pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 4 de maio de 2018

Delírio nacional, uma reflexão sobre irracionalidade e a loucura

                                           
Marcia Tiburi

Delírio nacional, uma reflexão sobre a irracionalidade e a loucura                                       Jackson Pollock (American, 1912–1956). Untitled. c. 1950. (Reprodução)

Discursos irracionais por todo lado. Ideias estapafúrdias provenientes dos mais diversos personagens na cena pública. Mentiras deslavadas nos meios de comunicação de massa. Fundamentalistas religiosos a dominar o poder político e econômico com posturas e falas cínicas. Tribunais em gambiarras teóricas a rasgar pomposamente a Constituição.
Falas sem sentido, jargões e clichês de cidadãos comuns que seguem a opinião dos personagens políticos e midiáticos e se expressam pateticamente no cenário das redes sociais, nas ruas, nos mais diversos ambientes. Juras de morte. Apologia do ódio, proposições de caos nos chamados em nome da ordem. Preconceitos tomam o lugar do respeito devido a cada pessoa. Hoje é condenado sem crime e sem provas, aquele que antes era sujeito de direitos. Injúrias, calúnias difamações. O ódio na base dos discursos de conspurcação generalizada. A verdade descartada como uma embalagem plástica na era do descaso ecológico-político. O desrespeito reinante na vociferação paranoica nas ruas e redes.
Se de um lado, os interesses por trás desse estado de coisas são evidentes, há mais que isso. Há algo de estranho no ar. É o caso de voltar a Freud e lembrar do que ele chamou de “estranheza inquietante”. O clima de terror que sai das páginas de ficção e das telas e toma a vida real. Pessoas comuns ainda preocupadas com o que veem, buscam explicação em seriados de TV, mas não conseguem mais separar a realidade da ficção. Os livros são esquecidos nos tempos das telas a prometer a verdade possível. Filosofia e sociologia descartadas do currículo escolar pelo governo e por cada cidadão que se une ao coro dos que desvalorizam a educação. O pensamento pronto embalado para viagem toma conta.
Mergulhado na zona cinzenta do imponderável, muitos se sentem reféns de um destino funesto. E é sob o domínio sombrio do medo elevado à Razão de Estado que o surgimento do mais básico bom senso está de fato impedido.
Delirar
As pessoas se entregam a algo de desesperador. Tornam-se agentes do desespero. A irracionalidade toma conta e a sociedade inteira entra em estado de delírio. Por delírio entendemos uma narrativa imaginária que tem uma função importante na economia psíquica de algumas pessoas. No nosso caso são muitos, são massas inteiras. Podemos dizer que, atualmente o Brasil anda bem descompensado emocionalmente. É urgente recuperar a “razoabilidade” antes que a cena evolua para o pior. Mas teremos força para isso?
Delírio não é apenas uma categoria psiquiátrica, antes é uma categoria filosófica e política. Um termo que, nesse momento, pode nos ajudar a desenvolver uma consciência acerca do que se passa conosco como sociedade.
O delírio generalizado parece ter se acentuado desde o Golpe de 2016, quando algumas pessoas que se expressam publicamente começaram a dar sinais de terem “enlouquecido”. Devemos sempre tomar o cuidado de não usar o termo loucura de maneira preconceituosa.
Eu mesma disse na época do Golpe, quando algumas pessoas, sobretudo mulheres envolvidas no Golpe começaram a ser tratadas como loucas, que não devíamos alegar loucura da parte de quem se expressava a partir de preconceitos ou de tracos fascistas. Comentei isso a propósito do fato de o signo “mulher” ter sido historicamente associado ao signo “loucura” no contexto dos discursos misóginos. De fato, ser homem ou mulher, assim sem mais, não tem nada a ver com loucura. E é preciso, no entanto, lembrar de algo bastante óbvio: o gênero de uma pessoa também não interfere no fato de que alguém se torne fascista, racista ou machista.
Tudo isso para dizer que, infelizmente, evoluímos como coletivo para um lugar cada vez mais perturbador e o cenário hoje nos permite usar o termo loucura no sentido de busca por uma reflexão capaz de perceber a força da irracionalidade nesse momento.
Portanto, não devemos confundir as coisas, mas é um fato que o termo loucura pode ser adequado para falar desse momento no qual os traços de fascistização se intensificam tanto nas instituições quanto na microfísica do cotidiano e na forma de pensar, falar e agir de muita gente.
Loucura é, nesse caso, um termo válido se nos lembrarmos seu nexo com o delírio. Loucura implica um conceito amplo, usado desde há milênios para designar siderações de todo tipo. Nessa definição a loucura é caracterizada pelo estar-fora-de-si. Esse “estar-fora-de- si” nem sempre caracteriza uma doença mental e nem sempre implica sofrimento. A loucura de nossa época está em que estamos tomados por todo tipo de delírio e sobretudo pelo paranoico.
O sujeito paranoico – aquele que poderia ter se tornado um filósofo, mas não conseguiu – em geral não sofre. Ele sente raiva e ódio. Não a raiva e o ódio que qualquer pessoa pode sentir de vez em quando, mas um ódio que é estrutural e fundante da sua personalidade. Um ódio que está na base profunda da sua vida subjetiva. Um ódio de extermínio, um ódio de aniquilação. Um ódio inquestionável. Um ódio ao qual a pessoa está de tal modo acostumada à paranoia que não é capaz de reconhecê-lo ou, caso o reconheça, não é capaz de viver sem ele. Um ódio que impede a entrada do “outro” em sua vida, seja esse outro uma pessoa, uma cultura, um conteúdo, a natureza, ou até mesmo o amor que, como energia contrária, poderia ajudar a amenizar o ódio. A diversidade que prefigura esse outro qualquer é insuportável e inacessível ao paranoico e, no delírio, ele constata que o mundo lhe pertence. Nele, as pessoas e realidades não passam de um objeto seu, de uma coisa com a qual ele faz o que quiser.
Somos levados à loucura pelo fascismo em potencial que convida a todos hoje para o jogral do discurso de ódio nas redes sociais. Seu objetivo é cancelar a reflexão, interromper o direito básico das pessoas ao pensamento lúcido que faria a “espécie” sobreviver. Se o governo opera nesse momento retirando as disciplinas de filosofia e sociologia do currículo básico, sendo que outras disciplinas já tinham sido retiradas, é porque, no fundo opera na orquestração da destruição generalizada. Para usar termos freudianos conhecidos, a destruição é a lógica quando a sociedade estregue à “thanatos”, o princípio de morte. Quando essa sociedade abomina eros, o princípio da vida.
O projeto fascista combina com o neoliberalismo como projeto de destruição da sociedade baseada no princípio de morte. Destrói-se a democracia, o estado democrático de direito e a Constituição, o Estado de Bem Estar Social com o qual se sonhava um dia. Destrói-se inclusive o capitalismo produtivista para dar lugar ao capitalismo puramente financeiro, o chamado “rentismo”.
Engana-se quem acredita que a economia vai tomar o lugar da política em nome de um mundo melhor. Esse é o núcleo da teoria do que muitos vem chamando de “pobre de direita”, um termo que resume a contradição sadomasoquista por meio da qual a vítima ama seu algoz.
Já não é a economia que suplanta a política, mas a destruição da economia e da política ao mesmo tempo. O objetivo do projeto de acumulação desembestada do capital, haverá um único cidadão, o avarento usurário, dono de tudo, sozinho, satisfeito em seu delírio paranoico.
Esse projeto se inicia pela matança por meio da fome, pelo descaso e pelo assassinato dos muito pobres e dos pobres, e dos cidadãos historicamente condenados à pobreza e marcados como “negros” pelo capitalismo. Mas na sequência, esse projeto de destruição atinge todas as classes e todas as peles no devir negro do mundo ao qual se referiu Achille Mbembe.
Sobreviverão os que conseguirem acumular capital. Mas quanto? E até quando? E por quanto tempo se não há nenhum projeto econômico e político que seja capaz de frear o avanço da desigualdade?
O delírio generalizado é o delírio de grandeza fundado pelo capitalismo, e leva a todos os que querem ser mais do que são a se engajarem nele. Todos os que tem delírio de grandeza nesse momento se sentem melhores do que os outros e se desresponsabilizam quanto ao rumo ao qual estamos nos conduzindo coletivamente, o da catástrofe social. Tomar consciência desse estado de coisas é o primeiro passo para traçar um projeto humano mais prudente que nos afaste do delírio e da loucura na qual sideramos em conjunto.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

Editorial: Como declarar o tríplex do Guarujá e o sítio de Atibaia à Receita Federal?


