pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
Powered By Blogger

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Le Monde: O conservadorismo moral como reinvenção da marca MBL

TRADIÇÃO, FAMÍLIA E PROPRIEDADE

O imaginário recorrido atualmente pelo MBL é o das “guerras culturais” e da luta contra o “marxismo cultural”. A semente desta segunda ideia vem sendo plantada há muitos anos pela direita brasileira, tendo Olavo de Carvalho seu principal formulador.
Por: Gabriel de Barcelos
1 de outubro de 2017
Crédito da Imagem: Alves
terceirizacao-pato
– O MBL (Movimento Brasil Livre), organização com membros investigados por diferentes crimes e financiado por partidos como o PMDB e grupos de interesse econômico dos EUA, surgiu inspirado nas formas de mobilização da juventude, como as vistas em 2013, especialmente na força das redes sociais. Isso pode ter acontecido na escolha de um nome parecido com MPL (Movimento Passe Livre). Algo semelhante foi feito com o nome de outro grupo, o “Vem pra rua”, que se valeu de uma conhecida palavra de ordem das manifestações de esquerda. Como afirma Pedro Ferreira, integrante do grupo Bonde do Rolê e um dos fundadores, do MBL: “Partimos da tese de que faltava estética e apelo para difundir na sociedade uma visão de mundo mais liberal. A esquerda contemporânea desenvolveu uma roupagem romantizada para seus ideais e, assim, formou uma militância consistente. Era preciso –com o perdão da ironia– revolucionar o liberalismo.”
– Depois de obter sucesso nas ruas, ancorado na ampla divulgação do maior meio de comunicação brasileiro, a TV Globo, obtiveram a vitória no impeachment de Dilma. Tanto pela diminuição de seu poder de mobilização nas ruas após isso, como pela necessidade de preservar Michel Temer e outros aliados, resolveram voltar a focar a ação nas redes sociais. Desmoralizados após uma série de denúncias e criticados por seguidores pelo apoio a Temer, o MBL conseguiu uma sobrevida com a viralização de seus posts, com profissionais especializados na criação de “memes”. Junto a isso, o grupo investiu em ações isoladas nas ruas, de ataque à esquerda, com a função de criar performances para a câmera, para a divulgação posterior em vídeo.
– Percebendo o fracasso da defesa das ideias neoliberais entre o povo brasileiro (eles não conseguiram convencer os trabalhadores que era bom perder direitos), partiram para um novo redirecionamento. Agindo de acordo com a lógica de mercado, fizeram algo próximo do que no marketing se chama “rebranding” (embora sem mudar a identidade visual, mas as estratégias de sua organização, a sua filosofia operacional). A aposta foi no velho conservadorismo brasileiro em relação aos costumes, à moral e à cultura, algo com muito mais chance de sucesso. Daí a tentativa de censurar escolas e exposição de arte, como velhos beatos com tochas na mão.
– O imaginário recorrido atualmente pelo MBL é o das “guerras culturais” e da luta contra o “marxismo cultural”. A semente desta segunda ideia vem sendo plantada há muitos anos pela direita brasileira, tendo Olavo de Carvalho seu principal formulador. Segundo estas teorias, a esquerda teria colocado em segundo plano a tomada revolucionária do poder, para investir na destruição dos tradicionais valores ocidentais de família, religião, moral, cabendo aos homens e mulheres de bem defender e preservar estes pilares. O discurso em questão fala muito melhor aos corações brasileiros, relativamente progressistas em termos de direitos sociais, mas conservadores em questões comportamentais-culturais. Ou seja, caímos na armadilha do MBL, estamos agora jogando o jogo escolhido por eles, num terreno agora bem mais favorável, em sintonia com a subjetividade carola do Brasil, através de uma cortina de fumaça, criada para desviar o foco de Temer e grupos políticos próximos da organização.
– O MBL vem se reinventando a todo o momento e resolveu apelar para táticas mais fáceis, falando mais às entranhas de seu público do que à racionalidade. Riscaram um fósforo e acenderam um pavio em sua cruzada moralista contra a arte, gerando um efeito manada. Se a marca MBL estava severamente comprometida, seus desvios estratégicos conseguiram manter a sua posição de grande influenciador no campo da direita.
– Infelizmente, a esquerda brasileira perdeu a sua oportunidade histórica, quando abandonou um movimento de amplo apoio popular como as greves gerais e outras mobilizações contra a reforma de Temer. Estas lutas se comunicavam diretamente com os direitos da classe trabalhadora e foram negligenciadas pela maior parte das direções de movimentos nacionais, cegas para a importância da difusão e disputa de ideias e das consciências. Além disso, há uma defasagem muito grande da esquerda em compreender as dinâmicas contemporâneas e as suas ferramentes de comunicação, especialmente entre a juventude.
– Não são poucas as referências comparativas entre a ação do MBL e a história de regimes nazi-fascistas. Contra a barbárie que se desenvolve e se avizinha em sua consolidação total, a única forma é o retorno ao foco na construção da resistência popular em defesa dos direitos e da explicitação dos interesses de classe envolvidos em grupos como o MBL. Novamente deixamos um vácuo para ser preenchido pelo fascismo. É preciso, portanto, agir logo, pensar para além da lógica eleitoral. Do contrário, nos restará no futuro olhar para o passado e pensar: por que não conseguimos impedir isso de acontecer?

Líder do MBL responde a mais de 60 processos e sofre cobrança de R$ 4,9 mi
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/05/08/mbl-sofre-acao-de-despejo-e-um-de-seus-lideres-tem-divida-de-r-44-milhoes.htm
Renovação Liberal: a associação familiar para onde vai o dinheiro do MBL
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/26/politica/1506462642_201383.html
Áudios mostram que partidos financiaram MBL em atos pró-impeachment
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/05/27/maquina-de-partidos-foi-utilizada-em-atos-pro-impeachment-diz-lider-do-mbl.htm
Como organizações dos EUA financiam grupos de direita no Brasil para defender suas bandeiras
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/como-organizacoes-dos-eua-financiam-grupos-de-direita-no-brasil-para-defender-suas-bandeiras/
A nova roupa da direita
Um dos fundadores e líderes do MBL também é cantor do Bonde do Rolê
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/10/1820495-um-dos-fundadores-e-lideres-do-mbl-tambem-e-cantor-do-bonde-do-role.shtml
Em protesto com baixa adesão, manifestantes defendem Lava Jato e criticam Congresso
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/03/26/manifestantes-protestam-contra-manobras-de-politicos-pela-impunidade.htm
Aliados de Temer, MBL é criticado pelos próprios seguidores ao defender PEC 241
https://medium.com/democratize-mídia/aliados-de-temer-mbl-é-criticado-pelos-próprios-seguidores-ao-defender-pec-241-e6df5bd608da


Para alavancar redes sociais, MBL aposta em dupla de ‘memeiros’
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/08/1914163-para-alavancar-redes-sociais-mbl-aposta-em-dupla-de-memeiros.shtml

Antonio Negri: "A máquina soviética travou por falta de combustível"


