pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sábado, 7 de maio de 2016

Os historiadores e a presidenta ( Carta aberta à presidenta Dilma Rousseff)

Rio de Janeiro, 06 de maio de 2016
Querida Presidenta Dilma Rousseff,
Permita-me, por favor, chamá-la de querida. Eu tomo tal liberdade como cidadã indignada com o comportamento misógino de ampla maioria dos deputados da câmara baixa desse país, durante a vergonhosa votação da admissibilidade (sem qualquer base legal) do processo de seu impedimento do cargo de Presidente da República. Neste momento difícil, em que poucos ainda acreditam no espírito democrático da maioria dos senadores, escrevo-lhe, também, como historiadora profissional. Pesquisadora e professora de História do Brasil há mais de 30 anos, a partir da difícil vivência da atual crise política, venho renovando algumas das minhas antigas perguntas sobre o passado brasileiro. A angústia que experimento hoje, ao ver a democracia no Brasil mais uma vez ameaçada, me levou, sobretudo, a reavaliar a força da cultura do privilégio, de fundo patriarcal e escravocrata, no tempo presente da política brasileira.
Depois do dia 17 de abril, de triste memória, a direção da Associação Nacional de História fez uma nota oficial de repúdio à votação da admissibilidade do impeachment, lançando a palavra de ordem, “ditatura e tortura nunca mais“. Desde então, milhares de pesquisadores, no Brasil e no exterior, assinaram manifestos em defesa da democracia e do seu mandato. Apesar da divisão existente em toda a sociedade, com certeza a maior parte da comunidade dos historiadores e de cientistas sociais preocupados com a história percebe o impeachment em curso como uma tentativa de golpe de estado institucional. Muitos têm se manifestado, incansavelmente, em suas páginas nas redes sociais.Tania Bessone sugeriu que o 17 de abril fique instituído como dia da infâmia e data inicial do golpe. Nesta sexta feira triste, em que a Comissão Especial do Senado ratificou o espetáculo de horrores da câmara, achei, por bem, registrar em carta aberta, alguns argumentos históricos que têm sido publicamente enfatizados, em defesa da democracia .
Em primeiro lugar, há o forte argumento de que já estaríamos vivendo um estado de exceção, em que a cultura do ódio disseminada pelos meios de comunicação ocuparia papel central. A premissa é defendida por alguns cientistas sociais. Segundo o pesquisador Laymert Garcia dos Santos:
“Esse tipo de análise foi feito nos anos 20-30, com relação ao modo como foi desestabilizada a República de Weimar, na Alemanha, com a ascensão do nazismo. E foi durante a República de Weimar que a gente viu a implosão das instituições e uma desestabilização que deu, como resultado, o triunfo do enunciado “Viva a morte!” e a “Solução Final” do problema judeu. Uma das características importantes dessa implosão das instituições, nos anos 20-30, na Alemanha, é o modo como os juízes violavam a lei e a Constituição, e é ao que estamos assistindo aqui.”
Sem utilizar o conceito de estado de exceção, também eu, desde 2013, venhopreocupada com a semelhança do que estamos vivendo no Brasil com o processo histórico de desqualificação dos governos formados por políticos abolicionistas e libertos, no Sul dos Estados Unidos, depois da guerra civil que aboliu a escravidão naquele país.
Nos Estados Unidos, o período conhecido como “Reconstrução Radical” (1865-1877) foi pioneiro em reconhecer direitos civis e políticos aos ex-escravos tornados livres com a guerra. No entanto, estes direitos retrocederam, devido à eficácia de um discurso construído a partir da manipulação seletiva de uma série de casos de corrupção, segundo o qual toda a ação política dos libertos e o idealismo dos radicais republicanos seriam uma simples fachada para a ação criminosa de um grupo de aventureiros corruptos, que enganavam ex-escravos desinformados. A predominância dessa narrativa resultou na hegemonia da Ku Klux Klan e em leis de segregação racial que durariam até a segunda metade do século XX.
Absolutamente trágicos como fenômenos sociais, os fantasmas do nazismo e da ku klux klan assombram o cotidiano da política brasileira.
O golpe em curso é também reação a mais de uma década de políticas sociais inclusivas. Neste sentido, são comuns, entre os historiadores, as analogias com o golpe de 1964 e outros ocorridos na América Latina da segunda metade do século 20. Como o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, especialista no período, estamos, todos, infelizmente, surpresos de ver o Brasil, de novo, a beira do abismo. Mais que simples comparação, procedimento que em história nunca funciona muito bem, tais analogias oferecem uma base empírica para ajudar a pensar e a tentar entender o que está acontecendo hoje. Reproduzo aqui uma postagem recente em sua página pública no facebook, de Carlos Fico, também especialista no período, como exemplo desse exercício de compreensão. Segundo ele,
