pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
Powered By Blogger

sábado, 12 de maio de 2018

Lula e o truque do diabo

          
                                                                                                                                                                                                                                                                                          
    Além da lei 

Lula e o truque do diabo

FacebookTwitterEmailPinterestAddthisLula no Ato em defesa da democracia e por justiça para Marielle e Anderson, no Rio de Janeiro (Foto: Ricardo Stuckert)

“A primeira coisa a fazer: matar todos os advogados”
– Dick the Butcher, personagem de Shakespeare em Henrique 6º
Lula tinha três opções quando sua prisão foi decretada. Entregar-se, resistir, exilar-se. Sabe-se que seu entorno se dividiu entre elas. O núcleo jurídico defendia a primeira. O núcleo político uma das outras duas. A primeira, ao fim e ao cabo, era a opção pela institucionalidade, pela defesa meramente judicial.
As duas últimas escolhas significariam atos políticos de enfrentamento do golpe. Eram as corretas. Mais do que dizer golpe, era necessário agir como se age diante de um golpe, o que significa, antes de mais nada, não entregar seu corpo aos golpistas.  Lula é mantido isolado e não pode haver dúvida razoável neste momento de que seus carcereiros estão empenhados em sua destruição psíquica e em mantê-lo preso pelo resto de seus dias.
A escolha, assim, foi jurídica. Havia a expectativa de julgamento, na semana seguinte, da Ação Direta de Constitucionalidade que poderia declarar que a prisão sem trânsito em julgado violava a presunção de inocência estabelecida pela Constituição. Isto teve forte peso na decisão de Lula de submeter-se passivamente ao decreto de prisão de Moro.
Apostar temerariamente no voto da melíflua, sibilina e sinuosa Rosa Weber era um erro. Imaginar que a presidenta do STF, comprometida com o golpe até o pescoço, permitisse fosse deliberada a ADC, outro erro. Ambos consequência da mãe de todos os erros: supor que um golpe se derrota com um recurso ao Judiciário.
Na lógica inexorável do golpe jamais aquele julgamento aconteceria naquele momento. O golpe havia, afinal, chegado à sua consumação triunfante: depois de derrubar a presidenta constitucional, encarcerar aquele que seria, segundo todos os prognósticos razoáveis, o próximo presidente da República.
Um golpe e um regime  de novo tipo. Desde, digamos, Napoleão III até as ditaduras militares da América Latina entendemos golpe como uma ruptura rápida que elimina do cenário político os adversários e rompe com a estrutura jurídica e política anterior.
Os golpes de novo tipo fazem tudo diferente. São difusos.  Não há um agente facilmente identificável que deflagra o processo. O Judiciário pode protagonizar o golpe, como em Honduras e no Brasil. São preservadas as instituições políticas e jurídicas típicas do Estado de Direito. Age-se no seio delas aparentando, insidiosamente, respeitar a legalidade que estão violando. A vigência e o texto da Constituição não se alteram, mas sua matéria é esvaziada por meio de interpretações anômalas, bizarras, e assim instaura-se um estado de anomia constitucional em que tudo é permitido porque desconsidera-se até mesmo o quadro lógico mínimo estabelecido pela linguagem normativa.
O objetivo do golpe, derrubar a presidenta, aniquilar um partido político e sua maior liderança política para que não voltasse ao poder, foi avançando passo a passo nessa anomia constitucional. Moro violou a proteção constitucional do sigilo das comunicações entregando a uma rede de televisão a conversa de dois presidentes da República, sob o olhar complacente e omisso do STF.
O impeachment, que em toda nossa tradição jurídica e constitucional exigia um crime de responsabilidade, foi transformado em uma espécie de voto de desconfiança que só existe no parlamentarismo, igualmente sob o olhar complacente e omisso do STF.  A própria Corte, por fim, autorizou a prisão de Lula negando-lhe o habeas corpus mediante uma interpretação esdrúxula da presunção de inocência, mas de acordo com o “princípio da colegialidade” que, claro, como todo o mundo civilizado sabe, se sobrepõe ao princípio da liberdade.
Esse quadro mostra simplesmente a categoria ditadura, embora sob nova forma. Concentração do poder e ausência de limites constitucionais.
Contribuições teóricas recentes e oportunas, ainda que sob nomenclaturas diferentes ou com nuances de abordagem, identificam esse fenômeno em que a aparência de Estado de Direito é preservada para encobrir e legitimar a concentração de poder e a ineficácia de regras constitucionais que o limitem. Rubens Casara, em seu Estado pós-democrático (2017), observa que a figura do Estado democrático de Direito, que se caracterizava pela existência de limites rígidos ao exercício do poder (e o principal desse poder era constituído pelos direitos e garantias fundamentais), não dá mais conta de explicar e nomear o Estado que se apresenta”.
A perspectiva de Pedro Estevam Serrano também vê o estado de exceção, embora não o identifique como permanente. Mas acrescenta um ingrediente largamente utilizado no atual processo político e social brasileiro e, a rigor, clássico do fascismo: a construção do inimigo interno. De fato, o reacionarismo, ou por vezes o filofascismo da classe média acolheu amplamente em seu imaginário a criminalização e a desumanização da esquerda.
Essa ditadura de novo tipo é a forma política do neoliberalismo. A captura integral do Estado pelo mercado. A categoria do político tem que ser diluída para ampliar e acelerar a acumulação. Nesse contexto, diluir o político significa expulsar do cenário político e social os que defendem direitos e as políticas de bem-estar social que podem retirar da miséria milhões de brasileiros.
Lula decidiu se entregar e ao fazê-lo agiu como se tudo não passasse de uma contingência a ser resolvida juridicamente pelos bons juízes que ainda há em Berlim. Escreveu uma carta no 1º. de maio afirmando que vivemos em uma democracia incompleta. O que estamos vivendo desde 2016 não é uma democracia incompleta. É uma ditadura completa. Como disse Baudelaire, o truque mais esperto do diabo é convencer-nos de que ele não existe.
O que vai tirar Lula da cadeia é a luta de classes, a verdade e a razão que só estão nela e em lugar nenhum mais. E a arena da luta de classes não é o parlamento, a sala do pleno do STF ou o gabinete do Moro. É a rua.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP

Editorial: Caso Marielle Franco: Esclarecido?


Resultado de imagem para Marielle Franco/reconstituição

Desde de que a vereadora Marielle Franco e o seu motorista, Anderson Ferreira, foram assassinados, mantivemos na capa do blog uma charge de autoria do chargista Renato Aroeira, desenhada em sua homenagem. A ideia era só ritirá-la dali quando, de fato, seu assassinato e o do motorista Anderson fossem devidamente esclarecido. Nos últimos dias, órgãos vinculados ao Grupo Marinho, como a Rede Globo e o jornal O Globo, começaram a divulgar matérias acerca do assunto, depois que uma testemunha chave prestou dois depoimentos à Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, em tese, fechando o cerco em tono do esclarecimento do assassinato da vereadora e do seu motorista, uma vez que se trata de uma peça chave no conjunto das testemunhas arroladas. Por razões óbvias, sua identidade não é revelada, assim como está sob proteção policial.

Em certa medida, a versão apresentada pelo depoente parece verossímil. No jargão acadêmico, se diria que ele tem argumento. Teria sido seguranaç de um dos acusados e presenciado todas as reuniões preparatórias, onde se planejou a morte da vereadora. Ele aponta os mandantes do crime e indica seus prováveis executores, agentes do Estado, ligados à Polícia Militar e possivelmente integrantes de grupos milicianos. Um vereador e um chefe de milícia, que se encontra preso, são apontados como mandantes. Dois dos executores teriam sido assassinados como queima de arquivo. Não tenho dúvida de que o plano seria igualmente assassinar os outros dois executores, mas existem sempre as circunstâncias no meio do caminho, seja para o bem, seja para o mal. O delator é uma espécie de fio desemcapado, ou seja, aquele elemento que foge ao controle dos operadores de delitos. Pode  ser uma pessoa, um conversa vazada inadvertidamente, um objeto incriminador deixado no local do crime. Certamente os algozes da vereadora não contavam com essa “garganta profunda”, fundamental para o desfecho do caso, se estiver dizendo a verdade. 

Segunda a versão dessa testewmunha, os mandantes do crime são o vereador Marcelo Siciliano(PHS) e o ex-PM Orlando Oliveira de Araújo, comandante miliciano que se encontra detido. Mesmo preso, ele seria um dos principais articuladores do assassinato da vereadora. A motivação, naturalmente, seria as bandeiras defendidas pela vereadora, que contrariava os interesses dos grupos milicianos, paramilitares e seus representantes no parlamento. Sabe-se, por exemplo, que o vereador citado teria reduto eleitoral onde a atuação de Marielle Franco, sobretudo quando denunciava e exigia o esclarecimentos de crimes cometidos pelos milicianos, incomodava bastante.  