 
 Resultado de imagem para Receita federal/chargeComo é uma sexta-feira, independentemente das agruras que acompanham a vida dos brasileiros e brasileiras nos últimos anos, ainda há motivos para boas gargalhadas. Acabo de saber que o ministro do STF, Dias Toffoli, negou um pedido da defesa do ex-presidente Lula para que o processo envolvendo o sítio de Atibaia seja transferido para o Ministério Público de São Paulo. O andamento do processo deve ser mantido sob a jurisdição da 4º Vara da Justiça Federal no Paraná, pela qual responde o juiz Sérgio Moro, onde estão arrolados parte dos processos da Lava-Jato. A defesa do ex-presidente observou numa decisão anterior do STF - que retirou trechos da delação premiada de executivos da Construtora Odebrecht do processo que envolve o tal sítio - uma forma de reorientar todo o seu andamento, pedindo o descredenciamento do juiz Sérgio Moro do caso. Convenhamos, há um certo exagero aqui, cometido pelos advogados do ex-presidente. Talvez mais um desses equívocos de procedimentos constantemente apontados. É preciso definir estratégias consoante dados concretos da realidade, sem nenhuma ilusão, sobretudo nesses tempos bicudos de insegurança jurídica. 
 
Não à toa, alguns analistas políticos já enxergam um erro crasso do PT insistir no enfrentamento institucional. O dado concreto é que Lula será condenado sucessivas vezes. Sei que alguns petistas não gostam disso - afirmam que quem pensa assim endossa o golpe institucional de 2016 - mas talvez seja mesmo o momento, como apontou ontem em artigo o professor Michel Zaidan Filho - de se construir uma alternativa competitiva para o campo progressista e popular, sob as condições em que isso possa ser operado, ou seja, considerando-se o fato de que Lula permanecerá preso ou inelegível, amargando sucessivas condenações. O mais interessante neste próximo julgamento do ex-presidente Lula em relação ao tal sítio de Atibaia, no entanto, é uma materia publicado por um desses jornalecos golpistas da chamada “grande mídia”, onde, ali para tantas, depois de questionado sobre o assunto, o juiz deixa escapar uma pérola: há outras provas. Até o jornaleco fez questão de sublinhar a expressão. Não sabemos que provas são essas às quais ele se refere. Talvez seja os pedalinhos da ex-primeira-dama Marisa Letícia.
O cidadão brasileira que cumpriu suas obrigações com a Receita Federal este ano se deparou com mais uma exigência: a necessidade de declarar todos os dados atinentes aos imóveis de sua propriedade, como escritura, cartório de registro, valor do metro quadrado, IPTU etc. Este ano essas informações ainda não são obrigatórias, mas, no próximo ano será. Andei matutando que o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva já foi condenado numa das ações da Lava-Jato sem que ficasse configurado que ele era, realmente, o proprietário daquele tríplex do Guarujá, sobre o qual ele não nega que tenha visitado, assim como sua ex-esposa, Marisa Letícia, manifestado, inicialmente, interesse na compra. Ou seja, enquanto o Governo Federal através da sua Receita estabelece uma série de exigências do contribuinte para configurar a sua real propriedade de um determinado imóvel, um ex-presidente da República é condenado sem nenhuma prova consistente que o aponte que ele é, de fato, o proprietário do imóvel. Que tempos são esses, contribuintes?

Charge! Renato Aroeira

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Charge! Duke via O Dia

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 2 de maio de 2018

Editorial: Quem, de fato, é Joaquim Barbosa?


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No livro “A identidade cultural na pós-modernidade”, escrito pelo antropólogo jamaicano Stuart Hall, há um exemplo bastante elucidativo para compreendermos a diluição do conceito de identidade na pós-mordernidade, notadamente naquilo que concerne a uma espécie de descentramento do indivíduo. Ali para tantas, Hall cita o ex-presidente Norte-americano, George Bush, no momento em ele imagina ter construído uma estratégia de mestre, ao nomear um juiz negro, Clarence Thomas, para a suprema corte americana. Um juiz negro, porém conservador no tocante às políticas de igualdade raciais. A cor negra talvez levasse muitos eleitores negros a se identificarem com a indicação. O fato de ser conservador no tocante aos direitos da etnia negra, por sua vez, não afugentaria os eleitores conservadores negros e, possivelmente, os de maioria branca. Quando dos debates no Senado para consolidar a indicação, observa Hall, descobriu-se uma denúncia, formulada por uma mulher negra e de status social modesto, acusando-o de um suposto assédio sexual. Como se comportaria, agora, as feministas e não feministas? mulheres brancas, conservadoras, não feministas e ricas? Como se comportaria o eleitorado formado por homens brancos, machistas, orientados por um comportamento racista?
Esse enredo criado pelo antropólogo Stuart Hall também nos remetem aos estudos do cientista político polonês, Adam Przeworski, sobre o que determina o voto do eleitorado, a partir da sua condição social, política econômica, religiosa. Ele propõe um dilema: um eleitor evangélico, militar e microempresário se inclinaria mais a votar num candidato de perfil evangélico ou naquele candidato que oferecesse melhores condições para a atuação e crescimento do seu negócio, como a diminuição de impostos e menos burocracia, por exemplo? Qual dessas condições seria mais determinante na definição do seu voto? Pensei bastante neste assunto quando surgiram as primeiras matérias em torno da surpreendente performance do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, nas pesquisas de intenção de voto, onde ele, mesmo não admitindo a candidatura, aparece com o índice nada desprezível de 10%.
A biografia e a trajetória do ex-ministro Joaquim Barbosa, como se sabe, seria capaz de dar um nó ainda mais difícil de desatar do que o proposto como exemplo no livro do antropólogo jamaicano Stuart Hall. Joaquim Barbosa é negro, de origem humilde, que conseguiu realizar uma brilhante carreira no campo jurídico. Mesmo com o seu respeitável currículo não chegaria à Suprema Corte sem uma indicação do PT, ou, mais precisamente, como uma escolha pessoal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que recomendou a Márcio Thomaz Bastos, à época seu Ministro da Justiça, que escolhesse um juiz negro para a indicação. Lula quebrou um longo tabu no STF. Mas, por uma dessas idiossincrasias da vida, Joaquim Barbosa constituiu-se num dos mais ferrenhos opositores do PT, levando o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos a apontá-lo como um dos principais expoentes do golpe parlamentar de 2016, quando reforçou juridicamente a figura do domínio do fato, condenando os petistas no processo do mensalão. Para Wanderley, Joaquim escancarou as porteiras jurídicas para a consolidação do golpe.
Neste contexto político que atravessamos - uma espécie de esquizofrenia coletiva -, ele agiganta-se junto a um estrato do eleitorado que o enxerga como um paladino da moralidade, um juiz implacável contra a corrupção. Sabe-se também do seu comportamento pessoal intempestivo, furioso em alguns momentos. Gilmar, que já provou dessa bílis que o diga. Num país onde a democracia racial é apenas um devaneio de um certo sociólogo pernambucano do bairro de Apipucos, no Recife, há de se fazer muitas indagações sobre o comportamento do eleitorado em relação a uma possível candidatura do senhor Joaquim Barbosa. A começar sobre quem são esses eleitores que já lhes conferem 10% das intenções de voto.
Como reagiriam os “coxinhas” diante dessa eventual candidatura? Em sua maioria eles são formados  por estratos médios, altos, identificados com uma elite escravocrata, conservadora e com um ódio visceral aos pobres. O eleitor negro teria uma identificação “natural” com Joaquim Barbosa? E quanto ao eleitor negro, instruído e politizado, que conseguiu o maior reconhecimento dos seus direitos justamente no Governo do PT? O eleitor negro e pobre, certamente os mais beneficiados pelas políticas redistributivas de renda da era petista, como se comportaria em relação a esta candidatura? Naturalmente, não posso responder a nenhuma dessas questões no momento, mas elas estão aqui postas como uma provocação para pensarmos sobre os possíveis efeitos de uma eventual candidatura do senhor Joaquim Barbosa nas próximas eleições presidenciais de 2018, se, de fato, elas vierem a ocorrer, uma vez que o timing político que enfrentamos não é nada alvissareiro.   

