pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 28 de agosto de 2016

Zizek: Hillary e o triunfo da ideologia


Žižek: Hillary e o triunfo da ideologia

Julian Assange está certo em sua cruzada contra Hillary, e os liberais que o criticam por atacar a única figura que pode nos salvar de Trump estão errados. O alvo a ser atacado e solapado agora é precisamente esse consenso democrático contra o “vilão”.


hilary ideologia zizekPor Slavoj Žižek.

Alfred Hitchock disse certa vez que um filme é tão bom quanto seu vilão. Isso quer dizer que as atuais eleições nos EUA serão boas já que o “malvado” (Donald Trump) é quase um vilão ideal? Sim, mas num sentido muito problemático… Para a maioria liberal, as eleições de 2016 nos apresentam diante uma escolha bem clara e definida. A figura de Trump é evidentemente um excesso ridículo, uma figura vulgar que explora nossos piores preconceitos racistas e sexistas, um porco chauvinista sem um mínimo de decência. Até grandes nomes Republicanos estão o abandonando aos montes. Se Trump de fato permanecer o candidato Republicano, ficaremos com umas eleições de levantar o ânimo: a sensação será de que, apensar de nossos problemas e disputas internas, onde há uma verdadeira ameaça, temos a capacidade de todos nos unir em defesa de nossos valores democráticos básicos… como a França fez após os ataques terroristas.
No entanto, é exatamente esse confortável consenso democrático que deveria nos preocupar. Devemos dar um passo atrás e voltar o olhar para nós mesmos. Afinal, qual é mesmo a coloração dessa ampla unidade democrática? Todo mundo está lá, dos partidários de Wall Street aos apoiadores de Sanders junto com o que sobrou do movimento Occupy, das grandes corporações aos sindicatos, dos veteranos do exército aos militantes LGBT+, de ecologistas horrorizados pela negação de Trump do aquecimento global a feministas felizes com a perspectiva de uma primeira presidenta mulher nos EUA passando pelas figuras “decentes” do establishment Republicano espantadas pelas inconsistências de Trump e suas irresponsáveis propostas “demagógicas”.
Mas o que desaparece nesse conglomerado que aparenta englobar a tudo e a todos? É preciso lembrar que a raiva popular que deu origem ao fenômeno Trump também produziu Sanders. Apesar de ambos expressarem o descontentamento social e político generalizado, eles o fazem em sentidos opostos. Um através do populismo direitista e outro optando pelo grito esquerdista por justiça. E aqui está o truque: o clamor da esquerda por justiça se associa a lutas pelos direitos das mulheres, das minorias, da população LGBT+, por multiculturalismo e contra o racismo, etc. O objetivo estratégico do consenso de Clinton é claramente o de buscar dissociar todas essas pautas do horizonte esquerdista de justiça. É por isso que o emblema vivo desse consenso é Tim Cook, o CEO da Apple que orgulhosamente assinou a carta pro-LGBT e que agora pode facilmente ignorar as centenas de milhares de trabalhadores da Foxconn sendo esfolados em condições análogas à da escravidão na linha de montagem da Apple na China – seu grande gesto de solidariedade para com os “não-privilegiados” se limitou à exigência da abolição à segregação de gênero… Como geralmente costuma acontecer, as grandes empresas se colocam em profundo alinhamento com a teoria politicamente correta.
Essa mesma postura foi levada ao extremo com Madeleine Albright, uma grade apoiadora “feminista” de Clinton. No programa 60 Minutes do canal CBS (12/5/1996, assista aqui), a jornalista a questiona sobre a Guerra no Iraque: “Ouvimos que meio milhão de crianças morreu. Quer dizer, isso é maior do que o número de crianças que morreu em Hiroshima. E, enfim, será que o custo de uma guerra como essa compensa?.” Albright responde prontamente: “Acho que é uma escolha muito difícil, mas o custo – nós consideramos que vale a pena arcar com ele.” Ignoremos as inúmeras questões que essa resposta levanta (incluindo o interessante deslocamento do “eu” para o “nós”: eu considero uma questão difícil, mas nós avaliamos que compensa), e foquemos apenas no seguinte aspecto: imagine só o descalabro que não seria se o mesmo comentário saísse da boca de alguém como Putin, ou o Presidente Chinês Xi, ou o Presidente do Irã! Será que eles não seriam imediatamente bombardeados por todas as nossas manchetes os condenando como monstros frios, bárbaros e sem pudor? Durante a campanha para Hillary, Albright ainda disse: “Há um lugar especial no inferno para mulheres que não ajudam umas às outras!” (Leia-se: que vão votar em Sanders e não em Clinton.) Talvez devamos corrigir essa afirmação: há um lugar especial no inferno para mulheres (e homens) que pensam que meio milhão de crianças mortas é um preço razoável a se pagar por uma intervenção militar que arruína um país, e que ao mesmo tempo calorosamente apoiam os direitos das mulheres e das minorias em casa…
Trump não é a água suja que devemos jogar for a para preservar o bebê saudável da democracia estadunidense. Ele é o próprio bebê sujo que deve ser despejado para obnubilar a verdadeira água suja das relações sociais que sustentam o consenso Hillary. A mensagem que e consenso passa à esquerda é o seguinte: “você pode ficar com o que quiser, nós só queremos o essencial, o livre funcionamento do capitalismo global”. O “Sim, nós podemos!” do Presidente Obama adquire agora um novo significado: “sim, nós podemos ceder a todas as suas demandas culturais… contanto que a economia global de mercado não seja comprometida – então não há motivo algum para medidas econômicas radicais”. Ou, como Todd McGowan colocou (em uma comunicação privada): “O consenso das ‘pessoas que pensam direito’ em oposição a Trump é assustador. É como se seu excesso autorizasse o verdadeiro consenso global capitalista a emergir e a se autocongratular a respeito de seus valores de abertura.”
É por isso que Julian Assange está certo em sua cruzada contra Hillary, e os liberais que o criticam por atacar a única figura que pode nos salvar de Trump estão errados: o alvo a ser atacado e solapado agora é precisamente esse consenso liberal-democrático forjado de cima para baixo para combater o vilão ideal.”
E o pobre Bernie Sanders? Infelizmente, Trump acertou em cheio quando comparou seu apoio a Hillary com um integrante do movimento Occupy apoiando os Lehman Brothers. Ele deveria ter simplesmente se retirado e ter permanecido na dignidade do silêncio para que sua ausência pesasse fortemente sobre as celebrações de Hillary, nos lembrando do que ficou de fora nessa festa de consenso e, dessa forma, preservando o espaço para alternativas futuras mais radicais.
* Texto enviado pelo autor diretamente ao Blog da Boitempo. A tradução é de Artur Renzo.
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(Publicado originalmente no blog da Boitempo)

sábado, 27 de agosto de 2016

Paulo Rocha faz um resumo da ópera bufa: sem provas, é pura política.

