Desde A urbanização do capital, de 1985, até o brilhante Rebel cities
(Penguin, 2012, sem tradução no Brasil), passando por dezenas de livros
sobre marxismo, David Harvey encara as grandes cidades como o amálgama
social que produz e produzirá o novo. Não há nada mais fervilhante, diz
ele, do que as “zonas de aculturação”, bairros em que o abandono do
Estado se mistura a populações imigrantes, artistas e jovens
profissionais liberais. Alguma semelhança com o movimento cultural que
ocupou as ruas do Baixo Centro de São Paulo em abril com atividades
culturais gratuitas e autogestionadas?
Geógrafo de 77 anos, professor emérito da City University of New York
(Cuny), ele esteve no Brasil para o debate de lançamento de seu novo
livro, Para entender O capital (Boitempo, 2013), em que disseca
a obra-prima de Marx e se propõe a criar um “guia de leitura” para quem
pretende mergulhar pela primeira vez naquele oceano. Na verdade, ele é
mais apaixonado do que isso. “Todas as pessoas precisam ler um livro
chamado O capital.”
DIPLOMATIQUE– O Brasil vem se preparando para realizar
a Copa e a Olimpíada. E a preparação para esses eventos tem provocado
remoções de pessoas e injustiças econômicas, entre vários outros
absurdos. O que devemos fazer?
DAVID HARVEY – As pessoas deveriam estar atentas desde
o primeiro momento quando alguém diz: “Teremos Jogos Olímpicos aqui”.
Em geral, interesses comerciais e financeiros do Estado o farão remover
pessoas e trabalhar na “revitalização” de locais. Eu acho que, antes
mesmo de um anúncio como esse ocorrer, as pessoas deveriam estar
preparadas para dizer: “Não quero que isso aconteça no meu país”. Um
exemplo interessante foi a tentativa de levar os Jogos Olímpicos a Nova
York. A população não concordou. Quando toda a propaganda em torno do
grande evento começou, os nova-iorquinos já estavam preparados para
dizer: “Não queremos”.
DIPLOMATIQUE– Não sei se isso é possível entre os
brasileiros hoje. A maioria está empolgada. A propaganda oficial é muito
grande, todos amam futebol e as pessoas sentem que querem a Copa,
querem a Olimpíada.
HARVEY – Sim, isso é difícil. A vantagem de Nova York é
que há o encontro das Nações Unidas. Todos os anos, por uma semana em
outubro, todo o lado leste da cidade é completamente fechado. Você não
pode se movimentar, e todos ficam de saco cheio. Aí, quando alguém fala
em Jogos Olímpicos, as pessoas já rechaçam.
Quando a cidade-sede da Copa ou da Olimpíada já está escolhida, deve-se
trabalhar muito para minimizar as consequências ruins. Mas é quase
impossível, não dá para pensar em algo revolucionário.
A maioria das cidades que já receberam Copa ou Olimpíada perdeu muito
dinheiro. Se você analisar as condições financeiras da Grécia hoje, boa
parte dos problemas remonta aos Jogos Olímpicos, quando gastaram uma
quantia enorme de dinheiro para construir coisas completamente inúteis.
Houve apenas um projeto muito útil, a construção de um novo sistema de
metrô, cujos benefícios são permanentes. O que se vê normalmente é
violência de Estado, sem qualquer compensação. Vocês devem lutar por
benefícios definitivos, mas sabendo que é impossível parar os Jogos.
DIPLOMATIQUE– O Brasil agora está sob holofotes em
todo o mundo. E você já esteve na maioria dos países da América Latina.
Há novos modelos de organização ocorrendo nesta parte do mundo?
HARVEY – Uma coisa consistente que já existe por toda a
América do Sul é um tipo de rejeição às políticas neoliberais em suas
formas puras. Isso não quer dizer que todos sejam anticapitalistas, mas
há um antagonismo contra as estruturas da globalização: Banco Mundial,
FMI e as políticas austeras que estão dominando a Europa.