Durval Muniz: Nordestinidade:a opção pelo atraso

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Essa semana o jornalista Paulo Henrique Amorim, através de seu blog Conversa Afiada, chamou atenção para um dos sucessivos atos falhos que os promotores do golpe de 2016 estão cometendo: a jornalista de economia do grupo Globo – uma Cassandra que previa o fim do mundo seguido de um apagão, todas as manhãs, durante o governo Dilma, que foi a fada madrinha do golpe, prometendo verdadeiros milagres de “crescimento econômico” ao toque da varinha mágica do impeachment da presidenta eleita com 54 milhões de votos, que nos infelicita toda manhã com seus penteados e suas ideias -, em um dos seus inúmeros comentários sobre “economia”, deixava claro que o problema da economia brasileira era as regiões Norte e Nordeste. Se não fosse esses dois estorvos a forçar para baixo os índices de crescimento da indústria, a “recuperação”, prometida para o dia seguinte do golpe, já teria acontecido. A comparação entre os índices de crescimento industrial de Santa Catarina com os de Pernambuco, Bahia e Ceará, só faltou tomar como explicação que os catarinenses são mais eugênicos, são brancos, europeus e, portanto, ao contrário dos afrodescendentes da Bahia ou dos mestiços e caboclos do Ceará, são mais afeitos ao trabalho, são mais inteligentes, empreendedores, são menos preguiçosos e, além de tudo, mais diligentes e sábios politicamente porque não votam na gentalha petista, coisa para nordestino que vota com o bucho e não com a cabeça.
Paulo Henrique chamava de etno-neolibelismo essa forma de pensamento que costuma transferir para as vítimas do sistema econômico vigente e das políticas que implementa a culpa pelo que seria seu fracasso e a sua miséria. Para mim, estamos diante da atualização de enunciados e imagens pertencentes ao discurso eugenista, que fez enorme sucesso entre os fins do século XIX e a primeira metade do século XX, até que a hecatombe nazifascista o desmoralizasse. Para o eugenismo o mundo se dividia em raças. Sendo uma resposta conservadora aos pensamentos de esquerda, ele colocava no lugar da luta de classes, a luta entre as raças, daí porque o nazismo se nomeava de nacional socialismo (o que levou a um procurador da República a procurar e achar o nazismo na esquerda, ideia tão sábia que continua vez em quando a circular nas redes sociais). Haveria uma hierarquia natural entre as raças e, por conseguinte, entre os povos, nações e culturas. Às raças superiores, arianas, brancas, estaria destinado a prevalência social e política. As hierarquias e desigualdades sociais eram assim justificadas. Elas não eram um problema, como afirmou o sábio candidato à presidente da República do partido do eugênico bispo Edir Macedo, pois eram fruto da partilha desigual de qualidades e atributos pelo nascimento, pela hereditariedade, pelo sangue. As raças inferiores: negros, vermelhos, amarelos estavam destinados a ocupar as posições subalternas socialmente, a ser governados e explorados, pois a natureza assim o dispôs. Os cristãos eugenistas, e eles haviam em grande quantidade, como os fascistas italianos, completavam que se a natureza foi uma criação divina, logo essas hierarquias ditas naturais entre as raças era um desígnio do Senhor, Ele havia estabelecido essas divisões e essas distinções, cabendo ao cristão a elas se conformar e delas procurar extrair o melhor visando sua salvação (não ficava claro se na hora do Juízo Final essas divisões raciais também seriam pesadas na balança de S. Pedro). Esse tipo de pensamento era perfeito para justificar a própria dominação imperialista e colonial dos europeus sobre os povos da Ásia e da África.
O discurso da eugenia também exerceu um papel fundamental na construção dos discursos regionalistas no Brasil. As diferenças crescentes de desenvolvimento entre o Norte e o Sul do país, desde o final do século XIX, eram interpretados a partir da ideia de que o fato das terras sulinas terem recebido a “transfusão benfazeja de sangue ariano” através da imigração de brancos europeus estaria dando a essa região uma capacidade de crescimento que faltava às províncias do Norte entregues a uma população produto da secular mestiçagem com as raças inferiores. Não é mera coincidência que parte de um intelectual ligado aos grupos agrários dominantes no antigo Norte, um dos formuladores da ideia de Nordeste, no início do século XX, a mais brilhante contestação a essas ideias eugenistas e racialistas. Em Casa Grande e Senzala, no início dos anos trinta do século passado, Gilberto Freyre defende a mestiçagem como aquilo que constituiria a própria raça nacional, que nos conferiria uma singularidade no conserto das nações. O discurso regionalista que surgiu nas províncias do Norte do Império, ainda no final do século XIX, e que se tornou o regionalismo nordestino após a invenção dessa região, no início do século XX, teve que conviver com esses discursos de matriz eugenista e a eles dar respostas, muitas vezes utilizando seus próprios princípios, como o de conferir a ideia de raça uma centralidade na explicação da história e da sociedade, mesmo que para isso tivesse que fazer malabarismos mentais dignos de Rosa Weber. Elites que haviam utilizado o discurso racialista para conferir legitimidade à escravização dos negros agora se viam apanhado em suas malhas e buscavam uma saída apelando, principalmente, para a figura do sertanejo, o mameluco fruto do cruzamento de brancos e indígenas, que por não ter sangue africano seriam eugenicamente superiores e destinados a construir a nova região.
Mas o que é relevante nesse episódio de eugenismo à la carte, servido no café da manhã pela musa do neoliberalismo pátrio (cada um tem a musa que faz por merecer) é constatarmos que mais uma vez as zelites nordestinas (elites compostas de Zés Agripinos, Zés Sarneys), apesar de serem tratadas como gente de segunda categoria, apesar de ser consideradas por luminares do sul, como a economista da catástrofe neoliberal, como uma gentinha corrupta e preguiçosa à viver das verbas e dos recursos produzidos pelos empreendedores do sul maravilha, ela optou mais uma vez pelo atraso, como já fez em vários momentos da história do país. Agarradas a seus privilégios locais, pensando exclusivamente em salvar a sua própria pele, em fomentar os seus interesses (no que não é diferente e nem fica a dever a nenhuma outra elite regional do país), as zelites nordestinas mais uma vez optaram pelo atraso. Se olharmos para o que significou os governos Lula e Dilma para os estados do Nordeste, para a economia nordestina, é de causar espanto que a bancada da região no Congresso Nacional tenha aderido majoritariamente ao golpe. Teríamos que recorrer à fábula do escorpião para entendermos a posição tomada por elites que viram as desigualdades regionais se reduzirem como nunca e a economia regional crescer acima das taxas de crescimento da economia nacional, ou seja, seria da natureza das elites nordestinas optarem pelo atraso e pelo golpe quando qualquer mudança aparece no horizonte de nossa história. Em 2007, a região Nordeste atingiu taxas de crescimento econômico chinês, chegando a crescer 9% em um ano. Nunca a região recebeu tantas obras de infraestrutura (duplicação da BR-101, ferrovia transnordestina, transposição das águas do rio São Francisco, refinarias de petróleo, modernização de portos e aeroportos, novas universidades federais, uma rede impressionante de institutos federais de educação, estações de energia eólica, a criação do Instituto Nacional do Semi-Árido, construção de quase um milhão de cisternas), nunca a região recebeu tantos investimentos, foi tão bem tratada. Esse tratamento preferencial as duas regiões mais pobres do país se inscrevia na própria lógica do política de governo que visava privilegiar os menos aquinhoados.
Além da redução das desigualdades sociais, os governos petistas realizaram uma redução das desigualdades regionais como nunca havia ocorrido. É compreensível que as elites de outras regiões, que setores da população de regiões como o Sul e Sudeste lançassem mão do velho discurso eugenista e dos discursos preconceituosos para demonstrarem seu descontentamento com essa mudança de patamar entre as distintas partes do país. Assim como é compreensível que as camadas populares do Norte e do Nordeste, que foram extremamente beneficiadas pelas políticas sociais e de combate à pobreza implementadas por esses governos, se coloquem como eleitores do PT. Não há nenhuma falta de racionalidade nesse gesto, não é por ignorância ou por votarem com o bucho que assim fazem, é uma adesão racional a um partido e a governos que olharam para suas necessidades básicas como nenhum outro olhou. O que é aparentemente incompreensível é grande parte da bancada nordestina ter participado entusiasticamente do golpe que agora infelicita a região. Se não olharmos para a história e vermos que essa não é a primeira vez que as elites nordestinas deram um tiro no próprio pé ao apoiar governos nascidos do arbítrio e da reação a processos de mudança na sociedade brasileira, não compreenderemos o fato de que governadores como o de Pernambuco e do Rio Grande do Norte aderiram ao golpe, quando esses estados foram beneficiados como nunca nos governos do PT.
