pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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segunda-feira, 9 de março de 2020

Michel Zaidan Filho: A fraqueza da democracia


 
A frágil institucionalidade democrática no Brasil nunca esteve tão ameaçada de morte como hoje. Não é por  obra de nenhum agente externo. É em razão da falta de um consenso interno entre  seus cidadãos e cidadãs sobre o valor da democracia. Vilipendiada  por uns e outros como "burguesa" ou de "fachada", o fato é que parte da sociedade brasileira está decidida a ajudar a enterrar as instituições políticas brasileiras, sob o comando de um tresloucado chefe que brinca de ditador, confiando em seus eleitores em permanente estado de mobilização. É como se as eleições não tivessem se acabado e o "inimigo comum" ainda estivesse aí para ser esconjurado. Neste sentido, ele estaria escondido na oposição, nos movimentos sociais, na imprensa, nas universidades, na cultura etc. De certa forma, é uma cruzada religiosa-política, sob as  bençãos das igrejas pentecostais e neopentecostais, contra as liberdades e os avanços democráticos da Constituição de 1988.

Quando um Chefe de Estado estimula um ataque ao parlamento, confiado nos preconceitos e lugares-comuns  da população contra os políticos e a política, sob a alegação de que ele obstrui as medidas necessárias para salvar o país da crise, ele calcula o desprestígio de que goza a ação parlamentar no país, transformada no bode expiatório do baixo crescimento econômico, na   fuga de capitais, no enorme contingente de desempregados, na alta do dólar ou no preço da gasolina. Falta explicar - em bom economês - ao distinto público a razão de ser da política econômica do atual governo: a ancora fiscal que sobredetermina todas as outras políticas, saúde, educação, meio-ambiente , seguridade social, emprego etc.  Deve o atual mandatário da República explicar em bom e claro português, que que está sendo feito  para alcançar um superávit primário nas contas públicas que permita pagar as obrigações financeiras de uma dívida pública trilhonária que hoje chega a 80% do PIB, e que leva 40% do orçamento da União, todos os anos, com o pagamento dos serviços dessa dívida, sustentada com o suor e o sangue do povo brasileiro.

Enquanto isso, o Presidente da República se aplica a exercícios de histrionismo, escatologia verbal, ameaça a repórteres e a instituições. É preciso um grau de alienação social muito grande para permitir esse jogo de incitação popular, encoberto por uma retórica  anticomunista, que ver o inimigo em toda parte. É a velha estratégia de mobilização popular que elege um adversário comum e procura unificar parte da sociedade contra a imaginária ameaça, como se estivéssemos numa guerra permanente. E a âncora fiscal vai sendo viabilizada, goela abaixo, sem discussão, sem debates, sem transparência. Este governo  só deve obrigações ao mercado financeiro e as empresas multinacionais. E mais a ninguém. Seu nacionalismo vazio, oco, feito para engazopar os ingênuos, é uma mera cortina de fumaça para esconder a política rentista, especulativa a serviço do grande capital. Fica para os seguidores a "mise-en-scène" fascista das demonstrações de força, das agressões verbais e físicas, da adoração dos símbolos nacionais, Só isso. Enquanto a pátria e o patrimônio público é vendido na bacia das almas, a preço de banana, em "tenebrosas transações". É a pantomima coordenada pelos responsáveis da política econômica, jogo de cena, espetáculos circenses de atores baratos e mambembes  que vão entretendo a distinta plateia, com a conivência ou medo dos outros poderes e da grande imprensa. 

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia. 

sexta-feira, 6 de março de 2020

Foda-se: entre o real, o simbólico eo imaginário do Congresso

 

Foda-se: entre o real, o simbólico e o imaginário do Congresso
Jair Bolsonaro toma posse como presidente da República em cerimônia no Congresso Nacional (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