Antonio Negri: ‘A maquina soviética travou por falta de combustível’O filósofo marxista italiano Antonio Negri (Foto: Christian Werner e Alexandra Weltz)
De passagem por São Paulo para participar do seminário internacional “1917: O ano que abalou o mundo”, o filósofo italiano Antonio Negri afirmou que a Revolução Russa fracassou por conta de suas próprias contradições internas, como a constituição de uma estrutura política antes de uma econômica. E também pelos aspectos liberais, como a prática imperialista no exterior, impossibilitando o avanço da modernidade soviética.
“Os operários esgotaram os potenciais da modernidade soviética e queriam se libertar de seu domínio para produzir melhor, ter mais liberdade”, disse. “A maquina soviética, no final, travou por falta de combustível, que apenas poderia ser obtido pela renovação da produção”.
O filosofo participou da mesa “Estado, economia e política na sociedade soviética” ao lado da professora de Economia da USP Leda Paulani e do professor de Filosofia do Direito do Mackenzie Alysson Leandro Mascaro. A mediação foi da jornalista Maria Cristina Fernandes. O seminário internacional “1917: O ano que abalou o mundo” é uma iniciativa da editora Boitempo em parceria com o Sesc. 
Negri contou que teve a real dimensão da Revolução Socialista pela primeira vez aos dez anos de idade. Era 1943 e, vivendo na Pádua fascista de Mussolini, recebeu a notícia de que as cidades de Leningrado e Stalingrado, pertencentes à URSS, haviam resistido aos ataques nazi-fascistas.
“A Revolução Socialista não foi local, mas global, não porque atingiu o desejo de todo operário mundial, mas porque não podia ser apagada, estava viva”, afirma Negri. “A resistência de Leningrado e Stalingrado nos mostrou isso, era irreversível, mudou as possibilidades de configuração do poder na experiência histórica da humanidade”.
Negri relembrou que, na visão de Lênin, a revolução só seria bem-sucedida se acabasse com o Estado, concedesse todo poder aos operários, além de formas adequadas de produção e vida. “Lênin descobre um tema marxiano fundamental: não há revolução social sem uma base material que a sustente. E o Estado socialista não se orientou segundo o desejo de emancipação e liberdade do proletário, mas transformou a exploração do homem em coisa pública e privada”, afirmou.
Seminário Internacional 1917: O ano que abalou o mundo
Onde: Sesc Pinheiros, r. Pais Leme, 195, Pinheiros, São Paulo – SP
Quando: até 29/09
Quanto: R$ 18 a R$60

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

Laerte

domingo, 1 de outubro de 2017

Charge! Renato Aroeira

Political Drops for reflection: What scares is Lula's neck


 
 
"It is a complex task to analyze the data of a research, and they often present internal contradictions that can lead to misunderstandings, as well as inform us about the inconsistency of those raw numbers." These concerns also apply to this latest survey by the Datafolha Institute - published today, day 1, with great fuss - that presents the former president Luiz Inacio Lula da Silva leading in any scenario, becoming an unbeatable candidate in an eventual second round. in real motives for the rejoicing of the PTs, who celebrate these numbers in the social networks as if it were the victory of their team at heart, in a decisive classic, in the final of the championship, with the emotion of the penalties, preferably with the Wall as the archer The first frustration is that the possibility of Lula being a candidate is almost zero. The second is that the same research shows that his ability to transfer votes is not the best. The third frustration is that he is closely followed, smelling the scabbard, by a former military candidate, with the support of conservative sectors of Brazilian society, including 46% of young people who would support a new military intervention in the country . As the international weekly reported recently, this is where the danger lies, that is, the concrete possibility of not having a candidate identified with popular aspirations - a representative of the most progressive sectors of society in the 2018 presidential race - and, on the other hand, the growth of the "myth", which can increase its margin of support in the military, becoming the iron head of the expansion of the coup project started with the deposition of President Dilma Rousseff (PT), a candidate built in the wake of a platform clearly political fascist. "

(José Luiz Gomes, political scientist, in an editorial published here on the blog)

Drops político para reflexão: O que assusta é o cangote de Lula

 
 

"Constitui-se numa tarefa complexa a análise dos dados de uma pesquisa. Eles, não raro, apresentam contradições internas que podem induzir a equívocos, assim como nos informar acerca da inconsistência daqueles números brutos. Essas preocupações também se aplicam a essa ultima pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha - publicado hoje, dia 1º, com grande estardalhaço - que apresenta o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva liderando em qualquer cenário, tornando-se um candidato imbatível num eventual segundo turno. Os dados, no entanto, não se constituem em motivos reais para o regozijo dos petistas, que comemoram esse números nas redes sociais como se fosse a vitória do seu time de coração, num clássico decisivo, em final de campeonato, com a emoção dos pênaltis, de preferência com o Muralha como o arqueiro do time adversário. A primeira frustração é que a possibilidade de Lula ser candidato é quase zero. A segunda é que a mesma pesquisa mostra que sua capacidade de transferência de votos não é das melhores. A terceira frustração é que ele é seguido de perto, sentindo o cheiro do cangote, por um candidato de coturno, ex-militar, com o apoio de setores conservadores da sociedade brasileira, inclusive 46% dos jovens que apoiariam uma nova intervenção militar no país. Como informou recentemente um semanário internacional, é aqui que mora o perigo, ou seja, a possibilidade concreta de não termos na disputa presidencial de 2018 um candidato identificado com os anseios populares - representante dos setores mais progressista da sociedade - e, por outro lado, o crescimento do "mito", que pode ampliar sua margem de apoio no estamento militar, tornando-se o testa de ferro da ampliação do projeto golpista iniciado com a deposição da presidente Dilma Rousseff(PT), um candidato construído na esteira de uma plataforma político de cunho nitidamente fascista."
 
(José Luiz Gomes, cientista político, em editorial publicado aqui no blog)


Durval Muniz: Trabalho: direito ou favor?