Claro que discursos que remetem ao eugenismo tentarão culpar esse ser genérico, sem rosto, sem classe, sem etnia, chamado nordestino por todas as suas desgraças. O tombo da economia regional, o desemprego galopante, a miséria que retorna a patamares anterior, a paralisia de todas as grandes obras de infraestrutura, o desmonte dos programas sociais que representavam, na região, um grande impulso econômico, serão agora debitado na conta desse ser amorfo chamado nordestino, uma espécie de Geni nacional, inventando pelas próprias elites dominantes desse espaço. Para se ter uma ideia do resultado do golpe – que um dos flamejantes representantes do empresariado nordestino, aquele que não quer pagar salário, nem imposto, mas ainda vive de mesada do papai, dizia que ia trazer a prosperidade imediata, comemorando com rojão o golpe transmitido por um telão colocado no Shopping Midway Mall (o nome já diz da mente colonizada que o concebeu), um palácio do consumo inaugurado graças ao período de bonança do governo do presidente agora trancafiado em 12 m quadrados por receber um apartamento que não está nem em seu nome, nem em sua posse – na cidade do Natal, onde está a sede do grupo empresarial que o rei das facções dirige, a miséria cresceu 130% em um ano, levando cerca de 74 mil pessoas de volta a linha da miséria. As ruas da cidade se enchem de pedintes, meninos nos sinais, vendedores ambulantes, moradores de praças. Próximo ao campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, uma placa de sinalização está sendo usada para suster um plástico, que preso na outra ponta por um carrinho de supermercado, abriga uma família. No cruzamento em frente a um dos principais supermercados da cidade, durante quase duas semanas, um homem ficou parado com um cartaz na mão se oferecendo como motorista. Diante de tal quadro o teórico da desigualdade ainda fala que ela não é problema e se fosse seria facilmente resolvida. Como vemos, as elites nordestinas são eugenistas no pior sentido da palavra: elas não se comovem com o fato de que sua adesão ao atraso, ao conservadorismo, que a defesa de seus privilégios signifiquem a miséria e até a morte de fome de milhares de pessoas.
Costumamos nos comover e indignar, justificadamente, com as cenas do Holocausto judeu. Mas é interessante que nunca tenhamos nos comovido e indignado com a verdadeiro Holocausto secular de que os pobres da chamada região Nordeste são vítimas. As elites ditas nordestinas nunca se abalaram com o espetáculo de milhares de pessoas a perambular pelas estradas, a migrar com tudo que lhes restava, se sujeitando à fome, à sede, à morte por inanição e doenças causadas ou agravadas pela desnutrição. Nunca o país se abalou com as cenas de meninos esfomeados a lamber os pingos de garapa de cana que caíam de uma barrica na terra batida. Nunca nossos eugenistas sulinos e sudestinos tiveram dor na consciência pela exploração brutal do trabalho que os migrantes nordestinos sofreram e sofrem em suas regiões, contribuindo para o progresso e desenvolvimento de que tanto se orgulham (só não o mental e civilizacional, pelo visto). Para nordestinos, como Lula, temos o relho pedagógico da senadora que confunde Al Jazeera com Al Qaeda, lembrando eugenicamente que mestiços, que negros e índios foram destinados pela natureza ao trabalho braçal, essa história de nordestino ser presidente da República é um acinte. Elites, como as nordestinas, que só mostravam comoção e piedade pelos retirantes nas páginas de seus discursos político e parlamentares, ou nas páginas de sua literatura, para usá-los como argumento para conseguir do Estado benesses econômicas e políticas, que nunca teve pejo de se apossar de todos os mecanismos institucionais criados para “resolver o problema da seca” (uma jabuticaba inventada pela elite nordestina, que pretende resolver um problema natural e não conviver com ele, é como se a elite sueca se dispusesse a resolver o problema do inverno rigoroso) e colocá-los para funcionar a favor de seus interesses. O programa Pró-Sertão, que atende os interesses de uma única empresa, é típico do uso do Estado para benefício privado em nome de resolver o problema da falta de emprego e oportunidades nesse espaço associado a ocorrência das secas. O DNOCS, a Sudene, o Banco do Nordeste, o Pró-Álcool, o Prodetur, o Projeto Sertanejo e tantos outros órgão e programas foram apropriados pelos interesses privados das elites nordestinas, que ainda têm a cara de pau de se apresentarem como vítimas da discriminação do Estado e como vítimas das secas. A seca sempre foi um teta gorda que deu muitos frutos e foi muito produtiva para as elites agrárias do Nordeste. A mudança que os governos petistas promoveram nas política de combate as estiagens, retirando das mãos dos proprietários rurais os mecanismos de combate ao fenômeno, começa a explicar do porque das elites nordestinas terem se perfilado do lado do golpe. Gente que havia acabado de ser ministros do governo Dilma, sem possuir nenhum atributo político ou intelectual para ocupar tal cargo, somente fruto dos acordos políticos, que se mostraram desastrosos para Dilma, se tornaram golpistas de primeira hora. Aqui no Rio Grande do Norte, tivemos dois ex-integrantes do governo participantes do golpe em nome do combate a corrupção, sendo que um deles encontra-se preso justamente por isso.
As políticas sociais como o bolsa família, ao contrário do que raciocinam muitos intelectuais de fancaria, no país, libertou as pessoas do cabresto político, pois não se constituía em favor pessoal mas numa política pública anônima e impessoal. Política que empoderou os pobres e as mulheres, recebedoras preferencial do benefício. O programa de cisternas e a transposição do São Francisco, com a construção de adutoras e sistemas de abastecimento d´agua, rompeu com a lógica secular de se tentar resolver a seca com panaceias que só interessavam as elites locais. Passou-se a pensar a convivência com o semiárido, com a criação de um Instituto de pesquisa visando o desenvolvimento de tecnologias adequadas a esse meio. O resultado foi que os governos petistas acabaram com os retirantes, com os saques de fome em feiras e armazéns públicos, mas nada disso comoveu as elites nordestinas, que perderam assim o domínio que possuíam sobre a população. Basta olharmos para o quadro político do Nordeste e ver as mudanças políticas importantes que esses últimos anos trouxeram. Já nas primeiras eleições após a implantação das políticas sociais, da melhoria do salário mínimo e das aposentadorias rurais, o PFL, atual DEM, foi praticamente varrido eleitoralmente da região, ocorrendo as históricas derrotas da oligarquia Sarney, no Maranhão, e o destronamento de Antônio Carlos Magalhães, na Bahia. O rancor e o ressentimento se espalhou entre as velhas raposas da política nordestina que viram a ascensão de novas lideranças em toda a região. E o interessante nisso tudo, é que o Nordeste continuou sendo visto e dito, inclusive pela mídia e pelos discursos reativos nas redes sociais como a região conservadora e coronelística, enquanto São Paulo hiberna sob o tucanistão há mais de vinte anos (os tucanos só têm de moderno os métodos do desfalque aos cofres públicos), enquanto o Paraná e Santa Catarina elegem sempre os mesmos oligarcas, as mesmas famílias, atoladas até o pescoço com a corrupção.
Como a mídia é concentrada no Centro-Sul e não tem ideia do que se passou ou se passa em outras áreas do país, podemos entender (mas não aceitar) a ignorância crassa com que tratam o que ocorreu nos doze anos de governos petistas no Norte e no Nordeste. Quem vive nessas regiões e não têm os olhos cegos por seus próprios interesses ou pelos discursos ideológicos mais rasteiros, não pode negar as grandes transformações pelas quais a região passou e que agora se perdem numa velocidade assustadora. O desmonte que se faz em todo país, adquiriu no Nordeste e no Norte, aspectos dramáticos. Para se ter uma ideia do que está ocorrendo, vou terminar contando uma história que me foi repassada por um funcionário aposentado da Petrobras e que hoje, provisoriamente, dirige um Uber. Enquanto a Petrobras ameaça “descontinuar” (o neologismo pedante mais usado pelo governo golpista, o governo da descontinuidade de tudo que é benefício social, política pública em benefício da maioria da população, em tudo que representa soberania nacional) a produção de petróleo no Oeste potiguar, destruindo a economia já frágil dessa área do estado de elites entusiastas do golpe, realizou um Plano de Demissão Voluntária que ofereceu cerca de 200 mil reais para cada técnico, para cada engenheiro, para cada membro do corpo diretivo da empresa que quisesse se demitir. Ele me contou que muitos jovens entre 28 e 35 anos, muito bem formados nas universidades brasileiras, que receberam treinamento especializado pago pela Petrobras, no Brasil e no exterior, saíram da empresa diante dessa oferta tentadora e, muitos deles, dadas as suas capacidades e especializações, estão sendo contratados por multinacionais do petróleo. Todo um investimento em cérebros que se vê assim perdido. O mais estarrecedor é que ele me disse que, agora, precisando de mão de obra especializada para tocar a produção que está sendo retomada com a redução da crise internacional, a Petrobras está oferecendo a engenheiros e técnicos aposentados, como ele, salários altíssimos para que eles retornem à empresa. Isso é o que podemos denominar de política de lesa pátria. Essa gente, quando a canoa virar, como diz o Paulo Henrique Amorim, têm que responder judicialmente por esses crimes.
No entanto, muita gente ainda se deixa levar pelo discurso regionalista nordestino, ainda se deixa ludibriar por um discurso que nos reserva um lugar de subalternidade no país, porque subalternas e com complexo de inferioridade são as elites que o elaborou. Se a elite brasileira como um todo tem complexo de vira lata quando se trata da relação do país com as potenciais centrais do capitalismo, os ditos nordestinos têm um complexo que os leva a se ver como menor e aceitar esse lugar de segunda categoria. Nossas elites não param de atirar o espaço que dominam na miséria e no atraso, desde que seus mesquinhos e paroquiais interesses sejam preservados.
 