Já era Carnaval, menos no calendário e mais no espírito, quando, na manhã de 19 de fevereiro, o general Heleno – que não é apenas mais um militar na entourage do presidente, mas uma de suas maiores estrelas, chefe do Gabinete de Segurança Institucional – disse: “Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se”. Tinha como interlocutores o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Dali em diante, a começar por uma postagem no Twitter justificando que a declaração refletia “apenas” a sua opinião e não era fruto de conversas com o presidente da República, houve dois momentos.
No primeiro momento, durante dois dias a fala de Heleno ficou estampada na primeira página das versões online de grandes jornais e ali parecia fadada a morrer. A naturalização e a banalização dos absurdos que partem de Brasília amortecem qualquer coisa e tem baixa capacidade de produzir reações fora do círculo previsível das repercussões oficiais. Aqui, meu artigo poderia se desenvolver na direção do debate sobre o alarido das redes sociais e a capacidade bolsonarista de mobilizá-las contra e a favor. Mas escolhi tomar outra rumo, inspirada pelo que se deu no segundo momento, quando as redes sociais bolsonaristas foram atiçadas por dois vídeos.
A imprensa voltou a se mobilizar quando o jornalista Vera Magalhães denunciou, no Estadão, que a convocação de manifestações contra o Congresso havia sido disparada pelo próprio presidente da República e seu conhecido talento para jogar gasolina na fogueira. Já era terça-feira de Carnaval, dia 25, quase uma semana depois do general Heleno ter estado nas primeiras páginas do noticiário, e enfim a indignação parecia se espalhar, dificilmente em igual proporção do poder dos robôs de disparar as estapafúrdias mensagens de “resgatar o Brasil”.
Na sequência, grandes jornais saíram em defesa das instituições democráticas, com seus editoriais tão laudatórios quanto em geral inúteis. Vou me ater a analisar um pequeno trecho do Estadão, cujos textos venho acompanhando desde a posse do presidente da República, em 1 de janeiro de 2018. Nesse pouco mais de um ano de governo, os editoriais do vetusto jornal paulista subiram de tom e adotaram uma retórica mais contundente, mesmo quando oferecem uma contraparte comedida. Na quinta-feira, 27 de fevereiro, o editorial dizia: “O menosprezo de Bolsonaro pelo Congresso – onde esteve por quase três décadas como deputado – foi reafirmado diversas vezes na campanha eleitoral e depois de sua posse como presidente. Em maio de 2019, distribuiu pelo WhatsApp um texto de teor golpista, segundo o qual o País é “ingovernável” sem os “conchavos” políticos, em alusão à necessidade de negociação com o Congresso, e que, sendo assim, “o presidente não serve para nada”. Na ocasião, Bolsonaro disse que contava “com a sociedade” para “juntos revertermos essa situação” – um óbvio apelo direto ao “povo” contra as instituições.”
Está neste curto trecho o que me interessa discutir. Como instituição, o Congresso Nacional é simbólico: guardião dos valores democráticos da nação, casa constitucional, mandatária da vontade popular. Mas não foi desse Congresso que o atual presidente fez parte nem é a ele provavelmente a que se dirige. Bolsonaro esteve três décadas em outro Congresso, aquele pelo qual nutre profundo desprezo porque sabe exatamente como funciona. O real do Congresso é formado por práticas eleitorais espúrias, balcão de negócios de interesses privados, legislador dos seus próprios privilégios. Foi do horror desse real do Congresso que Bolsonaro emergiu, depois de 30 anos fazendo parte do chamado baixo clero, o grupo de parlamentares assim classificado por estar ali submetido a negociar com o alto clero em troca de um favor aqui, uma emenda ali, uma verba de gabinete acolá.
A chamada grande imprensa conhece bem a diferença entre o Congresso simbólico, representante do equilíbrio democrático entre os três poderes, e o real do Congresso, de onde saíram, em 2016, todos aqueles votos a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff em nome “da família”. Bolsonaro ali fez da tribuna o início do seu palanque à presidência, no trágico elogio ao torturador Brilhante Ustra. Foi só por conhecer tão bem o real do Congresso que ele soube encenar-se como oposição. O real do Congresso funciona nos subsolos de Brasília. Seus representantes agem pelos cantos, à sombra, não aparecem nos jornais, não se sabe seus nomes, partidos, estados que representam. Estão ali como ratos em busca de comida. Como um animal que emergiu do mesmo esgoto, o presidente sabe como fedem os subterrâneos do Legislativo. Bolsonaro menospreza o que ele mesmo representou por longos 30 anos, confirmando o abismo entre o Congresso simbólico e o real do Congresso.
(Neste contexto, merece registro a revelação do jornalista Guilherme Amado de que as imagens do café da manhã simplório da família Bolsonaro eram uma farsa, montagem cenográfica para fazê-lo parecer popular, simples, um homem do povo de hábitos matinais estranhos).
A imagem popularesca em nada se aproxima dos parlamentares capazes de encarnar o Congresso simbólico, aquele que, para exigir respeito, se apresenta pela estética clichê do poder: homens de terno e gravata, fala supostamente rebuscada, apressados entre uma reunião e outra, tudo entremeado por declarações muito bem arrumadas para as páginas dos jornais. Ambos – simbólico e real – estão amarrados por um nó ao qual eu poderia acrescentar o Congresso imaginário, que existe para nos fazer acreditar que vivemos numa democracia efetiva. Na prática, os valores democráticos que o Congresso deveria representar têm sido incapazes de se concretizar para uma imensa parcela de despossuídos, que todos os dias escutam bem de perto alguém dizer “foda-se”.