O golpe de Estado de 1964 teve etapa militar (com tanques dirigindo-se para o Rio de Janeiro no dia 31 de março), parlamentar (com declaração de vacância do cargo de presidente da República pelo Congresso Nacional na madrugada do dia 2 de abril) e jurídico-legal (com a posse do presidente da Câmara na Presidência da República, às 3h30min da manhã do mesmo dia). Essa posse foi sacramentada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Ribeiro da Costa, que foi acordado às pressas e concordou em participar da farsa (porque Goulart ainda estava no Brasil).
A simples enunciação dos fatos do passado ilumina os riscos e atropelos que vivemos no presente.
Por fim, muitos historiadores evocam períodos mais recuados da nossa história e vão buscar a raiz da crise atual na nossa formação colonial e escravocrata, que teria feito, da lógica do privilégio, base da cultura política brasileira. Considero, porém, e o faço na boa companhia de Sidney Chalhoub, professor na Universidade de Harvard e, como eu, historiador do século 19, que o problema de fundo da cultura política brasileira não é a lógica do privilégio em si, mas a sua manutenção envergonhada, sem a sustentação da moral aristocrática, a partir da independência política e da criação do estado nacional brasileiro.
Em texto denominado “homenagem do vício à virtude” procurei abordar o nascimento do problema. Após a independência, muitos lutaram para que a lei que proibia o tráfico de escravos fosse efetivamente implementada, mas ela se tornou alvo de um vigoroso processo de desobediência civil por parte dos grandes senhores de escravos, por fim consolidado no movimento político conhecido como Regresso, que alcançou o poder em 1837. A hipocrisia generalizada como política de estado nascia ali. Um relatório do Foreign Affairs de Londres relata mais de 4000 escravizados desembarcadas entre Copacabana e a Ilha Grande apenas em janeiro de 1838.  Como os corpos escravizados de africanos nas praias do Rio no século 19, a corrupção endêmica está aí aos olhos de todos, mas boa parte da sociedade brasileira insiste em ignorar. Evocando Machado de Assis e o mesmo período, Sidney Chalhoub escreveu um artigo cheio de ironia sobre a base social e a ideologia do golpe em curso, em que uma assembleia de acusados de corrupção, presidida por um réu, decretou a admissibilidade do impedimento de uma presidente eleita por 54 mihões de votos, contra a qual não há acusação. O texto imaginava historiadoras do futuro lendo o artigo da revista alemã Der Spiegel, de título “A Insurreição dos Hipócritas”, sobre a sessão da câmara baixa brasileira de 17 de abril. O rei está nu.
Querida Presidenta, entre os inúmeros historiadores e cientistas sociais que hoje lutam contra o golpe travestido de impeachment, muitos sempre foram críticos e mesmo opositores ao seu governo. Não é o meu caso. Nunca fui filiada a qualquer partido político, mas, hoje, posso dizer que me tornei “dilmista”, e acho que nós, os dilmistas, somos muito mais numerosos do que as pesquisas conseguem detectar. Fui sua eleitora por duas vezes, Presidenta, com entusiasmo, e, apesar das alianças difíceis, que hoje cobram um preço doloroso, não me decepcionei. Além da minha empatia histórica pela solidão dos governantes de esquerda moderada à frente de economias capitalistas em crise, nos últimos meses só tem crescido a minha admiração por sua coragem e apreço às instituições democráticas. Graças à serenidade e firmeza de sua atitude, entre os muitos cenários sombrios que a crise atual nos evoca, há um que pode ser positivo. A opinião pública internacional denuncia o golpe em curso e jovens secundaristas em luta por suas escolas, no Rio e em São Paulo, trazem esperança de renovação ao coração de todos os democratas. Toda a estrutura da velha corrupção endêmica está, pela primeira vez, de um só lado. A luta está no começo. Esta pode ser a crise terminal da cultura da hipocrisia na política brasileira. Se assim for, sua atitude à frente da Presidência da República terá sido essencial. Se assim não for, mesmo que eles consigam mais uma vez golpear a democracia e cassar o meu voto e o de mais 54 milhões de brasileiros, ainda assim, não tenho dúvidas, passarão à história como hipócritas, corruptos e golpistas. 
Com admiração,  Hebe Mattos
Professora Titular de História do Brasil/ Universidade Federal Fluminense
(Publicado originalmente no site Conversadehistoriadoras.com)
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Wadih Damous e a estética do golpe