Durval Muniz de Albuquerque é historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
 
(Artigo publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
 

Michel Zaidan Filho: Semideus da República de Curitiba

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Depois da proeza de uma condenação sem  provas, fartamente desmentida pelos fatos e sua ampla divulgação na mídia, o juiz de primeira instância, da 4ª Região da Justiça Federal, Sérgio Moro resolveu afrontar a competência jurisdicional  do Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu sobre a propriedade da jurisdição  do “juiz natural” para julgar os processos de LULA. Como se já não bastasse ter autorizado escutas ilegais das conversas telefônicas da Presidente da República, sem autorização judicial  e constranger LULA a um interrogatório no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, o senhor Moro – tomou gosto no arbítrio –e resolveu que não atenderá a decisão da  corte constitucional brasileira, no sentido de  transferir os   processos para São Paulo.

Entende-se a motivação persecutória e midiática do juiz curitibano, mas não se justifica. Depois de estabelecer uma inexistente “conexão” entre a  operação Lava-Jato”  e o tríplex de Guarujá – atribuído a LULA – e condenar o ex-presidente sem provas, com base numa jurisprudência tortuosa, Moro avocou a si a tarefa de perseguir, processar, condenar e prender LULA. É o seu momento de glória ante uma classe média assustada e conservadora, como a nossa. Ocorre que gerou-se um impasse. O STF faz cumprir sua decisão, arrimada na ausência de provas e na sua jurisdição constitucional, ou a autoridade daquela corte resta desmoralizada. Onde se viu um juiz de primeira instância  se impor diante de uma decisão de um tribunal superior? – A não ser, que VV.excias. estejam intimidadas pela rede GLOBO e a “opinião pública” fabricada pelos meios de comunicação.

Se o intuito declarado ou não for afastar o ex-presidente da corrida presidencial, onde  ele é hoje  francamente favorito, e beneficiar  o consórcio partidário formado pelo PSDB, DEM e PMDB,  esta   manobra pode custar caro:  não só pela divisão entre os partidos mas sobretudo pelo desgaste político dessas  legendas. A proibição de LULA participar da campanha eleitoral beneficia de pronto a Jair Bolsonaro      e Marina Silva. Ou seja: a igreja (neopentecostal) ou a espada. No   entanto, mais grave é o efeito devastador sobre o Poder Judiciário, que anda na berlinda já há bastante tempo. A insurreição funcional e hierárquica do senhor Sérgio Moro escancara as portas para a desautorização do STF, como a última instância de recursos e convalida um “vale-tudo” na atual corrida  presidencial.

Por outro lado, as correntes democráticas e socialistas precisam distinguir entre a pessoa e sua causa, sua bandeira. As pessoas passam. A bandeira, o programa, a agenda política continua. Não é possível depositar todas as esperanças numa batalha judicial, montada para excluir um candidato  da campanha    presidencial. Há que organizar as forças, apresentar um programa mínimo de consenso e ver como se viabiliza uma candidatura ligada a este programa. Corre-se o risco – com o messianismo político brasileiro – de se produzir uma grande frustração. E não podemos correr este risco: ele é imobilizador e perigoso.  
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE  

 