A Polícia ainda pretende checar as informações repassdas por esta testemunha, com o propósito de confirmá-las ou não, antes de indiciar os acusados. Até o momento, os fmiliares da vereadora e do motorista Anderson Ferreira não se manifestaram a esse respeito. Os integrantes do seu partido, o PSOL, sobretudo o deputado Marcelo Freixo, negou uma versão apresentada pelo vereador Siciliano, que se dizia amigo da vereadora. Segundo Freixo, eram apenas colegas de parlamento. Nada mais que isso. É bom que se diga que essa versão encaixa-se com as possibilidades levantadas desde o início pela polícia, ou seja, o envolvimento de PMs, milicianos e parlamentares ligados a eles.  

quarta-feira, 9 de maio de 2018

16 livros e um conselho de Hemingway para jovens escritores

                                           
Da Redação                                                                                                                                                             

16 livros e um conselho de Hemingway para jovens escritores                                   


Ernest Hemingway no Quênia, em 1953 (Arquivo da Biblioteca John F. Kennedy/ Reprodução)
 
O jornalista Arnold Samuelson tinha quase 22 anos quando, na primavera de 1934, leu o conto One trip across na revista Cosmopolitan. Aspirante a escritor, ficou impressionado com o texto e decidiu partir em busca daquele autor, um certo Ernest Hemingway (1899 – 1961). De carona, viajou da Dakota do Norte até a Flórida – e chegou sem um tostão à casa de Hemingway, que acabou dando conselhos de escrita e leitura ao rapaz.
“O ensinamento mais importante sobre literatura é nunca escrever muito de uma vez só. Nunca seque sua fonte criativa. Deixe para o dia seguinte”, teria dito o escritor, segundo Samuelson, que conta essa história no livro With Hemingway: A year in Key West and Cuba (1988), sem versão brasileira.  
O mais importante, segundo Hemingway, seria saber quando parar de escrever: “O momento de parar é quando você sente que está indo bem e chega em um lugar interessante, a partir do qual você sabe para onde ir. Pare aí, deixe a escrita para lá e nem pense nela; permita que seu inconsciente faça todo o trabalho. Na manhã seguinte, depois de uma boa noite de sono, reescreva o que redigiu no dia anterior e, quando chegar ao ponto interessante em que parou antes, continue dele e pare em outro ponto de interesse. Assim, quando terminar, sua escrita estará repleta de pontos interessantes e você nunca se sentirá preso”.
Depois, segundo Samuelson, o autor falou da importância da leitura para a escrita e perguntou se o jovem já havia lido Guerra e paz (1867), de Liev Tolstói, “um livro bom pra burro”. Ele negou, e Hemingway o levou até seu escritório, onde escreveu uma lista de títulos e escritores essenciais enquanto separava os volumes para emprestar ao garoto. Um deles era seu último exemplar de Adeus às armas (1929), romance de sua autoria. 
No dia seguinte, o jovem voltou à casa do autor de O velho e o mar apenas para devolver os livros, e acabou sendo convidado a viajar à bordo do Pilar, que precisava de mais um membro na tripulação.  
A lista de livros essenciais sugerida por Hemingway a um jovem escritor (Reprodução)

  1. The blue hotel (1898), de Stephen Crane
  2. The open boat (1897), de Stephen Crane
  3. Madame Bovary (1856), de Gustave Flaubert
  4. Dublinenses (1914), de James Joyce
  5. O Vermelho e o negro (1830), de Stendhal
  6. Servidão humana (1915), de Somerset Maugham
  7. Anna Karenina (1877), de Liev Tolstói
  8. Guerra e paz (1867), de Liev Tolstói
  9. Os Buddenbrook (1901), de Thomas Mann
  10. Hail and farewell (1911), de George Moore
  11. Os irmãos Karamazov (1880), de Fiódor Dostoiévski
  12. The oxford book of english verse
  13. O quarto enorme (1922), de E.E. Cummings
  14. O morro dos ventos uivantes (1847), de Emily Brontë
  15. Longe e há muito tempo (1918), de W.H. Hudson
  16. O americano (1877), de Henry James
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: A violência no campo como um possível indicador do recrudescimento do golpe de 2016.



 
 
 
Acabo de saber, através de uma postagem nas redes sociais, que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, desistiu de candidatar-se à Presidência da República nas eleições de 2018. Melhor assim, diriam alguns, notadamente aqueles que conhecem o pavio curto do ex-ministro do STF. Nesta galeria, possivelmente entrariam aqueles que endossam as palavras do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, que o aponta como um dos principais artífices do golpe institucional de 2016, ele que embasou a tese do domínio do fato para condenar os petistas no escândalo do mensalão, escancarando as porteiras da insegurança jurídica que tomaria conta do país desde então. Pontuaria aqui, ainda, aqueles que o veem encarnando uma personalidade de perfil eminentemente conservadora. Uma pesquisa recente apontou que o maior estrago produzido por um Joaquim Barbosa candidato seria em relação às pré-candidaturas de Jair Bolsonaro(PSC) e Marina Silva(Rede), o que confirma essa tese. Mas, aqueles leitores que desejaram ler nossas considerações sobre tal candidatura, recomendo a leitura do editorial publicado aqui, no dia  02 de Maio. 

Hoje, no entanto, gostaria de enfocar um tema dos mais preocupantes: o recrudescimento do golpe de 2016, sobretudo num aspecto emblemático ocorrido recentemente, como o caso dos sem-terra torturados no Estado do Pará, ato cometido por pistoleiros contratados a soldo por grileiros e grandes latifundiários locais. O caso do aumento exponencial do aumento da violência no campo é, sem dúvida, um dos parâmetros mais objetivos para inferirmos sobre a precariedade da saúde do Estado Democrático de Direito no país, e, consequentemente, sobre a saúde das nossas instituições da democracia. A bancada ruralista(do boi ) e a bancada  escravocrata( aqui denominada de bancada da berlinda, numa alusão a este instrumento de tortura) tiveram uma participação das mais decisivas nas tessituras que culminaram na efetivação do golpe de Estado contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Portanto, o que ocorre neste "terreno" é fundamental para entendermos seus desdobramentos.  

Logo em seguida ao golpe, o que se viu foi uma agenda regressiva, que se caracterizou pela supressão de direitos e garantias individuais e coletivas;o afrouxamento na legislação que identificava a  existência de trabalho escravo; omissão na divulgação da famosa lista suja do trabalho escravo, que apontava empresas, fazendas e latifundiários que exploravam o trabalho escravo; corte de verba aos órgãos fiscalizadores; suspensão ( e revisão) das demarcações de terras de comunidades indígenas e quilombolas; o aumento expressivo de casos de assassinatos de camponeses e lideranças indígenas e quilombolas. Ao passo em que recrudesce a violência no campo, diminui os índices de esclarecimentos e punição dos culpados. Nunca se matou tanto, nunca se puniu tão pouco. Há aqui quase que uma licença para matar. Desta última vez, de acordo com denúncia da pastoral da terra do Pará, homens encapuzados e muito bem armados, entraram num acampamento de sem-terra na região do Rio Araguaia e cometeram todo tipo de atrocidades e torturas, espancando homens e mulheres (havia uma grávida) e crianças, cujas mães tiveram que acompanhar seu sofrimento, com tiros disparados pelos pistoleiros próximos ao seus ouvidos. 

Estabeleço aqui uma categoria recorrente em todos esses golpes de um novo tipo, ou seja, o aumento expressivo da violência no campo, fato que não ocorre apenas no Brasil, mas em Honduras e, em certa medida, também no Uruguai, como consequência da expansão do agrobusiness, que não respeita o meio-ambiente, pessoas e minorias como indígenas e quilombolas. O capital dita todas as regras, consoante um Estado leniente aos seus interesses. Se discute no parlamento uma espécie de permissibilidade do uso de agrotóxicos em lavouras, uma medida que significa um salvo-conduto para todo tipo de prática danosa à saúde humana. Trata-se de um grande retrocesso - mais um - de acordo com os representantes do Greenpeace.  

Se no campo a situação encontra-se dessa maneira, os perímetros urbanos também não ficam atrás, haja vista a execução - com dezenas de tiros - de cinco jovens, numa comuindade do Rio de Janeiro, sem nenhuma motivação aparante. Registro aqui, igualmente, a prisão coletivas de 134 jovens, que logo depois foram liberados pela justiça, uma vez que não pesavam sobre eles quaisquer indícios do cometimento de algum delito. Com o golpe institucuional de 2016, o país mergulhou numa espiral nevrálgica, de consequências imprevísveis, cujo o endurecimento do sistema - ou o  enrijecimento do poder político, como observava o filósofo Sloveno Zizek - seria uma das possibilidades mais reais. A tríade é perversa: economia combalida, crise política e institucional e o status quo golpista fragilizado, sem um nome competitivo para salvar as aparências nas eleições presidenciais de 2018. Parece mesmo que Zizek está certo.  Infelizmente.