Charge! Leo Villanova na Gazeta de Alagoas

Editorial: A estética do golpe





O sociólogo Gilberto Freyre costumava afirmar que no Brasil tudo seria possível. Não o surpreenderia, por exemplo, que uma festa profana como o carnaval pudesse ser programada para uma Sexta-Feira Santa. Morreu sem ver a sua profecia confirmar-se. Aqui no Estado existe uma cidade, na região do agreste, que tornou-se estância de inverno da burguesa pernambucana: Gravatá. Pois bem. Nesta cidade, durante o período da Semana Santa, são programadas intensas festividades. As maiores atrações da festa se apresentam exatamente na Sexta-Feira Santa. Ao longo de sua história, o país seria caracterizado por essas "atipicidades" ou idiossincrasias. Já falamos por aqui sobre o mal-entendido da democracia entre nós, a partir das reflexões do historiador Sérgio Buarque de Holanda.  

Com a instauração da Ditadura Militar no país, a partir do golpe civil-militar de 1964, os militares brasileiros também procuraram "salvar as aparências", movidos não se sabe por qual motivo. O fato é que, apenas por alguns aspectos, também tivemos uma experiência ditatorial "atípica". Existiam eleições para a câmara de vereadores e a prefeitura das pequenas cidades, assim como foi permitida uma "oposição consentida". Pelo andar da carruagem política, logo afirmar que o que está ocorrendo por Brasília trata-se de um "golpe" será considerado crime. Mas, vá la que seja, estaremos muito bem acompanhado pelos brasileiros e brasileiras que não se acovardaram. 

Ontem, por recomendação de um amigo, assistimos a um vídeo de Wadih Damous sobre a estética do golpe. No vídeo, o analista tenta descrever o que poderia ter ocorrido em relação à decisão do Supremo Tribunal Federal no sentido de afastar o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. No episódio ocorreu o que ele chamou de "estética do golpe". Os golpistas, segundo o autor, tentam emprestar à manobra uma aparência de cruzada contra a corrupção e, neste caso, o nome de Cunha entre eles poderia macular essa atmosfera. Cunha é muito sujo até para os padrões dos golpistas. A mesma lógica pode ser aplicada à reprimenda da emissora do plim plim ao condenar a presença de nomes envolvidos na Operação Lava Jato num possível Governo Temer. 

E por falar em "aparências", registre-se a conclusão do senador Antonio Anastasia(PSDB), relator do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff no Senado Federal, de que não se poderia falar em "golpe" quando o réu teve amplo direito de defesa. Mais uma vez, o advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, destruiu completamente seus argumentos, apresentando uma galeria de condenados ilustres que também tiveram amplo "direito de defesa" dos seus algozes. Aliás, historicamente, como enfatiza Cardozo, todos esses réus tiveram "defesa", mas as suas condenações já estavam previamente decidida. A defesa, neste caso, era uma grande "farsa". 

Como estamos num país "atípico", por uma dessas ironias da história, essa marcha da insensatez pode ser interrompido por quem menos se espera, o deputado maranhense, Waldir Maranhão, que assumiu a Presidência da Câmara dos Deputados, com o afastamento de Eduardo Cunha. Já está em suas mãos, o pedido de "nulidade" do processo, encaminhado pelo Advogado-Geral da União, José Eduardo Cardozo. Aliado de Cunha, do baixo clero, ele poderá entrar para a história com uma decisão que restaure a observância à Constituição do país, que estabelece que um presidente da República não pode ser afastado sem um crime de responsabilidade que o justifique.  


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sexta-feira, 6 de maio de 2016

Editorial: O day after de Eduardo Cunha.