domingo, 22 de abril de 2018

Durval Muniz: A violência do direito

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O direito já nasce de um gesto de força. Uma lei nasce de um gesto de proibição e regramento. O direito, estatuído como saber no Império Romano, nasceu da dupla necessidade de que a dominação imperial e de que a dominação social, de que as conquistas coloniais romanas e os privilégios do patriciado, fossem perpetuadas e protegidas através de um arcabouço legal. O direito se funda na violência da própria lei, que de saída é um gesto de limitação das liberdades, das vontades, dos desejos, das pretensões, das necessidades de grupos e pessoas. O direito estatui uma ordem, a organiza, a legitima, a defende e busca perpetuá-la. A lei é a permanência no tempo de uma ação inaugural de violência física e simbólica. Os espanhóis após o massacre do povo asteca trataram de ordenar juridicamente sua dominação sobre as terras e os povos conquistados. A violência sanguinária da conquista colonial é sequenciada por sua extensão e permanência legal e jurídica no tempo. O gesto inaugural de apossamento do que viria ser a América, do que julgava ser as Índias, Colombo realizou através de um ritual que seguia a jurisprudência do Império Espanhol, obedecendo uma formalidade legal diante de indígenas embasbacados que, sem nada entender, deveriam ter, segundo o rito jurídico previsto, contestado em ato e naquele momento a tomada de posse de suas terras pelos brancos europeus. Como não o fizeram, juridicamente e legalmente, seguindo o direito do conquistador, suas terras passaram para a posse do soberano espanhol. A lei se funda num gesto de força, nem que seja simbólico, como aqueles que vêm sendo realizados sob os holofotes da mídia nativa por magistrados do nosso Supremo Tribunal Federal que, sem poder legislativo ordinário, estão alterando, ao seu bel prazer, e em nome da defesa e ataque a dadas forças políticas, a própria letra da Constituição Federal. Sob a pele de um discurso empolado e melífluo se esconde uma enorme violência, inclusive contra a própria letra da lei maior que, supostamente, eles estão ali para defender.
Nos últimos tempos, no país, nos damos conta da violência que se faz presente em todo gesto de leitura e interpretação das leis e do direito. Como toda hermenêutica, como todo gesto de interpretação, a hermenêutica jurídica não é um mero assentimento à letra da lei, já em si mesma fruto de um gesto de violência instituinte. Toda leitura, toda tradução é traição, é violação, é violência ao sentido. A pretensão da existência de uma leitura literal da lei é uma ingenuidade. Nunca conseguimos ser plenamente literais, pois ler implica olhar para o que se lê e nosso olhar está longe de ser neutro e desprovido de lentes e filtros ideológicos, políticos, ético, estéticos, religiosos, etc. Nosso olho nada lê, nosso olho apenas forma a imagem do signo, do significante que vai ser submetido à leitura. A leitura é feita por nossa cabeça, por aquilo que temos dentro dela, lemos com os conceitos de que dispomos, com as ideias e categorias que dominamos, com as concepções e prevenções, com as noções e pré-noções, com os preconceitos que formam nossa maneira de ver o mundo. Se a senadora do relho, Ana Amélia, vê Al Jazeera e lê Al Qaeda, não é por causa de sua miopia visual, mas por causa de sua miopia mental, por causa de um olhar ideologicamente torto e deformado. Os malabarismos mentais do voto da ministra Rosa Weber, quando do julgamento do Habeas Corpus em favor do ex-presidente Lula, explicita bem como a interpretação é situacional, contextual e politicamente motivada. A violência contra a Constituição e contra os direitos e garantias fundamentais do paciente (como eufemisticamente ficavam chamando o presidente Lula, para a ele não se referirem, como se com isso apagasse a dimensão política do voto que cada um estava dando ali), que esse e outros votos significaram, desmascara a pretensão de que a letra da lei é obedecida ou prevalece sempre quando se trata do exercício do direito. A letra depende de leitura e a leitura é, sempre, uma violência que se faz a um pretenso sentido original e literal do que está escrito.
Ainda no século XIX, numa crítica à filosofia idealista do direito, expressa na obra de Hegel, Marx já chamara atenção para o caráter de classe do direito. O próprio Nietzsche já observara que o direito se fundamenta na violência do vencedor, ele materializa o golpe de força e de vontade que deu início a uma dominação. O que se pretendeu com a democracia parlamentar foi fazer de amplos setores da sociedade a origem das leis e do direito, tentando retirar a dimensão excludente e violento dos atos de fundação do regramento e ordenamento legal. O fim das monarquias absolutas teve como uma de suas consequências imediatas o fim do monopólio real sobre a produção do direito e da jurisprudência. A partir da ideia de que existiria direitos naturais do Homem, direitos que não poderiam ser violados por qualquer governante ou forma de governo, o jus naturalismo foi fundamental para se fundar o direito burguês e o que veio a se chamar de direitos humanos, que seriam direitos inerentes à condição humana, direitos que cada ser humano teria só pelo fato de ser humano, de pertencer à espécie, direitos que já nasceriam com ele, que não poderiam ser desobedecidos por qualquer legislação, a não ser em casos excepcionais a ser também descritos em lei. A ampliação do acesso ao poder legislativo às várias camadas sociais daria ao direito, em sua origem, uma maior legitimidade, pois as leis não surgiriam de um golpe de força, mas de um consenso, dialeticamente produzido, através dos debates e acordos parlamentares. O direito se tornaria, assim, mais inclusivo e aberto aos reclamos daqueles que não seriam privilegiados.
O problema é que se do ponto de vista legislativo as sociedades burguesas puderam significar, em dadas circunstâncias históricas, uma maior diversidade de interesses e de pontos de vista na origem do regramento legal e jurídico, o mesmo não aconteceu com o chamado poder judiciário. Em todas as sociedades ocidentais, o poder judiciário tende a ser o menos aberto ao controle social, o menos democrático, constituindo verdadeiras castas burocráticas, profissionais e de classe social. Não apenas no Brasil, assistimos as intenções do legislador original ser completamente ignoradas ou deturpadas pelos tribunais e juízes. O conservadorismo, inclusive da formação acadêmica e universitária no campo do direito, o distanciamento que o judiciário mantém em relação a realidade social de seus países, a origem de classe e étnica da maioria de seus membros, tornam as decisões judiciais muito distantes das aspirações mais coletivas. O fenômeno novo, inclusive no Brasil, é um judiciário que parece estar fundamentalmente preocupado com sua imagem midiática, que se deixa claramente fascinar e pressionar pela opinião publicada, mas do que pela opinião pública. A jabuticaba brasileira que é a transmissão ao vivo pela TV dos julgamentos com maior repercussão social, fez de nossos juízes da Suprema Corte atores e atrizes canastrões, vaidosos, verdadeiros acrobatas das palavras difíceis, das citações de efeito, dos votos quilométricos, para, ao final, perpetrarem, muitas vezes, a violência da injustiça e da não observância daquilo que dispõe a Constituição Federal. O fato do STF estar “politizado” não é uma excrescência, não representa um mal funcionamento dele, a própria forma de escolha de seus membros faz desse tribunal o mais politiqueiro da República, pois desde a indicação seus membros se envolvem em desenvoltas negociações, sem não em conchavos políticos. A quase total impunidade dos membros do poder judiciário, uma corporação das mais corporativistas, sua sede crescente de poder, em muitos países do mundo, têm feito desse poder uma ameaça ao próprio funcionamento normal dos regimes democráticos. Munidos da força e da violência da lei, ele é um poder que tende a passar incólome pelo controle e pela crítica social. A própria mídia, tão crítica em relação ao executivo e ao legislativo, se omite na hora de fazer a crítica dos privilégios e do péssimo serviço que o judiciário brasileiro oferece à população, que dele desconfia, mais do que confia.
Se o direito é na origem, muitas vezes, a extensão no tempo de um golpe de força, de uma conquista, de um apossamento, de uma rapina, de uma dominação, o direito exige o uso da violência na sua aplicação. Uma lei estabelecida exige cumprimento e o cumprimento exige a fiscalização, a verificação, a vigilância. Uma lei exige ser cumprida e caso não o seja implica a violência da sanção e da punição. Para a fiscalização e para a repressão daqueles que não obedecem às leis são necessárias a existência das forças de segurança, as forças destinadas a fazer cumprir a legislação que, no Brasil, em muitas ocasiões, agem com extrema violência. Muitas vezes, em nome da observância da lei, as forças de segurança violam as leis, recorrendo à força bruta, à violência sanguinária, em nome da manutenção da ordem legal. É dado ao Estado o direito do uso da violência em nome do combate à violência que possa advir da sociedade civil. Esse direito à violência por parte do Estado é fundamental para a chamada manutenção da ordem, mesmo que ela seja uma ordem injusta e repressiva. A lei não é objeto apenas de obediência, ela abre um campo de disputa e desobediência. A lei não evita a luta social, o conflito social, ela é a cristalização momentânea desses conflitos, ela cristaliza um dado estágio da luta, podendo ser resultado de uma negociação e de um consenso entre as forças em litígio ou podendo ser a materialização de um gesto de força, de uma vitória de uma dada força. A nova legislação trabalhista brasileira é fruto de um claro momento de derrota das classes trabalhadoras em seu embate com o empresariado, que patrocinou o golpe de 2016, para desmontar as conquistas legais que os trabalhadores haviam feito ao longo do século XX, através de inúmeros momentos de luta e mobilização. Sendo uma legislação, que na maioria de seus artigos, é inconstitucional, ela explicita, como muitas outras decisões judiciais e legislativas que violam a Carta de 1988, tomadas nos últimos anos, que a Constituição de 1988, o conjunto de dispositivos legais ali plasmados, são fruto de uma dada conjuntura política, de um dado conjunto de forças em conflito e em aliança, de dadas correlações de forças políticas e ideológicas que deixaram de existir. A Constituição de 1988 vem sendo desrespeitada e violada porque a situação política e social que a produziu não existem mais. O golpe de força que a Carta de 1988 significou, mesmo que essas forças fossem plurais e contraditórias, a ponto de se ter redigido uma Constituição em que o arcabouço jurídico destinado a sustentar um regime de governo parlamentarista terminou por conviver com a definição final de um regime de governo presidencialista, se vê contrarrestado por golpes de forças conservadoras e reacionárias que, através de emendas constitucionais, de legislação ordinária, ou mesmo através de decisões judiciais, vêm tornando muitos direitos previstos naquele documento letra morta. Capítulos inteiros da Constituição de 1988 nunca foram devidamente aplicados por demandarem regulamentação por legislação ordinária, como o capítulo destinado a regulamentar os meios de comunicação no país, já que os lobbies das empresas de jornalismo e comunicação nunca permitiram que fossem regulamentados e aplicados esses dispositivos que significariam a democratização das comunicações no país.
O caso do presidente Lula, todo o processo judicial maculado por irregularidades, inconstitucionalidades, parcialidades e uso excepcional de procedimentos investigativos e de processualística explicita o caráter violento do exercício do direito, de como o direito pode ser um instrumento de violência simbólica, de violência psicológica e, inclusive, como no caso da condução coercitiva imotivada de que foi vítima e da prisão sem que tenham esgotado sua possibilidade de defesa, violência física. Um homem de setenta anos está confinado em uma sala de doze metros quadrados, sendo impedido sistematicamente de receber visitas, por uma juíza que não acha suficiente a violência da prisão, querendo condená-lo à solitária, não prevista em nosso ordenamento jurídico. A jornalista dos atos falhos, não tão falhos assim, profetisa o seu enlouquecimento, deixando claro a que ponto a pretensa observância do direito pode chegar a causar danos irreversíveis a saúde física e mental de um ser humano. É preciso que percamos a inocência e aprendamos que o direito sempre teve lado, o direito sempre esteve ao lado daqueles que lhe parecem direitos, ele sempre foi um instrumento de dominação, exploração e manutenção da ordem, por mais injusta que ela seja. Isso não exclui que as leis e o direito possam ser usados em benefício dos mais débeis, dos mais humildes e necessitados, dos injustiçados, dos explorados, isso dependerá de quem lê e aplica as leis, de quem opera o direito. Daí porque a operação do direito, o exercício da judicatura seja um campo de lutas e disputas. O PT, no poder, se mostrou completamente incapaz de fazer escolhas no campo do judiciário que pudessem favorecer leituras menos violentas e discricionárias do direito e vem pagando um alto preço por isso. O respeito às regras corporativistas da corporação judiciária, a falta de critérios mais detidos para a indicação de magistrados para a Suprema Corte e de promotores para a direção do Ministério Público, fez com que a passagem do PT pelo Executivo fosse incapaz de pelo menos arranhar a lógica familista, de privilégio, de casta, de corporação, de classe dos tribunais e instâncias superiores do judiciário brasileiro.
Como disse em entrevista o jurista Pedro Serrano, Lula, um nordestino, mestiço, que vem da classe operária, considerado um iletrado, vem sendo julgado por juízes sulistas, que se consideram, portanto, brancos, homens de origem social privilegiadas, letrados, que se julgam, portanto, superiores intelectual e moralmente em relação ao retirante-presidente. O fato de que tenha sido esse presidente o melhor presidente que o país já teve, o de maior sucesso nacional e internacionalmente, gera ódio, ressentimento, gera um mal estar nas elites brasileiras representadas por esses juízes, que só conseguem julgar Lula com o fígado e não com a cabeça. Lula nunca teve chance de ter um julgamento justo pois não é para beneficiar e contemplar gente como ele que o direito existe e as leis foram feitas, ao contrário, é contra gente como ele que o direito se exerce e as leis são lidas e executadas. O julgamento de Lula foi feito para ver se dessa vez ele reconhece o seu lugar na sociedade, se dessa vez ele aprende que poder e governo não é para gente da classe operária, para gente da igualha dele. Os almofadinhas que o julgaram tinham que deixar claro, para todo mundo, que exceções como ele devem e tem que ser punidas, para que não se repitam. Quanto mais violenta e discricionária for sua sentença e seu cumprimento de sentença mais ela servirá de exemplo amedrontador para outros que, como ele, queiram trilhar o seu caminho. É preciso que a ordem voltada para servir uma minoria, que não foi feita para atender interesses e vontades de pobres, trabalhadores, negros, minorias de toda tipo, seja restaurada, mesmo que para isso seja preciso usar a lei e o direito para retirar seu direito de disputar, com grande chance de ser reeleito, as eleições de outubro.
Não se está defendendo aqui a ausência de leis ou de direito, eles também são fundamentais para se proteger os mais débeis e os menos afortunados, essas foram conquistas do mundo moderno que não podemos deixar de por elas lutar: os direitos sociais e trabalhistas, o direito das minorias, os direitos humanos. Mas temos que, até para isso, denunciar o caráter violento da lei e do direito, notadamente quando se volta contra os interesses das maiorias e dos menos aquinhoados na vida. Devemos usar a lei e o direito contra a própria lei e o direito que buscam sustentar realidades e ordens sociais e políticas injustas e desiguais. Devemos lutar por mudanças nas formas de se instituir as leis e, principalmente, nas formas de sua aplicação, fiscalização e operação. Se devemos pensar em reformas no poder legislativo para torná-lo mais democrático, menos poroso ao domínio dos lobbies financeiros, empresariais e dos grupos dominantes social e politicamente, se devemos lutar por uma democratização dos meios de comunicação, responsáveis, inclusive, pela fiscalização das instâncias de produção e aplicação das leis, devemos lutar, urgentemente, em todo mundo, por uma mudança profunda nas instituições judiciárias e de segurança, que as tornem mais abertas ao controle social, a transparência de suas ações, que as submetam a órgãos de controle social e não a órgãos de controle internos e corporativos, por novas formas institucionais de ingresso, progressão e composição de suas diferentes instâncias. O Supremo Tribunal Federal, tal como é composto hoje, deve ser extinto e substituído por uma Corte Suprema de perfil profissional e mediante concursos por mérito. Assim como é urgente a extinção das polícias militares e sua substituição por uma polícia civil, fruto de concursos e de formação adequada, que tenha todas as suas atividades autorizadas e acompanhadas pelo judiciário e submetida ao controle de um órgão externo. A lei e o direito são campos de luta, são lugares abertos à negociação e à dissensão. Eles trazem consigo, de forma imanente, a violência, que buscam conter e disciplinar, que buscam evitar e proibir, pelo exercício de uma contraviolência, às vezes, e no caso do Brasil muitas vezes, com o uso explícito e sanguinário da violência. Por isso, devemos buscar formas de exercício do direito e da lei onde essa violência possa ser, ao mesmo tempo, explicitada e controlada, discutida e repelida em sua face sanguinária, discriminatória e exploradora.