  Imagem relacionada

 
Nas últimas semanas, a agência Saiba Mais produziu minuciosa cobertura do conflito entre o empresário Flávio Rocha, diretor do grupo Guararapes Confecções S.A., e representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT), motivado pela constatação, após visitas de inspeção, do que seriam inúmeras infrações no cumprimento da legislação trabalhista, por parte das chamadas facções, pequenas empresas de confecções, que foram instaladas no interior do estado, a partir de um programa de financiamento público, o Pró-Sertão, para atender exclusivamente a demanda do grupo empresarial a que pertence as lojas Riachuelo. O MPT deu entrada a uma ação civil pública que cobra na Justiça uma indenização de cerca de R$ 37,7 milhões de reais já que a empresa é acusada de usar as facções para subcontratar mão de obra, escapando assim do pagamento de direitos e obrigações trabalhistas, já que, embora pareçam ser outras empresas, as facções estão, de fato, sob o controle econômico do grupo Guararapes, que é o único comprador de toda a produção e que impõe a elas regras de produção bastante estritas, sem que essa relação esteja acobertada por qualquer tipo de contrato. No episódio, dois eventos chamaram a atenção pelo inusitado: o empresário passou a atacar, inclusive com ameaças, através das redes sociais, o MPT, notadamente a procuradora Ileana Neiva, acusando-os de perseguição, de serem responsáveis pelo desemprego no estado, por obrigarem a empresa a deslocar a sua produção para o Paraguai. O mais chocante é que o empresário organizou uma manifestação na porta da sede do MPT, oferecendo ônibus para transportar funcionários, notadamente costureiras, que trabalham na própria fábrica do grupo, que incorporando o discurso do patrão passaram a atacar o Ministério Público do Trabalho, com faixas em que se podia ler: “Aqui somos felizes”.
Esse episódio mostra a permanência, entre nós, da visão paternalista atravessando as relações no mundo do trabalho. O paternalismo, desde o período colonial, atuou mediando, legitimando e permitindo a reprodução das próprias relações entre senhores e escravos. Foi o paternalismo que permitiu que autores como Gilberto Freyre oferecessem, por vezes, uma visão idealizada e adocicada das relações escravistas. No paternalismo, como o próprio nome indica, aquele que preside a relação de trabalho, aquele que assume o lugar de senhor, de patrão aparece confundido e misturado com a figura paterna. Como um pai, ele dá acesso ao trabalho, aos meios com os quais o trabalhador vai conseguir sobreviver, em troca o trabalhador deve demonstrar gratidão, respeito e obediência. O paternalismo servia como anteparo à enorme violência física e simbólica do regime escravista, ele permitia criar zonas de afeto, de simpatia, de colaboração e até de incorporação da lógica do patrão, do senhor, pelo escravo. Como um pai, o senhor podia e devia, inclusive, castigar os escravos, em caso de desobediência ou rebeldia, como forma de educá-los, de corrigi-los e consertá-los. O paternalismo era mais atuante, ainda, nas relações com os escravos domésticos, já que a convivência cotidiana podia fazer nascer laços de afeto e de subserviência entre os escravos e seus senhores, além de funcionar como uma forma de preservação por parte do escravo dessa situação aparentemente vantajosa de estar alijado do trabalho no eito. No pós-abolição o paternalismo continuou atuando na relação com os empregados domésticos que, por isso mesmo, atravessaram o século XX sem gozarem dos mesmos direitos trabalhistas que as demais categorias de trabalhadores. Sendo tratados, muitas vezes, como pretensos membros das famílias a quem serviam, desenvolvendo relações de afeto e dependência econômica e até psicológica em relação a seus empregadores, as/os trabalhadores domésticos tiveram enorme dificuldade em reivindicarem direitos e perceberem a exploração de que eram objeto.
Dentre as muitas formas de trabalho compulsório que existiram paralelamente ao trabalho escravo, bem como no pós-abolição, envolvendo homens livres e pobres, libertos e ingênuos (ou seja, os filhos de escravos que nasceram depois da Lei do Ventre Livre), muitas delas estiveram marcadas pelo paternalismo. O paternalismo é uma relação que se estabelece entre pessoas de condição social, de status, de poder econômico e político muito desiguais. O paternalismo estabelece uma relação de hierarquia, de poder, de status que envolve um polo da relação fortalecido e um outro em situação de fragilidade. Ele mimetiza a relação entre pais e filhos, onde um detém todo o poder, detém toda a autoridade, pois trata com seres infantis, com crianças, com pessoas menores. Assim como um pai pode abusar de seu poder, pode submeter seus filhos a relações de imensa exploração e violência, assim como o pátrio poder, em nosso país, permitiu, até bem pouco tempo, que o pai fosse a autoridade máxima, dando a última palavra em tudo, assim ocorre numa relação trabalhista atravessada pelo paternalismo. No discurso do empresário Flávio Rocha a velha lógica paternalista aparece para justificar as relações de trabalho de extrema exploração a que submete os trabalhadores de seus empresas e das facções que sua empresa controla: ele faz um favor ao criar empregos para tanta gente que sem as encomendas de suas empresas não teriam onde trabalhar. Escamoteando o fato de que a relação de trabalho capitalista é uma relação de exploração, da qual quem mais se beneficia é o patrão e não o trabalhador, ele faz questão de aparecer como um benemérito, como um bom pai que dá o sustento a milhares de pessoas, como o provedor das milhares de costureiras que explora. Em levantamento preliminar feito pela agência Saiba Mais calcula-se em cerca de 2,3 mil o número de ações trabalhistas, por incumprimento da legislação, por parte do empresário entusiasta de primeira hora do golpe contra a democracia e do desmonte da legislação trabalhista trazida pela lei que permitiu a terceirização em todas as atividades.
Como um pai manipulador, utiliza do seu poder e da dependência dos trabalhadores dos empregos que oferece, mesmo sendo empregos de má qualidade, para usá-los como massa de manobra de seus interesses econômicos e políticos, mesmo dispondo de uma bancada, tanto na Assembleia Legislativa, quanto no Congresso Nacional, disposta a defender seus interesses. O ato que organizou, transportando seus trabalhadores para apitar e gritar palavras de ordem em frente a sede do MPT, mostra como o paternalismo é manipulador e como ele pode levar a vítima a introjetar a lógica do carrasco. Talvez suas atitudes disparatadas se devam ao fato de que volta a ter claras pretensões eleitorais, lançando-se candidato a vice-presidente da República, numa dobradinha com o prefeito de São Paulo, João Dória, que usa e abusa do discurso do empresário e gestor eficientes que, ao mesmo tempo, fornecem as condições dos mais pobres viverem. Acusando de populismo aqueles que defendem as políticas sociais, que dariam o peixe mas não ensinariam a pescar, esses senhores se colocam como aqueles que oferecem oportunidades, que, conforme o ideário neoliberal, oferecem condições de cada um empreender, ser empresários de sua própria vida. No entanto, seu empreendimento vem sendo sustentado há décadas por isenções de impostos, incentivos fiscais, financiamento público. O Pró-Sertão é um programa que, na verdade, foi elaborado para beneficiar exclusivamente o grupo Guararapes. Assim são os nossos empresários, eles são sempre contra o Estado, a intervenção estatal na economia, eles são a favor da iniciativa privada, somente quando o Estado não os beneficia ou quando não vem em seu socorro, em caso de dificuldades. Aí o paternalismo se transfere para o Estado, é ele que deve atender com o dinheiro público, com o dinheiro dos impostos pagos por todos, os interesses privados, sob a justificativa de que esses oferecem o trabalho, fazem o favor de oferecer o trabalho.
Essa idolatria do trabalho, essa visão de que o trabalho deve centrar a vida de uma pessoa, mesmo que seja marcado pela exploração e por condições adversas, nasceu com o mundo burguês. Temos uma visão moralizante e até salvacionista do trabalho: dizemos que ele dignifica, que ele deve ser usado para recuperar os presidiários, que ele deve ser usado como terapia contra a loucura, etc. No entanto, essa ideologia trabalhista, que configura e contamina até mesmo as forças da esquerda, reafirmam um componente subjetivo fundamental sem o qual o capitalismo não se sustentaria: o desejo de se submeter ao trabalho, mesmo que ele já não tenha as características do trabalho artesanal ou autônomo, destruídos pela concorrência com a grande indústria capitalista: marcado pela livre iniciativa (que agora passa a ser do empreendedor, do capitalista), detendo o controle do tempo de trabalho e da produção (agora transferido para a mão dos patrões), um trabalho criativo, inventivo, para ser monótono e repetitivo, marcado pela produção em série. No entanto, continuamos a fazer apologia ao trabalho, mesmo que ele signifique a subordinação, inclusive subjetiva, como mostra a adesão dos trabalhadores da Guararapes ao discurso do patrão, aos ditames do mercado.
A visão negativa do trabalhador, na sociedade brasileira, advinda da escravidão, favorece a brutal exploração que sofrem os trabalhadores, os baixos salários que recebem, as condições aviltantes de trabalho a que se submetem: o grupo Guararapes já teve que assinar junto ao Ministério Público do Trabalho, por mais de uma vez, Termos de Ajustamento de Conduta em que reconhecia ter descumprido a legislação trabalhista e ter submetido seus empregados a situações vexatórias como o controle das idas ao banheiro e os submetido a um ritmo de produção que levou muitos ao adoecimento. Por termos sido uma sociedade escravista, o trabalho manual ou braçal, entre nós, foi visto, durante muito tempo, como atividade destinada a gentinha, a pessoas de baixa condição social. O trabalho só passou a ser uma atividade valorizada, considerada central na vida das pessoas, atribuidora de dignidade e identidade na sociedade capitalista, no mundo burguês. A ética do trabalho, a incorporação do trabalho como um valor é ainda mais recente numa sociedade como a nossa, onde as marcas da escravidão ainda perseguem aqueles que se dedicam ao trabalho manual. Nossos patrões ainda escondem em seu paletó o chicote de senhor de escravos, o relho senhorial. O sonho de muito deles, confessado explicitamente por alguns, nos últimos tempos, é o fim de qualquer legislação protetora dos direitos dos trabalhadores. A aprovação no Congresso Nacional da prevalência do negociado sobre o legislado, abre margem para a retirada da mediação do Estado nas relações de trabalho, que foi sempre o sonho de nossos empresários. Partir do pressuposto que uma costureira, vivendo numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Norte, que só tem o emprego na facção, mesmo que seja para ganhar um salário de fome, como única alternativa de sobrevivência, vai conseguir negociar com seu patrão, com o grupo Guararapes, melhores salários e condição de trabalho, é acreditar que a gazela negocia com o leão faminto a sua sobrevivência. Nossos empresários sonham com o retorno a uma situação em que possam explorar a mão de obra do trabalhador o máximo possível e, paternalisticamente, oferecer para eles presentinhos no final do ano, tapinhas nas costas quando for considerado operário padrão, coelhinhos de chocolate na Páscoa, com a marca da empresa, ou com os dizeres que estava estampado numa mão portada na marcha em defesa do grupo Guararapes: “Nossa marca é o caráter”. Ainda usarão seus empregados para fazerem o marketing da empresa. Sempre que possível, patrões submetem os trabalhadores a condições de trabalho análogas a de escravos e babam de ódio quando a Justiça do Trabalho interfere nessas relações. Em Unaí, Minas Gerais, fiscais do Ministério do Trabalho foram assassinados por denunciarem a presença de trabalho escravo em fazendas da região. A bancada ruralista reivindica a revogação da lei que permite a desapropriação das terras para fim de reforma agrária em caso de flagrante uso de trabalho escravo.
A cidadania implica o questionamento de toda e qualquer prática paternalista. A cidadania do trabalhador se efetiva à medida que ele passar a ser um sujeito de direito, um sujeito que possui direitos reconhecidos e estabelecidos de forma universal e impessoal. O paternalismo mina a cidadania pois estabelece relações desiguais, personalistas e de privilégio. O pai não lida com seus filhos do mesmo jeito, estabelece preferências, gratifica uns mais do que outros, escolhe a seu bel prazer a quem vai beneficiar, mais ou menos. Se o Código Civil passou a reger as relações familiares foi para que o Estado limitasse o poder discricionário dos pais sobre os filhos. Se a legislação trabalhista existe, se a Justiça do Trabalho existe é para que o Estado medie as relações patrões e empregados, sem fazer distinções ou estabelecer privilégios entre eles. Não importa o número de empregos que uma empresa forneça, esses empregos não são favores ou dádivas, eles visam o lucro, eles visam a extração do sobretrabalho dos operários, portanto devem ter uma função social recolhendo os impostos e obedecendo a legislação trabalhista, como uma forma de divisão dos lucros com a sociedade. Isso é o que se chama função social da empresa ou da propriedade. Foi o trabalho dos funcionários que fizeram nascer ou crescer a fortuna do empresário, foram os investimentos em infraestrutura de transporte, energia ou comunicação, por parte do Estado, que permitiram esse lucro, portanto, devolver parcela dele em forma de impostos e salários, de condições de trabalho dignas não é nenhum favor. O empresário não é bonzinho porque oferece empregos, sem eles seu capital não geraria lucro e riqueza. O paternalismo oferece uma visão distorcida das relações entre capital e trabalho. Aquele que mais se beneficia da relação trabalhista, o patrão, aparece como o benfeitor, enquanto o empregado, que menos benefícios recebe, aparece como o beneficiário. Numa sociedade republicana, num Estado de direito, não importa quem seja, que fortuna tenha, quantos empregos forneça, quantas empresas tenha, todos devem se submeter às leis, cumpri-las e fazê-las cumprir. Como está explícita em nossas leis, o trabalho é um direito do cidadão. A oferta de trabalho de boa qualidade é uma obrigação do Estado e da iniciativa privada, não é nenhum favor, nenhuma dádiva.
 
Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
 
(Publicado originalmente no site da Saiba Mais Agencia de Reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)

Charge! Duke via O Dia

sábado, 30 de setembro de 2017

Caiuá, a Ong de R$ 2 bilhões que se tornou dona da saúde indígena no Brasil



Maurício Angelo

Convênios bilionários mantidos à custa de influência política, relações suspeitas com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), acusações de suborno de lideranças indígenas, denúncias de assédio moral e ameaças a funcionários da instituição. É assim que a Missão Evangélica Caiuá, sediada na zona rural de Dourados (MS) tornou-se dona da saúde indígena no Brasil, recebendo mais de R$ 2 bilhões do governo federal entre 2012 e 2017. A rede de atuação da entidade está na mira do Ministério Público, do Tribunal de Contas da União, do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal.
Em 2000, a Caiuá firmou um convênio com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para prestar serviços de atendimento à população indígena do Mato Grosso do Sul. A parceria durou até 2010, ano em que a Sesai é criada e passa a ser responsável por todas as ações de saúde voltadas aos povos indígenas do país. É a partir daí que o valor dos repasses e a quantidade de convênios entre a Missão Evangélica e a União explodem.
Em 2010, a ONG gerenciava sete dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs)  do país. No ano seguinte, já eram 17 as unidades gestoras de saúde sob seu comando. Os R$ 36,5 milhões recebidos em 2010 saltaram para R$ 433,4 milhões em 2015, ano em que a Caiuá foi a segunda entidade sem fins lucrativos a receber mais dinheiro do governo federal, perdendo só para o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Somente em 2017, até maio (último dado disponível), a Caiuá já tinha levado R$ 248,6 milhões dos cofres públicos, e lidera o  ranking de ONGs mais beneficiadas pela União.

ONG tem 64% dos atendimentos

O domínio impressiona: a Caiuá responde por 64% dos atendimentos em saúde indígena. O restante fica a cargo de outras duas entidades: o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) e a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM). Com mais de 9 mil funcionários espalhados pelos 19 distritos sanitários em que tem contratos atualmente, a entidade atua do Acre ao Rio Grande do Sul – com destaque para Roraima e Mato Grosso do Sul. A ONG cobre, assim, uma população indígena estimada em 510 mil pessoas e é responsável por toda a contratação de profissionais de saúde especializados e pela gestão dos contratos. A Sesai fornece a estrutura adequada e os suprimentos necessários.
Instituição quase centenária, a Caiuá foi fundada em 1928 em Dourados por Albert Maxwell, pastor presbiteriano americano que decidiu empreender uma jornada de evangelização aos povos indígenas brasileiros. Além dos convênios, a entidade é dona do Hospital e Maternidade Indígena Porta da Esperança, inaugurado em 1963, e do Instituto Bíblico Felipe Landes. Além disso, criou a primeira Igreja Indígena Presbiteriana no Brasil, em 2008, e mantém diversas escolas no Mato Grosso do Sul, responsáveis por milhares de alunos, da pré-escola ao ensino médio.

Jucá, o padrinho

Para entender a influência atual da Caiuá, é preciso voltar ao ano 2000, quando o farmacêutico Demetrius do Lago Pareja assumiu a coordenação de convênios e passou a ser responsável por toda a articulação política da entidade. Ele é apontado como o principal elo da ONG com o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que se tornou o grande padrinho político da Caiuá.
“Ele (Jucá) é quem garante todo o aparato para que a Missão possa continuar com os contratos milionários. Eles batem no peito e desafiam a Justiça a apontar irregularidades na gestão deles. A maioria das denúncias eles conseguem abafar com essa influência forte de padrinhos políticos”, afirma Lindomar Ferreira Terena, ex-presidente do Distrito Sanitário de Mato Grosso do Sul.
Procurado, Romero Jucá se recusou a comentar suas relações com a Caiuá. Ainda um dos homens fortes do presidente Michel Temer (apesar dos 14 inquéritos a que responde no Supremo Tribunal Federal), Jucá se tornou o primeiro governador do recém-criado estado de Roraima, por nomeação de José Sarney, em 1988. Antes disso, de 1986 a 1988, presidiu a Fundação Nacional do Índio.
À frente da Funai, amealhou façanhas: loteou a instituição com indicações políticas, autorizou a extração ilegal de madeira em território indígena, reduziu o tamanho do Parque Yanomami, liberou áreas para exploração de mineração, expulsou médicos e missionários e ainda é citado em relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) como responsável direto pelo genocídio de milhares de índios yanomamis. Para a CNV, Jucá permitiu que cerca de 40 mil garimpeiros invadissem as terras indígenas, o que causou um impacto devastador na comunidade.
Além do senador, a Caiuá teria a proteção também de Pastor Everaldo, presidente do PSC, partido que controla a Funai e tem promovido um desmonte completo na instituição, como admitiu o ex-ministro da Justiça Osmar Serraglio. O pastor evangélico Antônio Costa, que presidiu a Funai por menos de quatro meses este ano por indicação do PSC, é ex-funcionário da Caiuá, tendo atuado de 2005 a 2009 na instituição. Costa deixou o cargo em maio, trocando farpas com Serraglio e indicando divergências na cúpula.