Tenho lido muitos comentários sobre a liminar concedida pelo STF que afastou Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados. Há uma convergência de pensamento entre esses comentadores. Todos se alinham com a tese de que Cunha já teria cumprido o seu papel nesse script golpista, ou seja, materializar a aceitação do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Cumprido esse papel, ele tornou-se um ator político descartável. A medida tomada pelo ministro Teori Zavascki, como já se esperava, foi aprovada por unanimidade pelos seus pares. O STF, pelo que ele faz ou pelo que ele deixa de fazer - ou pelo tempo que o faz - tornou-se o órgão mais importante a ser observado pelos analistas sociais que se debruçam sobre o entendimento dessa engrenagem golpista ora em curso no Brasil. Para um bom entendedor, meia palavra basta. Não vamos aqui entrar nos detalhes, porque se eles cassam sem motivos uma presidente eleita com 45 milhões de votos, imagina o que não podem fazer com um pobre editor de blog. 

No dia de hoje, em artigo publicado aqui no blog - deixo o link com vocês no rodapé da página - o cientista político Michel Zaidan Filho levanta duas questões importantes: a primeira dela diz respeito à possibilidade do pedido de nulidade do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, tese hoje defendida por inúmeros juristas. Não creio que possamos ser muito felizes por aqui, mas abre-se uma janela jurídica neste sentido e não estamos em condições de desprezá-la. A essa altura do campeonato, como informa Zaidan, o senhor José Eduardo Cardozo já deve estar se debruçando sobre o tema. Uma outra observação do analista político diz respeito ao comportamento do senhor Eduardo Cunha depois de cassado. 

Encurralado, Cunha seria capaz de tudo. Por vários momentos, ele já mostrou que seria um jogador capaz de usar as cartas que esconde sob as mangas, em caso de necessidade. Se ele resolver abrir o bico, tem muitas coisas a revelar. Usava e abusava desse expediente para chantagear seus pares na Câmara dos Deputados. Por que não faria agora, depois de abandonado? É mais um concorrente a homem-bomba, capaz de abalar os já frágeis alicerces de nossa mal-entendida democracia. Possivelmente com um potencial maior que o senador Delcídio do Amaral. Ele já disse que irá recorrer para ficar no cargo, mas, assim como Dilma Rousseff, será difícil interromper os planos dos golpistas. 

É bom que se diga que o afastamento de Eduardo Cunha atende a propósitos bem específicos. Ele não sai em razão da indignação de milhões de brasileiros, cansados de vê-lo citado como réu em inúmeros processos de corrupção, tampouco em razão dos seus pares, insatisfeito com o seu currículo e a sua conduta à frente da Câmara dos Deputados. Ele sai em razão de um "jogo". Um jogo que está sendo jogado por jogadores habilidosos, que previam conduzi-lo ao chuveiro no momento certo. Tanto é assim que dormia em banho maria os pedidos de seu afastamento no STF. Essa turma pensa em tudo. Daí o nosso pessimismo quanto ao êxito na reversão do impeachment da presidente Dilma Rousseff, mesmo com as janelas jurídicas escancaradas. 

Afinal, o problema nunca foi jurídico. Uma conhecida raposa da política pernambucana costumava enfatizar uma máxima: "Aos amigos, tudo. Aos inimigos, os rigores da lei". Num país que pede para não ser levado a sério, as leis passaram a ser aplicadas de acordos com as "conveniências" políticas. Não fosse assim, a presidente Dilma Rousseff jamais deveria ser vítima de um processo de impeachment sem uma fundamentação jurídica que o sustente. Infelizmente, chegamos a este ponto. 

Não deixe de ler:

O tempo da justiça e o tempo da política


Michel Zaidan Filho: O tempo da justiça e o tempo da política





O presidente do STF, Ricardo Lewandowski respondeu aos críticos da morosidade da Justiça brasileira que achava normal a demorada tramitação do pedido de afastamento do Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, feito desde de dezembro de 2015 pelo Procurado-Geral da República, Rodrigo Janot. Alegou o magistrado que a lógica procedimental da Côrte impõe uma temporalidade lenta e cuidadosa dos processos, para que não se faça injustiça contra os denunciados e abra-se a possibilidade de arguição das decisões judiciais no País, produzindo-se um ambiente de insegurança jurídica. Quem acompanhou a sessão em que o tribunal votou o parecer do relator pedindo o afastamento temporário de Cunha, deve ter visto como a tramitação desses processos é lenta e cautelosa, suscitando mais dúvidas do que confiança. Na verdade o melindre da Côrte em pedir o afastamento do Presidente da Câmara tem a ver com a acusação de desrespeito a autonomia e a separação entre os Poderes. Os ministros do STF procuraram toda a jurisprudência já firmada em torno da possibilidade do tribunal afastar mandatários ora do Poder Executivo, ora do Poder Legislativo ou do próprio Judiciário.