P.S.: do Contexto Político: O flagrante acima foi obtido  pelo repórter fotográfico Guilherme Santos, do Jornal Sul 21, no exato momento em que membros da comitiva de Lula são atacados por um fazendeiro, de relho em punho. Nada mais emblemático no país da chibata, como observou o professor Durval Muniz.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Le Monde Diplomatique: Poder Judiciário: A ponta de lança da luta de classes

Luís Felipe Miguel


O papel do Judiciário na canalização das disputas e a crença disseminada de que os tribunais são capazes, em algum grau, de aplicar a lei tal como ela está formulada fazem nascer uma sensação de abandono quando deparamos com uma situação de arbitrariedade judicial indisfarçada. A quem vamos recorrer, quando até a Justiça é injusta?
O golpe de 2016 representou um duríssimo revés na percepção até então dominante de que a democracia brasileira, mesmo com todos os seus problemas e aos trancos e barrancos, caminhava para sua “consolidação”. Não foi apenas porque as classes dominantes abandonaram o respeito às regras do jogo e decidiram virar a mesa quando perceberam que, novamente, eram incapazes de impor seus preferidos por meio da eleição popular. O impeachment ilegal da presidenta Dilma Rousseff e o acelerado retrocesso em direitos e liberdades que se segue a ele mostram que as instituições não só não cumpriram seu papel de proteger a ordem constitucional e a democracia, como também participaram ativamente de sua subversão.
O que a onda global de desdemocratização e os golpes brandos ocorridos principalmente na América Latina vêm revelando é que o ordenamento político da democracia liberal pode ser usado para impedir o progresso social, bloquear as demandas por igualdade e, embora mantendo uma aparência de normalidade, despir os mecanismos democráticos de qualquer efetividade a que possam aspirar. No Brasil, chama atenção o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário.
O papel do Judiciário na deflagração e convalidação do golpe político é perceptível para qualquer observador. Mas a ação cotidiana de juízes de todas as instâncias também corrobora o viés favorável aos grupos dominantes, como mostram as sentenças diferenciadas conforme a posição social dos acusados – por exemplo, a posse de uma pequena quantidade de droga ilegal pode levar a desenlaces completamente diferentes de acordo com a cor da pele e a classe social do portador. Em seu conjunto, o Poder Judiciário atua como avalista da desigualdade e das relações vigentes de dominação – o que corresponde, aliás, à posição do direito como “código da violência pública organizada”, como escreveu Poulantzas.
O que chama atenção do Brasil é que o Judiciário ocupa a posição de ponta de lança da luta de classes, cumprindo papel crucial na produção, aplicação e, em particular, legitimação das medidas que implicam retrocessos para a classe trabalhadora e outros grupos em posição subalterna. O que permitiu isso foram mudanças ocorridas nas últimas décadas e saudadas em geral como “avanços”.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, observadores da política brasileira têm falado do crescente protagonismo do Poder Judiciário. A Carta constitucional garantiu prerrogativas estendidas e propiciou mudanças de comportamento dos agentes, levando aos fenômenos paralelos da “judicialização da política”, que faz as disputas passarem a ser resolvidas nos tribunais, e do “ativismo judiciário”, pelo qual o poder relativiza sua caracterização tradicional como “inerte”, avoca a si a iniciativa da ação e toma decisões que seriam do Legislativo ou do Executivo. Outra inovação da Constituição foi a enorme ampliação do âmbito de atuação do Ministério Público, órgão vinculado ao Poder Executivo, mas que cumpre funções judiciárias.
No período de ascensão democrática que se seguiu à promulgação da nova Constituição, esse alargamento dos poderes de juízes e procuradores foi, em geral, visto de forma positiva pelas correntes mais progressistas. A defesa de interesses coletivos e difusos, atribuída ao MP, prometia uma ampliação – necessária e urgente – da proteção a grupos oprimidos ou ao meio ambiente. As decisões tomadas no âmbito das cortes superiores podiam representar, por vezes, uma usurpação do poder de legislar, mas se mostravam mais avançadas do que aquelas advindas de um parlamento notoriamente corrompido e no qual era crescente a capacidade de chantagem de grupos fundamentalistas.
O Tribunal Superior Eleitoral introduziu regulações na disputa partidária (a chamada “verticalização” das coligações, depois revogada em 2002), no exercício parlamentar (a perda de mandato parlamentar por desfiliação, em 2007) e no funcionamento das cotas eleitorais para mulheres (com o entendimento de que o descumprimento da regra levaria à impugnação da lista partidária, em 2010) que se alinhavam ao ideal normativo da competição democrática compartilhado por liberais esclarecidos e por grande parte da esquerda brasileira. O Supremo Tribunal Federal estabeleceu direitos de minorias sexuais (reconhecimento da união civil homoafetiva, em 2011) e ampliou direitos reprodutivos (extensão do direito de aborto no caso de anencefalia fetal, em 2012), em sintonia com bandeiras progressistas. Sem discutir o mérito das decisões, elas com certeza extrapolam o que era a intenção original do legislador. Nenhuma delas teria passado no Poder Legislativo.
O desenvolvimento talvez mais surpreendente foi a aprovação em 2010, pelo próprio Congresso, de legislação que confere ao Judiciário um poder de veto na seleção de candidatos às eleições. A chamada Lei da Ficha Limpa, apresentada como iniciativa popular, apoiada pela quase unanimidade dos parlamentares e sancionada entusiasticamente pela Presidência da República, em meio a um verdadeiro clamor midiático, determinou a tutela do Judiciário sobre a soberania popular. Ainda assim, poucas vozes se ergueram contra ela.
Diante das dificuldades para elevar a educação política média dos brasileiros, a Ficha Limpa parecia um atalho seguro para a “moralização” do Estado. Trata-se de um elemento constante: o elogio da ação política do Poder Judiciário, no momento em que ela alavancava causas progressistas, é tingindo por uma percepção elitista (juristas capacitados podem decidir com mais competência) e pelo desânimo quanto à possibilidade de produzir uma opinião popular mais engajada e esclarecida.
Outra característica do Brasil é que o ativismo judiciário não é privilégio das cortes superiores. Até mesmo juízes de primeira instância podem tomar decisões de enorme repercussão coletiva – os casos de bloqueio de aplicativos de smartphones com milhões de usuários servem de exemplo. Na crise política brasileira, o juiz paranaense Sérgio Moro ocupou posição central ao liderar a Operação Lava Jato. Embora a justificativa para o impeachment nada tivesse a ver com a operação, apoiando-se em operações de crédito junto a bancos estatais (as chamadas “pedaladas fiscais”), ela foi instrumental para criar o clima de opinião que sustentou a derrubada do governo. Declaradamente inspirado na operação italiana Mãos Limpas, Moro julga que é importante dar grande visibilidade midiática e obter o “apoio da opinião pública” ao combate à corrupção.
A Lava Jato revelou parte da corrupção sistêmica da política brasileira por meio de operações espetaculares que, no entanto, atingiram de forma muito desproporcional o PT e seus aliados. Seu modus operandi privilegiado, a “delação premiada”, dá grande margem a que o agente da lei oriente o curso da investigação. Muitas vezes, seus resultados dependem da desobediência ao devido processo legal e de formas de intimidação contra testemunhas e suspeitos.
Não custa lembrar que Moro é o tradutor do artigo de um juiz norte-americano que ensina como coagir acusados para que denunciem seus cúmplices.1 Em vários momentos, sua atuação se mostrou claramente casada com o cronograma da derrubada da presidenta Dilma, culminando na divulgação do áudio de uma escuta telefônica ilegal, com uma conversa entre ela e Lula. Embora o juiz tenha sido obrigado a um envergonhado pedido de desculpas e ao reconhecimento de que a divulgação da conversa fora “equivocada”, ele continuou chefiando a operação. Atualmente, como se sabe, Moro e o tribunal de recursos ao qual sua vara está vinculada, o TRF-4, são instrumentais no impedimento à candidatura presidencial do ex-presidente Lula, que é outro importante passo no esvaziamento do que restava de esperança de respeito ao princípio básico da democracia liberal – a consulta ao povo para a escolha dos governantes.
Como um juiz de primeira instância foi capaz de acumular tamanho poder? A resposta se vincula tanto às peculiaridades da organização do Poder Judiciário no Brasil a partir da Constituição de 1988 quanto à bem-sucedida ofensiva do juiz Sérgio Moro junto à opinião pública, orquestrada com os meios de comunicação hegemônicos. Moro se tornou o emblema vivo do combate à corrupção e, portanto, intocável. As muitas arbitrariedades que cometeu ao longo do processo foram quase sempre abafadas após exposição mínima, e denúncias de graves irregularidades que o chamuscavam, como aquelas que transparecem no depoimento do advogado Rodrigo Tacla Duran, foram simplesmente deixadas de lado.
A pergunta mais importante, porém, é outra: por que as instâncias superiores do Judiciário não intervieram diante de abusos tão patentes nas investigações? Questão intrigante, sobretudo quando se lembra que, dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal no período da derrubada de Dilma, oito tinham sido nomeados por ela ou por Lula. Qualquer explicação deve levar em conta que o STF não ficou imune ao clima de opinião formado a partir da Lava Jato – e a vulnerabilidade aumentada à pressão da “opinião pública” e da mídia é uma das características do Judiciário ativista. E também que os governos petistas não foram capazes de apresentar indicações para o Supremo que estivessem à margem do establishment jurídico e político. Pelo contrário, optaram quase sempre por demonstrar moderação, preferindo juristas conservadores e com trânsito nos partidos de direita. Também aqui a política de conciliação cobrou seu preço.
É preciso ponderar, porém, que se trata de uma situação difícil, não algo que se pudesse resolver por um mero ato de vontade do ocupante da Presidência da República. Por um lado, a indicação de juristas abertamente comprometidos com as causas populares seria encarada como rompimento do pacto que permitia a permanência do PT no poder e a implantação de políticas tímidas (mas mesmo assim importantes) de resgate da dívida social. A atuação do Supremo como avalista dos retrocessos é um indício, entre muitos outros, de que as condições de manutenção desse pacto foram erodidas. Essa é a ficha que falta cair para parcela da esquerda brasileira.
Por outro lado, o campo jurídico possui seus próprios filtros e mecanismos internos para forçar a adaptação às posições mais conformistas, mormente quando se alcançam funções de mais prestígio, poder e visibilidade. Como em outros campos (o jornalismo serve de exemplo), o conservadorismo transita como “imparcialidade”, mas visões críticas e comprometidas com a justiça social aparecem como sectárias, dificultando, portanto, a ascensão na carreira. Certamente há juízes progressistas, mas estão em situação parecida à de oficiais militares progressistas nos anos 1960. As iniciativas do Conselho Nacional de Justiça com vistas à perseguição de dissidentes ainda têm encontrado resistência, mas mostram que, na conjuntura aberta com o golpe, é possível que o Poder Judiciário se torne ainda menos arejado.
No início deste ano, dois eventos dissimilares apontaram para mudanças no cenário. Um deles foi a exposição, pela mídia hegemônica, de vantagens imorais auferidas por grande parte dos juízes, incluído aí o próprio Sérgio Moro, em particular um “auxílio-moradia” dado a quem evidentemente não precisa dele. Ao que parece, setores da coalizão golpista decidiram indicar ao Judiciário que ele não é intocável. O outro foi o anúncio, pelo ocupante da Presidência, da intervenção federal no Rio de Janeiro, que concede peso e visibilidade a um ator que, até agora, era mantido à sombra: as Forças Armadas.
Quaisquer que sejam as mudanças a que levem as disputas internas entre os grupos que deram o golpe em 2016, é ilusório pensar que o Judiciário pode ser um agente do retorno à democracia. Recursos ao STF, como ocorreram quando da deposição de Dilma e ocorrem agora com a condenação de Lula, cumprem muito mais um papel de denúncia, já que a corte demonstrou mais de uma vez seu desprezo pela legalidade fraturada.
É uma situação dramática porque, se a lei é um código da violência do Estado, como diz a citação de Poulantzas referida antes, ela também organiza, inibe e torna predizível essa violência. Sua imparcialidade ostensiva e os valores civilizatórios que ela tem de aparentar encarnar são concessões arrancadas pela luta dos grupos dominados. Também podem ser usados contra os dominantes e constrangem o exercício arbitrário do poder. O império da lei não é a garantia de uma sociedade justa, já que a lei reflete a correlação de forças dentro dessa sociedade. Mas a ruptura do sistema legal, que permite à dominação social se exibir em toda a sua nudez, retira dos mais frágeis as garantias que eles foram capazes de obter.