26 de agosto de 2016 às 10h11


Captura de Tela 2016-08-26 às 10.10.00
Senador Paulo Rocha fez um Resumo da Ópera Bufa com Final Trágico
sugerido por Franco Atirador
Sr. Presidente, eu queria, inicialmente, parabenizá-lo pela forma de magistrado em estar processando aqui este julgamento, saudar a nossa Mesa e saudar, respeitosamente, o nosso informante.
Presidente, mais do que perguntar, eu queria fazer algumas afirmações políticas aqui, porque, sinceramente, este julgamento não tem nada a ver mais com o jurídico ou com as pedaladas ou com o que estão se preocupando aqui em tentar.
A própria Acusação já fugiu disso, os próprios acusadores já fugiram disso.
Eles não conseguiram, ao longo desse tempo, provar, mesmo com a competência do técnico [Procurador do MP no TCU Júlio Marcelo].
O próprio Relator, o nobre Senador Anastasia, a quem respeito, com toda a sua competência, com todos os seus conhecimentos jurídicos, teve que fazer todo um desvio, umas articulações, um malabarismo, para fazer um relatório capaz de comprovar.
E há até preliminar para poder verificar se ele não acrescentou mais alguma coisa, se ele não foi buscar outra coisa que não estava no processo.
Aqui, durante o dia, o senhor sempre fez algumas intervenções exigindo que as pessoas não levassem para o político etc.
Porém, aqui é plenamente um julgamento político, Presidente.
Estamos vivendo um momento no País que é um processo em que não se precisa mais das armas dos militares para se interromper a democracia do nosso País.
Aqui é uma combinação de processo político, que vai em busca de uma criminalização de quem está no Poder, e uso dos técnicos bem preparados e a imprensa como processante disso.
Hoje, o que vemos é que tudo está sendo politizado.
Está aqui um técnico que é verdadeiro militante político, e o militante político tem lado, assim como também a imprensa tem lado.
Dentro do próprio Judiciário, os juizes não falam mais só sobre o julgamento, mas fazem declarações e exposições políticas.
Dentro do Ministério Público, a Lava Jato, por exemplo, começou como uma boa investigação para combater a corrupção, mas, na metade do caminho, politizaram as investigações, usaram a delação [para selecionar Acusados]…
O SR. PRESIDENTE (Ricardo Lewandowski) – Mais 30 segundos para V. Exª.
O SR. PAULO ROCHA (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT – PA) – Para descontar na próxima intervenção.
O SR. PAULO ROCHA (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT – PA) – O próprio Ministério Público politizou, na medida em que usa a delação para direcionar só a alguns setores políticos ou ao Partido que está no Poder.
Presidente, agora, um bom técnico é usado para também estar nessa mola.
Com toda a militância que ele tem na boa gestão pública, eu não o vi se manifestar nas próprias denúncias dentro do TCU.
Há denúncia, inclusive, de Ministros que têm relações com advocacias para processar os julgamentos que existem lá. Então, é julgamento político aqui, Presidente.
O SR. PRESIDENTE (Ricardo Lewandowski) – V. Exª não fez nenhuma pergunta ao Dr. Júlio Marcelo, mas, respeitando o ponto de vista de V. Exª, no que tange ao Poder Judiciário, quero reafirmar a independência, a autonomia e a isenção dos magistrados brasileiros. V. Exª tem mais uma oportunidade de se manifestar.
O SR. PAULO ROCHA (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT – PA) – Perdoe-me, Sr. Presidente.
Como instituição, respeito o Supremo. Inclusive, já fui julgado lá [e Absolvido], e foi exatamente no julgamento do tal do Mensalão que se expressaram ali posições políticas.
Há um Ministro claramente – e ele nem esconde isso –, que é o Ministro Gilmar Mendes, que tem posição política clara, com julgamento sem nenhuma independência.
Ele faz questão de publicamente fazer esse debate político, com partidos políticos, inclusive.
Eu queria dizer o seguinte: aqui é uma disputa eminentemente política e uma maioria política que se formou para poder cassar a Presidenta da República.
E agora saem da questão da denúncia, e a estão julgando pelo conjunto da obra.
O conjunto da obra, na visão deles, é que, além das pedaladas, que não conseguem provar, eles dizem que ela não é uma boa política, não se relaciona bem com sua base, não se relaciona bem com o Parlamento etc. Esse é o conjunto da obra.
Eu queria dizer a todos aqui, Presidente, que, da nossa parte, o conjunto da obra é o seguinte: nos últimos tempos dos governos que começamos a implementar, nós fizemos políticas para poder dar oportunidade para todos, melhoramos a vida da população, melhoramos a perspectiva de oportunidades do País.
E aqui uso, inclusive, o meu exemplo: só tenho o segundo grau e virei grande liderança política do meu Estado por causa da minha militância política pela democracia, porque não tive oportunidade de estudar, lá no meu interior.
Hoje, lá no interior do meu Estado, o conjunto da nossa obra é que agora o filho do trabalhador pode ser doutor neste País, o filho do negro pode ser doutor neste País.
O SR. PAULO ROCHA (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT – PA) – Este é o conjunto da nossa obra. Por isso, o julgamento aqui é político.
Presidente, quando o senhor vir aqui que, em nossa intervenção, há uma intervenção política, mas os partidos estão fazendo silenciosamente uma posição política, não querem ouvir testemunhas.
O próprio PSDB aqui tirou só seu Líder para falar por todos, o PMDB fez a mesma coisa.
Há uma ação política silenciosa, porque já há uma maioria política aqui para poder tomar uma decisão no dia 30. Eles não vêm para cá agora fazer o debate político.
Então, aqui é uma posição política, não somos juízes só. Há uma posição política aqui, porque, se fôssemos juízes, cada Parlamentar teria que vir aqui para poder ouvir testemunhos, para formar sua opinião, mas os próprios partidos que nos acusam estão agora manipulando o tempo para poder [cassar mais rápido a Presidente]…
(Publicado originalmente no site Viomundo)

Charge!Aroeira via Facebook

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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Michel Zaidan Filho: O julgamento de Dilma




Diz um conhecido provérbio:"o tempo é o senhor da razão". Com certeza o julgamento definitivo dos atos da Presidente Dilma Rousseff será feito pelo tribunal da história. O tribunal que a julgará, no Senado Federal, não tem a isenção necessária para fazer este julgamento. Parece um tribunal de exceção. É como se fosse uma justiça partidária, num processo que carece de base jurídica e legal. Dilma Rousseff será julgada porque perdeu a apoio do Congresso Nacional, como disse um trânsfuga partidário, em busca de uma justificativa para condená-la. Pelo visto, no regime presidencialista que nos coube viver, o maior pecado do governante é se incompatibilizar com o Congresso, seus líderes e seus parlamentares. E a maior virtude é lhes fazer todas as vontades, mesmo à custa do erário público. Dilma está pagando o alto preço de não ter aliciado o Congresso, como fez Fernando Henrique Cardoso ou como está fazendo o interino, sentado em sua cadeira.

Mas a História apresentará um veredicto diferente para o desfecho desta aventura golpista, travestida de "impeachment". Desde 2012 as forças privatizantes, neoliberais, filoamericanas, associadas à imprensa golpista e ao Poder Judiciário, voltaram a se articular no Brasil, com o objetivo de levar adiante a privataria tucana, interrompida com a eleição de Lula, em 2002. Essa escusa coligação de interesses anti-nacionais e anti-populares aproveitou, como pode, os efeitos da crise econômica sobre o país, para atribuir ao governo petista a responsabilidade pelo atoleiro da economia do Brasil. A política anticíclica posta em prática pela Presidente da República surtiu seus efeitos no curto prazo, mas a crise internacional é profunda e permaneceu no cenário econômico deprimindo o preço das nossas "commodities". O erro da Dilma foi achar que a agenda do "ajuste fiscal" agradaria à oposição, derrotada nas eleições, e lhe daria uma trégua no Congresso. O movimento não foi combinado com sua base de apoio: sobretudo os trabalhadores, os pequenos agricultores, os servidores públicos etc. Nem uma coisa, nem outra. Os adversários farejaram o momento de fraqueza política e avançaram sobre a fragilidade base de apoio parlamentar do governo. E os apoiadores de Dilma foram surpreendidos com uma agenda hostil a eles.

Aí entra em cena "a bucha de canhão" de todos os golpes políticos no Brasil: as classes médias urbanas, sempre elas. Ameaçadas pelo espectro da proletarização ou do assédio dos de baixo, estes setores sempre conspiraram contra as instituições democráticas. Serviram de estopim da crise política, convenientemente explorado pela mídia, a cata de factóides. Não é a primeira vez que o verde-amarelo aparece como manifestação filo-fascista no Brasil. Os integralistas também vestiam essa mescla colorida. Também eles falavam em defesa da Nação, da Família, da Fé Cristã contra os comunistas à serviço de Moscou. Nacionalista (moralizante) de direita que aplicam, sem mediação, a ética das convicções à política, como se o País fosse a Igreja ou a casa da família. Acrescente-se a isso, a cruzada ultraconservadora das Igrejas neo-pentecostais, com suas Marchas para Jesus Cristo e seus cultos de Louvores cacofônicos e impertinentes.