Porém, ao decidir, por unanimidade, a saída de Cunha o colegiado deixou a porta aberta para qualquer autoridade afastada de seu cargo pelos seus pares recorrer também ao Supremo Tribunal Federal, sem isso caracterizar interferência indébita de um Poder em outro. Sobretudo em face da alegação de que Eduardo Cunha cometeu "abuso de poder" ou "desvio de Poder", ao influenciar ou estimular ações da Câmara contra inimigos ou desafetos políticos. Neste caso está o processo de Impeachment contra a Presidente Dilma, que ganhou fôlego renovado, depois da tramitação da cassação de seu mandato no Conselho de Ética, na Câmara dos Deputados . Estaria aí um exemplo insofismável do uso viciado e ilegal dos amplos poderes de Eduardo Cunha: usar o cargo em seu próprio interesse, para se vingar do governo. E não só isso. 

O advogado-geral da União deve preparar, sem demora, o recurso pedindo a anulação do processo de Impeachment, incluindo as outras falhas deste processo, como o cerceamento da ampla defesa e o fato de que o relator preparou o parecer antes do fim da defesa, tendo prejulgado o caso, com a indicação da aceitação do pedido de impedimento. Aliás, o próprio relator deveria ter se averbado de suspeito, por ser vinculado ao PSDB e ter cometido os mesmos atos, quando governador de Minas Gerais, de que a Dilma está sendo acusada. Ou seja, ele não tem a autoridade moral e política para atuar como um relator imparcial e justo nesse processo. Ele se comportou como um representante da causa do Impeachment, patrocinado pelo seu partido, contra a presidente Dilma. Cabe à defesa da Presidente alegar parcialidade e interesse partidário nesse processo. 

Já o afastamento de Eduardo Cunha deve abrir o início de um nova etapa na Câmara dos Deputados, com a provável eleição de um novo Presidente. O que não se sabe é o comportamento que Cunha adotará, fora do cargo e do mandato. Ele é um arquivo vivo das negociações escusas que dominam o Congresso Nacional, envolvendo deputados, senadores, e empresários. E é vingativo. O que ele já fez com a Dilma permite imaginar o que fará com outros, quando se julgar abandonado pelos pares. 

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE 







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quinta-feira, 5 de maio de 2016

Um golpe dos donos de escravos no Brasil?


A revista americana The Nation destaca que entre os grupos que buscam promover o golpe, há um pouco discutido: o das empresas que lucram com a escravidão.


Greg Grandin - The Nation
Nilson Bastian / Câmara dos Deputados
The Nation, a revista mais antiga dos Estados Unidos, fundada em 1865, e uma das mais bem conceituadas por sua seriedade, publica artigo devastador sobre interesses por trás do golpe em curso no Brasil.
 
Um golpe dos donos de escravos no Brasil?
 
 
Entre os opositores da combatida – e ameaçada de perder o cargo – presidente do Brasil, Dilma Rousseff, existe um grupo com interesses comuns que se pensava haver perdido seu poder político há cerca de um século: os donos de escravos. Há alguns dias um artigo no The New York Times, que documentou os muitos crimes dos políticos envolvidos no processo de impeachment, disse o seguinte acerca de Beto Mansur, um ardoroso deputado em sua oposição ao Partido dos Trabalhadores (ou PT): “Ele é acusado de manter 46 trabalhadores em suas fazendas de soja no Estado de Goiás em condições tão deploráveis que os investigadores disseram serem eles tratados como escravos modernos.”
 