Quando a discricionariedade extralegal do sistema judicial, que nunca deixou de operar em prejuízo das populações mais pobres e periféricas, atinge o coração do sistema político, a democracia liberal entra em colapso. Significa que a ordem instituída não permite mais sequer que suas próprias promessas sejam mobilizadas para conter sua violência. Significa que a pressão dos dominados, que era aceita, desde que controlada, como parte do jogo, agora deve ser extirpada.
O papel do Judiciário na canalização das disputas e a crença disseminada de que os tribunais são capazes, em algum grau, de aplicar a lei tal como ela está formulada fazem nascer uma sensação de abandono quando deparamos com uma situação de arbitrariedade judicial indisfarçada. A quem vamos recorrer, quando até a Justiça é injusta? É a realidade de um país que passou de uma democracia formal, limitada, para uma democracia menos que formal, cujas instituições não se preocupam mais em disfarçar sua tendenciosidade em favor dos poderosos.
Como instituição política que é, o Poder Judiciário é sensível à correlação de forças na sociedade. É a resistência contra os retrocessos, o aumento na mobilização social, o protesto contra as arbitrariedades e a desobediência civil que podem restaurar o funcionamento mínimo de uma justiça burguesa que, ainda que sem perder o qualificativo “burguesa”, possa aspirar ao nome de “justiça”.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.

(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)

Delírio nacional, uma reflexão sobre irracionalidade e a loucura

                                           
Marcia Tiburi

Delírio nacional, uma reflexão sobre a irracionalidade e a loucura                                       Jackson Pollock (American, 1912–1956). Untitled. c. 1950. (Reprodução)