CARLA RODRIGUES é doutora em Filosofia pela PUC e professor

Charge! Osmani Simanca

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Charge! Le Monde Diplomatique Brasil

Charge! Via Folha de São Paulo

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domingo, 1 de março de 2020

"O comunista e o poder"


 
 
Nos idos de 1985, reuniu-se em Maceió, capital de Alagoas, um grupo de jovens especialistas em propaganda política, em particular marketing, onde um deles afirmava com toda certeza que com as novas tecnologias, existentes no mercado, eles seriam capazes de eleger até uma barra de sabão, que dirá um candidato. Pois bem, tomando como " laboratório político" o Estado de Alagoas, os jovens profissionais das propagandas e imagens, se engajaram na campanha política para governador do Estado, o Economista Fernando Collor de Mello, em 1986. Utilizando para isto, algumas músicas brasileiras de fácil aceitação pela juventude e encaixando a isto algumas frases de efeito, como: " O Caçador de marajás " . E foi de fácil aceitação pela população alagoana, que já estavam cansados dos privilégios de poucos ( os marajás ), onde a maioria da população alagoana de baixa renda, viviam em profunda miséria. Fernando Collor foi eleito Governador em 1986 e motivado pelo " mito" do caçador de marajás, chega a presidência da República em 1989. Quando o povo brasileiro acorda deste " porre mitológico" vão as ruas e pedem.a sua saída do poder. Fato este que vem acontecer com a cassação do seu mandado em 1991, pelo congresso Nacional.
Como já afirmaram antes, que a história se repete, no primeiro momento como engano e no segundo momento como tragédia, vez que aparece um segundo " mito." O ex. Capitão Jair Bolsonaro, este também querendo limpar o Brasil dos corruptos, também utilizando imagens e textos falsos, pelas máquinas de comunicação moderna, no caso a Internet, o novo mito também chega a presidência da República em 2018. Numa eleição no mínimo questionada. Como o primeiro mito, o Fernando Collor, que confiscou as cadernetas de poupança dos brasileiros, este novo mito. O Jair Bolsonaro, Vem com mais fome contra o povo, e confisca não só a aposentadoria dos Trabalhadores, como também os seus direitos conseguidos a duras penas por lutas durante mais de 70 anos. O atual presidente esta levando o País, a um colapso econômico e uma crise política jamais vista em toda a História Republicana.
Diante desta crise, para nossa surpresa, ao invés da chamada " esquerda " montar uma estratégia de lutas para vencer um mau maior, não, querem " costurar " um candidato para vencer as eleições de 2022. E neste caso apontam o governador do Maranhão, que como os outros dois mitos, passa a vos tecer, como o governador que mais paga o melhor salário do País superando os Estados de São Paulo , Minas Gerais e Rio de Janeiro.
E o mais curioso é que a população brasileira, tanto no caso dos dois mitos o Ex presidente Fernando Collor e o atual presidente Jair Bolsonaro. Também o provável candidato à presidência da República , o Governador do Maranhão o ex juiz federal Flávio Dino o povo acredita. Vejam bem, como pode o Maranhão ser um estado pobre pode pagar salário aos professores mais altos que os Estados mais ricos da Federação? Já diziam o Padre Antônio Vieira em um de seus famosos Sermões. " No Maranhão a única verdade e que não se diz a Verdade ", ele falou isto em meados do século XVI. E se repete até hoje. Com um agravante, a " mágica do salário dos professores ".
De nossa parte o comunista maranhense, como a maioria dos políticos só querem o poder. No caso do governador Dino, por um capricho local, querer provar ao ex senador Sarney, que ele Dino , é melhor do que ele porque quer chegar ao poder pelo voto popular, no caso do ex senador, chegou por um acordo político.