Mas nada disso se compara à aliança entre os meios de comunicação de massa e o ativismo judicial dos ministros da Suprema Corte. O juiz investiga e a mídia divulga e condena. Existem os vazamento prós e os contras. Os que são convenientes, mesmo fora da lei, são bem-vindos. Os que ameaçam os interesses golpistas em curso, são apagados. É a política torta, ambivalente, suspeitosa da aliança da mídia com o judiciário.Pode-se esperar alguma coisa de um tal Poder?

A história há de revelar que se afastou uma Presidente da República, sem crime de responsabilidade. Mas que era o caminho mais curto para o desmonte das políticas de transferência de renda, da política externa independente, do avanço dos direitos das minorias, da criação de oportunidades sociais para os mais pobres e para o resgate da auto-estima do povo brasileiro, no concerto das nações.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE. 

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O xadrez político das eleições de 2016, no Recife: Ibope aponta João Paulo na dianteira, mas tudo pode acontecer, inclusive nada.



José Luiz Gomes


É justo esclarecer que esta não seria a primeira pesquisa de intenção de voto entre os candidatos que disputam as próximas eleições municipais do Recife. O jornal Folha de Pernambuco já teria encomendado pesquisa do gênero ao Instituto Ipespe, com direito a artigo analítico do cientista político Antonio Lavareda. Interessante observar, entretanto, as semelhanças de resultados entre essas duas pesquisas, que apontam para um empate técnico entre os candidatos João Paulo(PT) e o candidato Geraldo Júlio(PSB). Dentro da margem de erro, Geraldo ainda liderava na pesquisa do Ipespe, mas aparece agora um pouco abaixo de João Paulo, mas tudo ainda dentro da margem de erro, o que quer dizer que ambos estão tecnicamente empatados. Este dado deve estar sendo muito bem comemorado nas hostes petistas, por razões óbvias. 

O linchamento midiático do Partido dos Trabalhadores é algo sem similar e pode ser constatado, cotidianamente, através daqueles canais "competentes", identificados com a sigla PIG. Os fatos são tão grotescos que o partido preparou até uma cartilha para denunciar a perseguição aos organismos internacionais, o que já foi lido como uma tentativa, imaginem, de macular a imagem do país no exterior. É curioso isso, porque esses órgãos que promoveram o linchamento do partido e dos seus líderes não publicaram uma única nota pedindo desculpas ao senhor Luiz Inácio Lula da Silva, à sua família e à sociedade brasileira, pelas calúnias e difamações proferidas, ao atribuir a ele, indevidamente, a propriedade do tríplex do Guarujá. 

Com o suporte de uma mídia "comprometida" como a nossa, o PT perdeu feio a batalha de comunicação e, supostamente, isso pode ter sérios reflexos nessas eleições municipais, de acordo com 10 entre 10 analistas. Antes que nos condenem, quero esclarecer aqui que não desconhecemos fatos concretos desabonadores da conduta do partido na condução dos negócios públicos e que estes fatos contribuem, igualmente, para "descredenciar" o PT junto a alguns estratos do eleitorado. De imediato, há um consenso de que o PT enfrentará as eleições mais difíceis de sua história. É bom ter sempre em mente que as dificuldades existem, sobretudo em eleições atípicas como esta, com sérias restrições de financiamentos, realizadas em plena "ebulição política" no país.

O Brasil, entretanto, é um país muito atípico, e o Recife, nas palavras de Agamenon Magalhães, em certas circunstâncias, pode se constituir numa cidade cruel. O "China Gordo" dizia isso em relação a algumas "refregas" eleitorais sofridas aqui no Recife, mesmo quando sua "máquina" apresentava bom desempenho nos grotões. Mas, historicamente, a capital pernambucana sempre se notabilizou como uma arena de disputas políticas renhidas. Os dados apresentados por essas duas últimas pesquisas parecem nos indicar uma disputa, voto a voto, até a eleição de outubro, com uma possibilidade concreta, hoje, de um segundo turno. Nos últimos comentários que fizemos sobre o assunto, levantamos a hipótese dessas eleições municipais, sobretudo em praças como o Recife, assumirem um caráter plebiscitário sobre o golpe institucional ora em curso no país, assim como, em épocas passadas, algumas dessas eleições contribuíram para informar aos militares que já estava na hora deles voltarem às casernas. 

Dizíamos também que talvez uma boa estratégia do comando de campanha do PT fosse canalizar esse sentimento da população recifense através da candidatura do ator político João Paulo. Há, entretanto, muitas outras coisas em jogo nas eleições do Recife e a sugestão, como disse, é apenas um sugestão. Uma sugestão que até poderia ser considerada, uma vez que o prefeito Geraldo Júlio, desde o início, nunca escondeu de ninguém que apoiou o processo, digamos assim, de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Ele e os principais adversários de João Paulo, a exemplo de Daniel Coelho(PSDB), que aparece com 11% na pesquisa do Ibope, e Priscila Krause, do DEM, que pontua com 8% das intenções de voto. O tucano continua assumindo o papel de "fiel" da balança num eventual segundo turno. A Democrata Priscila Krause avançou bastante em relação à primeira pesquisa do Ipespe, o que indica um certo potencial de crescimento de sua candidatura. 

João Paulo, pelo que observamos, vem se concentrado bastante numa espécie de "cotejo de gestões", estabelecendo algumas "marcas" a até "índices" com a gestão do prefeito Geraldo Júlio. Nesta luta, desta vez, conta com um outro grande aliado, o também ex-prefeito João da Costa(PT), candidato a vereador do Recife. Estratégias são estratégias e João Paulo montou uma espécie de "conselho político" tão grande que mal dá para ouvir todo mundo. Uma das teclas em que ele sempre bate é que cuidou melhor dos recifenses do que o socialista, notadamente dos recifenses habitante da periferia e dos alagados. 

Mas, como disse antes e volto a repetir, nem o experiente Antonio Lavareda, ao comentar a pesquisa do Ipespe, quis arriscar algum prognóstico sobre as eleições do Recife, afirmando que estava tudo muito embolado. Lembrando o poeta, Lavareda informou que tudo seria possível de ocorrer nas eleições do Recife, inclusive nada. Pelo andar da carruagem política e considerando os escores apresentados pelo última pesquisa do Instituto Ibope, tudo nos remetem ao fato de que esta frase do Antonio Lavareda continue dando o mote dessas eleições até o próximo dia 02 de outubro. 