Há também uma série de experimentações políticas ocorrendo, mas que
tipo de políticas econômicas vai funcionar? Há diferenças entre o que
Chávez fez na Venezuela, Morales na Bolívia, Correa no Equador, mas em
geral a América Latina é hoje um lugar onde os movimentos sociais são
ativos e muitas pessoas da esquerda sabem que esta é uma parte muito
interessante do mundo hoje. Estou certo de que, já que não há como
romper com o capitalismo, há um novo tipo de capitalismo que vem sendo
construído.
Em O capital, Marx mostra isso claramente. Quando qualquer
pessoa chega e diz: “A solução para a pobreza é mais desenvolvimento
capitalista”, você deve dizer imediatamente: “Não! O capitalismo criaessa
pobreza”. Acontece o mesmo com o meio ambiente. Quando alguém diz que o
capitalismo pode ser sustentável para o planeta, Marx faz um bom
trabalho ao mostrar a tendência eterna de o capitalismo destruir a
principal fonte de recursos: a terra. Marx admirava de diversas formas
as consequências positivas do desenvolvimento capitalista, mas dizia que
precisamos ter controle e criar uma alternativa ao “lado negro”.
DIPLOMATIQUE− Vê-se cada vez mais no mundo, e em São Paulo também, a proliferação de hubsque
pretendem ser lugares de liberdade e criatividade em vez do controle de
horas. Isso é uma alternativa ao capitalismo tradicional?
HARVEY – A mudança tecnológica está criando um
sentimento de redundância. O que devemos fazer em um mundo em que os
trabalhadores são redundantes? Temos taxas de desemprego em crescimento
em todo o mundo, e o tipo de emprego que ainda existe não está
satisfazendo o trabalhador criativo. Portanto, vemos pessoas por toda
parte tentando ter um estilo de vida diferente, criando sistemas
alternativos de produção, economias solidárias e outras coisas do tipo.
Porque, afinal, é a vida deles que está em jogo.
DIPLOMATIQUE– Cooperação em vez de competição...
HARVEY – Sim. Há diversos grupos espalhados pelo mundo
tentando fazer algo, de formas bem diferentes, mas usualmente em
escalas pequenas. Essas pequenas iniciativas devem ser reprodutíveis
para se transformar em um movimento de massa ou precisam permanecer
pequenas? É uma das grandes questões sem resposta.
DIPLOMATIQUE– Essa reorganização do espaço de trabalho pode ser considerada anticapitalista de alguma forma?
HARVEY – Pode ser parte de uma tentativa
anticapitalista. Mas veja o que acontece, por exemplo, nas fábricas
recuperadas na Argentina. Elas existem como ilhas dentro de um oceano
capitalista, mas no fim se transformam em um centro de autoexploração
por causa das pressões comerciais, financeiras etc.
Por um lado se diz que a passagem para o socialismo necessita de
autogestão e trabalhadores associados no controle da produção, mas isso
não sobrevive sem uma reconfiguração radical dos papéis do dinheiro, do
sistema financeiro, dos mercados. Se esses elementos não mudarem, você
ainda estará na prisão do capitalismo. Por outro lado, tomar a fábrica é
um primeiro passo – e isso é bom. Então vem a questão: quais são o
segundo, o terceiro, o quarto passos desse movimento?
DIPLOMATIQUE– Para além dos trabalhadores criativos,
existe uma massa imensa de trabalhadores tradicionais, e ainda há os
sindicatos, que não conseguem dialogar com os trabalhadores e não têm a
importância que já tiveram. Como os trabalhadores devem se organizar
nestes novos tempos?