Discursos irracionais por todo lado. Ideias estapafúrdias provenientes dos mais diversos personagens na cena pública. Mentiras deslavadas nos meios de comunicação de massa. Fundamentalistas religiosos a dominar o poder político e econômico com posturas e falas cínicas. Tribunais em gambiarras teóricas a rasgar pomposamente a Constituição.
Falas sem sentido, jargões e clichês de cidadãos comuns que seguem a opinião dos personagens políticos e midiáticos e se expressam pateticamente no cenário das redes sociais, nas ruas, nos mais diversos ambientes. Juras de morte. Apologia do ódio, proposições de caos nos chamados em nome da ordem. Preconceitos tomam o lugar do respeito devido a cada pessoa. Hoje é condenado sem crime e sem provas, aquele que antes era sujeito de direitos. Injúrias, calúnias difamações. O ódio na base dos discursos de conspurcação generalizada. A verdade descartada como uma embalagem plástica na era do descaso ecológico-político. O desrespeito reinante na vociferação paranoica nas ruas e redes.
Se de um lado, os interesses por trás desse estado de coisas são evidentes, há mais que isso. Há algo de estranho no ar. É o caso de voltar a Freud e lembrar do que ele chamou de “estranheza inquietante”. O clima de terror que sai das páginas de ficção e das telas e toma a vida real. Pessoas comuns ainda preocupadas com o que veem, buscam explicação em seriados de TV, mas não conseguem mais separar a realidade da ficção. Os livros são esquecidos nos tempos das telas a prometer a verdade possível. Filosofia e sociologia descartadas do currículo escolar pelo governo e por cada cidadão que se une ao coro dos que desvalorizam a educação. O pensamento pronto embalado para viagem toma conta.
Mergulhado na zona cinzenta do imponderável, muitos se sentem reféns de um destino funesto. E é sob o domínio sombrio do medo elevado à Razão de Estado que o surgimento do mais básico bom senso está de fato impedido.
Delirar
As pessoas se entregam a algo de desesperador. Tornam-se agentes do desespero. A irracionalidade toma conta e a sociedade inteira entra em estado de delírio. Por delírio entendemos uma narrativa imaginária que tem uma função importante na economia psíquica de algumas pessoas. No nosso caso são muitos, são massas inteiras. Podemos dizer que, atualmente o Brasil anda bem descompensado emocionalmente. É urgente recuperar a “razoabilidade” antes que a cena evolua para o pior. Mas teremos força para isso?
Delírio não é apenas uma categoria psiquiátrica, antes é uma categoria filosófica e política. Um termo que, nesse momento, pode nos ajudar a desenvolver uma consciência acerca do que se passa conosco como sociedade.
O delírio generalizado parece ter se acentuado desde o Golpe de 2016, quando algumas pessoas que se expressam publicamente começaram a dar sinais de terem “enlouquecido”. Devemos sempre tomar o cuidado de não usar o termo loucura de maneira preconceituosa.
Eu mesma disse na época do Golpe, quando algumas pessoas, sobretudo mulheres envolvidas no Golpe começaram a ser tratadas como loucas, que não devíamos alegar loucura da parte de quem se expressava a partir de preconceitos ou de tracos fascistas. Comentei isso a propósito do fato de o signo “mulher” ter sido historicamente associado ao signo “loucura” no contexto dos discursos misóginos. De fato, ser homem ou mulher, assim sem mais, não tem nada a ver com loucura. E é preciso, no entanto, lembrar de algo bastante óbvio: o gênero de uma pessoa também não interfere no fato de que alguém se torne fascista, racista ou machista.
Tudo isso para dizer que, infelizmente, evoluímos como coletivo para um lugar cada vez mais perturbador e o cenário hoje nos permite usar o termo loucura no sentido de busca por uma reflexão capaz de perceber a força da irracionalidade nesse momento.
Portanto, não devemos confundir as coisas, mas é um fato que o termo loucura pode ser adequado para falar desse momento no qual os traços de fascistização se intensificam tanto nas instituições quanto na microfísica do cotidiano e na forma de pensar, falar e agir de muita gente.
Loucura é, nesse caso, um termo válido se nos lembrarmos seu nexo com o delírio. Loucura implica um conceito amplo, usado desde há milênios para designar siderações de todo tipo. Nessa definição a loucura é caracterizada pelo estar-fora-de-si. Esse “estar-fora-de- si” nem sempre caracteriza uma doença mental e nem sempre implica sofrimento. A loucura de nossa época está em que estamos tomados por todo tipo de delírio e sobretudo pelo paranoico.
O sujeito paranoico – aquele que poderia ter se tornado um filósofo, mas não conseguiu – em geral não sofre. Ele sente raiva e ódio. Não a raiva e o ódio que qualquer pessoa pode sentir de vez em quando, mas um ódio que é estrutural e fundante da sua personalidade. Um ódio que está na base profunda da sua vida subjetiva. Um ódio de extermínio, um ódio de aniquilação. Um ódio inquestionável. Um ódio ao qual a pessoa está de tal modo acostumada à paranoia que não é capaz de reconhecê-lo ou, caso o reconheça, não é capaz de viver sem ele. Um ódio que impede a entrada do “outro” em sua vida, seja esse outro uma pessoa, uma cultura, um conteúdo, a natureza, ou até mesmo o amor que, como energia contrária, poderia ajudar a amenizar o ódio. A diversidade que prefigura esse outro qualquer é insuportável e inacessível ao paranoico e, no delírio, ele constata que o mundo lhe pertence. Nele, as pessoas e realidades não passam de um objeto seu, de uma coisa com a qual ele faz o que quiser.
Somos levados à loucura pelo fascismo em potencial que convida a todos hoje para o jogral do discurso de ódio nas redes sociais. Seu objetivo é cancelar a reflexão, interromper o direito básico das pessoas ao pensamento lúcido que faria a “espécie” sobreviver. Se o governo opera nesse momento retirando as disciplinas de filosofia e sociologia do currículo básico, sendo que outras disciplinas já tinham sido retiradas, é porque, no fundo opera na orquestração da destruição generalizada. Para usar termos freudianos conhecidos, a destruição é a lógica quando a sociedade estregue à “thanatos”, o princípio de morte. Quando essa sociedade abomina eros, o princípio da vida.
O projeto fascista combina com o neoliberalismo como projeto de destruição da sociedade baseada no princípio de morte. Destrói-se a democracia, o estado democrático de direito e a Constituição, o Estado de Bem Estar Social com o qual se sonhava um dia. Destrói-se inclusive o capitalismo produtivista para dar lugar ao capitalismo puramente financeiro, o chamado “rentismo”.
Engana-se quem acredita que a economia vai tomar o lugar da política em nome de um mundo melhor. Esse é o núcleo da teoria do que muitos vem chamando de “pobre de direita”, um termo que resume a contradição sadomasoquista por meio da qual a vítima ama seu algoz.
Já não é a economia que suplanta a política, mas a destruição da economia e da política ao mesmo tempo. O objetivo do projeto de acumulação desembestada do capital, haverá um único cidadão, o avarento usurário, dono de tudo, sozinho, satisfeito em seu delírio paranoico.
Esse projeto se inicia pela matança por meio da fome, pelo descaso e pelo assassinato dos muito pobres e dos pobres, e dos cidadãos historicamente condenados à pobreza e marcados como “negros” pelo capitalismo. Mas na sequência, esse projeto de destruição atinge todas as classes e todas as peles no devir negro do mundo ao qual se referiu Achille Mbembe.
Sobreviverão os que conseguirem acumular capital. Mas quanto? E até quando? E por quanto tempo se não há nenhum projeto econômico e político que seja capaz de frear o avanço da desigualdade?
O delírio generalizado é o delírio de grandeza fundado pelo capitalismo, e leva a todos os que querem ser mais do que são a se engajarem nele. Todos os que tem delírio de grandeza nesse momento se sentem melhores do que os outros e se desresponsabilizam quanto ao rumo ao qual estamos nos conduzindo coletivamente, o da catástrofe social. Tomar consciência desse estado de coisas é o primeiro passo para traçar um projeto humano mais prudente que nos afaste do delírio e da loucura na qual sideramos em conjunto.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

Editorial: Como declarar o tríplex do Guarujá e o sítio de Atibaia à Receita Federal?


 
 Resultado de imagem para Receita federal/chargeComo é uma sexta-feira, independentemente das agruras que acompanham a vida dos brasileiros e brasileiras nos últimos anos, ainda há motivos para boas gargalhadas. Acabo de saber que o ministro do STF, Dias Toffoli, negou um pedido da defesa do ex-presidente Lula para que o processo envolvendo o sítio de Atibaia seja transferido para o Ministério Público de São Paulo. O andamento do processo deve ser mantido sob a jurisdição da 4º Vara da Justiça Federal no Paraná, pela qual responde o juiz Sérgio Moro, onde estão arrolados parte dos processos da Lava-Jato. A defesa do ex-presidente observou numa decisão anterior do STF - que retirou trechos da delação premiada de executivos da Construtora Odebrecht do processo que envolve o tal sítio - uma forma de reorientar todo o seu andamento, pedindo o descredenciamento do juiz Sérgio Moro do caso. Convenhamos, há um certo exagero aqui, cometido pelos advogados do ex-presidente. Talvez mais um desses equívocos de procedimentos constantemente apontados. É preciso definir estratégias consoante dados concretos da realidade, sem nenhuma ilusão, sobretudo nesses tempos bicudos de insegurança jurídica. 
 
Não à toa, alguns analistas políticos já enxergam um erro crasso do PT insistir no enfrentamento institucional. O dado concreto é que Lula será condenado sucessivas vezes. Sei que alguns petistas não gostam disso - afirmam que quem pensa assim endossa o golpe institucional de 2016 - mas talvez seja mesmo o momento, como apontou ontem em artigo o professor Michel Zaidan Filho - de se construir uma alternativa competitiva para o campo progressista e popular, sob as condições em que isso possa ser operado, ou seja, considerando-se o fato de que Lula permanecerá preso ou inelegível, amargando sucessivas condenações. O mais interessante neste próximo julgamento do ex-presidente Lula em relação ao tal sítio de Atibaia, no entanto, é uma materia publicado por um desses jornalecos golpistas da chamada “grande mídia”, onde, ali para tantas, depois de questionado sobre o assunto, o juiz deixa escapar uma pérola: há outras provas. Até o jornaleco fez questão de sublinhar a expressão. Não sabemos que provas são essas às quais ele se refere. Talvez seja os pedalinhos da ex-primeira-dama Marisa Letícia.
O cidadão brasileira que cumpriu suas obrigações com a Receita Federal este ano se deparou com mais uma exigência: a necessidade de declarar todos os dados atinentes aos imóveis de sua propriedade, como escritura, cartório de registro, valor do metro quadrado, IPTU etc. Este ano essas informações ainda não são obrigatórias, mas, no próximo ano será. Andei matutando que o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva já foi condenado numa das ações da Lava-Jato sem que ficasse configurado que ele era, realmente, o proprietário daquele tríplex do Guarujá, sobre o qual ele não nega que tenha visitado, assim como sua ex-esposa, Marisa Letícia, manifestado, inicialmente, interesse na compra. Ou seja, enquanto o Governo Federal através da sua Receita estabelece uma série de exigências do contribuinte para configurar a sua real propriedade de um determinado imóvel, um ex-presidente da República é condenado sem nenhuma prova consistente que o aponte que ele é, de fato, o proprietário do imóvel. Que tempos são esses, contribuintes?

Charge! Renato Aroeira

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Charge! Duke via O Dia

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2018/04/30/15251338575ae7b221e0253_1525133857_5x2_th.jpg

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Editorial: Quem, de fato, é Joaquim Barbosa?