A escravidão não é, claro, o principal eixo de conflito entre o governo do PT e seus opositores. Outros – incluindo Mark Weisbrot, Glenn Greenwald, David Mirada, Andrew Fishman, Gianpaolo Baiocchi, Ben Norton e Dave Zirin – documentaram os muitos e diferentes interesses de classe e de status que se aliaram, usando o bordão da “anti-corrupção” tanto para desviar a atenção de sua própria venalidade como para começar a reversão das políticas levemente redistribucionistas do PT, que vem governando o Brasil desde 2003 . Quando se menciona a escravidão, isto é geralmente feito como uma herança. O Brasil importou mais africanos escravizados que qualquer outra nação americana, e foi o último país do hemisfério a abolir a instituição, em 1888. Como é o caso das nações historicamente fundadas sobre o colonialismo e a escravidão, a política econômica federal do PT, orientada para o alívio da pobreza e redução da desigualdade, tem um viés racial. Isto era verdade em 1964 quando um governo levemente reformista foi derrubado em um golpe (como minha colega da MYU, Barbara Weinstein, escreve em seu maravilhoso novo livro The Color of Modernity: São Paolo and the Making of Race and Nation in Brazil - A Cor da Modernidade: São Paulo e a Formação da Raça e da Nação no Brasil). E é verdade hoje, 56 anos depois. 
 
Mas, na verdade, a escravidão ainda existe no Brasil, na Amazônia (como escrevi em Fordlândia, com base nesta investigação da Bloomberg), e cada vez mais nas plantações de soja do interior. A escravidão moderna é, como um funcionário do Ministério do Trabalho o declara, uma "parte essencial da economia globalizada, orientada para a exportação, sobre a qual o Brasil prospera." Os trabalhadores são coagidos quer por meios violentos, quer por força de seus débitos a fornecer trabalho sem compensação e forçados a suportar as condições mais desumanas. Eles forjam ferro-gusa para alimentar a indústria de aço do Brasil, colhem soja, derrubam florestas tropicais, cortam cana-de-açúcar e servem como empregadas domésticas. 
 
Uma das primeiras coisas que o governo do PT fez quando assumiu em 2003, depois que Luiz Inácio Lula da Silva alcançou a presidência, foi criar uma “lista suja” de “centenas empresas e empregadores individuais que foram investigados por fiscais trabalhistas e descobertos como usuários de escravos. Os empregadores nesta lista estão impedidos de receber empréstimos do governo e têm restrições colocadas sobre as vendas de seus produtos." O PT também intensificou os esforços para "emancipar "os escravos modernos:" Em 2003, um plano nacional de erradicação do trabalho escravo atualizou a legislação e introduziu um sistema de procuradores e juízes do trabalho. "Entre 2003 e 2015," o governo resgatou 44.483 trabalhadores do que chama "condições análogas à escravidão."
 
A "lista suja", juntamente com outras iniciativas abolicionistas do PT, provocou uma reação por parte daqueles interesses econômicos que lucram com a escravidão moderna. No final de 2014, a Suprema Corte do país, que tem apoiado decididamente os que desejam o impeachment da Dilma, emitiu uma liminar contra o Ministério do Trabalho para que este suspendesse o lançamento de uma nova lista de donos de escravos. A decisão foi tomada para favorecer a associação dos proprietários e construtoras do Brasil. E muitos desses interesses, incluindo políticos ruralistas como Beto Mansur, encontram-se entre aqueles que pressionam para a queda de Dilma e a destruição do PT. O principal grupo de lobby da agro-indústria brasileira, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária, que apoia a derrubada de Dilma, tem se oposto à "lista suja" há anos. Uma investigação feita pelo Repórter Brasil, uma ONG que combate o trabalho forçado, revela que os partidos políticos por trás do impeachment (incluindo o Partido do Movimento Democrático do Brasil, o partido de Eduardo Cunha, o líder do Congresso da Câmara dos Deputados do Brasil e que organizou o impeachment) são aqueles que receberam a maior parte das doações políticas de empresas que lucraram com o trabalho escravo. 
 
Os lucros produzidos pelo trabalho escravo no Brasil são relativamente insignificantes se comparados à riqueza dos principais promotores da crise política: as elites ligadas às finanças, à energia, à mídia e à industria. Mas a luta em torno da escravidão no Brasil revela o que em última análise está em jogo no conflito. Muitos dos políticos agora que procuram derrubar Dilma ficaram espetacularmente ricos ou representam outros que se enriqueceram espetacularmente durante os bons tempos da primeira década dos mandatos do PT, aproximadamente de 2003 a 2013, durante os dois termos de Lula e o primeiro da Dilma. No entanto, eles jamais aceitaram a ideia de que deveriam subordinar seus interesses particulares ao projeto maior do PT, a despeito do fato de que foi este projeto – incluindo uma leve redistribuição – que impulsionou o consumo interno e os tornou espetacularmente ricos. A exportação de soja explodiu sob o governo do PT, dando origem a toda uma classe de barões no interior, alguns dos quais, incluindo homens como Mansur detêm assentos no Congresso. E apesar dos esforços agressivos do PT para erradicar a escravidão moderna, o trabalho forçado na verdade aumentou sob seu governo, na medida em que cresceram as indústrias que utilizaram trabalho forçado, entre as quais eles a da soja, a do etanol e a do açúcar.
 