domingo, 21 de agosto de 2016

Charge! Renato Aroeira via Facebook

As desconstruções de Jacques Fux

O trabalho de Jacques Fux mostra-se extremamente importante para o desenvolvimento dos estudos literários contemporâneos
fux
por Roniere Menezes
Jacques Fux é um jovem escritor e ensaísta de rara potência criativa. Suas obras inauguram um lugar diferencial no campo literário brasileiro. Fux é autor dos livros Antiterapias, de 2012, que venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2013 e Brochadas, de 2015, que recebeu menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte, e lança, em agosto de 2016, oLiteratura e matemática: Jorge Luís Borges, Georges Perec e o OULIPO, pela Editora Perspectiva, fruto de premiada tese de doutorado defendida na Faculdade de Letras da UFMG em cotutela com a Universidade de Lille 3, na França.
O trabalho de Jacques Fux mostra-se extremamente importante para o desenvolvimento dos estudos literários contemporâneos, inclusive se pensarmos na noção de literatura como campo expandido, não circunscrito apenas à imanência estético-discursiva. Os textos de Fux apontam para uma grande intimidade com cânone literário nacional e internacional, com pesquisas filosóficas, matemáticas e históricas. Em suas narrativas, de forte caráter ensaístico, o autor transita entre memórias, discussões literárias, culturais e políticas – sem se esquecer dos dramas cotidianos do homem comum. Os textos vêm sempre acompanhados de jogos, chistes e tons humorísticos. As múltiplas perspectivas adotadas relacionam-se aos vários gêneros empregados; entre esses, cabe ressaltar o emprego de cartas e e-mails na construção ficcional de Brochadas.
A noção de transdisciplinaridade – além do comparativismo literário –  ecoa em todo o percurso do autor. Um forte dado a ressaltar é a importância dada por Jacques Fux, em seu livro Literatura e matemática, ao lugar da fabulação, da imaginação, em qualquer trabalho acadêmico ou produção humana. Em A partilha do sensível, o filósofo Jacques Rancière dialoga com essa questão levantada pelo escritor-ensaísta. Segundo Rancière, “O real precisa ser ficcionado para ser pensado”. (RANCIÉRE, 2009, p. 58) e continua: “A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens (…).” (RANCIÉRE, 2009, p. 59).
Chamam-nos a atenção a clareza e a precisão matemáticas na escrita de Fux, o cuidado com a elaboração de frases curtas, onde estampam palavras bem escolhidas. O narrador convida o leitor a experimentar jogos, aproximações inusitadas entre campos de saberes distintos;apresenta reflexões sobre conflitos existentes nas relações humanas;aborda diálogos entre matemática e literatura, mas sempre com leveza – característica cara a Ítalo Calvino, como sabemos. Os textos lidam extremamente bem com o humor, a ironia e a auto-ironia, desconstroem paradigmas e recalques relativos à sexualidade e trazem novas visões sobre a questão judaica na contemporaneidade.
Em seus livros de ficção Antiterapias Brochadas, Fux traz para o campo literário algumas das discussões e propostas artísticas presentes no seu inaugural Literatura e matemática:Jorge Luís Borges, Georges Perec e o OULIPO, como a questão do jogo, do método de trabalho criativo, das limitações da escrita que contribuem para estimular a criação, da formulação de listas etc.
A lógica matemática, o pensamento libertário e a desconstrução de paradigmas associam-se, em Jacques Fux, à busca de uma comunicação franca com o público leitor. O autor produz textos densos, complexos, dotados de citações eruditas, mas ao mesmo tempo preocupa-se com o entendimento e a fruição da recepção. Como ávido leitor e bom conhecedor das tramas do discurso literário, Fux almeja, em sua escrita,estabelecer interessantes pactos narrativos com a recepção; muitas vezes o narrador trata o leitor como um velho conhecido. Essa estratégia rompe com alguns distanciamentos mais convencionais existentes entre autor e leitor. Em Fux, o que parece brincadeira, abre novas clareiras para nossas percepções de mundo; o que parece sério,revela-se marcado pelo caráter lúdico da linguagem. Nesse diálogo, o leitor não quer deixar o livro que começou a ler e segue sua rota de aprendizagens e surpresas, conduzido pelas experientes mãos do narrador, o que não impede a construção de trajetos singulares de interpretação.
A autoficção, a memória e a relação desta com a ficção aparecem na produção literária de Fux paralelamente a questionamentos metalinguísticos. Nesse sentido, vale ressaltar a tranquilidade que o narrador demonstra ao retirar aspas em diversas citações clássicas da literatura, “esquecendo-se” do nome do antigo autor. Fazendo assim, o narrador aproxima, mais uma vez, sua escrita de uma conversa amigável com o leitor, lembrando diálogos em que são citadas frases ou versos de importantes autores. Além disso, essa estratégia ficcional de Fux explicita aquilo que é comum a toda obra literária: a relação com outras obras, a eleição de textos e autores que seguirão como imprescindíveis parceiros de caminhada. Como sabemos, Jorge Luís Borges assinalou, em “Pierre Menard, autor de Quixote”: “Pensar, analisar, inventar” passam pelo critério de “entesourar antigos e alheios pensamentos” (BORGES, 1986, p, 38). Não há aí nada de anormal ou condenável, pois a inteligência respira normalmente dessa forma.Mário de Andrade também defendia a criação literária (e musical) como jogo, como paródia e paráfrase de outras obras. A rapsódia Macunaíma é um exemplo dessa proposta.
A ampla rede intertextual construída por Jacques Fux desvela um jovem autor totalmente imerso na cultura letrada, dotado de amplas e sofisticadas referências. A obra de Fux ajuda combater o receio que diversos leitores iniciantes têm da filosofia, da matemática, da história – e da própria literatura. Os livros ampliam nossas percepções a respeito dos campos disciplinares ao propor novas possibilidades de interação entre áreas diversas. Em seus textos, as tramas sensíveis e bem articuladas possibilitam-nos enxergar as fronteiras como instâncias de porosidade, de trocas, e não como lugar de impedimento ao livre trânsito de experiências e saberes.
A produção literária de Jacques Fux apresenta, em suas nuanças, uma ideia que tem sido resgatada na contemporaneidade: a noção de comum. Seus textos literários e ensaísticos – distantes de facilidades empobrecedoras – contribuem para que diversas produções da arte, da literatura e da ciência sejam mais bem partilhadas e se tornem um direito comunitário. Para isso, entram em cena a imaginação, o humor, o apuro técnico e a linguagem desconstrutora de convenções morais, sociais e disciplinares. A literatura expandida realizada por esse inquieto escritor, além de sua força linguístico-expressiva, termina por propor a construção de novos espaços éticos e estéticos no corpo social.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

sábado, 20 de agosto de 2016

Charge!Renato Aroeira via Facebook

Quem é o doutrinador?


Acusação a Paulo Freire erra o alvo: sua pedagogia prima pela autonomia do educando na construção dos saberes

Paulo Cavalcante e Yllan de Mattos
1/9/2015  
  • Agência Brasil / Foto José Cruz
    Agência Brasil / Foto José Cruz
    “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”. Espanto geral. O que o nome do educador Paulo Freire estaria fazendo em uma manifestação contra a presidente Dilma Rousseff e o PT? 
     
    Era março de 2015, e os protestos se davam no rastro da crise econômica, da desarticulação política das bases de sustentação do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff e da corrosão de sua credibilidade. Mas a caixa de Pandora da vida política nacional havia sido destampada dois anos antes, nas manifestações de 2013, que liberaram das conhecidas amarras cordiais os males do autoritarismo, do ódio, da intolerância, do preconceito e do desapreço à democracia.
     
    Haveria na obra de Paulo Freire alguma mensagem capaz de autorizar tamanha indignação e reprovação?
     
    “Doutrinador” é aquele que prega, instrui, incute em alguém uma crença, um ponto de vista ou um princípio sectário, ou seja, realiza uma transferência de conteúdos, de si para o objeto de sua doutrinação. Nada está mais distante do pensamento pedagógico de Paulo Freire do que isto. Ele repele com contundência qualquer procedimento doutrinador: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”, escreveu em Pedagogia da autonomia.
     
    Suas recomendações sobre os saberes necessários à prática educativa são claras. Desde logo, e sempre, a prática: “A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim como também na negação do mundo como uma realidade ausente de homens”, ensinou em Pedagogia do oprimido. O homem em suas relações com o mundo. Este é o pressuposto de toda compreensão e de toda ação educativa capaz de promover a autonomia e a libertação das pessoas. Não é que o mundo seja necessariamente uma prisão. Ele até pode ser, e muitas vezes é. O que importa aqui é pôr o homem em seu contexto, rompendo o aparente curso natural das coisas e identificando o conjunto de suas relações. Colocadas em perspectiva, elas se reconfiguram e geram conhecimento histórico sobre si e sobre o mundo, para si e para o mundo.
     
