pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sábado, 22 de julho de 2017

Pós-verdade e política

                                 
Charles Feitosa

Pós-verdade e política
Arte Andreia Freire / Revista CULT
                     

Onde não há fatos, nada é verdade – O que Trump tem a ver com Nietzsche, Foucault ou Derrida? A resposta para o título desse texto é simples e cristalina como água que jorra da fonte: nada, mas nada mesmo. Mesmo assim ocorre no noticiário político e na internet volta e meia a associação, completamente indevida por sinal, entre as estratégias midiáticas de desinformação de Trump e os esforços de desconstrução das grandes narrativas da verdade pelos filósofos ditos “pós-modernos”.
Por exemplo, a famosa afirmação de Nietzsche, em um fragmento de 1887, de que “não existem fatos, apenas interpretações”, costuma ser escutada na filosofia como um alerta crítico de que a verdade não é única, nem definitiva, nem imutável, mas precisa ser continuamente discutida e tematizada. No contexto político atual a frase está sendo relida, ao contrário, como se fosse a legitimação para os estados de “tanto faz” ou de “liberou geral” reinantes, pois onde não há fatos, nada é verdade.
Um sinal sutil dessa tendência é o uso da palavra “pós-verdade” como se fosse o ponto de interseção entre política e filosofia na contemporaneidade. O termo “pós-verdade” é conhecido pelo menos desde os anos 90, mas se tornou especialmente popular em 2016, tendo sido escolhida a palavra do ano pela equipe do Oxford Dictionaries.
A pós-verdade costuma ser definida brevemente como uma estratégia de desvalorização dos fatos em prol de interesses pessoais. Também chamada de fake news (notícias falsas), várias amostras da pós-verdade na política costumam ser citadas, tais como as estatísticas fictícias divulgadas na campanha do Brexit em 2016 sobre os altíssimos custos para permanecer na comunidade europeia ou os rumores conspiratórios sobre a origem muçulmana extremista do ex-presidente dos EUA, Barack Obama.
No Brasil, são também inúmeros e infindáveis os exemplos: os boatos em torno de uma suposta encenação da morte de Marisa Letícia, esposa do ex-presidente Lula ou mais recentemente, a afirmação do atual prefeito de São Paulo de que os manifestantes da greve geral de 28.04.17 estariam recebendo dinheiro para irem às ruas.
Mas o grande garoto-propaganda da pós-verdade continua sendo Donald Trump. Em episódio emblemático, seus assessores, ao serem questionados sobre o número exato de pessoas que assistiram a posse presidencial em janeiro de 2017, alegaram que não estavam mentindo quando insistiam, a despeito de indícios contrários, que tinha mais gente na posse de Trump do que na de Obama em 2009, mas sim apenas apresentando “fatos alternativos”.
Onde não há fatos, não existe verdade única – Por que chamar essas formas midiáticas de manipulação de textos ou imagens como pós-verdade? A escolha do termo não é neutra, trata-se de uma interpretação que é ao mesmo tempo uma acusação. Tudo se passa como se a “pós-verdade” fosse a verdade típica dos tempos “pós-modernos”.
A própria expressão “pós-moderno” tornou-se muito frequente nos últimos trinta anos, tanto na imprensa, como na vida cotidiana. Falou-se muito e indistintamente de sociedade pós-moderna, de amor pós-moderno ou ainda de doenças pós-modernas. Trata-se de um conceito guarda-chuva, cujo uso inflacionário oculta a falta de clareza acerca de seu significado.
Etimologicamente o prefixo “pós” indica uma determinada fase histórica: não vivemos mais na modernidade, mas sim “depois”. Entretanto, o significado desse “depois” ainda é estritamente ambíguo e polêmico, podendo indicar tanto um “extra-“, um “anti-”, ou ainda como um “ultra-moderno”.  É preciso, antes de tudo, ter o cuidado de distinguir uma condição “pós-moderna” de um pensamento pós-moderno. Por condição pós-moderna entende-se, quer a celebremos ou a lamentemos, nossa situação histórica de viver e morrer na virada do século 20 ao 21.
Por pensamento pós-moderno, entretanto, entenda-se estritamente uma estratégia específica de lidar com essa condição, consolidada com a publicação em 1979 do livro La condition postmoderne de autoria do filósofo francês Jean-François Lyotard (1924-1998). Para Lyotard, o projeto dos modernos de liberar a humanidade da ignorância e da miséria produziu, ao contrário, sociedades que permitem o imperialismo, a guerra, o desemprego, a tirania da mídia e o desrespeito à vida humana em geral.
Contra a lógica da razão e do mercado seria preciso inventar outras lógicas, norteadas pelo reconhecimento do dissenso (a irredutível diversidade dos jogos de linguagem nas culturas) e por uma revalorização da dimensão estética. Em um tempo em que não é possível mais um discurso único e definitivo sobre o que é bom, justo ou verdadeiro, Lyotard propõe a emergência do pensamento pós-moderno, cuja característica fundamental é a afirmação das diferenças e do pluralismo.
Dentro desse contexto seria muito mais pertinente reconquistar o sentido mais original e positivo do termo “pós-verdade”, enquanto um esforço anti-dogmático de promover a pluralização e diversificação dos saberes. Então aqui cabem as seguintes perguntas: Isso a que se hoje se nomeia “pós-verdade”, não seria apenas uma nova fachada para um fenômeno bem antigo, a saber, a mentira na política? Não foi sempre assim, na história dos gestores políticos, manipular informações para se manter no poder? Ou será que há alguma diferença fundamental entre as mentiras tradicionais dos homens de estado e a onda contemporânea de desvalorização da verdade?
De fato, já desde Platão sabemos que a mentira não é apenas um incidente ocasional na vida política, mas é ela mesma um dos recursos disponíveis aos governantes na difícil e inglória tarefa da administração das cidades. Na descrição da sua utopia, a despeito do compromisso de cada cidadão de sempre buscar e defender a verdade, Platão argumentava que seus dirigentes, somente eles, teriam a permissão de mentir, pois a mentira, se usada adequadamente, pode contribuir para a realização do bem-estar comum.
Onde não há fatos, tudo é verdade – Desde então a ideia da mentira na política como um remédio amargo, mas necessário, se consolidou no nosso imaginário. Há exatamente 50 anos atrás, em 25 de fevereiro de 1967 na The New Yorker, a genial filósofa judia de origem alemã Hannah Arendt publicou um texto paradigmático sobre o tema, intitulado Verdade e Política (em relação ao qual o título do meu presente texto faz referência e reverência).
Arendt começa chamando de “lugar comum” a crença na incompatibilidade insuperável entre verdade e política, mas ao mesmo tempo ela extrai desse lugar comum uma pergunta incômoda,  que nos obriga a pensar: Será da própria essência da verdade ser impotente e da própria essência do poder enganar? A resposta de Arendt é complexa, pois se de um lado ela defende uma certa potência inerente à verdade de incomodar e questionar as tiranias, por outro lado ela também admite um certo uso tirânico das verdades absolutas, pois geralmente é em nome delas que se instalam discursos e práticas totalitárias.
Mas o mais importante é que Arendt defende que a natureza da verdade é essencialmente política, ou seja, “é sempre relativa a várias pessoas: ela diz respeito a acontecimentos e circunstâncias nos quais muitos estiveram implicados; é estabelecida por testemunhas e repousa em testemunhos; existe apenas na medida em que se fala dela, mesmo que se passe em privado”. Se a verdade é essencialmente política ela pode ser ameaçada pelas mentiras estratégicas dos poderosos e precisa continuamente ser defendida e conquistada com o máximo de questionamentos e debates públicos.
O que mais me interessa no texto de Arendt é sua tese de que, mesmo reconhecendo uma tensão estrutural entre verdade e política, existe uma mudança no modo clássico e contemporâneo do uso da mentira na disputa pelo poder.  A mentira clássica era dirigida estrategicamente para este ou aquele grupo de inimigos e por isso poderia ser facilmente detectada pelos historiadores como uma espécie de buraco ou de falha na rede dos acontecimentos.
O problema é que segundo Arendt a contemporaneidade é marcada por uma forma de “mentira organizada”, uma aliança entre os meios de comunicação e os regimes totalitários, onde toda a matriz da realidade pode ser falsificada através das estratégias midiáticas de manipulação em massa. O resultado não é mais apenas a substituição da verdade pela mentira, mas a paulatina destruição na crença em qualquer sentido que nos oriente pelo mundo. Em outras palavras, a mentira organizada contemporânea conduz a um cinismo niilista, uma recusa em acreditar na verdade de qualquer coisa. A descrença é a desistência da tarefa de fazer qualquer avaliação. Algo parecido acontece quando, no Brasil de hoje, se diz que todos os políticos são corruptos, como se não houvessem aí distinções mais finas ainda a serem feitas.
Onde não há fatos, há verdades em demasia – Talvez não possamos mais chamar de mentira essa versão sistêmica e explícita, onde todos estão sendo enganados ao mesmo tempo. Mas ao meu ver, “pós-verdade” também não é o nome mais adequado. Talvez o mais correto seria falar de hiper ou ultra-verdade, pois vivemos em uma época em que todos se sentem no direito de dizer qualquer coisa, seja nos discursos políticos ou nas redes sociais, embasados em dados fictícios ou não, mas garantidos pela crença tácita de que “tudo vale” e pela recepção acrítica da maioria dos tele-expectadores e internautas.
Quando há verdades em demasia o perigo não é mais apenas, como diz Arendt, a descrença generalizada na realidade, mas a sua contrapartida, a revalorização reativa, nostálgica e muitas vezes enceguecida dos fatos, como se eles existissem em algum lugar objetiva e efetivamente e pudessem funcionar como uma pedra de toque nas nossas falas.
Um sintoma dessa súbita revalorização dos fatos em si é a prática cada vez mais difundida de facts checking dos discursos políticos na internet. Embora seja muito saudável desvelar as falsas estatísticas citadas pelo MBL ou por Trump, é sempre bom lembrar aquela frase do Nietzsche citada do início desse texto, para não cair na armadilha inversa de achar que alguém tem o poder definitivo e inquestionável de dizer o que são os fatos.
Existem divergências de interpretações até mesmo entre os diferentes fact-checkers. Não podemos nunca deixar de nos perguntar criticamente quem são e como o fazem, estes que assumiram para si a tarefa de controlar a veracidade dos discursos dos outros. Avaliar continuamente não só os discursos, mas também os avaliadores e os próprios instrumentos de avaliação, é a tarefa política constante daqueles que ainda tem respeito pela liberdade e pelo pensamento. Isso inclui também o exercício da autoavaliação, pois a pós-verdade, entendida aqui não como a “não-verdade”, mas como a “verdade pluralizada e sob constante tematização”, exige sempre e de cada vez mais e melhores interpretações. Em suma, abaixo Trump e viva Nietzsche!
Charles Feitosa é Doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg i.B./Alemanha; professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Editorial: Coelho sai, não sai.




O clima esquentou em Brasília, numa disputa envolvendo o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia(DEM), e o Presidente da República, Michel Temer(PMDB). Em jogo está uma dezena de deputados socialistas insatisfeitos com a legenda, dispostos a mudarem de agremiação partidária, consoante algumas benesses oferecidas. O clima ficou tão pesado que jantares de cortesia foram oferecidos pelo Planalto, com direito às visitas sem protocolos e às conversas de pé-de-ouvido, sem as formalidades daquelas agendas enfadonhas. Michel Temer tem jogado todas as suas fichas no sentido de preservar seu mandato até o final de 2018. Age em várias frentes e percebeu nessa insatisfação dos socialistas uma excelente oportunidade de fortalecer o seu PMDB, assegurando que esses deputados continuem fiéis ao seu Governo, votando pelo veto da Câmara dos Deputados ao pedido de investigação, formulado pela Procuradoria-Geral da República, para que o STF analise as acusações que pesam contra ele. 

O curioso nesse cenário é o caso do Senador Fernando Bezerra Coelho, do PSB de Pernambuco, sobre o qual o assédio pareceu mais evidente. O filho do senador, Fernando Filho, é Ministro das Minas e Energias. Sua indicação ao cargo, em certo sentido, pode ser entendida como uma manobra mais do senador do que propriamente como uma indicação do partido. As disputas entre o grupo político do PSB local é uma luta bastante renhida. Isso desde os tempos em que o ex-governador Eduardo Campos ainda era vivo e mantinha sob rédias curtas seus comandados do chamado quadro político. Como afirmamos num dos artigos anteriores, trata-se de um grupo cujas pretensões políticas estão sendo represadas ao longo dos anos, gerando, naturalmente, muitas críticas. Definitivamente, não se pode afirmar que esse núcleo dos Coelhos esteja afinados com o Palácio do Campo das Princesas. Além de abrirem um diálogo com os peemedebistas, conversam com os Democratas e, ainda não fosse suficiente, ficamos sabendo que o senador abriu espaço na agenda para receber o mair adversário do projeto de reeleição do governador Paulo Câmara no Estado, o senador Armando Monteiro(PTB).

Até essa contra-ofensiva dos peemedebistas, notadamente o presidente Michel Temer, o diálogo entre socialistas e Democratas parecia bastante azeitado. Há entre eles, inclusive, um projeto de fundir as duas legendas, criando-se, quem sabe, uma nova agremiação. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, vem se empenhando pessoalmente nesse projeto, o que se coadunaria com possíveis aspirações políticas do mesmo. Os movimentos desse ator político preocupa não apenas o presidente Michel Temer -  que nos parece hoje muito mais preocupado em salvar a sua pele - mas raposas políticas felpudas de outras agremiações, que observam nessa desenvoltura o interesse em ocupar a cadeira de Presidente da República não apenas para um mandato tampão, mas com o objetivo de nela permanecer por mais tempo. Este fato, inclusive, tem dificultado bastante as negociações políticas na capital federal em torno da costura de um consenso em torno de um possível governo pós-Temer. 

Por outro lado, aqui na província, a costura de um arranjo político que possa contemporizar os interesses dessa ala dos Coelhos também não é assim tão simples. Um dos grandes projetos do senador Fernando Bezerra Coelho é entrar na disputa pelo Palácio do Campo das Princesas. Possui uma barganha importante na disputa pelo Governo do Estado, como a influência da família sobre uma região estratégica em qualquer disputa majoritária, como a região do Sertão do São Francisco. Vale ainda aqui o registro de que essa ala dos Coelhos, através de Miguel Coelho, filho de FBC, reconquistou a Prefeitura de Petrolina, um importante colégio eleitoral do Estado. Estranha, entretanto, esses acenos do senhor Michel Temer para os Coelhos - dizem até aventando oferecer a legenda para uma disputa majoritária - sem antes conversar com o morubixaba do partido no Estado, o Deputado Federal Jarbas Vasconcelos, fechadíssimo com o projeto de reeleição do governador Paulo Câmara(PB). Como se sabe, o PMDB não é bem um partido, mas um conjunto de feudos controlados por caciques em cada Estado.  

Charge!Hubert via Folha de São Paulo

Hubert

Charge! Benett via Folha de São Paulo

Benett

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Em colóquio, Vargas Lhosa fala sobre rompimento com Gabriel García Márquez

Em colóquio, Vargas Llosa fala sobre rompimento com Gabriel García Márquez


Em colóquio, Vargas Llosa fala sobre rompimento com Gabriel García Márquez
García Márquez após briga Vargas Llosa, em 1976 (Foto Rodrigo Moya)


Era 12 de fevereiro de 1976, Cidade do México. Dois importantes nomes da literatura latino-americana, o colombiano Gabriel García Márquez e o peruano Mario Vargas Llosa, assistiam juntos a uma sessão privada de cinema. A convivência de nove anos, entretanto, acabou naquela noite, após Llosa dar um soco no olho esquerdo de Gabo.
Iniciada em 1967 na Venezuela, a amizade nunca foi reatada depois do episódio – e os dois não voltaram a se falar até a morte de Gabo, em 2014. Na última quinta (6), após um longo silêncio sobre o assunto, Llosa atribuiu motivações políticas ao rompimento durante um colóquio em comemoração aos cinquenta anos de Cem anos de solidão, na Universidade Complutense de Madrid, na Espanha.
Em diálogo com o ensaísta colombiano Carlos Ganés, o peruano disse que considera a esquerda muito dura com escritores que não aderem ao seu pensamento – e Gabo, em sua opinião, teria apoiado o regime de Fidel Castro em Cuba apenas para não se indispor com a própria esquerda.
“[Gabriel García Márquez] tinha um sentido prático da vida e sabia que era melhor estar com Cuba do que contra Cuba. Assim, se livrou do banho de sujeira que caiu sobre aqueles que eram críticos à evolução da revolução, mais socialista e liberal, para o comunismo”, afirmou o escritor.
Diante da insistência do mediador para que falasse mais sobre o assunto, disse que não tinha mais comentários a fazer e sugeriu que a conversa fosse encerrada.
A hipótese de que ambos haviam rompido devido a discordâncias políticas já era cogitada pelo fotógrafo mexicano Rodrigo Moya, que registrou o olho roxo de Gabo dois dias depois do incidente, em 1976. Segundo ele, na ocasião o colombiano teria dito que Llosa “se somava a ritmo acelerado ao pensamento de direita”.
Biógrafo de Márquez, o jornalista britânico Gerald Martin tem outra opinião. No livro Gabriel García Márquez: uma vida (2010), sustenta que a agressão teve relação a problemas familiares, já que na época ambos moravam em Paris, com suas famílias, e Márquez costumava mediar eventuais conflitos conjugais entre o peruano e sua mulher.
Algo que Gabo teria dito a Patricia, mulher de Llosa, poderia ser o motivo do rompimento, de acordo com Martin. “Isso é pelo que você disse a Patricia” ou “isso é pelo que você fez a Patricia”, são as palavras que Llosa teria dito no momento da agressão.
Durante o colóquio, Vargas Llosa também relembrou as cartas trocadas com Gabo na década de 1960, seu deslumbramento quando leu a narrativa de Macondo, as leituras compartilhadas, os escritores de que gostavam e os encontros e desencontros que tiveram ao longo dos anos de amizade.
“García Márquez não foi um intelectual. Não tinha condições de explicar o enorme talento que tinha na hora de escrever, funcionava mais por instinto, palpite. Dava a impressão que não era consciente das coisas mágicas que fazia, era mais um artista, um poeta”, disse.
Llosa obteve seu doutorado na Universidade Complutense de Madrid com a tese García Márquez: história de um deicídio, uma análise biográfica de 667 páginas de toda a produção literária do autor colombiano até Cem anos de solidão.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Le Monde: Antonio Cândido e a era da incerteza

 
Vale lembrar que, junto à sutileza, Antonio Candido prezava também pela clareza da escrita, em consonância com suas convicções políticas e com o papel que a crítica, segundo acreditava, deveria assumir no esforço de transformação social
por: Fábio Salem Daie
13 de julho de 2017
Crédito da Imagem: Marcelo Noah

Crédito: Marcelo Noah


No dia 12 de maio faleceu Antonio Candido de Mello e Souza. Muito se disse que, com sua morte, deu-se o fim de uma era. A frase é duvidosa. Preferível seria dizer que ele era o último expoente (sobrevivente?) de uma época fundacional e riquíssima, que como tal se exauriu e, como tal, permanece. Era o último modernista – entre os grandes que este país teve –, fosse pelo tipo de educação, pela amplitude e qualidade dos conhecimentos, pelo viés humanista das intervenções, pela perspectiva do seu trabalho como crítico.
Recebi a notícia do falecimento numa manhã pouco primaveril (embora fosse primavera lá fora), na pequena cidade americana de Princeton, onde termino a pesquisa de doutorado. Saíra do Brasil em setembro de 2016, no dia do impeachment de Dilma Rousseff; regressaria – tristes périplos – pouco depois da morte de Antonio Candido. Entre os dois acontecimentos, o Brasil reencontraria seu legado colonial, lutando outra vez contra o despotismo e o conservadorismo de suas elites, ansiosas por uma “ponte para o futuro” sobre a qual não passará (aprovadas as emendas constitucionais e as reformas propostas) a maioria da população. Não bastasse, enquanto escrevo estas linhas, o presidente-interino Michel Temer é aparentemente flagrado em embustes envolvendo seu próprio partido e a base aliada. Nova crise se instala dentro da crise.
Por alguma ironia do destino, semanas antes eu expressara a um amigo (também pesquisador-visitante nos Estados Unidos) minha preocupação com o professor. Na verdade, não possuía motivos claros. Lendo a Formação ou O Discurso e a Cidade, apenas recordava que ele completaria 99 anos em breve, no dia 24 de julho, e tentava imaginar o que pensaria destes acontecimentos recentes. Foi nesse contexto que a notícia de seu falecimento me chegou, numa espécie de misto entre frustração pessoal e – o que muitos devem ter sentido – sensação de perda de um país, envolto numa névoa de dúvida e insegurança.
Entre os depoimentos e análises que então começaram a surgir, uma parte se referia à sua obra e à sua pessoa na chave do “fim de uma era” (talvez porque ele mesmo tenha se definido, mais de uma vez, como um “homem do passado”) ou caía no poço das implicações inócuas, porque “formalistas”, o que se desvincula de maneira flagrante do nervo político que sempre animou seu pensamento. Mas eu pensava então / Na solidão dos que pereciam / E em Giordano / Que ao subir para o estrado / Não encontrou na língua humana / Nem uma palavra que fosse / Com que se despedir da humanidade / Desta mesma que perdura. Certamente, nada mais impróprio do que pensar a vida de Antonio Candido nos mesmos termos em que o polonês Czeslaw Milosz pensou a de Giordano Bruno. Das lições que Candido legou, o momento sugere um diálogo importante com algumas delas. Abaixo, sem dúvida de forma lacunar e insuficiente, está um esboço no sentido do que poderia trazer uma aposta neste diálogo.
As estripulias de uma elite “ilustrada”
No ensaio “Os sete fôlegos de um livro”, Roberto Schwarz aponta com argúcia uma das lições sobressalentes a serem tiradas do clássico de Candido, Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1959). Escrita – tal como outros livros fundadores da chamada “tradição crítica” – no período de nacional-desenvolvimentismo em que “a sociedade brasileira lutava para se completar no plano econômico e social”, a Formação conteria, entretanto, uma interpretação mais austera (“menos triunfalista, ou mais cética”, diz Schwarz) do que seus equivalentes nas ciências humanas. A razão para isso estaria, sobretudo, na natureza de autonomia relativa de seu objeto de estudo, a literatura, cuja organicidade, à diferença da sociedade brasileira, teria sido lograda de fato ainda no século 19, na fase realista de Machado de Assis, alcançando no século 20 grande desenvoltura no número e qualidade de obras.
Como Candido sempre notou, a literatura brasileira (pese seu processo de “rotineirização” do gosto literário) é uma literatura de elites, o que não a impediu, sobretudo depois do Modernismo da década de 1920, de cumprir – bem como a própria elite brasileira em momentos específicos – um papel progressista na renovação de valores e na incorporação de parcelas desprivilegiadas da população (o romance regionalista, que trata das vidas humildes do campo, por exemplo). A ênfase de Schwarz recai no próprio movimento de formação do sistema literário a despeito da <má formação> de nosso tecido social. Formado o sistema literário, e sendo este uma força “civilizadora”, nem por isso teria resgatado o país de suas iniquidades históricas. “O sistema literário integrado – pergunta Schwarz – funcionaria como uma antecipação de integrações futuras? Não demonstrava também que as elites podiam ir longe, sem necessidade de se fazerem acompanhar pelo restante do país?”.
A nota de austeridade e ceticismo que Schwarz saca da consecução de uma obra como a Formação, de Candido, ressoa atualíssima neste momento de reconversão conservadora operada por representantes políticos com legitimidade duvidosa, após um processo (como chamou, creio, Marcos Nobre) de “compressão a frio” de nossa democracia. Se nos valermos de outro importante interlocutor de Candido, o uruguaio Ángel Rama, para quem o sistema literário brasileiro teria se formado antes que a literatura hispano-americana, de maneira geral, alcançasse a maturidade, talvez fique ainda a sugestão de que nossas elites muito cedo puderam se “desgarrar” do corpo social, impondo um tipo especial de hegemonia apesar das cisões em seu interior.
Em ambos os casos, a Formação da Literatura Brasileira deixa uma pergunta: haverá ainda, como houve no passado, um papel progressista a ser assumido por uma elite liberal “ilustrada” diante dos impasses atuais? Não dependerá a reinvenção das esquerdas – campo político ao qual Antonio Candido sempre esteve ligado – desta mesma resposta, tendo em vista a experiência do Partido dos Trabalhadores?

Recado da malandragem
Este processo de gigantismo invertido contido no cerne da Formação – onde o topo da pirâmide social acumula as benesses (materiais e culturais) da modernização do país, destacando-se do corpo social – Schwarz nomeia “descrição do progresso à brasileira”. Vale notar que tal “descrição”, em Candido, tem outro capítulo importante no famoso ensaio “Dialética da Malandragem” (1971), sobre as Memórias de um Sargento de Milícias (1854). Sumariamente, neste ensaio Candido buscou reconhecer na forma do romance de Manuel Antônio de Almeida um movimento cuja razão, através de um processo de interiorização estética, estaria na estrutura da sociedade do Rio de Janeiro oitocentista, mais especificamente na relação (explicitada pelo próprio crítico) que a incipiente classe média urbana mantinha com os dois principais polos sociais da época: senhores e escravos. Segundo Candido, seria esta qualidade da modernidade periférica – realidade capitalista ainda pouco desenvolvida nos termos da divisão social do trabalho urbano – o contexto no qual o herói, Leonardo Pataca, transitaria malandramente entre os campos da “ordem” e da “desordem”, e onde estaria cifrada uma relação à brasileira com o universo da norma e da lei.
Este <à brasileira>, em que Candido parece ver uma relação particular do país com o modelo de Estado-nação legado pelo ocidente, sugere uma das marcas de seu modernismo (aquele inaugural, de Mario e Oswald), depois problematizado pelo próprio Schwarz em <Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’>. Mantendo um contato exterior com “a presença constritora da lei, religiosa e civil” que nos países anglo-saxões “plasmou os grupos e os indivíduos” – qualidade que recobraria nossas raízes ibéricas até, pelo menos, a Contra-Reforma –, teríamos não apenas herdado (para o bem e para o mal, diga-se de passagem) algo do “mundo sem culpa”, “acomodatício” e “isento de males definitivos” do herói das Milícias, mas também uma inserção diversa “num mundo [futuro] eventualmente mais aberto”.
Se é verdade que a conjuntura atual, por um lado, parece desautorizar este tipo de assertiva, reputando-a “otimista” frente ao amesquinhamento das perspectivas pelo desmonte do Estado (ou mesmo “anacrônica”, tomado o abandono pós-ditadura do projeto nacional-desenvolvimentista); por outro, a perspectiva popular que advém do universo do malandro, em termos ideológicos, também manteria uma relação truncada com o presente. Ao escapar dos projetos elitistas da direita, recusa à sua maneira aqueles de uma esquerda dita “tradicional”, que a partir da década de 1930 (e, sobretudo, na década de 1960) flertou com a revolução social como a via para a superação do subdesenvolvimento. Esta <independência ideológica> do malandro deveria, supostamente, subscrever sua permanência.
Contudo, uma vez que o “progresso” na acepção liberal e a “revolução” de viés marxista, ao que tudo indica, se veem fora da ordem do dia, a malandragem (por razões que não cabem aqui, mas que teriam a ver, entre outras coisas, com a débâcle do “mundo do trabalho”) tampouco teria escapado da razia neoconservadora. Sua negação seletiva do âmbito da ordem e da lei – no que este possui de expressão dos privilégios de nossas elites – e em conformidade com uma perspectiva popular é motivo de debate: teria o malandro sido substituído pela figura do marginal, supostamente mais “em dia” com as contradições atuais da ordem burguesa?
É de se pensar, por isso, se o <crepúsculo da malandragem> não seria uma perspectiva mais reveladora para o futuro do que a ruína dos horizontes ligados ao liberalismo progressista e à esquerda revolucionária. A <morte do malandro>, se de fato ocorre, indicaria a perda de uma antiga força, não de (como defendem alguns) escamoteação dos conflitos brutais no âmago da sociedade brasileira, mas de resistência dos “de baixo” à completa integração na ordem capitalista. De qualquer maneira, é ao ensaio de Candido que devemos não apenas a delimitação desta problemática, senão também a demonstração (que inverte expectativas) de como a literatura pode revelar um conhecimento original sobre a realidade.

Raça, classe e história
Parece justo afirmar que Antonio Candido não pensava a literatura em termos raciais: uma literatura que fosse “negra” ou “branca”. O tema talvez seja tabu e demande mais elaboração do que permitem estas poucas linhas. A razão de não encará-la em termos raciais, gostaríamos de sugerir, residiria em questões de metodologia. É difícil afirmar que o crítico não tratou de uma “literatura negra” porque ignorasse a condição de opressão e as pautas políticas de primeira ordem das “minorias”; tampouco porque considerasse que a opressão racial não desempenha papel relevante nas obras de um escritor como, digamos, Machado de Assis ou Lima Barreto (para ficarmos apenas com os mais conhecidos). Ao contrário, como observador atento às expressões locais dos conflitos sociais, seu método crítico tendia a privilegiar tais conflitos em sua configuração concreta. Em outras palavras, para ele, seria difícil conceber um romance que fosse “apenas” negro (um negro universal, sem época e lugar), visto que toda questão racial está irremediavelmente trespassada pelas estruturas políticas e econômicas de cada período.
Em “De cortiço a cortiço” (1973), outro de seus ensaios fundamentais, o crítico tenta demonstrar – dessa vez lançando mão de um dito popular calunioso – como o romance de Aluísio Azevedo, O Cortiço (1890), está escorado em traços particulares assumidos pela luta de classes no Rio de Janeiro do século 19 e que ocorria às costas dos conflitos raciais e do aparato de noções pseudocientíficas que buscavam justificá-los. Indo um pouco além, acabava por demonstrar, na verdade, como os conflitos de raça e classe se uniam em condições muito brasileiras, como, por exemplo, a forte presença (menos marcante no resto da América hispânica) de “galegos/portugueses” na capital fluminense.
Trocando em miúdos, é dizer que as noções de raça e racismo estão atadas aos destinos de um país e, portanto, também à sua dinâmica interna de classe. Esta conjunção dará o tom de como o indivíduo experimenta, entre outras coisas, sua própria “cor de pele”: experiência que por fim será plasmada, junto às construções da própria língua, nas páginas de uma obra. Note-se que tal perspectiva não apenas visa resgatar o <problema do racismo> de sua generalização – o que equivaleria a rifá-lo por completo (“sempre existiu racismo”; “todos os racismos são iguais” etc.) –, reconectando-o assim a um historicismo rigoroso; como também aconselha a que não se desarticule as noções de “raça” e “classe” sob pena de recair-se em essencialismos e, assim, num divisionismo perigoso: tanto para as “minorias” quanto para a esquerda que possui, numa sociedade mais igualitária, o horizonte de aproximação e reconciliação social.

A “outra” formação
Recentemente, muito se falou esta palavra – formação –, quase sempre se referindo a um dos temas clássicos das ciências humanas no Brasil, presente no título daquela que é considerada a obra maior de Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira. No livro, abrangendo Arcadismo e Romantismo, entre 1750 e 1870, o autor historia a constituição de nossa literatura segundo seus nexos internos, inovando na concepção geral e aprofundando as análises particulares de autores e obras. Há, porém, outra acepção para a palavra formação no pensamento de Candido, e esta aparece com clareza em duas intervenções intituladas “A literatura e a formação do homem” (1972) e “O direito à literatura” (1989). A segunda é uma reelaboração crítica da primeira: o debate, em 1970, com os estruturalistas (sobre a qualidade do nexo social da arte) e com a censura da ditadura (uma verdadeira apologia ao “perigo” da integralidade da vida transmitida pela literatura), por exemplo, cede espaço (no texto de 1989) à relação entre literatura e Direitos Humanos, em chave progressista que, se ecoa os ventos da redemocratização, também se “atualiza” no espírito de transição acordada e gradual. Mas ambas exploram o valor insubstituível da arte na formação do ser humano, sem o que qualquer processo educacional estaria incompleto.
Estão conjugadas – neste apelo à literatura para a formação do sujeito – duas noções fundamentais. A primeira seria a de processo, que recusa, em chave lukácsiana, o niilismo decorrente de uma visão imediatista, encobridora das causas da desumanização cotidiana (o que subscreve a esperança sem cair em otimismo barato); e a de igualdade encarada a partir das “coisas do espírito”, que milita por justiça social ao mesmo tempo em que redimensiona a sua concepção, indo além das exigências puramente materiais. Se a formação do sistema literário, segundo Candido, se completou, esta “outra” formação (que fala ao sujeito) problematiza aquela: um sistema literário pujante não pode sobreviver sem o estímulo de um público leitor.

A invenção de um caminho
Impossível não tratar da forma de seus textos, fator que condensa todos os tópicos anteriores. Abordando o assunto, em “Adequação nacional e originalidade crítica”, Schwarz diz: “Ora, se houve um progresso em crítica neste século, ele com certeza esteve na ‘descoberta’ (…) da incrível complexidade interna da literatura, da natureza protéica da forma, e, sobretudo, do papel decisivo desta última”. Eis aqui, de fato, um dos legados maiores de Antonio Candido, cuja contribuição abrange desde uma interpretação do país (como exposto em “Dialética da Malandragem”) até (e muitas vezes se esquece) a delimitação de um campo de pesquisa e atuação específico da crítica literária. Se mesclamos neste ponto literatura e crítica é porque, para Candido, a <descoberta da forma> literária é também a descoberta da própria forma de exposição crítica, exposição esta desenvolvida, sobretudo, em seus ensaios.
Principalmente a partir da década de 1950 – alerta à vulgarização da crítica marxista de ranço “positivista” ou “sociologizante”, por um lado; bem como às interpretações de cariz mais ou menos “formalistas”, por outro –, Antonio Candido desenvolveu um estilo de escrita sutil, que atentava tanto ao diálogo que as obras mantêm entre si quanto à sua relação com a realidade social (o que ele chamou de “filiação de textos” e “fidelidade a contextos”). Esta providência do crítico assinala sua recusa a todo dogmatismo, atento como esteve sempre à “aclimatação” das ideologias e modelos estrangeiros nas plagas nacionais. Vale lembrar que, junto à sutileza, prezava também pela clareza da exposição, em consonância com suas convicções políticas e com o papel que a crítica, segundo acreditava, deveria assumir no esforço de transformação social.
Como disse José Guilherme Merquior, num artigo de 1988 dedicado à crítica brasileira: “o maior logro da crítica de Candido é se manter ‘dentro da vida’ sem apartar-se do texto. (…) Assim como o exemplo de sua serena resistência frente ao autoritarismo, a qualidade humanística de sua brasiliana literário-cultural tem brilhado muito alto, através de três decênios de modismos estéreis e desorientação intelectual”. A nota de Merquior sublinha a consistência e a perseverança do trabalho, norteado por uma leitura profunda da realidade brasileira e que, por isso mesmo, não se deixa superar facilmente. Dialogar com o professor Antonio Candido segue como uma tarefa desafiadora e recompensadora. E agora, talvez, ainda mais essencial.
*Fábio Salem Daie é pesquisador no programa de pós-graduação da Universidade de São Paulo.

(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique)

Charge! Renato Machado via Folha de São Paulo

Renato Machado

sábado, 15 de julho de 2017

Charge! Montanaro via Folha de São Paulo

Montanaro

Michel Zaidan: A impotência da razão jurídica e o fim da política.


 


A crise institucional brasileira é parecida como a “caixa de Pandora”, uma vez aberta começa uma sucessão de escândalos, manobras, indecências que faria corar o mais sórdido dos integrantes da quadrilha de Ali Babá. Naturalmente, quando se dá golpe – mesmo com as aparências de legalidade – com ocorreu com a Presidente Dilma Rousseff, com motivações políticas e econômicas hoje sobejamente conhecidas, não se espera respeito à lei, a moralidade pública ou a Constituição. Mas o que vem ocorrendo no cenário político do país surpreende ao pior dos realistas desencantados com os fatos.
Desde que se abriu o processo de delação e denúncia contra o atual ocupante da cadeira presidencial, desencadeou-se uma série de episódios profundamente lamentáveis não só para a combalida saúde republicana, mas para a credibilidade do povo nas instituições políticas do Brasil. A soltura do assessor de Temer, a volta do senador Aécio Neves para o Senado e, agora, as manobras patrocinadas pelo denunciado que levaram à substituição em massa de seus aliados na CCJ com o objetivo do arquivamento da denúncia, tudo isso em que mundo estamos vivendo hoje. Curiosamente, na academia a discussão sobre direitos humanos, a pena, o regime carcerário e o massacre cotidiano de presos, parece sem importância diante desses escândalos protagonizados pela chamada “classe política”.
É como se vivêssemos em dois universos paralelos: um o do Direito, da Constituição, das Normas e Garantias individuais (e seus clientes preferenciais- “os criminosos de colarinho branco”, onde é sempre possível achar um amigo no Poder Judiciário e ganhar uma tornozeleira eletrônica na frente de 4.000 presos “comuns”): e  o outro, dos “corpos infames”, “abjetos”, sem direitos ou garantias individuais. Um país que suporta – sem se indignar – as cenas de impunidade, cinismos, falta de vergonha, como esse, não pode dá um tratamento minimamente digno, humano, justo a ninguém. A não ser esse “rebotalho de iniquidades” que atende pelo nome de “reforma trabalhista”, com que querem reinstalar a escravidão do trabalho no Brasil.
Esse abismo, essa distância entre os dois mundos penais e de direitos e garantias, socava os fundamentos da consciência ética, republicana, cidadã, em qualquer lugar do mundo. Não pode haver dois marcos legais ou dois direitos penais para uma mesma sociedade. Ou bem universalizamos essas conquistas do “garantismo” jurídico e penal, abrangendo todas as pessoas, independentemente de cor, raça, credo, orientação sexual, gênero etc. Ou instituímos  uma sociedade de castas, de estamentos,    baseada em privilégios, no dinheiro, nas posições sociais, no capital social e assim por diante.
O que não dá mais para aguentar são as discussões sobre o justo e o injusto, o  certo e o errado, enquanto aqui – do lado de fora – campeia a desigualdade, o desrespeito, a humilhanção e acima de tudo, a indiferença.
Como disse o corvo de Edgar Allan Poe, “nunca mais, nunca mais, nunca mais”.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD:UFPE.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

O xadrez político das eleições de 2018 em Pernambuco: A ausência de humildade dos socialistas pernambucanos

 Resultado de imagem para Paulo Câmara


José Luiz Gomes da Silva
(Cientista Político)

Recentemente, creio que na última edição da revista Nordeste, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva concedeu uma longa entrevista sobre o cenário político brasileiro. Editada no Estado da Paraíba, com sede na cidade de João Pessoa, Nordeste é uma publicação de reconhecida qualidade editorial. Lá para as tantas, respondendo a uma das perguntas do entrevistador, ele se reporta ao cenário político pernambucano, observando um pouco daquilo que já se sabe sobre o governador Paulo Câmara(PSB), ou seja, que se trata de um cidadão de perfil técnico, formado ali no Palácio do Campo das Princesas, sob os auspício do ex-governador Eduardo Campos, que o alçou ao mundo político, indicando o seu nome como candidato do PSB ao Governo do Estado, nas eleições majoritárias de 2014. Várias raposas políticas pleiteavam entrar na disputa, mas o ex-governador optou por um quadro técnico, oriundo do Tribunal de Contas do Estado, que sempre esteve vinculado às finanças da gestão estatal durante os governos de Eduardo Campos. 

O ex-presidente observa, neste perfil técnico, algumas possíveis limitações do gestor, o que poderia explicar algumas dificuldades enfrentadas pelo Estado. O governador Paulo Câmara não gostou da observação e, de pronto, respondeu ao petista que o cenário do Estado não é dos piores - as contas, segundo ele, estão equilibradas - e observou que Lula também escolhera uma técnica para sucedê-lo na Presidência da República, a ex-presidente Dilma Rousseff. Ressalto aqui que a inabilidade política da ex-presidente, de fato, sempre se constituiu num grande problema. Dilma não tinha aquele despojamento que se exige para atuar neste meio-de-campo  tão arisco e movediço; não desejava aprender; e, para piorar ainda mais a situação, também não foi muito feliz nas escolhas dos seus articuladores políticos indicados para esta função. Ou seja, uma sucessão de equívocos que culminou, imaginem, com a indicação do então vice-presidente, Michel Temer, para esta nobre tarefa, que ele executou com maestria, mas em benefício pessoal.  

De resto, polêmicas às favas, é sabido que tanto Paulo Câmara quanto o prefeito do Recife, Geraldo Júlio, eram quadros técnicos do PSB. Soberano e reinando absoluto no controle da legenda socialista, o ex-governador Eduardo Campos se deu ao desfrute de "represar" as aspirações das raposas políticas que o acompanhava. Difícil entender qual era a jogada do ex-governador com essa manobra. Talvez a de reservar esses nichos políticos para os seus herdeiros mais diretos, uma pavimentação que seria mais simples com atores políticos com menos autonomia do que as cobras criadas ou lobos famintos da política filiados à legenda. Há de se considerar, igualmente, o seu projeto presidencial, tido por alguns como uma verdadeira obsessão do ex-governador. Alguns nomes do seu staff político, convém fazer o registro, já estavam se articulando, no plano nacional, em torno de viabilizar esse projeto político do ex-governador. 

Na nossa opinião, o governador Paulo Câmara tem cometido alguns equívocos políticos, como o de ter tomado uma atitude intempestiva e ter se afastado de legendas como o DEM e o PSDB, optando como parceiro preferencial o PMDB do Deputado Federal Jarbas Vasconcelos. Outros equívocos políticos foram cometidos - e poderíamos enumerá-los aqui - mas isso talvez não seja necessário para um leitor minimamente informado sobre a política pernambucana. Não necessariamente esses equívocos podem ser atribuídos ao fato de ele ser um técnico, exercendo uma função que exige uma boa dose de manejo político. Por vezes, bons técnicos podem se constituir em excelentes atores políticos, assim como bons gestores. Um bom exemplo disso é o ex-prefeito da cidade de João Pessoa, Luciano Agra, que passou pouco tempo à frente da prefeitura da capital, mas fez uma excelente gestão, tida por alguns como a melhor de todos os tempos. Agra foi um quadro técnico pinçado da universidade pelo grupo político do governador Ricardo Coutinho(PSB). A gestão de Paulo Câmara no Governo do Estado não nos facultam tirar a mesmo conclusão, ou seja, a de um técnico que se tornou num bom gestor, num hábil político. 

Soberba e arrogância nunca foram boas conselheiras, sobretudo nesses momentos bicudos da quadra política nacional, onde a ética das consequências, de inspiração maquiavelina, tem dado o tom dos acordos e negociações neste campo. Mas, mesmo assim, este parece ser o procedimento de lideranças socialistas aqui da província, sempre que se fala numa possibilidade de reedição da Frente Brasil Popular, formada em 1989, composta por partidos como o PT e o PCdoB. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria proposto algo neste sentido, quem sabe naquela perspectiva de que os socialistas do PSB voltassem às suas verdadeiras origens - daqueles velhos tempos do ex-governador Miguel Arraes - compondo com o conjunto de forças populares, seja lá o que isso signifique diante de tanta deterioração ideológica, crise sistêmica e programática dos grêmios partidários. 

Num momento político dos mais adversos - quando propôs isso Lula ainda não havia sido condenado no contexto da Operação Lava Jato - apesar de condenarmos o salto alto da legenda socialista - também é possível entendermos, sim, as reservas de integrantes da legenda quanto a uma composição com partidos como o PT, hoje bastante desgastado junto à opinião pública.  A questão é quando se troca essas más companhias por outras ainda piores - num cenário político necrosado como este - onde o escudo ético na condução dos negócios públicos não passa de uma bravata de campanha, num simples jogo de retórica. Infelizmente o nosso sistema político desceu a esse nível e o PT não é nem melhor nem pior do que a média do que está aí.  

Jogando seu passado histórico às favas ou na lata de lixo, na realidade, grosso modo, a tendência de alinhamento da legenda socialista, hoje, se apresenta com maior viabilidade junto às forças políticas do centro para a direita do espectro político. Claro que há, na legenda, alguns atores políticos que ainda se vinculam ao passado de esquerda do partido, mas são poucos. São cada vez menos. Neste cenário, não causou tanta surpresa as negociações entabuladas por membros da legenda no sentido de uma composição com partidos como o Democratas, na perspectiva de se criar um novo partido. Não é este o caso de Pernambuco, mas em algumas praças tucanos e pombinhas brancas coabitam o mesmo ninho. Não se espere que, naquele pandemônio em que se transformou Brasília, possa se esperar algo de positivo ou republicano. Muito menos partindo-se das corjas políticas ali encasteladas. As manobras escusas de mudanças de integrantes de nomes indicados para CCJ, por exemplo, são um bom exemplo recente do que estamos afirmando. 
 
Há algumas dificuldades inerentes a uma possível reaproximação entre petistas e socialistas aqui no Estado, como a parceria cada mais efetiva entre o PSB e o PMDB do Deputado Federal Jarbas Vasconcelos, que já declarou que votará a favor da autorização da Câmara Federal no sentido de que o STF analise as denúncias contra o presidente Michel Temer. O fato atenua um pouco o ônus a ser pago pelos socialistas em torno dessa parceria preferencial com os peemedebistas. Setores da imprensa pernambucana informaram que Jarbas teria sido taxativo sobre o assunto. Se o PT entrar, ele sai. Não se sabe muito para onde, mas, enfim... O que causa estranheza, no entanto, é a absoluta falta de humildade das lideranças socialistas locais sobre o assunto, posando de salto alto, desdenhando o apoio do PT no próximo pleito, supondo, quiçá, que as coisas serão decididas a seu favor. O projeto de reeleição do governador Paulo Câmara enfrentará enormes dificuldades pela frente. Outro grave equívoco pensar o contrário. 

As dificuldades são inúmeras, como se sabe, a começar pelos baixos índices de popularidade do governador em todas das pesquisas de opinião até agora realizadas, inclusive esta última, encomendada pelo ex-candidato a prefeito de Olinda, Antônio Campos(Podemos), onde o senador Armando Monteiro, do PTB, aparece na liderança. Como já assinalamos em momentos anteriores, os flancos onde a oposição poderá atuar são muitos e capazes de produzir efeitos bastante negativos no resultado das urnas. Sinceramente, não sei de onde provém esse comportamento desdenhoso dos socialistas aqui da província. Há o ensaio, inclusive, de uma possível candidatura própria do PT. Hoje o nome mais forte - mas não menos polêmico - é o da vereadora do Recife, Marília Arraes(PT). Naturalmente que o seu projeto de lançar o seu nome na disputa deverá estar ancorado numa estratégia partidária maior. 

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Editorial: O colapso do sistema político brasileiro.



Nos últimos dias, as análises políticas e editoriais dos grandes jornais se concentram numa espécie debate sobre o colapso do nosso sistema político. Uma crise institucional iniciada quando da deposição da ex-presidente Dilma Rousseff, e que não emite o menor sinal de acabar, consoante o andar da carruagem política, movida por atores sabidamente suspeitos, pouco confiáveis, guiados por negociações nebulosas, de caráter pouco republicano. Os textos não são assim tão explícitos como o deste escriba, mas, em resumo apontam, sim, para uma espiral de fragilidade institucional, incapaz de conduzir o país a algum rumo minimamente desejável pela sociedade brasileira, ou seja, acordos celebrados dentro de um razoável ordenamento jurídico; consoantes regras rígidas no tocante à condução dos negócios públicos e, de preferência, sem mais os escândalos de corrupção, voltados para o atendimento das mais prementes demandas sociais. Assim como está, o sistema político não opera no sentido de construção da cidadania, mas no sentido de atender interesses fisiológicos de grupelhos encastelados no aparelho de Estado e nos três poderes, que atuam consoante o que é ditado pelas corporações, notadamente as financeiras. 

 
O que une o pessimismo desses cronistas políticos  sobre o que virá após o afastamento do presidente Michel Temer(PMDB), diante de um quadro político tão caótico? No dia de ontem, nos dedicamos a destrinchar os acordos de bastidores que estão sendo costurados no sentido de viabilizar o afastamento do presidente Michel Temer, assim como a condução do hoje presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia(DEM), à Presidência da República. Setores dos PSDB se assanham diante da expectativa de poder, traduzida na ampliação da participação no futuro condomínio governista. Por outro lado, a desenvoltura do democrata tem preocupado algumas tucanos de bico fino e emplumados, como é o caso do governador paulista Geraldo Alckmin, que suspeita das pretensões políticas de Maia. Não é para menos, uma vez que Botafogo está tão azeitado que articula, ao mesmo tempo, uma possível fusão dos Democratas com o PSB, do ex-governador Miguel Arraes. A proposta é tão indecente que voltaremos a discuti-la mais adiante, sobretudo em respeito ao saudoso governador.

 
Comentamos sobre este assunto no dia de ontem, mas, de fato, colocar os planos políticos para 2018, neste cenário nebuloso, talvez não seja mesmo o mais prudente. Se o governador Geraldo Alckmin(PSDB) desconfia das pretensões de Rodrigo Maia é porque essas definições estão, de fato, abertas. Ademais, neste cenário de cobras peçonhentas e lobos famintos é mesmo muito difícil prevê, com o minimo de precisão, os passos dos adversários. Desde muito tempo ficara bastante nítido que a substituição de Dilma Rousseff pelo presidente Michel Temer, e, agora tão pouco, a substituição de Temer por Rodrigo Maia não representaria a solução de alguns problemas estruturais do nosso sistema político, hoje bastante necrosado e esquizofrênico no tocante aos anseios da sociedade brasileira, conforme afirmamos. 

 
O cenário de candidaturas para as eleições presidenciais de 2018, igualmente, também não nos sugerem muito otimismo. Não são poucos aqueles que se apresentariam ao eleitorado com uma ficha, digamos assim, não limpa. Isso, de um lado. Do outro, aventureiros que tentariam tirar vantagens do esfacelamento do sistema político, apresentando-se como "novatos", que nunca tiveram nada com tudo que aí está. Há ainda aqueles cuja plataforma reacionária e retrógrada dispensaria maiores apresentações. Como se sabe, a crise política sistêmica é um terreno propício para o surgimento de salvadores da pátria. Se o ex-presidente Lula escapar dos rolos da Operação Lava Jato, talvez até se apresente novamente ao eleitorado como alternativa, mas já com aqueles comprometimentos conhecidos, traduzidos numa nova conciliação de classes, que o deixaria sem margem de manobras para o aprofundamento das soluções dos nossos problemas políticos crônicos. Como disse, isso se ele vier a superar os rolos da Lava Jato - o que é pouco provável - além do anti-petismo que ainda está muito presente no nosso imaginário social. 


P.S.: Contexto Político: Lula foi condenado pelo juiz Sérgio Moro, na ação envolvendo o tríplex do Guarujá, há 09 anos de prisão em regime fechado e 19 anos sem candidatar-se ou exercer alguma função pública. Ainda não é uma sentença definitiva, pois precisa ser apreciada, em segunda instância, pelo Tribunal Regional Federal da 4º Região, localizado em Porto Alegre. Mantida a sentença, ele torna-se inelegível.

Charge!Aroeira

domingo, 9 de julho de 2017

Religiosos lutam para libertar orixás da polícia



Juliana Gonçalves


Fé é crime? A resposta óbvia para essa pergunta seria não. Mas, no Brasil, já foi. No início do século XX, a prática das religiões de matriz africana era considerada crime pelo código penal e diversos objetos ritualísticos foram apreendidos em batidas policiais. O texto do artigo que tornava “o espiritismo, a magia e seus sortilégios” crimes foi alterado em 1940, mas teve efeito prático até 1960. No entanto, no Rio de Janeiro, a Polícia Civil continua mantendo até hoje em seu acervo cerca de 200 peças sagradas para umbandistas e candomblecistas. Mais de 100 anos depois, líderes religiosos e ativistas do movimento negro buscam a transferência desta parte da história para um local apropriado e de exaltação à cultura negra através da campanha “Liberte o Nosso Sagrado”.

“Queremos colocar as peças em lugar mais adequado e não na polícia. Não em um prédio que foi sede do Dops durante a Ditadura Militar com toda essa carga negativa, onde torturas aconteceram. Para que as pessoas tomem conhecimento do que ocorreu esse tempo todo e saibam que essas peças são peças sagradas de uma religião dos nossos ancestrais”, explicou a Yalorixá Luizinha da Nanã durante a marcha do movimento Ocupa Dops . O grupo luta pela transformação do Museu da Polícia Civil em um espaço de memória da Ditadura.
A peças chegaram a ficar expostas por anos ao lado de símbolos nazista no Museu da Polícia Civil com a denominação “Coleção Magia Negra”, mas, hoje, estão longe do acesso do público e de pesquisadores e encontram-se no acervo do museu. Entre os objetos estão imagens, instrumentos musicais e vestimentas tombados pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual Iphan, ainda em 1938.

Racismo Religioso

A ideia da campanha é usar a história para debater o racismo religioso que atualmente se manifesta de outras formas. No passado, era amparado pela lei, já que a religião era criminalizada pelo Estado. Hoje, o preconceito se faz presente em buscas por brechas nela, principalmente, por meio da perturbação do sossego.
Em março de 2017, pai Edson de Omulu foi condenado a 15 dias de prisão por perturbação do sossego no Recife (PE). O Babalorixá afirmou se tratar de um caso de racismo religioso, pois o autor da ação já havia tentando impedir o culto de diversas formas em um período de dois anos e o toque dos tambores em seu terreiro seguia até as 20h. No Sergipe, em janeiro de 2016, atabaques foram apreendidos pela polícia, assim como na primeira república,após uma denúncia do mesmo teor. O texto na página da Polícia Militar do Sergipe criminaliza a religião ao que dizer que após denúncia, um grupo de pessoas foi “flagrado” em um culto religioso com instrumentos de percussão por volta das 20h30.
“Resgatar essas peças é uma questão de justiça a nossas ancestralidades”.
Além disso, ainda existe a tentativa de interferência direta do Estado nos ritos sagrados. Como a ação que corre no Supremo Tribunal Federal que questiona o abate religioso. Os ministros que vão decidir se o uso de animais em ritos de matriz africana viola a Constituição, que em seu artigo 225 coíbe a crueldade contra animais.
Seguimos sem notícias de batidas policiais em igrejas, prisões de pastores, padres ou rabinos e, ainda, tentativas de interferência direta do Estado em outros ritos religiosos. Por sorte, para as demais religiões, o artigo 5º da constituição que garante a liberdade de culto parece funcionar.
Como, no caso das religiões de matriz africana, os casos se repetem, trazer à tona o que acontecia – teoricamente no passado – enriquece o debate contra o preconceito. “Esse acervo, além de mostrar a riqueza das religiões afro-brasileiras também pode dialogar com o racismo religioso e a intolerância religiosa que continuam acontecendo”, comenta Jorge Santana, coordenador da campanha.
Assim como os coordenadores da campanha Liberte o Nosso Sagrado, The Intercept Brasil também não obteve um posicionamento da Polícia Civil sobre o caso. No blog da Associação dos Amigos do Museu da Polícia Civil, uma nota menciona a campanha e diz que as peças pertencem por justo direito à polícia. Além disso, o texto defende que, “em países civilizados peças e coleções não são removidas de museus”. No entanto, na Bahia, peças apreendidas pela polícia em batidas em terreiros, que estavam no Museu Estácio de Lima, do Departamento de Polícia Técnica (DPT), foram transferidas para o Museu Afro-Brasileiro (Mafro/Ufba) em 2010 após um movimento semelhante em Salvador.
No Rio, a campanha seguirá para o caminho judicial. “Resgatar essas peças é uma questão de justiça a nossas ancestralidades. É uma questão de justiça a todos os 5 milhões de negros que chegaram aqui no Brasil e que foram massacrados”, afirma a Yalorixá Luizinha de Nanã.

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

Caso Rafael Braga é tema de exposição no Instituto Tomie Ohtake

                                          
Helô D'Angelo 

Caso Rafael Braga é tema de exposição no Instituto Tomie Ohtake
Rafael Braga, único preso nos protestos de 2013, foi condenado a 11 anos de prisão (Reprodução/Arte Revista CULT)


 
Rafael Braga foi condenado a quatro anos e oito meses de prisão por porte de explosivos durante as manifestações de 2013. Os materiais considerados explosivos, porém, resumiam-se a um pote de desinfetante e outro de água sanitária.
Em 2015, Braga conseguiu que a pena fosse cumprida em regime aberto, mas pouco depois foi detido novamente. Segundo os policiais que o prenderam – e únicas testemunhas do caso -, o rapaz portava 0,6 grama de maconha, 9,3 gramas de cocaína e um rojão. Homem negro e catador de lixo, Braga foi condenado a onze anos e três meses de prisão anos em regime fechado.
Na exposição OSSO, organizada pelo Instituto Tomie Ohtake em parceria com a Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), 29 artistas brasileiros de todo o país expõem obras relacionadas ao caso de Rafael Braga, que acabou se tornando o único preso durante as manifestações de 2013 – sem sequer, segundo ele, ter participado dos protestos.
A mostra, que fica em exibição entre 27 de junho e 30 de julho no Instituto, foi batizada de OSSO por reunir obras que tratam de tudo aquilo que é “essencial e estrutural na fragilidade do direito de defesa”, segundo o curador, Paulo Miyada. 
Além das obras, a exposição exibe documentos ligados ao caso de Rafael, como reportagens, dados e textos sobre o tema, cuja organização foi feita pelo IDDD. Junto aos documentos, há um texto que discute as contradições e os pontos-chave do julgamento de Braga, e faz reflexões sobre o sistema penal brasileiro. A ideia, de acordo com o curador, é aproximar o público da injustiça sofrida por grande parte da população negra e periférica no Brasil.
“Na relação entre arte, política e direito, tentamos inverter o modo como essas conexões estão consolidadas. Em vez de fazer uma exposição geral sobre crise política, a gente tentou colocar no próprio título da exposição a questão de forma explícita. Os artistas entraram como se a exposição fosse um abaixo-assinado pelos direitos humanos”, afirma.
Suzane Jardim é historiadora e uma das organizadoras do movimento 30 Dias por Rafael Braga, que tem como objetivo conscientizar sobre este e outros casos. Para ela, a exposição tem o poder de aproximar a realidade de Rafael daqueles que, mesmo em atividade política, não estejam em contato com suas raízes racistas: “Gosto de ser otimista e pensar que uma exposição como essa tem o papel de levantar questões em pessoas que estão ocupadas demais tentando ‘reconstruir nossa democracia’ sem perceber que para cidadãos como Rafael Braga a democracia brasileira sempre foi sanguinária, repressiva e aniquiladora”.
Os artistas convidados para a exposição vêm de diversas partes do Brasil, e se dividem em três perfis, segundo Miyada: os já conceituados no meio brasileiro, e que já se manifestaram sobre assuntos políticos (como Cildo Meireles, Paulo Bruscky e Anna Maria Maiolino), os artistas negros, que trazem, entre outros temas, o debate da questão racial para suas obras (como Rosana Paulino, Moisés Patrício e Paulo Nazareth), e os jovens ou que entraram recentemente no mundo da arte – e que “carregam uma visão crítica por definição”, nas palavras do curador.
Temática estrutural
As obras expostas dialogam não só com o caso de Rafael, mas também com o racismo brasileiro e sua consequência mais imediata, a desigualdade social. Em “A permanência das estruturas”, por exemplo, a artista Rosana Paulino mistura desenhos de navios negreiros com esquemas “científicos” da época em que a eugenia era aceita como uma teoria científica no Brasil, no início do século 20. Em “O racismo é estrutural”, Graziela Kunsch criou estampou a frase em uma faixa de mais de oito metros de extensão, com a mesma linguagem das faixas do Movimento Passe Livre, que ficaram famosas nas Jornadas de Junho de 2013.
“Outras obras são mais sintéticas e ‘mudas’, mas fazem a gente pensar de outra forma”, diz o curador. É o caso de “Cruzeiro do Sul”, de Cildo Meireles, que consiste de um cubo pequeno em uma sala enorme e vazia, iluminado por um feixe de luz. O cubo é feito de madeiras utilizadas pelos indígenas para fazer fogo: “É um gesto sintético, mínimo, condensado, mas que por metonímia carrega dentro de si uma explosão. É um pavio simbólico”, define Miyada.
Criada em Diadema, Suzane Jardim lembra que nunca havia entrado no Instituto Tomie Ohtake, mesmo tendo se formado na USP – e afirma que a falta de acesso aos pontos de cultura é um problema enfrentado por muitas outras pessoas vindas da periferia, que são as maiores vítimas das injustiças como a sofrida por Braga. No entanto, a historiadora classifica o evento como algo positivo, mesmo que realizado em um local que ela considera elitista: “Creio que minha participação pode até criar um vínculo entre o espaço, a proposta e outras pessoas negras vindas da periferia e que, como eu, nunca haviam pensado o espaço como seu”.
Ela salienta, no entanto, que a iniciativa do Instituto não é a “primeira e nem a única” a abordar o caso de Rafael Braga e outros semelhantes. “Existem comitês em diversos estados pensando a questão, o grupo do Rio de Janeiro vêm se mobilizando desde 2013 pela causa com um histórico incrível de ações realizadas, a campanha dos 30 Dias também está aí promovendo o debate sobre encarceramento em diversos espaços, as periferias reagem, se protegem e denunciam como podem desde que essa realidade sócio-histórica se formou.”
No entanto, mesmo com tantas iniciativas de conscientização e de mobilização para a defesa de Braga, e mesmo que o rapaz não tenha cometido crime algum, ele continua preso – quatro anos após sua primeira detenção. “Casos como o de Rafael Braga escancaram uma realidade cotidiana que a história nacional insiste em esconder desde sua formação. Por isso causam tamanha revolta”, conclui Jardim.  

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

Jean Galvão

sábado, 8 de julho de 2017

Michel Zaidan Filho: Governabilidade sem governo

 

 
  
Tudo indica que há uma segura e determinada articulação que vai juntar os democratas e os tucanos na deposição de Michel Temer, sob as benções de Fernando Henrique Cardoso e Wellington Moreira Franco. A ideia é aumentar (e muito) o espaço do PSDB no governo federal e garantir, através da escolha de Rodrigo Maia como sucessor de Temer, as reformas trabalhista e previdenciária. Maia, como Presidente do Congresso, lavaria as mãos diante do processo contra o atual mandatário e deixaria para os outros a tarefa de condenar Michel Temer e se colocaria à disposição dos "amigos" para ocupar o lugar do afastado. Para isso contaria com o apoio das bancadas do DEM, PPS, PSDB, PTB e outros partidos clientelistas, os que apoiam qualquer governo em troca de benesses. O risco maior é uma manobra continuísta no Congresso que prorrogue o mandato tampão de Maia.

Uma vez, que dificilmente tucanos ou democratas teriam condições de ganharem a eleição presidencial em 2018. O complicador é o velho e dividido PMDB, o maior partido do congresso. Nessa articulação, seria o maior prejudicado. Ficaria com o resto. Convencê-lo a virar sócio minoritário nesse condomínio é um grande desafio. Por sua vez, Lula - o melhor avaliado nas pesquisas de opinião - vem dando mostras de que não seria uma ameaça aos interesses da coalização ora no poder. Talvez, numa segunda versão de uma "carta aos brasileiros", o líder petista pode acalmar os humores do mercado e de seus representantes parlamentares de que, uma vez eleito, não colocaria em risco os projetos de interesse dessa coalização.De toda maneira, Lula vem dando sinais de que mais importante do que uma eleição direta já, é garantir maioria no Congresso, e para isso muito jogo de cintura e espírito de conciliação é importante. 

 A atual legislatura é, politicamente, uma das piores dos últimos tempos. Governar com os fragmentos que formam a atual casa legislativa é preciso um santo vestido de satanás. Aqui, a chamada "ética das consequências" - de extração maquiavelina - terá de ser muito bem empregada. Num ambiente de bandidos, o discurso tem de ser sinuoso e ambivalente. Se for afirmativo e claro, o Presidente não dura um dia no seu cargo. Na verdade, estamos diante do fim do ciclo do mal chamado "Presidencialismo de coalizão". Com um Poder Legislativo "plebiscitário", que todo dia avalia e cobra mais caro pelo apoio a ser dado ao Presidente, ao largo de todo e qualquer ideologia ou programa. Sobreviver, assim, exige uma imensa dose de "generosidade" por parte do governante. Esta na hora de mudar as regras do jogo, aproximar a instituição da sociedade e fazer justiça aos reclamos da maioria da população. Mas do jeito como está, é impossível. A agenda tornou-se, ela própria, na mera sobrevivência do governante, no meio de cobras e leões famintos. E o preço a pagar é muito alto.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD - UFPE





quinta-feira, 6 de julho de 2017

Sobre o livro "Política e vocação brasileira", de Suzana Albornoz


Sobre o livro ‘Política e vocação brasileira’, de Suzana Albornoz
A responsabilidade teórica e o cuidado reflexivo na obra de Suzana Albornoz (Arte Revista CULT)


Política e vocação brasileira, da filósofa Suzana Albornoz, apresenta-se aos leitores como uma obra aberta ao diálogo. Trata-se de um feito filosófico e político que podemos definir como essencial, sua característica fundamental é a responsabilidade teórica e o cuidado reflexivo. Do começo ao fim, Suzana Albornoz se posiciona com o cuidado de quem respeita o outro, abrindo-se a ele, seja ele o leitor ou o objeto pesquisado. Além de tudo, é também o cuidado de quem respeita o conhecimento, sabendo que respostas fáceis são ilusórias; e que é preciso, antes de enveredar em soluções apressadas, aprender a analisar e a questionar o cenário onde tudo parece de antemão explicado em termos de política e de Brasil. O cuidado de Suzana Albornoz é o cuidado de quem, como filósofa, sabe que não sabe. De quem tem em vista que o saber é sempre suposto e, por isso, tende à ilusão. O não-saber é a virtude filosófica com a qual a política deve aprender. Uma política da responsabilidade passa pelo cuidado que faz pensar.
É a postura do não-saber que leva a perguntar. Por isso, essa postura precisa ser protegida por quem pretende fazer filosofia, essa atitude do pensamento inconformado e crítico que, sabendo ouvir, está aberto à alteridade. Vemos que, no livro de Albornoz, o não-saber é o olho que permite ver mais longe, mas não sozinho. A humildade do anão nas costas do gigante, imagem com que ela expõe suas leituras e inaugura sua reflexão, é a marca d’água a cada página deste ensaio necessário. A qualidade do anão reposiciona o gigante, quase o deixa para trás. Há algo de imóvel no gigante, algo de pesado, algo que se tornou rígido. É o anão que, com sua destreza e habilidade, subindo nas costas do seu parceiro, consegue alcançar um campo de visão mais vasto. O gigante não pode ver tão longe, mas ele seria feliz se pudesse contar com a visão das novidades que o anão lhe traz montado em seus ombros. Com a humildade de alguém que sabe muito, mas se posiciona em nome do saber-que-não-sabe, Suzana Albornoz, brincando de ser anão, nos abre um horizonte bem vasto.
Trata-se, como a própria autora diz, em Política e vocação brasileira de um conjunto de leituras. Mas não apenas. A erudição de Suzana Albornoz, complementada pela competência em expor as teorias assimiladas, oferece ao leitor um caminho seguro, mas nesse caso não se trata da segurança fácil da resposta, de um chão, e sim da mão que conduz pelo escuro rumo a uma pergunta que precisa ser feita. A pergunta de Suzana Albornoz concerne à vocação brasileira de um ponto de vista cultural, mas apenas enquanto este ponto de vista é também político. Dando a mão ao leitor, ela tem a paciência de uma professora que alfabetiza para permitir que um dia nasça a expressão particular de cada um, no caso, a expressão do leitor que aprendeu a pensar.
E o que o leitor irá descobrir é que a experiência política precisa ser pensada. Albornoz pensa o âmbito geral do político como esfera pública, como experiência concreta, e não apenas como atividade parlamentar ou de governabilidade. Tendo em mente o “conceito clássico da política como vocação universal, de todos os seres humanos enquanto cidadãos, quando chegam a ter acesso à cidadania”, Albornoz expõe a alma do seu livro para que um leitor comum possa entender-se com as riquezas da experiência reflexiva concreta.
A escritora Suzana Albornoz
A escritora Suzana Albornoz em tarde de autógrafo na Palavraria, em Porto Alegre (Divulgação)
Trata-se, portanto, de pensar a vocação como questão cultural e política que se desenvolve junto com a história do Brasil, fazendo o país que experimentamos hoje. O trajeto da questão Brasil na história das ideias é importante nesse processo. Com a paciência da leitora mais cuidadosa, ela resume os argumentos fundamentais das teorias dos autores que tomaram o Brasil para si como questão. Não deixa, no entanto, de oferecer sua própria compreensão do cenário. Se ela escolheu os autores que escolheu não é apenas porque tem afinidade com eles. Mas porque é capaz de dialogar com suas perspectivas, sem obrigar-se a entrar em consenso com elas. Albornoz conversa com muitos. Aqueles que a ajudam a pensar o Brasil. O que ela faz, no entanto, é preciso dizer, à sua maneira, uma maneira sempre preocupada em ser clara e generosa. O mapeamento das ideias e das posições ideológicas ou filosóficas dos parceiros teóricos, alia-se ao depoimento de quem, sem fazer-se testemunho, presencia a história de maneira atenta. De Eduardo Prado a Gilberto Freyre, de Stefan Zweig a Roger Bastide, de Sérgio Buarque de Holanda a Fernando Henrique Cardoso, de Platão a Arendt, de Rousseau a Tugendhat, de Bobbio a Riesman, Albornoz demonstra uma leitura impressionante dos intérpretes do Brasil, bem como dos filósofos clássicos e seus comentadores, não sem afirmar os limites de várias dessas leituras enquanto limitadas por ideologias ou visões parciais da história e da própria condição humana.
A medida que avançamos na leitura percebemos esse Brasil de Suzana Albornoz, um país que inclui o campo onde ela vive, o sul. Ao afirmar essa necessidade de análise, torna-se claro que ela não toma o Brasil por um mito, nem por uma ideia. O Brasil é, para ela, experiência política do cidadão comum em cujo lugar ela gostaria de se colocar. Uma experiência que não pode ser compreendida sem que se leve em conta a história, um passado de exploração escravocrata que se expande até hoje, de destruição dos povos nativos que continua e avança desde nosso começo cronológico.
Avisando que a moderação será uma regra de conduta no texto, Albornoz situará a construção da democracia no tempo, a partir de eventos históricos concretos, da política institucional, dos governos, dos movimentos sociais, lidos por ela sem declarar preferências que facilmente encurtariam o alcance da reflexão. Seu olhar é sobre o Brasil no seu sentido mais amplo. Seu livro busca não ser uma apologia das teorias ou das opiniões, mas ser uma exposição razoável “sem ufanismos nem viseiras” dos processos pelos quais passamos na tentativa de construir um país.
Mas a delicadeza do procedimento de Albornoz não evita a crítica. Nos termos do seu diagnóstico sobre o Brasil: “nossa ‘herança maldita’ foi essa exploração mercantil colonial, cujo peso ainda se faz sentir em nossa autoconsciência de povo ‘do Terceiro Mundo’, de país ‘subdesenvolvido’, com ‘complexo de vira-latas’, de ‘país que não é sério’, que se mostra ainda na falta de autoestima e insegurança com o próprio presente, bem como na indiferença ante a desigualdade e o desrespeito à vida e à pessoa humana, heranças da longa tradição de dominação, na familiaridade com a escravidão”.
Lendo Política e vocação brasileira perguntamo-nos em que país vivemos? Essa é a pergunta essencial do livro, uma pergunta que não se resolve em uma única resposta, mas que vale a pena ser colocada, sob pena de não nos entendermos jamais com o nosso projeto e com os nossos fracassos. Política e vocação brasileira é escrito no espírito da utopia, no sentido de Bloch, autor no qual Albornoz é uma grande especialista, não como alucinação ou fantasia, mas como desejo, impulso ético, impulso responsável de quem, ao fazer teoria, sabe que está orientando visões de mundo e criando subjetividades. A responsabilidade é agora também de quem o lê.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)