGER – O Brasil ainda tem uma herança daquilo que chamei de
grande onda democrática dos anos 1980. Que herança é essa? Primeiro a
Constituição, com mecanismos de participação direta e, além disso,
dispositivos efetivos de organização da sociedade. Grandes movimentos
sociais se organizaram e uma parte deles segue atuando na sociedade,
enquanto novos surgem, embora também seja possível identificar certos
movimentos que declinaram. O Brasil ainda tem energia organizativa de
baixo para cima. Segundo pesquisas que li, [essa energia] foi
incrementada pelo Bolsa Família. Principalmente em comunidades do
interior, as mulheres estão adquirindo certa autonomia a partir do
momento em que têm um cartão, não dependem de mais ninguém e recebem uma
quantia de dinheiro por mês, recurso a que elas nunca tiveram acesso e
que é, sobretudo, constante, com o qual elas podem contar. Há indicações
de que essas mulheres estão se organizando, por exemplo, em
cooperativas, empreendimentos igualitários de mudança de sua condição de
vida. Tudo que seja organização da sociedade pela base ajuda a frear
essas ondas conservadoras. Não há motivo para imaginar que essa onda
conservadora venha de maneira avassaladora, que não há nada do outro
lado. Sobre a questão do PT, gostaria de observar que, como eu disse em
2010, continuo acreditando que este momento é especial, porque se abriu
uma janela de oportunidade para o diálogo da esquerda com os segmentos
mais pobres da população. Isso é muito interessante porque, sobretudo no
Nordeste, esse era o setor que votava normalmente com o conservadorismo
e agora está com o lulismo. É uma oportunidade ímpar de politizar esses
setores, no sentido da transformação social. No entanto, de 2010 para
cá, passados quase dois anos, não vejo o PT muito engajado nesse tipo de
trabalho. Eu às vezes temo que essa oportunidade seja perdida, uma
oportunidade que está aberta para toda a esquerda. Porém, os setores da
esquerda que não estão no PT têm tido dificuldade para compreender os
avanços sociais e simultaneamente o impacto conservador que o lulismo
representa. Há que se entender essa contradição e, ao não entender,
perde-se a plataforma de diálogo com os setores que estão sendo
beneficiados por essas políticas.
Luís Brasilino
Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.
Ilustração: Daniel Kondo
1 “Cultura e política, 1964-69”. In: Roberto Schwartz, O pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
2 Singer identifica que, desde a reeleição do presidente Lula em 2006,
houve uma aproximação do subproletariado em direção ao lulismo e um
distanciamento do PT por parte da classe média tradicional. Ver Os sentidos do lulismo, Companhia das Letras, São Paulo, 2012.
3 “Cabe ao PT politizar o subproletariado”, Brasil de Fato, São Paulo, n.374, 29 abr.-5 maio 2010.
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