Carlos Gouveia de Omena e graduado em filosofia pela Universidade Federal de Alagoas e mestre em Ciência Politica pela UFPE.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Editorial: Escalada autoritária


Há algum tempo visito com regularidade do Estado do Ceará, atraído por sua gastronomia, seus encantos naturais, sem deixar de registrar aqui a hospitalidade de sua gente. Na última incursão àquele Estado, lembrei bastante de uma crônica do Luiz Fernando Veríssimo intitulado: Tudo que vicia começa com “C”. Só agora me dei conta que Ceará também começa com “C” e, portanto, assim como sugere o cronista, também deve viciar. Até então, nosso lista incluía o suco de caju, a cajuína dele derivada, a castanha, o camarão, o carneiro, a galinha caipira, encontrada com muita facilidade naquela região que te leva à Vila de Jericoacorara. Se por um acaso o leitor(a) já leu a crônica do filho de Érico Veríssimo, sabe que a lista é robusta: Cigarro, cerveja, café, cocaína, crack, cannabis...

Não raro, o Estado do Ceará é sacudido por turbulências na esfera da segurança pública. Até recentemente o governador Camilo Santana festejava os êxitos obtidos contra as facções do crime organizado, que havia implantado um clima de terror no Estado, ordenando ataques ao comércio, às instituições públicas, incendiando coletivos, entre outras ações abjetas. Adotou-se à política de não ceder às suas exigências, transferindo suas lideranças do Estado, num esforço de queda de braço entre o aparelho de Estado e o crime organizado. No final, o Estado logrou êxito em suas medidas, aplicando a lei contra os apenados e contendo as ações de represária. Era bom saber que a situação estava minimamente sob controle, uma vez que manter sob estrito controle um sistema carcenário com as características do nosso é uma grande utopia. Este é um assunto que já tratamos por aqui em outras ocasiões, permitindo-nos o compromisso de voltar a abordá-lo com mais calma.

Nós da área de Ciência Política possuímos o hábito de juntar as peças para tentar extrair alguma previsão a partir dos fatos observados. Neste sentido, havia um colega tão radical que desprezava o trabalho dos jornalistas e historiadores porque esses profissionais exerciam seus trabalhos sempre nos pós-facto, ou seja, construíam suas narrativas sempre depois que os fatos ocorriam. Em respeito aos colegas, informo que este escriba não seria tão radical a este ponto. Três fatos no entanto corroboram com uma perspectiva bastante preocupante em relação à sua saúde de nossa já bastante fragilizada instituição da democracia: um presidente que se acerca cada vez mais dos militares; militares de perfil golpista que se pronunciam claramente contra a instituição congressual, um dos pilares dos três poderes, fundamental para o funcionamente do regime democrático, já que impede o desequilíbrio de forças que pode levar a derrocada do regime democrático e, finalmente, ações de grupos armados sublevados impondo o terror à população, como ocorre no Estado do Ceará, numa ação concatenada com outros estados da federação, hoje tendo ranquamwnrte de preferência aqueles governados pelas forças de oposição. A esses três fatos poderiamos acrescentar ainda, a greve dos petroleiros, com a possível adesão dos caminhoneiros. Somados, esses movimentos poderiam produzir o caos da desordem pública, abrindo o precedente para medidas autoritárias.