Empregos na ONG em troca de votos

Roraima é o estado com a maior população proporcional indígena do Brasil e concentra também a maior presença institucional da Caiuá, que controla o Distrito Leste e o Yanomami. Juntos, os dois somam mais de 1.800 funcionários da Caiuá e são responsáveis pelo atendimento de cerca de 75 mil indígenas.
Ismael Cardeal, coordenador da Caiuá em Roraima e um dos homens de confiança de Demetrius Pareja, está sendo investigado pela Polícia Federal por oferecer empregos na ONG em troca de votos para sua candidatura a vereador em 2016, cargo para o qual ele não conseguiu ser eleito. A PF realizou busca e apreensão de documentos e dinheiro na sede da entidade em Boa Vista em outubro de 2016. Procurada, a PF não comenta a questão por sigilo. A Missão Caiuá diz que aguarda o resultado do processo para decidir se demite ou não o coordenador regional.
Ismael Cardeal, coordenador da Caiuá, posa com o senador Romero Jucá
Ismael Cardeal, coordenador da Missão Evangélica Caiuá, posa com o senador Romero Jucá.
Reprodução
As relações suspeitas entre políticos e gestores de distritos sanitários levaram a Hutukara Associação Yanomami a formalizar denúncia no Ministério Público Federal de Roraima e na Sesai em 2013. Os indígenas tiveram acesso a uma gravação de áudio que apresentava “indícios de ligações e influências” do deputado estadual Jânio Xingu (PSL) com Joana Claudete (coordenadora do DSEI Yanomami), Antônio Gonçalves (assessor de Planejamento do DSEI) e Ismael Cardeal. Para a associação, ficou claro à época nas gravações que havia uma articulação entre essas pessoas no sentido de manter a hegemonia da Caiuá nos convênios com a Sesai.
Na denúncia, a Hutukara afirmou ainda que o DSEI não cumpria a obrigação de disponibilizar os dados epidemiológicos e não era transparente com o uso dos recursos. Denunciaram também a falta de medicamentos, de infraestrutura e de condições para que as equipes de saúde prestem assistência básica. “Não compreendemos como o DSY [DSEI Yanomami] pode estar prestando um serviço de saúde com os problemas que vivenciamos tendo cerca de R$ 48 milhões só para o exercício de 2013, fora os mais R$ 38 milhões da Missão Evangélica Caiuá que é responsável apenas pela contratação dos funcionários. Este orçamento em anos anteriores era de R$ 8 milhões no máximo. Aumentaram os recursos mas não melhorou a saúde e a qualidade de vida”, diz o documento.
Três anos depois, numa mudança de postura no mínimo curiosa, Davi Kopenawa Yanomami, presidente da Hutukara, assinou uma “Manifestação de Apoio à Missão Evangélica Caiuá”. Nela, elogia a Caiuá por pagar salários em dia; afirma que os funcionários estão satisfeitos com a entidade; diz que “não há ato que desabone o Coordenador (Ismael Cardeal) e funcionários do escritório da Caiuá em Roraima, uma vez que se pautam pela transparência nos seus atos”.
O presidente da associação diz ainda que a Hutukara, legítima representante do povo Yanomami e Ye’kuana, fiscaliza e monitora todas as ações da Caiuá no estado e, por fim, manifesta “total apoio à permanência da Caiuá como conveniada junto à Sesai para o DSEI Yanomami”. Davi Kopenawa afirma que questionamentos anteriores à Caiuá teriam ocorrido “por um erro de assessoramento”.
A carta teria sido redigida por Ismael Cardeal, com a anuência e supervisão de Demetrius Pareja, restando a Davi Kopenawa, presidente da Hutukara, a mera assinatura. Procurada, a Hutukara não se pronunciou até o fechamento desta matéria. Os representantes do DSEI Yanomami também se recusaram a comentar o caso. Em ofício enviado para a reportagem, o MPF/RR informa que arquivou a denúncia porque a apuração dos fatos mostrou que “nenhum servidor do DSEI-Yanomami ou político local teve influência na escolha e na manutenção da Caiuá, uma vez que houve um chamamento público federal”.

Condições de trabalho em xeque

A Missão Evangélica Cauiá também já se viu às voltas com a Justiça do Trabalho. Em 2012, o Ministério Público do Trabalho (MPT) em Roraima ingressou com uma ação civil pública na Justiça do Trabalho contra a ONG e a União. O objetivo do MPT era assegurar melhores condições para os profissionais da área de saúde que prestam serviços nas comunidades indígenas de Roraima. À época, havia denúncias de condições precárias de trabalho.
Em 2015, a Caiuá firmou um acordo com o MPT, se comprometendo a mudar o modelo e oferecer padrões mínimos de higiene, saúde e segurança. Em entrevista a The Intercept Brasil, a procuradora do trabalho Safira Nila Rodrigues afirmou que a maioria das inconformidades foi ajustada, mas que recentes auditorias, incluindo a que foi realizada em 2017, mostram que a Caiuá ainda não cumpre com todas as condições colocadas – a escala de trabalho prevista em alguns contratos continua a não ser devidamente respeitada, por exemplo. Segundo ela, “o MPT tem ciência de todas dificuldades e está atento no bojo desse processo para requerer que a União também seja intimada. Vamos continuar nas fiscalizações dos polos de saúde”, promete.

Falta de transparência

O controle social, através do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI), dos DSEIs, dos Grupos de Trabalho e outras instâncias, é um dos mecanismos mais importantes que os indígenas têm à disposição para fiscalizar a aplicação dos recursos, a qualidade do atendimento, identificar as necessidades de cada povo e fazer suas reivindicações. No entanto, é um processo contaminado pelas influências políticas, que faz com que presidentes de DSEIs e de CONDISIs fiquem na mão das entidades, especialmente a Caiuá.
Para o procurador Gustavo Alcântara, o controle social definitivamente está aquém do que deveria. “As instâncias de controle não têm informações transparentes do que acontece, não têm acesso a vários documentos, não têm estrutura para trabalhar e recursos para realizar fiscalizações, reuniões e deliberações. Há muito o que melhorar”, enumera.
O caso do DSEI do Mato Grosso do Sul é bem sintomático dessa realidade. Lindomar Terena foi presidente da unidade por três meses em 2016. Tanto sua nomeação quanto sua exoneração, no início do governo Temer, causaram protestos – o que dá uma ideia das inúmeras brigas políticas que contaminam as questões indígenas do estado. Durante sua gestão, no entanto, Lindomar pôde apurar várias irregularidades.
Para ele, que atua na luta indígena pelo menos desde 2003 e mora na Terra Indígena Cachoeirinha, situada na divisa do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, o estado em geral da saúde indígena é de calamidade pública e falta boa gestão para mudar isso. Lindomar também acusa a Missão Caiuá de utilizar indevidamente as instalações do próprio DSEI para suas despesas operacionais, de pressionar funcionários a defender a ONG, sob pena de demissão, e de manter funcionários fantasmas.
“Encaminhamos ao Ministério Público Estadual alguns dados de funcionários que ganhavam da Missão Caiuá sem trabalhar. Não podíamos conviver com aquela situação e eles foram demitidos. A Caiuá tentou nos intimidar conforme fazíamos auditoria mas mantemos nossa posição”, conta.
No caso da denúncia dos funcionários fantasmas, o MP não conseguiu provar as acusações feitas por Lindomar.