A escravidão, conquanto relativamente pequena frente ao quadro maior do mercado de trabalho do Brasil, representa a fina borda de um princípio mais amplo: o direito das elites brasileiras de explorarem os seres humanos e a natureza tão implacavelmente quanto o desejarem. Como já está amplamente divulgado, a presidente eleita duas vezes no Brasil está hoje prestes a ser afastada do cargo, o que pode acontecer logo na primeira semana de maio. Sua destituição pode ser chamada de muitas coisas, entre elas um golpe da mídia e um golpe constitucional. Pelo menos em parte, ela é também um golpe dos donos de escravos.
 
Veja o texto original em inglês:
(http://www.thenation.com/article/a-slavers-coup-in-brazil)
 
Traduzido por Anivaldo Padilha

(Publicado originalmente no portal Carta Maior)

terça-feira, 3 de maio de 2016

Pesquisa da Fundaj revela que Ipojuca é vulnerável e está aquém das condições de acompanhar o desenvolvimento de Suape

O Polo Industrial de Suape, nos municípios do Cabo de Santo Agostinho e de Ipojuca, foi superdimensionado em sua capacidade de governabilidade e de controle dos seus impactos”, é o que afirma a pesquisa “Impactos do Complexo Industrial Portuário de Suape: migração, trabalho, condições de moradia, identidade e novas territorialidades”, coordenada pela pesquisadora Helenilda Cavalcanti, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).
A pesquisa observou que a população adulta da cidade de Ipojuca é muito vulnerável e está aquém das condições para acompanhar as demandas impostas pelo desenvolvimento do lugar, como a oferta de postos de trabalho na região. Foi detectada, em Ipojuca, uma “expressiva” quantidade de menores de 15 anos e de pessoas idosas, e há uma carga de dependência de crianças e idosos relativamente alta, sendo acima de 40%, de dependentes de domicílios declarados como tendo como único responsável uma pessoa do sexo feminino. “Há uma incidência de 45% de mulheres sem cônjuge, com filhos e sem parentes na cidade”, informa a coordenadora da pesquisa.
O estudo, realizado em parceria com a UFPE e a UFPB, e financiado pelo MEC e pelo CNPq, acaba por revelar que, por todas essas condições desfavoráveis da população de Ipojuca, há um baixo orçamento doméstico na região. Os “trabalhadores locais”, de Suape, ganham abaixo do salário mínimo, enquanto que os que vêm de fora, os migrantes, são os únicos que recebem mais do que dois salários mínimos em Ipojuca.
Para Helenilda Cavalcanti, “essa condição justifica a busca dos gestores e empreendedores por pessoas de outras regiões (migrantes) para ocuparem as vagas oferecidas pelos empreendimentos de Suape”. Explica a pesquisa: "A intensa migração para os municípios do Território Estratégico de Suape (TES), especialmente para Ipojuca e Cabo de Santo Agostinho e principalmente de trabalhadores do sexo masculino voltados para as atividades da construção civil, vem estimulando o crescimento da prostituição infantil, assim como tem sido observada uma rápida escalada da violência urbana e do consumo e tráfico de drogas".
Economia 
Os problemas sociais refletem na economia do município. A pesquisadora aponta que, “embora a população de Ipojuca tivesse, em 2010, uma participação de apenas 0,009% do total do estado, seu PIB representava 9,56% de toda a riqueza produzida em Pernambuco, inferior apenas ao da capital”.
Na opinião de Helenilda Cavalcanti, “ao compararmos o aumento proporcional do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) dos municípios do TES com a ampliação proporcional do PIB e do PIB per capita, notamos que as melhorias nos indicadores de desenvolvimento humano não ocorreram na mesma magnitude e velocidade que o crescimento da riqueza produzida na região". E mais: "Novamente percebemos que mesmo em face de melhorias nas condições médias de vida da população local, há uma tendência que vem privilegiando o crescimento econômico, e Ipojuca, que concentrou a maior parte do crescimento econômico na região, embora tenha atingido o segundo maior PIB do estado e um dos maiores PIB’s per capitado país, sequer atingiu o patamar médio do IDHM de Pernambuco, mantendo-se distante da média nacional”.
A coordenadora da pesquisa, Helenilda Cavalcanti, analisa que “Ipojuca teve uma elevação, linear e proporcional significativa, do salário, destacando-se especialmente o grande aumento do salário médio, que saltou de 2,7 salários mínimos em 2007, para 4,3 em 2011”, mas concentrado principalmente nos salários dos imigrantes, ou seja, os trabalhadores que vieram de fora da cidade.
Ela comunica que “a verificação das faixas salariais mais incidentes entre os municípios do TES indica que a maioria da população recebe, em geral, até dois salários mínimos, e, em Ipojuca, 61% da população assalariada recebia em 2010 menos de dois salários mínimos, indicador semelhante ao de Cabo de Santo Agostinho, que concentrou 57% de sua população com rendimentos nesta mesma faixa”. Muito embora, os dados apresentados são compatíveis com a média estadual, de 60% da população com salários até dois mínimos.
Em Ipojuca, segundo dados do IBGE, “31% dos assalariados recebiam em 2010 até um salário mínimo, e 30% de um a dois salários, significativamente menores que a média salarial do período, que era de 3,8 salários”.
Moradia 
Com isso, as condições de moradia em Ipojuca são ruins. A pesquisa encontrou que “há uma tendência, como no Cabo de Santo Agostinho, da população concentrar as suas moradias nos morros”. Na cidade de Ipojuca, com mais característica rural do que o Cabo, a população mais pobre subiu os morros de forma desordenada e aí percebemos a verticalização nos morros no município.
A pesquisa acaba por perceber que, "ampliam-se as ocupações habitacionais irregulares (além de em encostas de morros), de mananciais e em áreas de proteção ambiental, condicionadas, por um lado pelo aumento rápido da demanda por habitação, e por outro pela intensificação da especulação imobiliária, derivando daí processos de favelização".