Editorial: Brasil: Uma democracia de alto risco


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O cientista político polonês, Adam Przeworski, possui dois estudos dos mais importantes para entendermos a dinâmica dos regimes democráticos. Um deles trata da transição da clandestinidade para a institucionalização dos partidos comunistas do Leste Europeu, um dos pilares para entendermos porque a opção pela democracia e, portanto, pela via da luta institucional, tornou-se inevitável para aqueles grêmios partidários, que passaram a atuar na luta pelo voto, dentro de um ambiente institucional onde a condição de clandestinos já não lhes facultavam nenhuma vantagem competitiva.



Num outro momento, o polonês debruça-se sobre as fragilidades de consolidação dos regimes democráticos  aqui na América Latina, numa empresa que também envolve outro grande estudioso do assunto, o argentino Guillerme O’Donnell, que cunhou a expressão “Democracia Delegada” para explicar o fenômeno da inanição democrática  no continente latino-americano, tendo como uma das referências de análise o seu próprio país, a Argentina. Argentina que, por sinal, avançou muito mais do que o Brasil, quando se discute, por exemplo, a punição aos violadores dos direitos humanos durante os estertores do período ditatorial. Um outro aspecto a ser destacado aqui é a chamada museologia da reparação no país vizinho, ou seja, a criação de instituições que realizam uma espécie de ajuste de contas com o passado sombrio, musealizando horrores que devem ser evitados.  



Em ambos os casos, fica evidente que assumir um compromisso com a democracia traz, no seu bojo, alguns princípios de conduta e procedimentos inerentes ao jogo democrático, seja na condição de um ator individual - um dirigente político - ou coletivo, um partido, por exemplo. Resumidamente, esse conjunto de pressupostos podem ser traduzidos em duas palavras: responsabilidade e responsibilidade, esta última mais voltada à chamada democracia econômica ou substantiva, onde o regime, além de manter o arcabouço legal e institucional em pleno funcionamento, também precisa responder às demandas da sociedade, proporcionando um equilíbrio desejável entre democracia política e democracia substantiva.
 

É certo que a democracia hoje, em nível global, diante de uma escalada conservadora, enfrenta sérios problemas, sobretudo quando se tem em mente a crise dos partidos políticos e, consequentemente, da representatividade, impondo arranjos de governança - como é o caso do Brasil, com seu precário modelo de presidencialismo de coalizão - nem sempre desejáveis. Uma série de livros foram publicados sobre este tema no último ano, apontando os equívocos  que podem levar uma democracia a uma morte agonizante. 



No caso brasileiro - como o problema da fragilidade de democracia pode ser classificado como crônico - autores até certo ponto díspares, como é o caso do sociólogo Gilberto Freyre e do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, acabam convergindo sobre a impossibilidade da democracia entre nós, ambos apontando algumas características da formação da sociedade brasileira como as possíveis causas dessa inviabilidade. Para Sérgio, por exemplo, os vícios herdados da colonização portuguesa, forjada na exploração do trabalho escravo durante séculos; doações de glebas de terra aos vassalos donatários, apaniguados da Coroa; carta branca a esses senhores para exercerem o papel de Estado, assumindo a condição de delegados, juízes; a promiscuidade das fronteiras entre o público e o privado criaando um déficit de institucionalização incompatível com a formatação de um regime republicano ou democrático.



O fato concreto é que a nossa democracia vive de sobressaltos, solavancos, com ligeiros intervalos de funcionamento, mesmo assim bastante precário. Assim, se fizermos um levantamento sobre os momentos de pleno funcionamento das instituições democráticas no país, não surpreenderia ao pesquisador se encontrássemos algumas surpresas. No Brasil, o regular e constante, na realidade, são regimes fechados, ditatoriais. Isso aumenta, sobremaneira, a responsabilidade dos cidadãos e cidadãs de convicções democráticas fecharem trincheiras em sua defesa, em razão de sua baixa imunidade institucional, susceptível às mobilizações das vivandeiras dos quartéis.



Os leitores que desejarem aprofundarem-se sobre as causas desse fenômeno, conforme citamos antes, leiam os textos do O’Donnell e do Adam Przeworski, a princípio. São leituras essenciais para entendermos porque a democracia entre nós nunca passou de um grande mal-entendido, fazendo aqui um trocadilho com o grande historiador Sérgio Buarque de Hollanda.