 Resultado de imagem para juiz negro nomeado por George Bush

 Imagem relacionada

No livro “A identidade cultural na pós-modernidade”, escrito pelo antropólogo jamaicano Stuart Hall, há um exemplo bastante elucidativo para compreendermos a diluição do conceito de identidade na pós-mordernidade, notadamente naquilo que concerne a uma espécie de descentramento do indivíduo. Ali para tantas, Hall cita o ex-presidente Norte-americano, George Bush, no momento em ele imagina ter construído uma estratégia de mestre, ao nomear um juiz negro, Clarence Thomas, para a suprema corte americana. Um juiz negro, porém conservador no tocante às políticas de igualdade raciais. A cor negra talvez levasse muitos eleitores negros a se identificarem com a indicação. O fato de ser conservador no tocante aos direitos da etnia negra, por sua vez, não afugentaria os eleitores conservadores negros e, possivelmente, os de maioria branca. Quando dos debates no Senado para consolidar a indicação, observa Hall, descobriu-se uma denúncia, formulada por uma mulher negra e de status social modesto, acusando-o de um suposto assédio sexual. Como se comportaria, agora, as feministas e não feministas? mulheres brancas, conservadoras, não feministas e ricas? Como se comportaria o eleitorado formado por homens brancos, machistas, orientados por um comportamento racista?
Esse enredo criado pelo antropólogo Stuart Hall também nos remetem aos estudos do cientista político polonês, Adam Przeworski, sobre o que determina o voto do eleitorado, a partir da sua condição social, política econômica, religiosa. Ele propõe um dilema: um eleitor evangélico, militar e microempresário se inclinaria mais a votar num candidato de perfil evangélico ou naquele candidato que oferecesse melhores condições para a atuação e crescimento do seu negócio, como a diminuição de impostos e menos burocracia, por exemplo? Qual dessas condições seria mais determinante na definição do seu voto? Pensei bastante neste assunto quando surgiram as primeiras matérias em torno da surpreendente performance do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, nas pesquisas de intenção de voto, onde ele, mesmo não admitindo a candidatura, aparece com o índice nada desprezível de 10%.
A biografia e a trajetória do ex-ministro Joaquim Barbosa, como se sabe, seria capaz de dar um nó ainda mais difícil de desatar do que o proposto como exemplo no livro do antropólogo jamaicano Stuart Hall. Joaquim Barbosa é negro, de origem humilde, que conseguiu realizar uma brilhante carreira no campo jurídico. Mesmo com o seu respeitável currículo não chegaria à Suprema Corte sem uma indicação do PT, ou, mais precisamente, como uma escolha pessoal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que recomendou a Márcio Thomaz Bastos, à época seu Ministro da Justiça, que escolhesse um juiz negro para a indicação. Lula quebrou um longo tabu no STF. Mas, por uma dessas idiossincrasias da vida, Joaquim Barbosa constituiu-se num dos mais ferrenhos opositores do PT, levando o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos a apontá-lo como um dos principais expoentes do golpe parlamentar de 2016, quando reforçou juridicamente a figura do domínio do fato, condenando os petistas no processo do mensalão. Para Wanderley, Joaquim escancarou as porteiras jurídicas para a consolidação do golpe.
Neste contexto político que atravessamos - uma espécie de esquizofrenia coletiva -, ele agiganta-se junto a um estrato do eleitorado que o enxerga como um paladino da moralidade, um juiz implacável contra a corrupção. Sabe-se também do seu comportamento pessoal intempestivo, furioso em alguns momentos. Gilmar, que já provou dessa bílis que o diga. Num país onde a democracia racial é apenas um devaneio de um certo sociólogo pernambucano do bairro de Apipucos, no Recife, há de se fazer muitas indagações sobre o comportamento do eleitorado em relação a uma possível candidatura do senhor Joaquim Barbosa. A começar sobre quem são esses eleitores que já lhes conferem 10% das intenções de voto.
Como reagiriam os “coxinhas” diante dessa eventual candidatura? Em sua maioria eles são formados  por estratos médios, altos, identificados com uma elite escravocrata, conservadora e com um ódio visceral aos pobres. O eleitor negro teria uma identificação “natural” com Joaquim Barbosa? E quanto ao eleitor negro, instruído e politizado, que conseguiu o maior reconhecimento dos seus direitos justamente no Governo do PT? O eleitor negro e pobre, certamente os mais beneficiados pelas políticas redistributivas de renda da era petista, como se comportaria em relação a esta candidatura? Naturalmente, não posso responder a nenhuma dessas questões no momento, mas elas estão aqui postas como uma provocação para pensarmos sobre os possíveis efeitos de uma eventual candidatura do senhor Joaquim Barbosa nas próximas eleições presidenciais de 2018, se, de fato, elas vierem a ocorrer, uma vez que o timing político que enfrentamos não é nada alvissareiro.   