    Promover a tomada de consciência e a transformação do indivíduo em sujeito qualificado de sua própria história: eis a prática (práxis) educativa de Paulo Freire. Ele assim o diz, sobre si mesmo, em Educação como prática da liberdade: “Todo o empenho do Autor se fixou na busca desse homem-sujeito que, necessariamente, implicaria em uma sociedade também sujeito. Sempre lhe pareceu, dentro das condições históricas de sua sociedade, inadiável e indispensável uma ampla conscientização das massas brasileiras, através de uma educação que as colocasse numa postura de autorreflexão e de reflexão sobre o seu tempo e espaço. (...) Autorreflexão que as levará ao aprofundamento consequente de sua tomada de consciência e de que resultará sua inserção na História, não mais como espectadoras, mas como figurantes e autoras”.
     
    Onde encontrar o ímpeto doutrinador em alguém que, em vez de pregar e impor, pergunta e escuta para compreender? Quando Paulo Freire retornou ao Brasil, em agosto de 1979, uma avalanche de repórteres cercou-o para saber sua opinião sobre a situação do país na época. Ele respondeu: “Vim  para reaprender o Brasil e, enquanto estiver no processo de reaprendizagem, de reconhecimento do Brasil, não tenho muito a dizer. Tenho mais o que perguntar”. Sua atitude, antes de ser dogmática e taxativa, demonstra uma abertura irrestrita para o mundo, como aprendiz. 
     
    A chave para compreendermos a acusação de “doutrinador marxista” contra Paulo Freire não está em sua obra. Encontra-se na mentalidade daqueles que produziram a mensagem, em sua compreensão estreita do que é educação e do que é ensinar. Essas pessoas acreditam piamente no mito da neutralidade da ação docente, segundo o qual o professor não tem cara, não tem lado, não toma partido, não pensa nem intervém de modo transformador na realidade social. Para elas, o professor deve estar unicamente comprometido com a sagrada missão de transmitir conteúdos anonimamente escolhidos, aparentemente desinteressados e oficialmente listados. Conteúdos supostamente eficazes, pragmáticos e destinados a aplacar a sanha competitiva por boas posições escolares e universitárias que tenham o condão de assegurar condições ideais de disputa nas escassas oportunidades de uma sociedade excludente. Na verdade, o acusador grita contra o espelho. É ele, e não Paulo Freire, quem prega a doutrinação. Qual? Diríamos, sem medo de errar: a “doutrinação bancária”, aquela que transfere “ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos”.
     
    O caminho da autonomia e da liberdade aberto por Freire não foi concebido para o educando como doação de uma inteligência superior que se compraz na realização daquilo que considera ser o bem, ou seja, como alguém (sujeito) que sabe o que é melhor para o outro (objeto). A grandeza do pensamento de Freire está na redução da distância em relação ao educando, na disponibilidade para escutá-lo em suas diferenças, na abertura de dialógica para a transformação recíproca: são dois sujeitos em troca aberta, franca e transformadora. Enfim, o caminho é partilhado com o educando: “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. (...) A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser”.
     
    A mentalidade conservadora dos acusadores rechaça a dimensão política da pedagogia concebida e posta em prática por Paulo Freire. “Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica”, esclarece o educador. É por conta disso, provavelmente, que a mensagem no protesto decide ir além de uma doutrinação qualquer, e a qualifica: Freire estaria ligado a uma “doutrinação marxista”. Talvez sem saber, o acusador reedita uma crítica conservadora muito antiga contra Paulo Freire, baseada no fato de que seu trabalho é tão pedagógico como político. Mas é isso mesmo. Como afirmou Moacir Gadotti, o educador é político enquanto educador e o político é educador pelo próprio fato de ser político. Freire complementa: “seria uma ingenuidade reduzir todo o político ao pedagógico, assim como seria ingênuo fazer o contrário. (...) quando se descobre uma certa e possível especificidade do político, percebe-se também que essa especificidade não foi suficiente para proibir a presença do pedagógico nela. Quando se descobre por sua vez a especificidade do pedagógico, nota-se que não lhe é possível proibir a entrada do político”.
     
    Quanto à alcunha de “marxista”, pretensamente desqualificadora, é preciso dizer que Paulo Freire jamais deixou de destacar o papel emancipatório atribuído por Karl Marx à ciência e à pesquisa. Além disso, juntamente com outros intelectuais marxistas, como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, o educador não só foi crítico de posições dogmáticas e mecanicistas, como reconheceu o valor universal da democracia e lutou intensamente para o seu desenvolvimento no Brasil. Sobre os confrontos em torno do seu legado, o próprio Marx certa vez disse: “O diabo os leve! O que sei é que eu não sou marxista”.
     
    A pedagogia de Paulo Freire é radical, isto é, vem da e vai à raiz das coisas. Privilegia a cultura, os saberes e os valores dos educandos como ponto de partida e chegada de uma educação como prática da liberdade e da transformação. Quando lecionou a primeira aula em Angicos, no interior do Rio Grande do Norte, em 1963, Freire falou sobre o universo que cercava os estudantes: a leitura do mundo precede a leitura da palavra. No quadro negro, não escreveu “Ivo viu a uva”. Escreveu coisas oriundas daquele cotidiano popular, como “tijolo”. De imediato, o educando reconheceu-se naquela palavra e naquele contexto. Nada mais lhe era alheio: ele havia se tornado sujeito da aula. 
     
    Esse encontro cultural acolheu e inseriu o educando, abrindo o caminho para a sua transformação. Por isso mesmo, é um ato político em seu sentido histórico: a discussão da polis em que vivemos e na qual queremos viver. Este talvez seja um dos pontos centrais da famosa citação do educador, replicada nas redes sociais como resposta dada pela Unesco ao cartaz levantado contra Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”.
     
    Paulo Cavalcante é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e do Mestrado Profissional em Ensino de História em Rede Nacional – ProfHistória.
    Yllan de Mattos é professor da Universidade Estadual Paulista e autor de A Inquisição Contestada (Mauad-X/Faperj, 2014).
     
    Saiba Mais
     
    GADOTTI, Moacir; FREIRE, Paulo & GUIMARÃES, Sérgio. Pedagogia: diálogo e conflito. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006. 
    FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 20. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
    FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 44. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
(Publicado originalmente no site da Revista de História da Biblioteca Nacional)

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Syriza e as armadilhas do poder


Humilhado pelas autoridades europeias, mas determinado a não deixar o euro, o primeiro-ministro Alexis Tsipras – que renunciou em 20 de agosto – justificou a escolha dizendo seguir a vontade do povo. Ele alegou ausência de quadros para construir uma alternativa; porém o Syriza não soube mobilizar sua base
por Baptiste Dericquebourg


Atenas, 30 de julho de 2015. Sob um calor esmagador, em uma cidade meio desertada por seus habitantes, o comitê central do Syriza teve uma das reuniões mais importantes da sua história. O partido, que obteve 36,34% dos votos e 149 deputados nas eleições legislativas de janeiro, formou o primeiro governo grego determinado a acabar com a austeridade e com a tutela da Troika – Comissão Europeia, FMI e Banco Central Europeu (BCE). Em 13 de julho, contudo, o primeiro-ministro Alexis Tsipras aceitou assinar um terceiro memorando que, em troca de 86 bilhões de euros em empréstimos suplementares para os três próximos anos, que vão permitir uma recapitalização dos bancos do país, exauridos, impõe novas medidas de austeridade e um vasto plano de privatizações.
Ao mesmo tempo deixando claras as reservas que esse novo arranjo inspira, Tsipras e sua comitiva defenderam certos aspectos dele. O ministro da Economia, Giorgos Stathakis, declarou, por exemplo: “Ainda que diversas medidas contidas nesse acordo tenham um efeito recessivo, em nenhum caso podemos compará-lo aos dois primeiros memorandos, que incluíam um ajuste orçamentário de 15% do PIB no período de quatro anos e reduções das aposentadorias e dos salários compreendidas entre 30% e 40%”.1 No entanto, em 15 de julho, na votação de urgência das “medidas preliminares” exigidas pelas instituições antes de qualquer desembolso de uma parte dos 86 bilhões de euros de empréstimo prometidos, 32 dos 149 deputados do Syriza se opuseram a um plano que julgavam contrário ao programa de seu partido; seis se abstiveram e um não participou da votação. O texto só pôde ser aprovado com o apoio de uma parte da oposição. Desde então, o Syriza está à beira da implosão. As duas tendências, uma favorável à assinatura do plano, e a outra, principalmente no seio da Plataforma de Esquerda (PE),2 que a recusa, se acusam pela responsabilidade da ruptura.

AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS
Na reunião de 30 de julho, Tsipras pediu àqueles que o criticavam que propusessem uma solução alternativa para o acordo que tinha acabado de fechar. Segundo ele, uma saída do euro equivaleria a uma catástrofe, sem necessariamente permitir à Grécia uma mudança política: “Não há solução fora do euro; aplica-se também uma austeridade severa nos países que estão fora da zona do euro”.3 De maneira ainda mais urgente, o vice-primeiro-ministro Yannis Dragasakis estima que, em caso de crise aberta com seus “parceiros” europeus, o partido seria incapaz de prover as necessidades do país em termos de bens de primeira necessidade, em particular petróleo e medicamentos. Panos Kosmas, da PE, replica: “Quem, senão o primeiro-ministro, tinha o dever de dispor de tal solução alternativa? Por que ela não foi elaborada?”. Seria essa toda a diferença entre uma saída do euro completamente sofrida e um “Grexit” em parte controlado, sobre o qual havia refletido, entre outros, o economista e deputado do Syriza, Costas Lapavitsas?4
Para explicar certos obstáculos contra os quais se chocou o governo de esquerda, essa questão da preparação retorna com frequência às discussões com os altos dirigentes do partido e os membros do governo. Depois de seu congresso fundador em julho de 2013, a coalizão de esquerda Syriza se tornou um partido unificado, contando de 30 mil a 35 mil membros,5 que em seguida se organizou em três níveis: local, profissional e temático. Os comitês locais reúnem a base do partido. Cerca de um terço dos inscritos comparece às reuniões mensais para discutir a linha política, prever e organizar ações de solidariedade com os grevistas. O partido também se dotou de organizações que reagrupam seus membros por profissão, o que lhe permitiu se engajar de forma mais eficaz nas lutas setoriais. A elaboração de um programa de governo, enfim, foi confiada a comissões temáticas que recrutavam por cooptação. Não era necessário ser membro do partido para participar. “Depois do movimento dos ‘indignados’, aderi a uma associação pela reforma da Constituição. Foi por isso que me propuseram entrar na comissão sobre esse tema, e eu fiz a minha carteirinha. Assim renovei minha relação com a política, depois de trinta anos de desinteresse”, explica Vassilis Sidias, professor de Religião em Atenas.
Uma constatação retorna com frequência: o partido careceu de competências técnicas que poderiam ter lhe permitido passar dos eixos gerais do seu programa para medidas concretas. Apesar das novas adesões que se seguiram ao sucesso eleitoral de 2012, a chefia do Syriza permanece a mesma desde 2009. Com as conquistas obtidas nos últimos anos, centenas desses dirigentes acumularam novas tarefas, e por vezes era difícil constituir equipes: 76 deputados foram eleitos em junho de 2012, seis parlamentares europeus em maio de 2014, assim como, no mesmo mês, 927 conselheiros municipais e 144 eleitos regionais, depois, enfim, em janeiro passado, 149 deputados... Em seu gabinete do Parlamento, Dimitris Triandafyllou, psicólogo, nos confia: “Voltei da Inglaterra para me tornar adido parlamentar em janeiro. Precisei aprender tudo na hora”. A deputada para quem ele trabalha, Chrisoula Katsavria, deu seus primeiros passos no Parlamento em janeiro.
Também foi preciso formar as equipes governamentais. Claro, como nos lembra Stathis Kouvelakis, membro da PE, “o partido está cheio de jovens que fizeram uma tese, inclusive sobre Economia ou Econometria”. Mas, acrescenta um alto funcionário do Ministério da Economia, que prefere permanecer anônimo: “Uma coisa é ter ideias gerais e conhecimentos; outra coisa é dispor de competências técnicas em nível estatal. É preciso saber fazer funcionar uma equipe, identificar os cargos-chave para os quais devemos nomear pessoas de confiança, saber em que escritório podemos deixar as coisas, que obstáculos jurídicos vão aparecer etc., para conseguir fazer o que queremos. E a experiência adquirida nas administrações locais não ajuda em nada no nível nacional”. Em suma, o partido conta com poucos funcionários administrativos operacionais.
Resultado: constatamos em todos os lugares um enorme atraso nas designações, na tomada de decisões e em suas execuções. Exemplo claro: o da lei sobre as grandes mídias de informação. Depois de anos de não intervenção, ao longo dos quais a oligarquia grega se apropriou da totalidade dos grandes canais de televisão, de rádio e da maior parte da imprensa escrita,6 o ministro Nikos Pappas prometeu impor a adoção de uma lei regulamentando a atribuição de frequências. Em preparação desde março, o projeto só foi apresentado ao Parlamento duas semanas após o referendo que tinha permitido a essas mídias uma nova oportunidade de organizar uma campanha feroz contra o governo.
Esses atrasos também deixaram no lugar o antigo pessoal, com suas práticas antigas. Na polícia, as redes de extrema direita, que não foram desmanteladas, deixam no ar um perigo permanente.7 Na saúde, Panayiotis Vevetis, psicólogo e militante do Syriza na Tessalônica, dá um testemunho da mesma imobilidade: “Esperamos em vão que os administradores dos hospitais sejam substituídos”. Estes últimos tinham a reputação de ser frequentemente corrompidos e de ter acompanhado o desmoronamento do sistema de saúde grego.
Consciente desses problemas, a direção explicou suas escolhas. Segundo ela, os critérios meritocráticos agora devem prevalecer, ainda que os recrutamentos fossem até o momento determinados principalmente pelo pertencimento à família política da maioria no poder. Isso permitiria acabar com as práticas do Partido Socialista e da direita.8 “Esses partidos se isolaram da sociedade e serviam ao funcionamento de uma rede de relações clientelistas”, lembra Tasos Koronakis, secretário-geral do Syriza.9 A mudança dos critérios de recrutamento se integrava bem no ambiente que a equipe dirigente gostaria de estabelecer para as relações entre partido e governo, pois permitia prevenir as agitações que uma mudança muito ampla de substituição do pessoal teria provocado. “Eles queriam evitar dar a impressão de se vingar dos partidos precedentemente no poder”, explica o jornalista Nikos Sverkos. Tsipras e sua comitiva (principalmente Pappas, Dragasakis e Alekos Flabouraris, ministro de Estado para a Coordenação Governamental) estavam, de fato, convencidos de que poderiam chegar a um melhor compromisso com as instituições europeias criando uma relação de confiança com elas e utilizando as divergências entre as instituições e os Estados: o FMI contra a Comissão Europeia, os Estados Unidos contra a Alemanha etc. Para isso, mais valia evitar um aumento das tensões na Grécia e uma agitação na base do partido.
Por vezes, essa moderação teve consequências surpreendentes. Assim, o diretor do Banco da Grécia, Yannis Stournaras, ex-ministro das Finanças do governo de Antonis Samaras, não foi substituído. Mesmo o jornal econômico francês Les Échos se espantou com a brandura de Tsipras para com um homem casado “com uma biologista ligada à opulenta indústria farmacêutica” e que “presidiu no início dos anos 2000 aos destinos do banco Emporiki, cujo fracasso custou mais de 10 bilhões de euros ao banco Crédit Agricole”. Além disso, “como conselheiro do Tesouro grego, [Stournaras] teve um papel importante no processo de adesão da Grécia ao euro, endossando a maquiagem dos números que impediram a Europa de tomar consciência a tempo do estado real de sua economia”.10 Desde a chegada ao poder do Syriza, o diretor do Banco Central não parou de criticar sua estratégia de negociação, em particular ao longo da semana que precedeu o referendo.