Convênios ao menos até o fim do ano

Até 2016, a Sesai foi administrada pelo médico cirurgião Antônio Alves, que comandou a transição da Funasa para a secretaria. Alves teria relação próxima com Demetrius Pareja, o que pavimentou o caminho para que a Caiuá alcançasse os 19 DSEIs no chamamento público de 2013, convênios que serão mantidos até o fim de 2017 e possivelmente, caso uma nova extensão ocorra, até o fim de 2018.
Com a saída de Antônio Alves, a relação entre a Caiuá e seu sucessor no cargo, Rodrigo Rodrigues, hoje diretor de Proteção Territorial da Funai, foi marcada por animosidade. Lindomar Terena conta, por exemplo, que a Caiuá chegou a mandar mensagem para todos seus funcionários no Mato Grosso do Sul convocando-os a manifestarem apoio à Caiuá, para que a ONG continuasse com os convênios. Do contrário, todos seriam demitidos.
“Os funcionários foram para a rua, para o DSEI, para polo de saúde, para a BR, manifestando apoio a Caiuá. Eles usam os próprios funcionários para manter os convênios. Se os funcionários não manifestassem apoio, em 30 dias, todos estariam desempregados. E as pessoas, mal informadas, obedeceram”, afirma.
Segundo Lindomar, a Caiuá em Campo Grande nem se preocupa em ter escritório próprio. Em vez disso, aproveita-se da estrutura dos distritos que comanda. “Quando assumimos o DSEI, descobrimos que ela usava uma sala, as viaturas, telefone, internet, água, luz, tudo dentro dele. Como ficamos apenas 3 meses, não conseguimos removê-los, ela continuou e a nova gestão tomou conta. Esta é a forma que eles atuam no estado”, acusa.

Alvo do TCU

Na sua cidade-sede, a Caiuá sempre chamou atenção: foi um dos alvos da chamada “CPI da Desnutrição Indígena”, finalizada em 2008. Na época, o escândalo da morte de mais de 80 crianças indígenas no Mato Grosso do Sul, vítimas de desnutrição ou de doenças associadas à inanição, teve repercussão internacional. O relatório da CPI indicou que havia conflitos de funcionários que não aceitavam o modelo de gestão terceirizado, questionado pelo Ministério Público do Trabalho e pela Controladoria Geral da União.
Para o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, que atua em Dourados há 9 anos, um dos fatores que dificultam a fiscalização é que a aplicação do recurso é descentralizada. “Torna-se uma investigação um pouco mais difícil porque em tese esses desvios são realizados nos locais sede e não aqui, em que receberiam só o pagamento. Esse é um fator que dificulta, especialmente com o crescimento que a Caiuá teve nos últimos anos”, afirma.
Há em curso contra a Caiuá também uma investigação do Ministério Público Federal e um processo em andamento no Tribunal de Contas da União (TCU) para auditar convênios da Sesai em todo o país. O processo foi enviado para relatoria do ministro Bruno Dantas em novembro de 2016 e aguarda julgamento do plenário colegiado do TCU, ainda sem previsão de acontecer. A reportagem teve o pedido de acesso ao processo negado.
No entanto, em entrevista, o secretário do TCU no Mato Grosso do Sul, Tiago Modesto, afirma que foram encontradas irregularidades nos convênios das três entidades responsáveis pela contratação de pessoal para os distritos sanitários (Caiuá, IMIP e SPDM). Segundo ele, a auditoria analisou se os profissionais contratados cumpriam a obrigação laboral de acordo com o total de horas previsto no sistema; se a fiscalização da gestão do convênio estava sendo realizada conforme a lei (Portaria Interministerial 507 e Decreto 8.901 de 2016); e se os cerca de 15% do valor de cada convênio para gestão do contrato foram de fato gastos com despesas administrativas.
“O que posso dizer no momento é que todas as entidades apresentaram desconformidades em relação à lei”, adianta Modesto. Segundo ele, a auditoria não partiu de uma denúncia específica, mas porque o volume de recursos repassados para a Caiuá chamou a atenção por ser alto demais.
“Convênios em geral possuem algumas fragilidades de controle, não costumam ter um controle muito apurado”, assume o secretário.
No site do TCU, já estão disponíveis o acórdão 863/2017 e o acórdão 2187/2016 , que servirão de base para o julgamento do plenário. Lá, a Caiuá é intimada a fazer ajustes:
“Dentre as determinações dirigidas à Sesai, destaca-se a que se propõe exigir das convenentes “que todos os profissionais atualmente contratados e ativos comprovem junto às entidades a compatibilidade de seus vínculos adicionais”, bem como a que fixa prazo de 90 (noventa) dias à Sesai para exigir dessas entidades, inclusive da Missão Evangélica Caiuá (responsável pelos indígenas de Dourados/MS), providências com vistas a inserir nos planos de trabalhos de cada um dos convênios demonstração das estruturas de pessoal necessárias para sua gestão..”  

Outro lado: Caiuá nega irregularidades

Em entrevista concedida pelo seu coordenador de convênios, Demétrius Pareja, e pelo seu presidente nacional, Geraldo Silveira, a Missão Evangélica Caiuá negou todas as irregularidades e afirmou que assumiu os convênios com a Sesai “a contragosto”. Os dois representantes alegam que, no chamamento público de 2013, a intenção era administrar menos DSEIs mas que acabaram assumindo mais distritos “porque não tinha ONGs interessadas”, e a experiência da entidade a credenciava para assumir a responsabilidade.
A Caiuá também afirmou que todas as suas prestações de contas foram realizadas em dia e que, auditadas por instituições públicas, não apresentaram nenhuma irregularidade até o momento. Lembrou ainda que os dados podem ser vistos pelo sistema de convênios do governo federal em tempo real com total transparência.
Segundo seus representantes, a assembleia da instituição já deliberou que a Caiuá irá entregar todos os convênios até o fim de 2017 – ou no máximo até o fim de 2018, caso sejam ampliados pelo ministro Ricardo Barros. Mas após quase 20 anos atuando diretamente na saúde indígena, não participará de novos editais ou chamamentos da Sesai. “Os questionamentos e críticas quanto ao modelo de saúde indígena têm caído nas nossas costas. Isso tem trazido mais prejuízo que benefício para a imagem da instituição”, diz Silveira. Encerrados os atuais convênios, “está oficializado que a Missão não vai participar de novos chamamentos”, comprometeu-se.
Segundo eles, o volume de recursos recebido pelo governo federal teria passado a inibir as doações que sempre mantiveram as ações da instituição desde a sua fundação. De acordo com Pareja, o risco não compensa. “Acumulamos muitos questionamentos e inseguranças jurídicas. Gerir 9 mil funcionários é um risco institucional muito grande. São muitos políticos se arvorando como parte da Caiuá ou nos execrando porque não colaboramos com eles”, defende-se.
As doações recebidas de igrejas brasileiras e do exterior teriam caído mais de 60% em função do protagonismo que a Caiuá assumiu e das centenas de milhões que recebe por ano. “Quando mando uma circular pedindo uma doação para o hospital, por exemplo, a resposta que tenho é ‘porque vamos doar se vocês já recebem tanto?’. Isso é um incômodo muito grande para a instituição”, diz Silveira.
Segundo a entidade, as irregularidades apontadas em ação do Ministério Público do Trabalho de Roraima foram em função de responsabilidades não cumpridas da União. E reiterou que está ciente das investigações em curso do Ministério Público, do TCU e da Polícia Federal mas que, até o momento, a Caiuá não foi condenada e que garante total transparência na sua atuação.
A Caiuá negou qualquer relação com os políticos citados na reportagem que não a meramente protocolar e formal e também que o senador Romero Jucá tenha atuado como seu padrinho. Demetrius Pareja afirmou ainda que sua relação com Antonio Alves, secretário da Sesai, era cordial e próxima, mas absolutamente funcional.
A ONG também negou expressamente que mantenha funcionários fantasmas. Os representantes dizem que jamais ameaçaram ou assediaram moralmente seus funcionários de forma institucional e que todo caso esporádico foi investigado e punido internamente. Por fim, seus representantes reforçaram que a ONG sempre ficou à margem de eventuais disputas políticas.