Durval Muniz: Nordestinidade:a opção pelo atraso

  Resultado de imagem para durval muniz de albuquerque

Essa semana o jornalista Paulo Henrique Amorim, através de seu blog Conversa Afiada, chamou atenção para um dos sucessivos atos falhos que os promotores do golpe de 2016 estão cometendo: a jornalista de economia do grupo Globo – uma Cassandra que previa o fim do mundo seguido de um apagão, todas as manhãs, durante o governo Dilma, que foi a fada madrinha do golpe, prometendo verdadeiros milagres de “crescimento econômico” ao toque da varinha mágica do impeachment da presidenta eleita com 54 milhões de votos, que nos infelicita toda manhã com seus penteados e suas ideias -, em um dos seus inúmeros comentários sobre “economia”, deixava claro que o problema da economia brasileira era as regiões Norte e Nordeste. Se não fosse esses dois estorvos a forçar para baixo os índices de crescimento da indústria, a “recuperação”, prometida para o dia seguinte do golpe, já teria acontecido. A comparação entre os índices de crescimento industrial de Santa Catarina com os de Pernambuco, Bahia e Ceará, só faltou tomar como explicação que os catarinenses são mais eugênicos, são brancos, europeus e, portanto, ao contrário dos afrodescendentes da Bahia ou dos mestiços e caboclos do Ceará, são mais afeitos ao trabalho, são mais inteligentes, empreendedores, são menos preguiçosos e, além de tudo, mais diligentes e sábios politicamente porque não votam na gentalha petista, coisa para nordestino que vota com o bucho e não com a cabeça.
Paulo Henrique chamava de etno-neolibelismo essa forma de pensamento que costuma transferir para as vítimas do sistema econômico vigente e das políticas que implementa a culpa pelo que seria seu fracasso e a sua miséria. Para mim, estamos diante da atualização de enunciados e imagens pertencentes ao discurso eugenista, que fez enorme sucesso entre os fins do século XIX e a primeira metade do século XX, até que a hecatombe nazifascista o desmoralizasse. Para o eugenismo o mundo se dividia em raças. Sendo uma resposta conservadora aos pensamentos de esquerda, ele colocava no lugar da luta de classes, a luta entre as raças, daí porque o nazismo se nomeava de nacional socialismo (o que levou a um procurador da República a procurar e achar o nazismo na esquerda, ideia tão sábia que continua vez em quando a circular nas redes sociais). Haveria uma hierarquia natural entre as raças e, por conseguinte, entre os povos, nações e culturas. Às raças superiores, arianas, brancas, estaria destinado a prevalência social e política. As hierarquias e desigualdades sociais eram assim justificadas. Elas não eram um problema, como afirmou o sábio candidato à presidente da República do partido do eugênico bispo Edir Macedo, pois eram fruto da partilha desigual de qualidades e atributos pelo nascimento, pela hereditariedade, pelo sangue. As raças inferiores: negros, vermelhos, amarelos estavam destinados a ocupar as posições subalternas socialmente, a ser governados e explorados, pois a natureza assim o dispôs. Os cristãos eugenistas, e eles haviam em grande quantidade, como os fascistas italianos, completavam que se a natureza foi uma criação divina, logo essas hierarquias ditas naturais entre as raças era um desígnio do Senhor, Ele havia estabelecido essas divisões e essas distinções, cabendo ao cristão a elas se conformar e delas procurar extrair o melhor visando sua salvação (não ficava claro se na hora do Juízo Final essas divisões raciais também seriam pesadas na balança de S. Pedro). Esse tipo de pensamento era perfeito para justificar a própria dominação imperialista e colonial dos europeus sobre os povos da Ásia e da África.
O discurso da eugenia também exerceu um papel fundamental na construção dos discursos regionalistas no Brasil. As diferenças crescentes de desenvolvimento entre o Norte e o Sul do país, desde o final do século XIX, eram interpretados a partir da ideia de que o fato das terras sulinas terem recebido a “transfusão benfazeja de sangue ariano” através da imigração de brancos europeus estaria dando a essa região uma capacidade de crescimento que faltava às províncias do Norte entregues a uma população produto da secular mestiçagem com as raças inferiores. Não é mera coincidência que parte de um intelectual ligado aos grupos agrários dominantes no antigo Norte, um dos formuladores da ideia de Nordeste, no início do século XX, a mais brilhante contestação a essas ideias eugenistas e racialistas. Em Casa Grande e Senzala, no início dos anos trinta do século passado, Gilberto Freyre defende a mestiçagem como aquilo que constituiria a própria raça nacional, que nos conferiria uma singularidade no conserto das nações. O discurso regionalista que surgiu nas províncias do Norte do Império, ainda no final do século XIX, e que se tornou o regionalismo nordestino após a invenção dessa região, no início do século XX, teve que conviver com esses discursos de matriz eugenista e a eles dar respostas, muitas vezes utilizando seus próprios princípios, como o de conferir a ideia de raça uma centralidade na explicação da história e da sociedade, mesmo que para isso tivesse que fazer malabarismos mentais dignos de Rosa Weber. Elites que haviam utilizado o discurso racialista para conferir legitimidade à escravização dos negros agora se viam apanhado em suas malhas e buscavam uma saída apelando, principalmente, para a figura do sertanejo, o mameluco fruto do cruzamento de brancos e indígenas, que por não ter sangue africano seriam eugenicamente superiores e destinados a construir a nova região.
Mas o que é relevante nesse episódio de eugenismo à la carte, servido no café da manhã pela musa do neoliberalismo pátrio (cada um tem a musa que faz por merecer) é constatarmos que mais uma vez as zelites nordestinas (elites compostas de Zés Agripinos, Zés Sarneys), apesar de serem tratadas como gente de segunda categoria, apesar de ser consideradas por luminares do sul, como a economista da catástrofe neoliberal, como uma gentinha corrupta e preguiçosa à viver das verbas e dos recursos produzidos pelos empreendedores do sul maravilha, ela optou mais uma vez pelo atraso, como já fez em vários momentos da história do país. Agarradas a seus privilégios locais, pensando exclusivamente em salvar a sua própria pele, em fomentar os seus interesses (no que não é diferente e nem fica a dever a nenhuma outra elite regional do país), as zelites nordestinas mais uma vez optaram pelo atraso. Se olharmos para o que significou os governos Lula e Dilma para os estados do Nordeste, para a economia nordestina, é de causar espanto que a bancada da região no Congresso Nacional tenha aderido majoritariamente ao golpe. Teríamos que recorrer à fábula do escorpião para entendermos a posição tomada por elites que viram as desigualdades regionais se reduzirem como nunca e a economia regional crescer acima das taxas de crescimento da economia nacional, ou seja, seria da natureza das elites nordestinas optarem pelo atraso e pelo golpe quando qualquer mudança aparece no horizonte de nossa história. Em 2007, a região Nordeste atingiu taxas de crescimento econômico chinês, chegando a crescer 9% em um ano. Nunca a região recebeu tantas obras de infraestrutura (duplicação da BR-101, ferrovia transnordestina, transposição das águas do rio São Francisco, refinarias de petróleo, modernização de portos e aeroportos, novas universidades federais, uma rede impressionante de institutos federais de educação, estações de energia eólica, a criação do Instituto Nacional do Semi-Árido, construção de quase um milhão de cisternas), nunca a região recebeu tantos investimentos, foi tão bem tratada. Esse tratamento preferencial as duas regiões mais pobres do país se inscrevia na própria lógica do política de governo que visava privilegiar os menos aquinhoados.
Além da redução das desigualdades sociais, os governos petistas realizaram uma redução das desigualdades regionais como nunca havia ocorrido. É compreensível que as elites de outras regiões, que setores da população de regiões como o Sul e Sudeste lançassem mão do velho discurso eugenista e dos discursos preconceituosos para demonstrarem seu descontentamento com essa mudança de patamar entre as distintas partes do país. Assim como é compreensível que as camadas populares do Norte e do Nordeste, que foram extremamente beneficiadas pelas políticas sociais e de combate à pobreza implementadas por esses governos, se coloquem como eleitores do PT. Não há nenhuma falta de racionalidade nesse gesto, não é por ignorância ou por votarem com o bucho que assim fazem, é uma adesão racional a um partido e a governos que olharam para suas necessidades básicas como nenhum outro olhou. O que é aparentemente incompreensível é grande parte da bancada nordestina ter participado entusiasticamente do golpe que agora infelicita a região. Se não olharmos para a história e vermos que essa não é a primeira vez que as elites nordestinas deram um tiro no próprio pé ao apoiar governos nascidos do arbítrio e da reação a processos de mudança na sociedade brasileira, não compreenderemos o fato de que governadores como o de Pernambuco e do Rio Grande do Norte aderiram ao golpe, quando esses estados foram beneficiados como nunca nos governos do PT.
Claro que discursos que remetem ao eugenismo tentarão culpar esse ser genérico, sem rosto, sem classe, sem etnia, chamado nordestino por todas as suas desgraças. O tombo da economia regional, o desemprego galopante, a miséria que retorna a patamares anterior, a paralisia de todas as grandes obras de infraestrutura, o desmonte dos programas sociais que representavam, na região, um grande impulso econômico, serão agora debitado na conta desse ser amorfo chamado nordestino, uma espécie de Geni nacional, inventando pelas próprias elites dominantes desse espaço. Para se ter uma ideia do resultado do golpe – que um dos flamejantes representantes do empresariado nordestino, aquele que não quer pagar salário, nem imposto, mas ainda vive de mesada do papai, dizia que ia trazer a prosperidade imediata, comemorando com rojão o golpe transmitido por um telão colocado no Shopping Midway Mall (o nome já diz da mente colonizada que o concebeu), um palácio do consumo inaugurado graças ao período de bonança do governo do presidente agora trancafiado em 12 m quadrados por receber um apartamento que não está nem em seu nome, nem em sua posse – na cidade do Natal, onde está a sede do grupo empresarial que o rei das facções dirige, a miséria cresceu 130% em um ano, levando cerca de 74 mil pessoas de volta a linha da miséria. As ruas da cidade se enchem de pedintes, meninos nos sinais, vendedores ambulantes, moradores de praças. Próximo ao campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, uma placa de sinalização está sendo usada para suster um plástico, que preso na outra ponta por um carrinho de supermercado, abriga uma família. No cruzamento em frente a um dos principais supermercados da cidade, durante quase duas semanas, um homem ficou parado com um cartaz na mão se oferecendo como motorista. Diante de tal quadro o teórico da desigualdade ainda fala que ela não é problema e se fosse seria facilmente resolvida. Como vemos, as elites nordestinas são eugenistas no pior sentido da palavra: elas não se comovem com o fato de que sua adesão ao atraso, ao conservadorismo, que a defesa de seus privilégios signifiquem a miséria e até a morte de fome de milhares de pessoas.
Costumamos nos comover e indignar, justificadamente, com as cenas do Holocausto judeu. Mas é interessante que nunca tenhamos nos comovido e indignado com a verdadeiro Holocausto secular de que os pobres da chamada região Nordeste são vítimas. As elites ditas nordestinas nunca se abalaram com o espetáculo de milhares de pessoas a perambular pelas estradas, a migrar com tudo que lhes restava, se sujeitando à fome, à sede, à morte por inanição e doenças causadas ou agravadas pela desnutrição. Nunca o país se abalou com as cenas de meninos esfomeados a lamber os pingos de garapa de cana que caíam de uma barrica na terra batida. Nunca nossos eugenistas sulinos e sudestinos tiveram dor na consciência pela exploração brutal do trabalho que os migrantes nordestinos sofreram e sofrem em suas regiões, contribuindo para o progresso e desenvolvimento de que tanto se orgulham (só não o mental e civilizacional, pelo visto). Para nordestinos, como Lula, temos o relho pedagógico da senadora que confunde Al Jazeera com Al Qaeda, lembrando eugenicamente que mestiços, que negros e índios foram destinados pela natureza ao trabalho braçal, essa história de nordestino ser presidente da República é um acinte. Elites, como as nordestinas, que só mostravam comoção e piedade pelos retirantes nas páginas de seus discursos político e parlamentares, ou nas páginas de sua literatura, para usá-los como argumento para conseguir do Estado benesses econômicas e políticas, que nunca teve pejo de se apossar de todos os mecanismos institucionais criados para “resolver o problema da seca” (uma jabuticaba inventada pela elite nordestina, que pretende resolver um problema natural e não conviver com ele, é como se a elite sueca se dispusesse a resolver o problema do inverno rigoroso) e colocá-los para funcionar a favor de seus interesses. O programa Pró-Sertão, que atende os interesses de uma única empresa, é típico do uso do Estado para benefício privado em nome de resolver o problema da falta de emprego e oportunidades nesse espaço associado a ocorrência das secas. O DNOCS, a Sudene, o Banco do Nordeste, o Pró-Álcool, o Prodetur, o Projeto Sertanejo e tantos outros órgão e programas foram apropriados pelos interesses privados das elites nordestinas, que ainda têm a cara de pau de se apresentarem como vítimas da discriminação do Estado e como vítimas das secas. A seca sempre foi um teta gorda que deu muitos frutos e foi muito produtiva para as elites agrárias do Nordeste. A mudança que os governos petistas promoveram nas política de combate as estiagens, retirando das mãos dos proprietários rurais os mecanismos de combate ao fenômeno, começa a explicar do porque das elites nordestinas terem se perfilado do lado do golpe. Gente que havia acabado de ser ministros do governo Dilma, sem possuir nenhum atributo político ou intelectual para ocupar tal cargo, somente fruto dos acordos políticos, que se mostraram desastrosos para Dilma, se tornaram golpistas de primeira hora. Aqui no Rio Grande do Norte, tivemos dois ex-integrantes do governo participantes do golpe em nome do combate a corrupção, sendo que um deles encontra-se preso justamente por isso.
As políticas sociais como o bolsa família, ao contrário do que raciocinam muitos intelectuais de fancaria, no país, libertou as pessoas do cabresto político, pois não se constituía em favor pessoal mas numa política pública anônima e impessoal. Política que empoderou os pobres e as mulheres, recebedoras preferencial do benefício. O programa de cisternas e a transposição do São Francisco, com a construção de adutoras e sistemas de abastecimento d´agua, rompeu com a lógica secular de se tentar resolver a seca com panaceias que só interessavam as elites locais. Passou-se a pensar a convivência com o semiárido, com a criação de um Instituto de pesquisa visando o desenvolvimento de tecnologias adequadas a esse meio. O resultado foi que os governos petistas acabaram com os retirantes, com os saques de fome em feiras e armazéns públicos, mas nada disso comoveu as elites nordestinas, que perderam assim o domínio que possuíam sobre a população. Basta olharmos para o quadro político do Nordeste e ver as mudanças políticas importantes que esses últimos anos trouxeram. Já nas primeiras eleições após a implantação das políticas sociais, da melhoria do salário mínimo e das aposentadorias rurais, o PFL, atual DEM, foi praticamente varrido eleitoralmente da região, ocorrendo as históricas derrotas da oligarquia Sarney, no Maranhão, e o destronamento de Antônio Carlos Magalhães, na Bahia. O rancor e o ressentimento se espalhou entre as velhas raposas da política nordestina que viram a ascensão de novas lideranças em toda a região. E o interessante nisso tudo, é que o Nordeste continuou sendo visto e dito, inclusive pela mídia e pelos discursos reativos nas redes sociais como a região conservadora e coronelística, enquanto São Paulo hiberna sob o tucanistão há mais de vinte anos (os tucanos só têm de moderno os métodos do desfalque aos cofres públicos), enquanto o Paraná e Santa Catarina elegem sempre os mesmos oligarcas, as mesmas famílias, atoladas até o pescoço com a corrupção.
Como a mídia é concentrada no Centro-Sul e não tem ideia do que se passou ou se passa em outras áreas do país, podemos entender (mas não aceitar) a ignorância crassa com que tratam o que ocorreu nos doze anos de governos petistas no Norte e no Nordeste. Quem vive nessas regiões e não têm os olhos cegos por seus próprios interesses ou pelos discursos ideológicos mais rasteiros, não pode negar as grandes transformações pelas quais a região passou e que agora se perdem numa velocidade assustadora. O desmonte que se faz em todo país, adquiriu no Nordeste e no Norte, aspectos dramáticos. Para se ter uma ideia do que está ocorrendo, vou terminar contando uma história que me foi repassada por um funcionário aposentado da Petrobras e que hoje, provisoriamente, dirige um Uber. Enquanto a Petrobras ameaça “descontinuar” (o neologismo pedante mais usado pelo governo golpista, o governo da descontinuidade de tudo que é benefício social, política pública em benefício da maioria da população, em tudo que representa soberania nacional) a produção de petróleo no Oeste potiguar, destruindo a economia já frágil dessa área do estado de elites entusiastas do golpe, realizou um Plano de Demissão Voluntária que ofereceu cerca de 200 mil reais para cada técnico, para cada engenheiro, para cada membro do corpo diretivo da empresa que quisesse se demitir. Ele me contou que muitos jovens entre 28 e 35 anos, muito bem formados nas universidades brasileiras, que receberam treinamento especializado pago pela Petrobras, no Brasil e no exterior, saíram da empresa diante dessa oferta tentadora e, muitos deles, dadas as suas capacidades e especializações, estão sendo contratados por multinacionais do petróleo. Todo um investimento em cérebros que se vê assim perdido. O mais estarrecedor é que ele me disse que, agora, precisando de mão de obra especializada para tocar a produção que está sendo retomada com a redução da crise internacional, a Petrobras está oferecendo a engenheiros e técnicos aposentados, como ele, salários altíssimos para que eles retornem à empresa. Isso é o que podemos denominar de política de lesa pátria. Essa gente, quando a canoa virar, como diz o Paulo Henrique Amorim, têm que responder judicialmente por esses crimes.
No entanto, muita gente ainda se deixa levar pelo discurso regionalista nordestino, ainda se deixa ludibriar por um discurso que nos reserva um lugar de subalternidade no país, porque subalternas e com complexo de inferioridade são as elites que o elaborou. Se a elite brasileira como um todo tem complexo de vira lata quando se trata da relação do país com as potenciais centrais do capitalismo, os ditos nordestinos têm um complexo que os leva a se ver como menor e aceitar esse lugar de segunda categoria. Nossas elites não param de atirar o espaço que dominam na miséria e no atraso, desde que seus mesquinhos e paroquiais interesses sejam preservados.
 