O PODER SE DISTANCIA DE SUA BASE
Nesse caso, no entanto, candidatos à substituição não faltavam: a organização do partido para o funcionalismo do setor bancário conta “com mais de quinhentos membros, entre os quais diretores e gerentes de estabelecimentos bancários, com uma experiência técnica”, indica um dos membros protegido pelo anonimato. “Tínhamos elaborado um plano de nacionalização dos bancos e um para os empréstimos não reembolsáveis. Depois das eleições esperávamos medidas, ainda por cima porque os capitais já tinham começado a fugir. Mas nada foi feito, e Dragasakis não convocou nenhum de nós.” Segundo Tsipras, foram a asfixia financeira provocada pelo BCE e a iminência de um desmoronamento do sistema bancário que levaram à assinatura do acordo de 13 de julho.
Desde janeiro, os moradores do bairro popular da Vila Olímpica não viram nenhum representante do partido vir lhes informar ou solicitar algo. Alguns reconhecem que a formação de um governo do Syriza lhes deu “uma alegria imensa”, mas estimam que seus integrantes permanecerão tão longe do povo quanto no passado e não compreendem a assinatura do último acordo. Contrariamente às expectativas da PE, no entanto, eles não se mobilizaram para se opor a isso. Os cartazes pelo “não” no referendo, ainda visíveis nas paredes, dão testemunho de um interesse muito variável segundo os bairros de Atenas. “Foram principalmente os comitês onde nós [a PE] éramos majoritários que fizeram a campanha”, garante Kouvelakis.
De acordo com essa tendência, a equipe de Tsipras se autonomizou muito cedo do partido e recusou-se a preparar a população para uma eventual saída do euro. Devemos nos espantar? “Como afirma o slogan ‘Nenhum sacrifício pelo euro’, a prioridade absoluta para o Syriza é acabar com a catástrofe humanitária e satisfazer as necessidades da sociedade”, podemos ler nas declarações do congresso fundador do partido. Contudo, diversas vezes, antes mesmo das eleições de janeiro, Tsipras e Dragasakis preveniram que nunca tirariam a Grécia da zona do euro. Segundo os opositores do acordo de 13 de julho, a ideia de que “a sociedade grega não está pronta” seria apenas um pretexto: uma opção só existe realmente quando é apresentada, argumentavam. De qualquer forma, ainda hoje, as pesquisas garantem que 80% dos gregos continuam a favor da moeda única, essencialmente porque temem um desmoronamento do sistema bancário. Dragasakis admitiu: Berlim estava mais bem preparada que Atenas para um “Grexit”.11
Durante uma reunião organizada em 27 de julho passado pelo site da PE, Iskra.gr, a respeito do slogan “O ‘não’ não foi derrotado”, a proposta de um retorno à moeda nacional formulada por Panagiotis Lafazanis, ministro da Reestruturação da Produção, da Energia e do Meio Ambiente no primeiro governo Tsipras, foi acolhida por uma salva de palmas. No entanto, Tsipras repetia que o “não” de 5 de julho não significava um “sim” à dracma.12 Agora, esse debate atravessa o conjunto da sociedade. Será sem dúvida uma das questões centrais do congresso excepcional que acontecerá até o final de 2015: que armas a esquerda grega está pronta a se dar para resistir à chantagem das instituições europeias?

Baptiste Dericquebourg
Professor de Letras Clássicas em Atenas


1             Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Hégémonie et stratégie socialiste. Vers une politique démocratique radicale [Hegemonia e estratégia socialista. Rumo a uma política democrática radical], Les Solitaires Intempestifs, Paris, 2009. Salvo indicação contrária, todas as citações foram extraídas dessa obra.
2             Iñigo Errejón e Chantal Mouffe, Construir pueblo. Hegemonía y radicalización de la democracia [Construir povo. Hegemonia e radicalização da democracia], Icaria Editorial, Barcelona, 2015.
3             Ernesto Laclau, La Raison populiste [A razão populista], Seuil, Paris, 2005.
4             Ler Razmig Keucheyan, “Gramsci, une pensée devenue monde” [Gramsci, um pensamento que se tornou mundo], Le Monde diplomatique, jul. 2012.
5             Construir pueblo, op.cit.
6             Juan Domingo Perón foi presidente da Argentina de junho de 1946 a setembro de 1955 e depois de outubro de 1973 a julho de 1974.
7             Construir pueblo, op.cit.
8             Ler Pablo Iglesias, “Podemos, ‘notre stratégie’” [Podemos, nossa estratégia], Le Monde diplomatique, jul. 2015.
9             Andrew Gamble, “Class politics and radical democracy” [Políticas de classe e democracia radical], New Left Review, Londres, jul.-ago. 1987.
10           Ler Yanis Varoufakis, “Leur seul objectif était de nous humilier” [O único objetivo deles era nos humilhar], Le Monde diplomatique, ago. 2015.
03 de Setembro de 2015
Palavras chave: GréciaSyrizaTroikaPodemosUnião EuropeiaEspanhaFrançaeconomiaYanis,VaroufakistroikaeuroAlemanhaFMI

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Charge! Benett via blog

07

Le Monde: Industria da doença, lucro vertiginoso

SAÚDE

O setor privado financia a grande mídia, que aceita o jogo imoral por ele praticado. Ao assistirmos aos principais telejornais, observamos o ataque orquestrado ao sistema público de saúde, dando ênfase apenas às falhas, tratadas como corriqueiras. Já os problemas do setor privado não são exibidos
por Leandro Farias