Mais recentemente, notadamente depois do golpe institucional de 2016, nossas instituições democráticas passaram a ser violentamente assediadas, com a conivência de poderes que, em tese, teriam a prerrogativa legal e constitucional de impedir esses assédios. Precedentes são perigosos. Como se dizia no nosso tempo de criança,  esses "guardiões" engoliram a isca do arbítrio. Hoje, estão entalados com ela.



Já se disse que projetos autoritários não costumam estabelecer muita distinção entre os atores políticos. Os aliados de ontem podem ser os inimigos de hoje, consoantes as conveniências de ocasião. Abriu-se um precedente perigoso - utilizando-se de um instrumento previsto pelo próprio regime democrático para  apear do cargo um presidente legitimamente eleito, sem uma justificativa plausível e legalmente configurada - e, deste então, o assédio só se agrava, pondo em desequilíbrio a balança dos três poderes, um sistema de pesos e contrapesos fundamentais para impedir os impulsos autoritários e as tiranias. A que se prenuncia ainda mais preocupante, em razão do seu caráter fundamentalista, ancorada em apoios milicianos e neopentecostais.



Um governante eleito por um regime democrático jamais poderia perder de vista a responsabilidade assumida com a manutenção das regras do jogo, como o respeito aos adversários, aos três poderes, às prerrogativas do mandato, os limites impostos por ele, o respeito à Constituição do país, ao Estado Democrático de Direito, uma imprensa livre, eleições livres a cada período legalmente definido, direito de manifestações, enfim, a todo o arcabouço legal e institucional que caracteriza um regime democrático. Aqui não escapa nem a liturgia exigida pelo cargo que ocupa. O desrespeito a algum desses princípios põe em dúvida sua capacidade de continuar a exercer o cargo, tornando-se passível, inclusive, de um impedimento. Neste caso, legalmente configurado.

A charge publicada acima é do grande cartunista Laerte.
 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

As filhas de Eva e a sociedade de classes

  

As filhas de Eva e a sociedade de classes
'O Estupro de Lucrécia', quadro de Ticiano (Foto: Reprodução)