HARVEY – Não acho que os sindicatos de trabalhadores
estejam completamente mortos. Há partes do mundo em que eles ainda são
significantes e muito fortes. A dificuldade dos sindicatos sempre foi
conseguir benefícios para seus membros e, em sua maioria, nunca se viram
como movimentos trabalhistas de vanguarda. Alguns partidos políticos
fetichizaram o trabalhador da fábrica como a pessoa que iria liderar a
revolução – e sempre achei que havia algo errado nessa formulação. É por
isso que, no Rebel cities, eu digo que é preciso redefinir o
proletariado de hoje para incluir todas as pessoas que produzem e
reproduzem a vida urbana – e que, portanto, revolucionar a cidade é tão
importante quanto revolucionar o local de trabalho.
Quando você analisa a Comuna de Paris e os movimentos revolucionários
de 1848, há evidências históricas de que eles tinham como propósito
recapturar a vida urbana para a massa da população. Esses movimentos
urbanos não foram levados a sério por muitos setores da esquerda, mas
deveriam. Há 34 anos eu tento, sem muito sucesso, persuadir meus colegas
marxistas a levar a urbanização a sério. As pessoas nas ruas, como
vimos nas revoltas do Cairo, tomando conta de regiões simbólicas das
cidades, são uma força política muito significante, mesmo quando as
revoluções não são exatamente anticapitalistas. Precisamos encarar as
cidades como centros de legitimação política e potenciais para
revoluções e transformações. Daí a necessidade de redefinir teoricamente
o que são movimentos de massa ou revolucionários.
DIPLOMATIQUE– Unindo suas ideias, podemos dizer que esses trabalhadores devem então fazer coisas em pequena escala?
HARVEY – Sim. Gramsci tem uma formulação interessante
sobre isso, quando escreveu sobre a organização dos trabalhadores. Ele
disse que, claro, é preciso se organizar em torno das fábricas (não
exatamente em sindicatos, mas em conselhos fabris), mas é preciso também
organizar as vizinhanças. Porque nos bairros estão as condições como um
todo da vida da classe trabalhadora. Neles estão os garis, os taxistas,
os garotos de recado e tantos outros que precisam ser integrados nos
movimentos políticos – e essa ideia de organizar a vizinhança está
passando a ser central nos processos políticos de hoje. Gramsci via
muitas vantagens na união da organização das fábricas e das vizinhanças,
principalmente porque, naquela época, isso significava dar poder às
mulheres, já que nas fábricas a imensa maioria dos trabalhadores era
formada por homens. Isso é muito interessante. Se você analisar a
estrutura dos sindicatos tradicionais, a liderança é toda masculina. Ao
contrário, boa parte das lideranças comunitárias é ocupada por mulheres.
Essa discrepância de gêneros tem sido uma barreira muito grande para a
organização anticapitalista.
DIPLOMATIQUE– James Carville e Stan Greenberg, no livro It’s the middle class, stupid!,
sustentam que, hoje, um tema só adquire potencial revolucionário quando
ganha a paixão e a revolta da classe média. Qual é sua opinião sobre
isso?
HARVEY – Nos Estados Unidos há uma tendência em dizer
que a grande maioria do país é de classe média – mas na verdade é classe
trabalhadora. Acho que existe de fato uma classe média significativa –
formada por advogados, juízes, diretores de corporações e outros
profissionais desse tipo –, mas muito menor do que se imagina. Em
pesquisas de autoidentificação, cerca de 60% a 70% dos norte-americanos
se colocam como parte da classe média. No entanto, se você faz a
pergunta de outra forma, com enunciados mais sofisticados, a mesma
proporção se considera classe trabalhadora. Eles trabalham, têm
determinadas condições no emprego, um chefe que decide coisas, gastam xhoras por dia trabalhando etc.
DIPLOMATIQUE– O Le Monde Diplomatique Brasil,
em janeiro, comparou os movimentos Tea Party e Ocupar Wall Street. O
primeiro conseguiu eleger representantes no Congresso, enquanto o Ocupar
não tinha esse propósito. Você acha que movimentos como esses deveriam
tentar a via política tradicional?