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

Le Monde: A violência e o retorno do Leviatã

 

O problema é que esse modelo de democracia está em crise e na falta de opção, as pessoas vão cambaleando para a única opção que conhecem: o culto ao Leviatã. Ironicamente, passam a odiar o que foram ensinadas a amar.
por: Raphael Silva Fagundes e Wendel Barbosa
29 de setembro de 2017
Crédito da Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

1092003-capa_img_20170925_174927
Na manhã de domingo, do dia 17 de setembro, moradores da Rocinha acordaram ao som de tiros, num conflito interno entre os traficantes da comunidade. Na noite do mesmo dia, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, mais um policial militar foi morto, o 103º. Em julho, moradores da Vila Kennedy, zona oeste do Rio de Janeiro, fizeram um protesto – contra a violência corriqueira no bairro – na principal avenida que corta o estado, a av. Brasil. Em matéria no site do Jornal O Globo, de 18 de setembro, a manchete estampada dá conta de que mais de 3 mil estudantes estão sem aulas devido a operação policial na zona sul: seis escolas, quatro creches e um espaço de desenvolvimento infantil.
Todos os dias nos deparamos com chamadas parecidas em nossos noticiários. Os números baseados em registros de ocorrência lavrados nas delegacias policiais de todo o estado do Rio de Janeiro, dão conta que – em comparação à 2016 – os casos de homicídio doloso subiram 10,2%, latrocínio subiu 21,2%, homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial subiram 45,3% (581 casos até julho passado) e roubo de veículos subiu 40,2% .Existe um consenso popular, pautado pelo senso comum, de que os noticiários só nos mostram desgraças. A violência é um tema que está muito em evidência ultimamente na sociedade brasileira. A mídia nos tem bombardeado com notícias sobre como é triste a nossa realidade. E o mais interessante disso tudo, é que a opinião formada é de que ela – mais do que um fenômeno, geralmente, urbano que cresce na mesma proporção do aumento populacional e em momentos de crise econômica – é recente.
No ócio, segundo Theodor Adorno, “as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema” . Da mesma forma, os noticiários – como parte dessa indústria do entretenimento – acaba por massificar a ideia de violência em nossas mentes. O criminalista Antônio Carlos Mariz de Oliveira – em entrevista para o jornalista Luis Nassif – diz que a “TV não veio só para o Ibope, mas para servir a sociedade como instrumento de formação. Mas, a TV teatraliza, instiga e assinala para a sociedade que a única resposta possível ao crime é a prisão” .
Para o sociólogo Max Weber, o Estado seria um instrumento de violência organizada, que possui o legítimo monopólio do uso da força. Ou seja, tem o direito de recorrer à força sempre que houver necessidade . A violência, dessa forma, muitas vezes só é combatida com mais violência, seja ela física ou moral. Nesse sentido, nos é apresentado um modelo legítimo de violência relacionado aos interesses dos grupos que detém o poder político e econômico. O Estado, desta maneira, orquestrado por grupos que mantém sua hegemonia, na medida em que afasta qualquer ideia de luta de classes, cria os monstros para os quais devemos apontar nossa ira, justificando o controle social. Enfim, o grande truque é fazer com que a sociedade passe a acreditar na proteção contra um inimigo comum, indesejado por todas as camadas sociais, forjando, assim, um discurso de legitimidade.
Na era moderna, durante as monarquias absolutistas, o crime era encarado como uma sublevação ao soberano que fazia valer sua força através do triunfo das leis que criou. O suplício teria uma função jurídico-política: a busca pela verdade e a reconstituição da soberania lesada . Nesse sentido, as execuções públicas, encaradas como um espetáculo, colocava o povo como testemunha e, ao mesmo tempo, o coagia – pelo poder exposto – a temer caso fosse desobediente. As pessoas devem perceber que o criminoso foi punido, pois a pena deve ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram falta. Atualmente, ao contrário do que acontecia na época dos suplícios, “a verdade do crime só poderá ser admitida uma vez que inteiramente comprovada” . O espetáculo da mídia é o principal instrumento de comprovação da criminalidade latente entre nós.
Dessa forma, todos somos uma pequena engrenagem que mantém funcionando todo um sistema de opressão. O corpo – como acredita Foucault – só será útil na medida em que for obediente . Para isso é necessário a disciplina através da vigilância. Toda vez que a ideia de impunidade é reclamada, o que se deseja, portanto, é demonstrar que o conjunto de costumes e hábitos fundamentais da sociedade foi violado. Dessa forma, partindo do princípio de Weber, a veiculação dessas notícias, nos meios de comunicação de massa, busca o consenso da sociedade civil à violência praticada pelo Estado. Só ele pode restaurar o ethos perdido, que visa o retorno do controle sobre os seus corpos.
É na falha do Estado em demonstrar esse controle que discursos mais autoritários como do deputado federal Jair Bolsonaro, ou do General Antônio Hamilton Martins Mourão, Secretário de Economia e Finanças do Exército – que em palestra promovida, no dia 15 de setembro,numa loja maçônica, em Brasília,defendeu uma intervenção militar no país – ganham cada vez mais força. Ambos, já homenagearam publicamente – a título de curiosidade – o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça brasileira como torturador durante os anos de ditadura militar no país. Com o sentimento de impunidade e insegurança, para muitos, é preferível a estabilidade da retórica autoritária a defesa de princípios democráticos básicos como a liberdade.
O retorno do Leviatã
Mas a violência na cidade, de acordo com a mídia, está sempre relacionada à crise econômica. Trata-se da transformação da violência cotidiana em violência simbólica. Sim, pois tem o objetivo de monopolizar a interpretação das causas da violência, depositando toda a culpa no Estado, na corrupção e não na lógica da sociedade de consumo que está alheia a uma distribuição mais igualitária das oportunidades.
Pensa-se em punir as populações marginalizadas espetacularmente, com drama e entretenimento, para não nos inclinarmos a pensar nas causas sociais e econômicas de sua marginalização. Hipnotizados ficamos com a imagem em movimento. A mídia estipula uma definição da realidade calando todas as outras com o interesse de manter as relações sociais tradicionais intactas.
A partir dessa lógica, surge um paradoxo: ao mesmo tempo em que se exige um Estado forte para a repressão, exige-se, também, um Estado mínino para o mercado. Qualquer distúrbio que atrapalhe a circulação e exibição das mercadorias deve ser apaziguado. O espetáculo midiático nos faz crer nessa sentença sem que percebamos. E dessa violência simbólica, nasce a violência física que alimenta a cultura punitiva de nossa sociedade. Entregamos a liberdade em troca de um modelo de segurança que não visa a paz social, mas o tráfego das mercadorias. Não se pensa nas pessoas, mas nos consumidores em potencial. Consumir não pode ser arriscado, esse é o lema.
Esse raciocínio, que não dá as caras, mas está submerso nas relações discursivas, torna-se perigoso por uma questão singular de nossa época. A hegemonia da democracia burguesa enfraqueceu todas as alternativas a ela. Tudo que não representa a democracia ocidental, simbolizada, principalmente, no modelo estadunidense, é considerado autoritário, espúrio e enganador. Ou preservamos a nossa democracia, ou seremos submetidos ao domínio tirânico de um Leviatã. A indústria cultural é a principal geradora desse discurso maniqueísta, com seus supermans, x-mens e vingadores.
O problema é que esse modelo de democracia está em crise e na falta de opção, as pessoas vão cambaleando para a única opção que conhecem: o culto ao Leviatã. Ironicamente, passam a odiar o que foram ensinadas a amar. E a amar o que foram adestradas a odiar. O monstro lendário é requisitado novamente para conter a violência latente nos seres humanos. A grande imprensa valoriza os depoimentos de moradores, turistas e comerciantes que celebram a presença dos militares. É desta forma que os discursos radicais ganham espaço, seduzindo as pessoas a seguirem essa lógica bipolar criada pela cultura política hegemônica.
Tal discurso não prejudica o andamento dos lucros do mercado, pois se baseia apenas na repressão social, e não na resolução da queda do desemprego, na valorização dos profissionais da educação e das condições físicas das escolas, e o mesmo serve para a saúde e assistência social. As elites endinheiradas querem sim que nos revoltemos, mas não contra elas, e sim contra o Estado, exigindo que ele nos reprima mais, que exerça de fato a violência física, fazendo justamente o que foi criado para fazer.
*Raphael Silva é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
** Wendel Barbosa Pós-graduado em História social e cultural do Brasil pela FEUC e professor da rede estadual e particular de ensino.