Durval Muniz é historiador, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Artigo publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
 

Le Monde Diplomatique: Intervenção, violência e políticas de segurança em terra de Marielle



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No Brasil, a estrutura social e de poder está profundamente marcada pelo colonialismo, pelo escravismo e pela segregação. Não é preciso que o assassino de uma parlamentar negra deixe um bilhete escrito expressamente “made by a racist”, para que se justifique falar de racismo como parte integrante da motivação
É típico no Brasil que a questão racial não faça parte da discussão. É comum que quem queira introduzir, em qualquer debate, o recorte racial, a menos que o racismo esteja explícito, seja visto como aquele que “vê racismo em tudo”. Curioso, já que a questão racial sempre marcou o Brasil e a composição da sociedade brasileira. A herança da história colonial-escravagista do Brasil se espalha em toda história de nossa formação social, e não estaria ausente da construção das políticas que aqui são empreendidas. Não seria diferente com as políticas públicas para a segurança. E não seria diferente para pensar a efetividade e os rumos da intervenção federal-militar no Rio de Janeiro.
O que dificulta identificar como políticas de segurança no Brasil sempre foram, e são, construídas com perfis racistas é que, na base, onde está a ponta das ações de repressão e operações ostensivas e os confrontos armados, brancos e negros se misturam. Diferente da segregação racial nos Estados Unidos, ou do apartheid na África do Sul, no Brasil, o corpo de policiais militares, ou de soldados do Exército, recrutados para operações ostensivas de repressão ou controle em territórios pobres e periféricos, são compostos de brancos e, majoritariamente, negros. Na segregação americana, policiais que reprimiam manifestações pelos direitos civis com cães, jatos d’água, cassetetes, socos e pontapés, eram brancos. Policiais e soldados que mantinham negros e negras confinados nos territórios periféricos sul-africanos, como Soweto, eram brancos.
No Brasil, essa imagem é impossível. Essa “mistura” acabou por mascarar um poderosíssimo racismo estrutural, que jogou pardos e pretos aos montes para as frentes de batalha no passado, e para as operações de combate a violência de hoje. A cúpula, de Michel Temer à Walter Braga Netto, é branca. No Brasil, o Exército tornou-se, para a parte mais pobre da população jovem e suas famílias, uma possibilidade de emprego estável. Para muitos pais, ter o filho, saindo da adolescência, sendo aceito pelas Forças Armadas torna-se o primeiro passo para que ele tenha condições melhores que as suas. Ingressar nas Forças Armadas sempre foi visto como um destaque profissional para as famílias dos jovens de favelas e comunidades do subúrbio.

De racismo, defesa e armas
Guardada as devidas proporções, estamos na mesma linha temporal que nos trouxe do período imperial, durante a Guerra do Paraguai (1865-1870), em que o Exército era a “grande oportunidade” de negros se “livrarem” da condição de escravizados. Negros alforriados sem rumo, e sem perspectiva de um lado. Negros escravizados, com o açoite e a tortura como companhias permanente do outro. A elite rica e branca, que amava o país mas não a ponto de morrer por ele, mas enriquecer explorando nele, entregavam negros escravizados em troca de si mesmos e dos filhos. Não por acaso, o Comando do Exército rejeitou, em 2017, a proposta de criação de uma unidade militar com trajes históricos que pretendia homenagear os soldados negros que lutaram na Guerra do Paraguai. Em outras palavras, na Guerra do Paraguai, negro era para morrer. Nos Estados Unidos ou na África do Sul, o racismo é uma ferida aberta. No Brasil, o racismo é uma gangrena que corrói por baixo do tecido social, do corpo social, e segue destruindo por dentro, até que partes deste corpo sejam amputadas.
Como bem disse Achille Mbembe em seu Políticas da Inimizade, “de um ponto de vista histórico, nem a república de escravos, nem o regime colonial e imperial eram corpos estranhos à democracia”. Não há porque imaginar que a democracia como está sendo conduzida no Brasil seja estranha a própria construção da ideia de democracia e quem dela realmente faz parte. A ideia de segurança, ou seguridade, intrínseca na democracia, vai recorrer permanentemente à disciplina e ao controle, ou quando necessário, à repressão, contra o inimigo que a ameaça. É preciso que haja sempre inimigos que a ameaçam. O racismo no Brasil deu à política de segurança, ao longo da história brasileira, os seus inimigos preferenciais. Diz ainda Mbembe que “está na natureza do racismo a constante tentativa de não se esclerosar”, ou, em outras palavras, o racismo, como um sistema estruturante eficiente, sempre encontrará formas de se renovar, metamorfosear, mimetizar relações equânimes, mas que na realidade concentram e mantêm profundas desigualdades e injustiça.
Se nove em cada dez mortos pela Polícia Militar no Rio de Janeiro são negros ou pardos, isto não está se dá por conta de uma maioria negra na população, mas por uma orientação profundamente racializada para as formas de agir, abordar, prender e matar. Uma intervenção federal séria no Rio de Janeiro, já poderia ter sido feita, assim que estes dados foram divulgados. Se o governo federal não intervêm nas forças de segurança do Estado que mata nove negros, para cada uma pessoa branca, as orientações e prioridades políticas sobre segurança estão mais racializados do que nós imaginamos.

Quem matou Marielle
Aqui jaz Marielle Franco. Negra, mulher, lésbica, mãe, parlamentar. Enquanto segue em torno de mistérios, o assassinato brutal de Marielle Franco, junto com seu motorista, Anderson Gomes, vai expondo simultaneamente, a partir do Rio de Janeiro, nossa brutalidade política e nossa relação perturbadora diante da possibilidade de reconhecer o racismo como um agente presente (e influente). Nossa brutalidade política é a ousadia de assassinar uma parlamentar (do Parlamento da capital do estado) de uma maneira cruel e fulminante. Brutalidade política que torna o jogo político no Rio de Janeiro não apenas competitivo, mas também violento, com profundas relações dissimuladas entre política-polícia-milícia. Brutalidade política nas declarações de ódio e vingativas nas redes sociais contra Marielle, que na verdade é contra um simbolismo maior. De desembargadora à parlamentar-homem-cristão (mas branca, branco, sempre), o ódio a tudo o que Marielle representava foi imediato e inconsequente, espalhando falsas notícias, que mais do que as mentiras do conteúdo nelas contido, diziam mais sobre o que seus divulgadores pensavam e apoiavam.
Nossa relação perturbadora com o racismo está no desconforto causado por aqueles que se indignavam (quando não tentavam diminuir ou ridicularizavam) quando o racismo (bem como o gênero e a sexualidade) eram postos como fatores integrantes das razões do assassinato da vereadora. No Brasil, como dito no início do texto, nossa estrutura social e de poder está profundamente marcada pelo colonialismo, pelo escravismo e pela segregação. Não é preciso que o assassino de uma parlamentar negra deixe um bilhete escrito expressamente “made by a racist”, para que se justifique falar de racismo como parte integrante da motivação. Esta justificativa é histórica.
“Não foi por racismo”, mas Claudia Ferreira era negra. “Não foi por racismo”, mas Amarildo era negro. “Não foi por racismo”, mas o jovem Jeremias Moraes era negro. “Não foi por racismo”, mas Rafael Braga é negro. “Não foi por racismo”, mas os cinco jovens de Costa Barros fuzilados com 111 tiros eram negros. “Não é por racismo”, mas a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. “Não é por racismo”, mas as mulheres negras são as que mais morrem durante o parto no SUS. “Não foi por racismo”, mas Marielle Franco era negra, e mulher, e lésbica, e cria da periferia. O assassinato da Mariele é o ponto mais extremo da cultura de hostilidade à mulher preta que no nosso arquétipo de linguagem racista foi descrita como “negrinha abusada”. Não deveria ser difícil considerar o racismo como parte da motivação de um assassinato num país em que se mata tantos pretos e pretas.
No contexto da intervenção, o assassinato de Marielle Franco acabou por dinamitar a possibilidade de uma ação que perderia força e atenção depois de suas primeiras semanas. Antes de ter servido como um recado aos movimentos sociais e ativistas pelos direitos humanos, o assassinato da vereadora serviu como uma rajada de frustração em qualquer possível teatro institucional do Estado sobre sua demonstração de controle. Não há controle. E ao perdermos Marielle, também soubemos que não há (e que não pode haver) silêncio. O silêncio e a conformidade deixaram de ser opção.
Discutir a intervenção federal-militar, sem permitir que o recorte racial emerja para nos orientar numa profunda percepção do que estão fazendo com o, e no, Rio de Janeiro, é atenuar uma intervenção que parece só ser pautada pelos números da violência. Não é, e nem pode ser. Se não há um confronto com a realidade em que o racismo estrutural aqui nos jogou, seguimos repetindo os erros de sempre. Aqui, política de segurança pública levada à sério deve ser aquela que reconhece os estragos que o racismo, fruto de nossa longa história colonial-escravagista fez.