Durval Muniz de Albuquerque é historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
 
(Artigo publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
 

Michel Zaidan Filho: Semideus da República de Curitiba

Resultado de imagem para michel zaidan filho
 
Depois da proeza de uma condenação sem  provas, fartamente desmentida pelos fatos e sua ampla divulgação na mídia, o juiz de primeira instância, da 4ª Região da Justiça Federal, Sérgio Moro resolveu afrontar a competência jurisdicional  do Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu sobre a propriedade da jurisdição  do “juiz natural” para julgar os processos de LULA. Como se já não bastasse ter autorizado escutas ilegais das conversas telefônicas da Presidente da República, sem autorização judicial  e constranger LULA a um interrogatório no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, o senhor Moro – tomou gosto no arbítrio –e resolveu que não atenderá a decisão da  corte constitucional brasileira, no sentido de  transferir os   processos para São Paulo.

Entende-se a motivação persecutória e midiática do juiz curitibano, mas não se justifica. Depois de estabelecer uma inexistente “conexão” entre a  operação Lava-Jato”  e o tríplex de Guarujá – atribuído a LULA – e condenar o ex-presidente sem provas, com base numa jurisprudência tortuosa, Moro avocou a si a tarefa de perseguir, processar, condenar e prender LULA. É o seu momento de glória ante uma classe média assustada e conservadora, como a nossa. Ocorre que gerou-se um impasse. O STF faz cumprir sua decisão, arrimada na ausência de provas e na sua jurisdição constitucional, ou a autoridade daquela corte resta desmoralizada. Onde se viu um juiz de primeira instância  se impor diante de uma decisão de um tribunal superior? – A não ser, que VV.excias. estejam intimidadas pela rede GLOBO e a “opinião pública” fabricada pelos meios de comunicação.

Se o intuito declarado ou não for afastar o ex-presidente da corrida presidencial, onde  ele é hoje  francamente favorito, e beneficiar  o consórcio partidário formado pelo PSDB, DEM e PMDB,  esta   manobra pode custar caro:  não só pela divisão entre os partidos mas sobretudo pelo desgaste político dessas  legendas. A proibição de LULA participar da campanha eleitoral beneficia de pronto a Jair Bolsonaro      e Marina Silva. Ou seja: a igreja (neopentecostal) ou a espada. No   entanto, mais grave é o efeito devastador sobre o Poder Judiciário, que anda na berlinda já há bastante tempo. A insurreição funcional e hierárquica do senhor Sérgio Moro escancara as portas para a desautorização do STF, como a última instância de recursos e convalida um “vale-tudo” na atual corrida  presidencial.

Por outro lado, as correntes democráticas e socialistas precisam distinguir entre a pessoa e sua causa, sua bandeira. As pessoas passam. A bandeira, o programa, a agenda política continua. Não é possível depositar todas as esperanças numa batalha judicial, montada para excluir um candidato  da campanha    presidencial. Há que organizar as forças, apresentar um programa mínimo de consenso e ver como se viabiliza uma candidatura ligada a este programa. Corre-se o risco – com o messianismo político brasileiro – de se produzir uma grande frustração. E não podemos correr este risco: ele é imobilizador e perigoso.  
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE