“Se algo como uma psicanálise da cultura atualmente prototípica fosse possível, se a absoluta dominação da economia não zombasse de cada tentativa de esclarecer a situação atual através da vida anímica das suas vítimas, e se os próprios psicanalistas não tivessem feito um juramento de fidelidade a essa mesma situação há muito tempo, então tal investigação deveria ser capaz de mostrar como a normalidade própria ao nosso tempo é a doença.” Essa é uma passagem da Minima Moralia, de Theodor Adorno. Ela faz parte de um parágrafo cujo título é exatamente: “Saúde em direção à morte”.
A colocação de Adorno, muito bem desenvolvida por um de seus comentadores atuais mais astutos, Fabian Freyenhagen, acaba por lembrar algo que a psicanálise lutou para se tornar, ao menos em seus melhores momentos. A saber, a consciência clínica de que adaptar sujeitos a uma sociedade doente seria apenas uma forma mais cruel de adoecê-los. E podemos falar em “sociedade doente” não porque seria o caso de acreditar que estamos à procura de uma “sociedade saudável”, como se houvesse formas de vínculo social capazes de não produzir sofrimento. Falamos em “sociedade doente” porque seu funcionamento normal precisa da perpetuação daquilo que ela mesma considera “patológico”. Ela fortalece seus vínculos sociais, suas relações de poder, fazendo o que é “patológico” funcionar, fazendo-lhe produzir trabalho, valor, instituição social, afetos, vínculos.
Nesse sentido, a recusa de alguns setores da psicanálise em ser uma prática adaptativa, prática que visava o fortalecimento de instâncias psíquicas de adaptação social, era uma aposta complexa de dar àquilo que tira os sujeitos do mundo um corpo. Uma aposta difícil de sustentar. Pois era fácil que a “normalidade própria a nosso tempo” entrasse pela porta da ordem sexual, da imposição do tempo próprio ao mundo do trabalho como medida de uma “vida realizada”, da naturalização do princípio de autoridade, da norma familiar, entre tantos outros. Como disse Adorno em seu trecho: são muitas vezes os próprios psicanalistas que fazem um juramento de fidelidade a essa situação, como se eles fossem parte da própria doença, como se eles também partilhassem a naturalização dos limites, racionalidade e impossibilidades da vida social que nos faz sofrer.
Freud dissera uma vez que a cura analítica estava ligada à capacidade de amar e trabalhar. Em outro momento, mais inspirado, ele afirma que o objetivo de uma análise é “transformar a miséria neurótica em sofrimento comum”. Há de se ler as duas afirmações juntas, pois se separadas, a primeira se tornaria catastrófica. Amar e trabalhar a partir do que a sociedade capitalista entende por “amor” e “trabalho” é só empurrar sujeitos para formas de mutilação. Por isso, a segunda afirmação era importante. Ela lembrava que não se tratava de eliminar o sofrimento, porque não há sociedade que nos permita viver sem sofrimento, muito menos essa da qual fazemos parte. Imaginar que na sociedade que transforma todas as formas de ação em processo de valorização do valor, que faz até mesmo da intimidade e das redes de amizades novos espaços de produção de valor e de monetização, seria possível traçar vias singulares de atividade sem sofrimento, resistência e reação, eis algo que contraria até mesmo as leis da física.
Por isso, tratava-se de vincular a psicanálise a outra coisa, a saber, a transformação das formas de sofrimento. Sofrer de outra forma, sem que ele se esgote do teatro neurótico e suas formas de gozo e perpetuação. Pois há momentos em que o sofrimento psíquico se mostra como forma de revolta social, como a lembrança de que é melhor a doença à saúde que nos propõe. O que, para tanto, implica permitir a analisanda e o analisando tomar para si a enunciação de seu próprio sofrimento.
Um primeiro tempo, e depois outro
Há expressões muito concretas desse “tomar para si”. Ele funda um tempo próprio ao processo analítico. Isso a ponto de podermos dizer que boa parte do processo de análise consiste no ato do analisando e da analisanda tomar para si a enunciação de seu próprio sofrimento.
Como disse anteriormente, faz parte dos processos de individuação socializar sujeitos não apenas através da internalização de normas e de tipos ideias, mas sobretudo através da internalização dos “desvios” e das “doenças”. Sujeitos trazem para a análise, entre outros, toda uma gramática, produzida pela cultura, sobre a natureza de seus sofrimentos. Nunca se parte de algo como a “realidade bruta” do sofrimento. Não são apenas descrições orgânicas como: não consigo dormir, tenho dores contínuas no pescoço. São descrições de estados mentais, de afetos, de sentimentos de inadequação, muitas vezes descrições ouvidas em outras análises e terapias. Parte-se do que poderíamos chamar de “gramática social do sofrimento”. Parte-se de sujeitos que se julgam paralisados e em tempo contínuo de espera, que se julgam masoquistas em suas relações, que creem ter algo de excessivo com a maneira com que pensam em sexo, que creem amar de forma a destruir e perder tudo o que amam, que se sentem passando por uma depressão.
Mas quem sofre porque está paralisado e em tempo contínuo de espera crê necessariamente que não conseguirá viver caso continue a recusar o regime de tempo naturalizado pelo mundo social. Não apenas porque se ilude a respeito de sua possibilidade de adaptação, mas principalmente porque sabe que a inadaptação é paga de forma violenta pela sanção social. Há uma saber importante aqui. A defesa abstrata da singularidade, do “cada um tem seu tempo”, é fácil quando se tem defesas contra a brutalidade da expulsão de quem teima em medir o tempo a partir da escuta de seu próprio ritmo, principalmente quando esse ritmo parece ser mais lento do que o desejado por quem lhe circunda. Mas ela se torna impossível quando se está só nesse processo. Da mesma forma, quem se julga masoquista em suas relações sabe tacitamente que estará em situações sem defesa diante do tipo de “preservação de interesses” que faz parte da formação de qualquer “indivíduo”. O sintoma tem um conteúdo de verdade muito evidente. Pois ele indica uma impossibilidade que não é simples expressão da “incapacidade” de sujeitos, mas que é expressão de uma situação socialmente objetiva.
Isso faz com quem exista um tempo da análise no qual se trata não apenas de levar sujeitos a reconhecer as singularidades que atravessam suas formas de desejar, de agir e de utilizar a linguagem. Trata-se sobretudo de reconhecer e defendê-las, sendo que a segunda parte talvez seja a mais difícil. Isso passa por vários níveis. Um deles é livrando tais singularidades de suas determinações “patológicas”. Determinações essas que, muitas vezes, foram produzidas e reforçadas pelo próprio discurso psicanalítico.
Mas eis que há um segundo tempo dentro dos processos analíticos. Esse segundo tempo está misturado ao primeiro. Ele aparece como uma suspensão, mais ou menos rara. No entanto, este é um tempo decisivo e o adjetivo não está aí por acaso. As decisões nunca são feitas sob a forma do cálculo dos meios e fins, eles são feitas às nossas costas, de forma silenciosa, e paulatinamente reconhecemos que elas já ocorreram.
Esse tempo é o mais brutal. Ele é marcado pela confrontação com os pontos nos quais se vincula desejo e destruição. São os retornos às situações de maior desamparo, são os pontos de maior violência interna e externa, são os pontos de angústia a mais irredutível. Não há nada de patológico aqui, mas há algo de uma noção de drama que as sociedades contemporâneas têm dificuldade estrutural em lidar. “Acho que nunca fui desejada”, diz alguém em análise, mesmo diante dos encontros vários que lhe marcaram. O que não significa exatamente que nunca se foi desejada, mas que há algo, que há um lugar, uma pulsação interna que nunca foi desejada. E isso, bem, como sempre esteve escrito na última página, isso era o que realmente contava. Ser desejada em seu humor destrutivo, em seu desespero sexualmente dispersivo, em sua passividade muda. Em seu ponto de confrontação com o que pode afinal nos decompor.
Esse tempo aparece em uma análise e muito rapidamente se fecha. Talvez seja ele que dê à análise sua particularidade. Se o processo de transferência permite sustentar tal tempo até ele reconfigurar o primeiro tempo, é possível que ele paulatinamente consiga inscrever no interior da vida o que até agora não tinha como se inscrever. Mas como disse, é possível. Alguém um dia falou da capacidade de tornar o negativo em ser. É uma colocação filosófica, eu sei, o que não significa que ela seja abstrata.
Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)