[3]http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2017/07/29/internas_polbraeco,613518/violencia-no-rio-de-janeiro-aumentou-no-primeiro-semestre-de-2017.shtml
[4]ADORNO, Theodor W. Industria Cultural e Sociedade. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 116.
[5]Ver http://jornalggn.com.br/noticia/a-influencia-da-tv-aberta-na-violencia-difusa
[6]Ver WEBER, Max.  “A Política como Vocação”. Em Ciência e politica: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993..
[6]FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas prisões. 24 ed. Petrópolis: Vozes, 2001,p. 232.
[7]FOUCAULT, op cit,p. 42.
[8] RODRIGUES, Thiago. Rio de Janeiro sitiada? Le Monde Diplomatique Brasil, ano 11, n. 122, set. 2017, pp. 10-11.
[9]FOUCAULT, op cit,p. 82.
[10]FOUCAULT, op cit,p. 119.
[11] Questão levantada por GARLAND, David. La cultura Del control: crimen y orden social en la sociedad contemporânea. Traducción de Máximo Sozzo. Barcelona: Gedisa, 2005.p. 323

 

O que as cotas raciais têm feito comigo?

                                           


O que as cotas raciais têm feito comigo?
AddThis Sharing Buttons
 

Entro em sala de aula. Olho para os lados. Somos cerca de 40 pessoas para mais um dia de aula, entre eles, pelo menos 30% de estudantes negros/as. Há também a presença de estudantes gays e lésbicas, que exibem, orgulhosos/as, símbolos e camisetas que os/as identificam com causas dos ativismos LGBTTs.
A universidade mudou. Os efeitos ainda não estão elaborados porque são rizomáticos. Talvez a forma como penso a relação entre a minha biografia e a cor da minha pele seja um destes efeitos invisíveis.
A primeira vez em que escutei que a cor da minha pele me conferia privilégios, reagi com estranheza. Ora, como é possível que uma filha de empregada doméstica, retirante, estudante de escola pública que começou a trabalhar aos 15 anos de idade possa ser considerada uma privilegiada? O que é um privilégio?
Privilégio é aquilo que você herda e é socialmente reconhecido/a como um bem material ou/e simbólico. “Reconhecido/a” não porque se tratem de atos absolutamente conscientes, mas sociais. O fato de você ser reconhecida como branca tem o dom mágico de abrir portas. É como se fosse um passaporte que pode te levar para lugares interditados aos/às que não o possuem.
Mas… Qual seria, afinal, o meu privilégio? Hoje, faço parte da elite universitária, sou doutora, com pós-doutorado, embora continue fazendo da minha vida um lugar de luta pela transformação e justiça social. A primeira reação, portanto, seria relatar a mim mesma como alguém que “conseguiu” vencer na vida por mérito, reatualizado o mito midiático da heroína que subverte seus destinos inscritos no corpo. Será?
Volto com certa regularidade ao bairro onde morei por longos anos. Às vezes me encontro com colegas do meu tempo de escola. Há uma regra geral: as amigas negras trabalham no supermercado ou em outro trabalho mal remunerado. Não consegui refazer os rastros dos meus colegas negros.
Lembro que, algumas vezes, uma colega e eu fomos juntas tentar um emprego de garçonete. Eu consegui. Mandaram-na voltar depois. Tínhamos entre 14 e 16 anos. Ela era negra. Na escola, nossas notas eram muito próximas. O que me diferenciava da minha amiga? A classe social? Não. A cor mais clara de minha pele me deu coisas, me abriu portas. Foi meu passaporte. Conforme fui atravessando os funis da vida universitária, a cor da minha classe foi ficando mais homogênea.
Neste jogo de reinterpretação da minha própria existência eu também me pergunto o que o gênero em que eu fui construída – o feminino – me tirou? Quais as portas que se fecharam por ser paraibana no contexto carioca, em que um xingamento recorrente é chamar o outro paraíba?
É como se a consciência dos dividendos do período da escravidão fossem sendo lentamente revelados para mim e localizando minha própria existência em um fluxo histórico que eu não controlei, em uma narrativa fora de mim, mas que encontra seu “agora” histórico (nos termos do Walter Benjamin) também em minha existência.
Minha questão é tentar entender como os dados de exclusão social, política e econômica da população negra se conecta com a minha própria inclusão. Não se trata de uma falta de consciência histórica dos sentidos dos 388 anos de escravidão no Brasil, mas, agora, eu também estou interessada em amarrar a existência desta história aos meus relatos.
De forma alguma reler minha biografia vinculando-a a contextos mais amplos, acredito, resvala para um juízo moral. Este movimento de reinterpretação, de cavar camadas antes adormecidas de minha memória, não teria sido possível se, um dia, estudantes negros/as em sala de aula não tivessem me questionado sobre meus próprios privilégios de raça, se estudantes não inundassem a sala de aula com suas histórias pessoais de violência do Estado. Estudantes que representam, geralmente, a primeira geração de suas famílias a ingressar em uma universidade.
Recentemente, assistimos a um episódio do seriado Black Mirror que contava a história de como um exército desenvolveu uma técnica para distorcer a realidade e fazer os/as soldados matarem sem culpa. Estava acoplado aos capacetes um dispositivo que transformava gente em barata. Durante a aula, estudantes começaram a contar suas próprias experiências de “baratas” (como um deles se definiu: “nós somos as baratas na sociedade brasileira”): assassinato de membros da família, prisões arbitrárias, blitz abusivas e violentas.
Olhei para os lados e me dei conta de que aquelas narrativas de terror vinham quase todas de estudantes negros/as. Saí da aula atravessada por suas histórias e me dando conta de quanto tempo eu perdi ao estar fechada para a escuta do/a outro/a. Reproduzia, assim, nos meus atos, nos meus programas de curso, uma estrutura do conhecimento na qual fui formada e que tem aversão a qualquer saber que venha poluir os cânones eurocentrados das Ciências Sociais. Enfim, tenho descoberto que tenho uma formação acadêmica, no mínimo, deficitária.
Como eu estaria no mundo atualmente se não fossem as cotas raciais? Não sei. Talvez reproduzindo o canto liberal do mérito, algo que, certamente, poderia ser potencializado pelos outros marcadores sociais da diferença que me constituem. Agora, percebo que o título deste artigo deveria ter sido: O que as cotas raciais têm feito por mim?
BERENICE BENTO é professora do departamento de Sociologia da UnB

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Mor via Folha de São Paulo

Claudio Mor