Ao ensejo da abjeta agressão do ser que ocupa a presidência a uma jornalista, do carnaval e da proximidade do dia da mulher, algumas reflexões sobre a questão feminina.
Conta o historiador Tito Lívio a história, célebre na Antiguidade, de Lucrécia. Mulher de Colatino, tornou-se objeto de desejo obsessivo de Sexto Tarquínio, filho do rei Tarquínio, o Soberbo. Ele hospeda-se na casa de Lucrécia e Colatino e no meio da noite esgueira-se para o leito de Lucrécia. Confessa-lhe o desejo e a faz submeter-se diante da ameaça de colocar um escravo nu degolado ao lado do seu corpo para que parecesse ter sido morta em flagrante adultério.
Lucrécia conta ao marido e ao pai e em seguida crava-se um punhal no coração. Tornou-se símbolo na Antiguidade da mulher virtuosa pagã. As ideias estoicas teriam sido impulsionadas partir do episódio de Lucrécia, anota o jurista Giunio Rizzelli.
Mas como poderia uma pagã simbolizar a virtude? Séculos depois Lucrécia está presente na Cidade de Deus, de Agostinho. Ardilosamente o filósofo cogita: pode ter ocorrido de maneira voluntária. Poderia não ter acontecido se não houvesse algo de prazer da carne. Ou seja, não teria Lucrécia sentido prazer? E não teria se matado para punir-se pelo prazer sentido? Seria Lucrécia realmente casta? Uma mulher cristã realmente virtuosa não recorreria ao suicídio porque não teria do que se envergonhar.
O veneno de Agostinho atormenta ainda, tantos séculos depois, as mulheres vítimas de ataques sexuais. A figura do agressor não é o foco. Desloca-se para o comportamento da mulher. Sentiu prazer? Provocou? Insinuou-se? Então não teria sido propriamente um ataque sexual porque de algum modo o presumido prazer da mulher, ou sua conduta, dá foros de consentimento e faz do agressor, no limite, a vítima.
O episódio de Lucrécia e os comentários de Agostinho colho de um texto do jurista italiano Giunio Rizzelli (traduzido por mim e Sara Correa Fattori e publicado em 2008 nos Cadernos da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado). Rizzelli conclui: “Agostinho argumenta baseado em ideias, provavelmente difundidas há longo tempo, que demonstram uma forte atenção à eventual coparticipação psicológica feminina no estupro e na forte valoração negativa da mesma. Atenção essa que não parece, de modo algum, estranha à reflexão jurídica, também da época precedente”.
Tal ideia, a da coparticipação feminina na violência sexual que, assim, deixa de ser violência na medida em que se lançam suspeitas sobre a conduta da mulher, é tanto uma forma de conferir algo de convencionalidade social, uma “normalização” do estupro, quanto de legalizá-lo por via oblíqua. Como sabem todos que operam da esfera jurídica, pode-se colher aos montes precedentes em que, no mínimo, algo da espécie se cogitou, foi argumento de defesa ou fundamento de decidir.
Não há outro crime em que o comportamento da vítima assuma tal dimensão ou se cogite com essa ênfase. A ninguém ocorre responsabilizar a vítima de um roubo por deixar a carteira disponível, ou de flanar pelas ruas com o celular nas mãos, ou a vítima de homicídio de não estar em casa ou fazendo alguma prece em alguma igreja em vez de oferecer o corpo para ser assassinado. Isto somente ocorre com a violência sexual contra a mulher.
A falácia de Agostinho persiste. A infâmia contra Lucrécia foi escrita por um filósofo em uma sociedade escravocrata e aqui e hoje, na estrutura capitalista, ocorre da mesma forma. A Marx e Engels não escaparam a relação entre dominação de classe e patriarcado. Em uma sociedade de classes, escravocrata ou capitalista, o poder não se exerce singela ou estritamente sobre os meios de produção ou sobre a força de trabalho alheia. 
Quem está no topo da pirâmide pode. Quem está no topo da pirâmide faz porque pode fazer, faz porque o poder social que deriva do poder de classe é amplo o suficiente e certas práticas contaminam todo o espectro social. A prova disso é o que Rizzelli denomina, eufemisticamente, de “reflexão jurídica” secular. Ela só tem sentido e função em uma sociedade patriarcal de classes que põe a seu serviço “reflexões jurídicas”.
Esta torpe “reflexão” amplia-se pela sociedade em círculos como ocorre com uma pedra jogada na água.  O papel de inferioridade reservado à mulher pela estrutura social a faz vítima de várias formas. Desde ser mão de obra barata, de ser relegada à condição de reprodutora para que a estrutura permaneça e se reproduza, até a ser objeto de prazer como um ser sem autonomia (subproduto da dita “reflexão jurídica”). Para isto tudo é útil também o mito de Eva, cuja irresponsabilidade nos furtou o paraíso. A mulher serve à teodiceia, à explicação para os males do mundo que isenta Deus de culpa.
Quando houve, pela primeira vez na História, a experiência de construir uma sociedade sem classes, a Revolução Bolchevique, não se podia deixar de cuidar da opressão feminina. Era óbvio, e espanta isto ser largamente ignorado quando se fala da emancipação da mulher, espanta que se possa buscar a libertação delas sem retirá-las da condição que a sociedade burguesa lhe reserva. Trotsky dizia que a família era uma pequena empresa, uma produção natural de serviços para garantir a força de trabalho (citado por Diana Assunção em A questão da mulher na Revolução Russa, Esquerda Diário). 
É essa pequena empresa e esse papel o encargo feminino em uma sociedade de classes e essa situação de inferioridade se reproduz em toda a esfera social. O exercício livre da sexualidade é um problema para essa pequena empresa. Ela não escolhe seu papel social, não escolhe quem toma seu corpo e sua sexualidade, se exercida, está sempre vinculada à diminuição da honra e do caráter, exatamente o contrário do que ocorre com os homens – e muitos de nós, mesmo com certo nível de consciência social, nem sempre nos damos conta de que reproduzimos algo que é da estrutura social que queremos transformar, e com isso a fortalecemos.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo.
(Artigo publicado originalmente no site da Revista Cult)