Passados trinta anos de um marco na história do Brasil, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, ainda estamos diante de paradigmas que contribuem para a visão mercantil do setor. Durante a Conferência, foi discutido a fundo o modelo de saúde presente na época e, em relatório final produzido por políticos, gestores, profissionais e usuários do sistema, apontou-se a necessidade de mudanças neste. Tal relatório contribuiu para que, durante a Constituinte, fosse debatido capítulo referente ao direito à saúde, presente em nossa Constituição Federal de 1988. Assim nasceu o Sistema Único de Saúde (SUS). Posteriormente, surgiram as leis n. 8.080 e n. 8.142, que tratam da regulamentação, financiamento e participação social no SUS.
Persiste, porém, o desafio da quebra do modelo médico hegemônico, hospitalocêntrico ou complexo médico-industrial, que traz uma visão avessa ao modelo preventivista elaborado durante o processo histórico que antecedeu a criação do SUS, a chamada Reforma Sanitária. O primeiro modelo alimenta a visão mercantil da saúde e segue as leis do mercado, reforçando a indústria da doença formada por laboratórios, empresas, planos de saúde, entre outros. Essa indústria promove a prática de assédio aos profissionais da saúde desde sua entrada nas universidades, com o custeio de viagens, cursos, congressos e até porcentagem na venda de seus produtos. Sem falar na má remuneração destinada aos seus profissionais, que assim optam pela quantidade em detrimento da qualidade nos serviços disponibilizados.
Por deter recursos e poder, o setor privado financia a grande mídia, que aceita o jogo imoral por ele praticado. Ao assistirmos aos principais telejornais, observamos o ataque orquestrado ao sistema público de saúde, dando ênfase apenas às falhas, tratadas como corriqueiras. Já os problemas do setor privado não são exibidos. Não obstante, visualizamos figuras públicas em propagandas que nitidamente visam ludibriar a população. Assim, o imaginário de saúde como bem de consumo adentra a sociedade, sobrepondo-se à ideia de saúde como um direito fundamental.
Atualmente, estamos diante de surtos de diversas doenças como dengue, zika, chikungunya, influenza A (H1N1), microcefalia, síndrome de Guillain-Barré. E temos observado a alta procura por vacinas e medicamentos. Isso é reflexo de diversas políticas de governos que se sucederam à formação do SUS, que por sua vez parecem encarar a saúde como “ausência de doença”, o que na prática se torna um “prato cheio” para os que veem no setor uma oportunidade de faturamento monetário. Tal visão política vai na contramão do conceito ampliado de saúde, elaborado durante a 8ª Conferência, que traz uma relação direta entre saúde e determinantes sociais, tais como condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde.
Um retrato dessa realidade é a questão do saneamento básico no país, traduzida em esgoto a céu aberto, lixo nas ruas e armazenamento incorreto da água. Segundo levantamento feito em 2015 pelo Instituto Trata Brasil, apenas 48% dos domicílios brasileiros têm coleta de esgoto. Segundo o Ministério da Saúde (MS/Datasus), em 2013 foram notificadas mais de 340 mil internações por infecções gastrointestinais no país. E o custo de uma internação por essa patologia no SUS foi de cerca de R$ 355,71 por paciente na média nacional. Estudos apontam a existência de uma ligação direta entre a falta de saneamento básico e o aparecimento de doenças. O último Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti (LIRAa), divulgado pelo MS em novembro de 2015, nos trouxe a seguinte questão: no Nordeste, 76,5% dos focos do mosquito estão em armazenamento de água para consumo – por exemplo, caixa-d’água. A região concentra a maioria dos municípios com índices de risco de epidemia de dengue.
Doenças como chikungunya, microcefalia e síndrome de Guillain-Barré, que são provocadas pelo Aedes aegypti, demandam recursos e mão de obra especializada, uma vez que os respectivos tratamentos são de médio e longo prazo. Tais patologias, que culminam em maior demanda por serviços e medicamentos, poderiam ser evitadas com ações de prevenção e promoção da saúde. Falta foco nas condições socioambientais da população, sem falar que o sistema público de saúde sofre de um subfinanciamento crônico. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), cada R$ 1 investido em saneamento gera uma economia de R$ 4 em saúde. Lembrando que saneamento básico é um direito presente em nossa Carta Magna.
Ao analisarmos os números da economia, observamos que o setor privado da saúde ignora a crise econômica que aflige o país, não se deixando abater pela recessão. Ao contrário, o lucro do setor aumentou mesmo diante da elevação das taxas de juros e da diminuição da renda dos consumidores. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o único setor que não sofreu queda nas vendas em 2015 foi o de artigos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, de perfumaria e cosméticos, que cresceu 3%. Os números da administradora de planos de saúde Qualicorp são claros: a empresa obteve lucro de R$ 61,4 milhões só no último trimestre de 2015, apresentando um avanço de 224% em relação ao mesmo período de 2014.
Sabemos que saúde se faz por meio de recursos. Porém, uma sociedade acometida por diversas patologias promove um efeito expressivo na economia, pois, além de exigir maior aplicação de recursos no orçamento da saúde, uma vez que o acesso aos seus serviços é algo oneroso, uma quantidade significativa de trabalhadores deixará de produzir por conta de sua doença. Ao pensarmos que diversos agravos podem ser evitados, caso sejam respeitados os direitos e as garantias fundamentais presentes em nossa Constituição, e que a existência de relações promíscuas envolvendo membros do Executivo, Legislativo, Judiciário e empresários impede o avanço de nossa sociedade por conta de interesses minoritários, é válido fazermos a seguinte reflexão: quem lucra com a crise no sistema de saúde?

Leandro Farias
Farmacêutico Sanitarista da Fiocruz e coordenador do Movimento Chega de Descaso.


Ilustração: Aroeira

domingo, 14 de agosto de 2016

Charge!Benett

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Plano de Saúde Acessível ou desmonte do SUS?


A proposta do ministro da saúde interino é inconstitucional, pois não respeita o nosso direito de saúde universal com igualdade para todos.


Projeto Direitos Sociais e Saúde: Fortalecendo a cidadania e a incidência política
O projeto Direitos Sociais e Saúde: Fortalecendo a Cidadania e a Incidência Política vem a público repudiar totalmente a portaria 1.482/2016, assinada pelo ministro interino Ricardo Barros, que institui um grupo de estudo para criação do Plano de Saúde Acessível. É importante lembrar que a Saúde, como estabelece nossa Constituição Federal, é dever do Estado e Direito de todos e todas, não cabendo a nenhuma iniciativa privada sua financeirização. Saúde não é mercadoria.
 
A portaria é uma afronta a redes, entidades e movimentos que, há décadas, atuam em defesa da saúde pública – sobretudo na atual conjuntura política na qual nos encontramos. Através de uma ação arbitrária e autoritária, a decisão de criar um grupo de estudo com este fim sequer passou pelo Conselho Nacional da Saúde (CNS). O que é mais grave: deslegitima e desconsidera os espaços de controle social da saúde em nosso país.
 
A proposta colocada por Barros é ilegítima e inconstitucional, pois não respeita o artigo 196 da CF que, de forma, muito clara afirma que saúde é direito, com garantia universal e igualdade para todas as pessoas que vivem no Brasil. Esta portaria só comprova a intenção de desmonte do Sistema Único de Saúde, onde os mais atingidos serão – como sempre – os mais pobres e excluídos e que dependem exclusivamente do sistema de saúde pública.
 
Nossa história e militância nos mostram que planos de saúde privados não são a solução para resolver a questão da saúde no Brasil. O Plano de Saúde Acessível só comprova a política privatista e a financeirização sobre direitos básicos que o governo interino insiste em nos impor. Não vamos nos render a isso e vamos nos somar a iniciativas jurídicas que revoguem esta portaria. É importante lembrar que o nosso sistema de saúde já é financiado por todos através do pagamento.





 
Portanto, saímos – e sempre sairemos – em defesa do Sistema Único de Saúde e contra qualquer forma de desmonte da Seguridade Social. Nós, brasileiros e brasileiras, já temos nosso modelo e sistema de saúde pública, que é exemplo para todo o mundo. Não estamos falando de uma parcela insignificante da população do país. Somos mais de 70% de usuários e usuárias do SUS. É do lado dessas pessoas que estamos. Não abriremos mão deste direito.

(Publicado originalmente no portal Carta Maior)

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Raízes do Brasil, 80 anos

Edição crítica do clássico de Sérgio Buarque de Holanda é lançada pela Companhia das Letras
 (Publicado originalmente no site da revista Cult)
Tarsila do Amaral, "Abaporu", 1928
Tarsila do Amaral, Abaporu, 1928
por Eric Campi
Para além do famoso conceito de “homem cordial”, Raízes do Brasil se popularizou pelas denúncias do preconceito racial, valorização do elemento de cor, críticas ao patriarcado e principalmente, na década de 1930, pela análise cética do discurso liberal aliada à defesa do Estado forte. Na segunda edição, que data do pós-guerra, porém, expressões e passagens foram modificadas para afastar qualquer má-interpretação de uma ode ao estado totalitário, acenando mais claramente às ideias democráticas.
Na sequência, vieram mais três edições com ligeiras mudanças de vocábulos e novos prefácios e notas. A terceira edição, por exemplo, explicitava a discussão entre Sérgio Buarque de Holanda e Cassiano Ricardo sobre a cordialidade: o poeta a defendia  como “técnica da bondade”, enquanto o historiador esclarecia que ser avesso aos rituais sociais era exatamente oposto ao homem polido. A volta das defesas utópicas se deu na quarta edição, de 1963, com o governo João Goulart, e o famoso prefácio de Antonio Candido, hoje quase indissociável da obra original, só veio na quinta e última edição revisada pelo próprio historiador.
Assim, em comemoração aos oitenta anos da publicação, e três décadas da Companhia das Letras, a editora lança Raízes do Brasil – edição crítica, organizada por Pedro Meira Monteiro e Lilia Moritz Schwarcz. O texto apresentado segue a quinta versão, considerada a visão última do pensamento do autor, com atualizações ortográficas e de pontuação, além de todo o conteúdo das edições anteriores com prefácios e notas.  O “caráter radical” da escrita buarquianas, como identificado por Antonio Candido em um dos textos presentes no livro, aparece integralmente na edição crítica. Os organizadores  questionam se o Sergio Buarque radical veio antes ou depois da análise de Candido, mas, independente da resposta, Raízes do Brasil “é um clássico de nascença”, como afirmava o próprio crítico literário.

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