HARVEY – Em primeiro lugar, é muito importante ressaltar que o Tea
Party recebeu financiamento alto de bancos, grandes corporações etc. Já o
Ocupar não teve nenhum apoio parecido. É verdade que o objetivo do
Ocupar não era lutar pelo poder político – nem mesmo influenciá-lo. Mas
aí é que está: influenciou. Eles ocuparam um papel muito importante na
reeleição de Obama porque mudaram a pauta. Antes dos movimentos Ocupar,
ninguém nos Estados Unidos estava falando sobre igualdade social. Quando
eles vieram com o argumento do 1% versus99%, trouxeram a discussão sobre desigualdade – e também a necessidade de um presidente que falasse sobre isso.
DIPLOMATIQUE– Mas eles deveriam tentar espaço no Congresso?
HARVEY – Acho que não, na verdade.
DIPLOMATIQUE– Deveriam reivindicar algo específico?
HARVEY – Eles fazem pedidos: queremos democracia real, igualdade social, diminuir o gap
entre os 99% e o 1%... É interessante observar que o poder político não
reagiu com violência da polícia ou do Exército contra o Tea Party, mas
sim contra o Ocupar. Todos em Wall Street sabem que fazem coisas ilegais
todos os dias e que deveriam estar na cadeia. Eles sabem disso! Por
isso ficaram aterrorizados, principalmente se Obama se elegesse e
houvesse um movimento popular como na Islândia, em que os banqueiros
foram todos presos. Então veio o Furacão Sandy, e a maioria das pessoas
no Ocupar se organizou num processo de comunicação muito eficiente,
levando comida, produtos de primeira necessidade etc. Aí o Ocupar
começou a ganhar atenção positiva da imprensa, elogios do New York Times
e, como dizem muitos amigos meus que estavam envolvidos, a política
desapareceu. Tudo virou um caso humanitário, mas que tinha por trás um
novo processo de organização de extrema importância política.
DIPLOMATIQUE– Em 2001, na Argentina, ocorreu algo
similar, com o “corralito”. Todos foram para as ruas, ocuparam a Praça
de Maio, se organizaram de forma diferente. Mas logo tudo passou e os
partidos políticos seguem iguais. Por quê? Vai ser sempre assim?
HARVEY – Nos últimos quinze anos, os movimentos
sociais têm sofrido de muita volatilidade. Os movimentos de massa, que
envolvem milhões de pessoas, emergem com rapidez impressionante. Um
grande exemplo é o de fevereiro de 2003, o protesto global contra a
possibilidade de guerra no Iraque. Maravilhoso! Milhões de pessoas no
mundo todo! E então desapareceu. Se esses milhões de pessoas de repente
decidissem ficar nas ruas, o que aconteceria? Vemos muito esse tipo de
política hoje, que é muito volátil.
DIPLOMATIQUE– Também vemos muito hoje o conceito da horizontalidade: milhares ou milhões de pessoas sem líder. Em Rebel cities, você levanta o problema da “fetichização da horizontalidade”.
HARVEY– Esse é um problema real. Muitas pessoas
envolvidas são simpatizantes da ideia de que mais democracia significa
menos lideranças. Mas o próprio exemplo do Ocupar-Sandy mostra que a
centralização foi necessária para fazer as coisas que precisavam ser
feitas. Organizações políticas precisam da combinação entre
horizontalidade e algum conceito de verticalidade. Se você fetichiza a
horizontalidade e a autonomia, acaba colocando a si mesmo em uma caixa
fechada, sem poder nenhum. Um exemplo ao contrário são os zapatistas,
uma organização militar que obviamente não era horizontal, tinha uma
estrutura de controle. Parece mais simples usar o modelo de assembleias
para tudo, mas não é. Algum senso de controle é necessário.
André Deak
Pós-Jornalista, professor, mestre em Teoria da Comunicação pela
Universidade de São Paulo e cofundador da Casa da Cultura Digital
Lucas Pretti
Pós-jornalista, ator, produtor cultural e idealizador do Festival BaixoCentro.
Ilustração: Manohead
|