*Ronilso Pacheco da Silva é graduando em Teologia na PUC-Rio; membro do Coletivo Nuvem Negra, formado por estudantes negros/as da PUC-Rio; ativista, evangélico, participa também da Campanha pela Liberdade de Rafael Braga Vieira desde o seu surgimento em 2013. É autor do artigo “É hora de racializar o debate sobre o sistema prisional no Brasil”, publicado no livro BR 111: a rota das prisões brasileiras (Le Monde Diplomatique Brasil/Veneta, 2017).

A invencibilidade imaginada de Lula

                                          
Wilson Gomes

A invencibilidade imaginada de Lula
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Arte Andreia Freire / Foto Paulo Pinto, Fotos Públicas)

No Brasil há hoje dois grupos de pessoas convencidas de que se Lula não fosse condenado e preso continuaria a ganhar eleições para sempre. O primeiro, naturalmente, é o dos lulistas, esta espécie de petista mais vinculado à figura de Lula do que propriamente ao Partido dos Trabalhadores. Eles não conseguem – na verdade, nem mesmo podem – abrir mão da convicção de que Lula é o preferido do povo. Parte da sua energia moral provém da certeza de que toda a Odisseia política brasileira recente consiste em uma bem-tramada e renhida perseguição ao ex-presidente, levada a cabo pelas desprezíveis forças das “elites”, que tomaram conta, já sem pudor, das mais influentes instituições do país, além dos canais e instrumentos tradicionais por meio dos quais se forma a opinião pública.
De fato, estes tempos de extrema polarização política viram nascer e prosperar um petismo visceral, alérgico a fatos, autoindulgente, incapaz de autocrítica e profundamente paranoico, para o qual só um conluio de todas as mais sombrias forças políticas, econômicas e mediáticas seriam capazes de abater um gigante como Lula. Mas que só conseguirá este intento se impedir que o nome de Lula esteja na cédula eleitoral.
O segundo grupo é o antipetismo. O antipetismo é um sentimento que nasce basicamente de um pavor que se origina na certeza de que Lula, que condensa toda a malignidade do mundo, exerce um fascínio irresistível sobre as massas. Se o lulista se alimenta do sentimento persecutório de que as forças sombrias das elites estão operando contra Lula e o PT, o antipetista encontra a energia de que precisa para o engajamento cívico e a participação política na paranoia da onipotência eleitoral de Lula. Motiva-lhe a certeza de que Lula precisava ser parado por alguma força externa às eleições, caso contrário a sua dominação sobre corações e mentes do povão continuaria produzindo os votos de que o PT se serve para continuar destruindo o país.
Um amigo me confessou recentemente que está tomando providências para ir embora do Brasil. O argumento definitivo é que não dá mais para viver em um país em que o primeiro colocado nas pesquisas é um ladrão condenado e na prisão. Ele sempre esteve convencido de que Lula ganharia a eleição de 2018, vez que no Brasil as pessoas são muito burras e bem que merecem ser governadas por corruptos e esquerdistas. Ele diz não aguentar mais viver no meio da gente ignorante e estúpida deste país.
Na verdade, ele não suporta mais a ideia de que a maioria das pessoas tenha tido preferências eleitorais divergentes das suas nas últimas quatro eleições presidenciais. Como não pode admitir que os outros tenham razões eleitorais diferentes das suas, e ao mesmo tempo estejam certas, ao meu amigo resta a explicação conveniente de que a maioria diverge dele porque é estúpida ou má. Ou, complementarmente, porque as forças malignas do petismo e do próprio Lula por anos corromperam a alma e embotaram o discernimento das maiorias eleitorais que lhes deram quatro eleições presidenciais.
Sim, vocês dirão, mas a figura do Lula eleitoralmente imbatível não é mais que uma fantasia persecutória da direita antipetista ou idealização imaginária da esquerda lulista. É muito provável que seja assim, mas isto não diminui em nada a sua importância. 75% da política tem a ver com imaginação, meus amigos. E faz já algum tempo que muita gente opera neste país com o fantasma do Lula invencível nas urnas, razão pela qual apressam-se em tomar providências para que isto não aconteça. Dito de outro modo, é a invencibilidade imaginada de Lula a base para que muitos tenham tomado “medidas preventivas”.
E os muitos a que me refiro aqui não é tão somente a arraia miúda do antipetismo, como o meu amigo, que se limita “apenas” a repassar fake news destinadas a “desmascarar” a maldade, a corrupção ou a hipocrisia de Lula e sua turma. Ou que bateu panelas histericamente para “acordar a consciência” dos homens de bem e para provocar os “adoradores de Lula”. Ou, enfim, que vestiu verde e amarelo e se juntou para ir às ruas e praças – as off-line e as digitais -, porque se ninguém fizer alguma coisa “essa escumalha nunca vai deixar o poder”.
Refiro-me sobretudo a pessoas em funções-chave na formação da opinião pública, que assumiram que reduzir a pó a imagem de Lula e do PT não é apenas compatível com a deontologia do jornalismo, mas um dever cívico que deve ser abraçado com entrega e paixão. Para muitos, uma redação que responde às necessidades do povo brasileiro há de ser uma redação que dedica a sua energia e a sua credibilidade a desmascarar Lula e o PT, à quebra a cadeia de encantamento que os ligavam às massas. E que se danem objetividade e imparcialidade quando elas forem incompatíveis com a missão ética que o jornalismo-de-desmascaramento-do-PT se autoconcedeu.
Refiro-me também a autoridades da Justiça que, autoconvencidos da absoluta excepcionalidade do risco de Lula reeleito, não hesitam em arregaçar as mangas e disputar a interpretação dos fatos não apenas para câmeras de televisão e citações de impressos, mas no Twitter, no Facebook e em grupos de WhatsApp, como se fossem garotos de Centro Acadêmico a trollar, insultar e repassar fake news, e não juízes, desembargadores, membros do Ministério Público ou da Suprema Corte da República.
Ou que, não satisfeitos com o ir a campo trocar insultos e pontificar sobre política e caráter, usam o seu próprio ofício para vazar seletivamente depoimentos e gravações, combinar sentenças, tomar açodadamente providências absolutamente customizadas ao caso e por aí a fora, tudo para impedir que os seus pesadelos políticos se tornem realidade. Não há outra explicação, a não ser esta, para o fato de que instituições do Judiciário, do MP, da Polícia Federal e até generais resolvam mandar às favas o recato, a discrição e as prudências que lhes impõe a função republicana quando o assunto é Lula.
Neste país, todo mundo de repente está jogando o jogo político e parece não mais haver quem se restrinja a narrar ou a arbitrar a partida. Juízes jogam, narradores jogam e até o público, que por muito tempo se limitou a assistir à competição, inclusive prestando-lhe muito pouca atenção, desceu em peso para o gramado. Eu tenho certeza de que a fantasia do Lula eleitoralmente invencível desempenha um grande papel neste frenesi de participação política e no sentimento de excepcionalidade e urgência que faz com que as pessoas tenham entrado em uma espécie de surto coletivo, que já dura alguns anos e que cresce aceleradamente em uma espantosa espiral de insanidade. As fantasias, meus amigos, também podem nos enlouquecer.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

Charge! Benett via Folha de São Paulo