(Texto da Assessoria de Comunicação da Fundação Joaquim Nabuco)

P.S.: do Realpolitik. Durante alguns anos, ministramos aulas nas turmas de Administração e Contabilidade de uma faculdade localizada na cidade de Ipojuca. Pedi aos alunos que realizassem uma pesquisa sócio-econômica com a população local, como atividade de uma disciplina. A cidade que ostenta o orgulho de possuir a praia "mais bonita do Brasil", na realidade, apresenta alguns indicadores sociais preocupantes, como os mostrados na pesquisa acima. 

Michel Zaidan Filho: Impeachment à brasileira





O advogado geral da União, José Eduardo Cardozo, teve a oportunidade de ministrar uma excelente aula aos conspiradores presentes na Comissão Especial do Senado da República, que analisa o pedido de admissibilidade do processo de Impeachment contra a Presidente Dilma Rousseff. Citando um autor argentino que estudou os vários processos de Impeachment ocorridos na América Latina, ele chegou a uma constatação curiosa: esse instituto constitucional vem sendo empregado no subcontinente sul-americano como um remédio para resolver crises eminentemente políticas. Ou seja, naqueles casos onde há “legislaturas beligerantes” contra o ocupante do Poder Executivo, o processo de impedimento contra o Presidente, substitui o clássico voto de censura, no regime parlamentarista, lançado sobre o governo, quando a maioria parlamentar e seu gabinete de ministros perde a confiança de seus pares e da sociedade. No Parlamentarismo, a figura do Chefe de Estado (o Presidente) é preservada, enquanto a crise política é resolvida pela convocação de novas eleições gerais.

Disse José Eduardo Cardozo que o uso que vem se fazendo do instituto do Impeachment no Brasil, na ausência de amortecedores e para-choque para a crise, é absolutamente inadequado, inconstitucional, uma vez que na falta de crime de responsabilidade ou de tipos penais que justifiquem o processo contra Dilma, estão querendo usar o Impeachment para tirar a Presidenta da República, de qualquer jeito, por qualquer motivo ou justificativa. Ingovernabilidade, falta de apoio, gestão temerária, impopularidade, enfim, crise política não é base legal para o impedimento de um ocupante da Poder Executivo Federal. O uso inadequado (para não dizer golpista) desse instrumento constitucional equivale a uma banalização do Impeachment e a uma insegurança jurídica para qualquer governante que se sente na cadeira de Presidente da República. O uso golpista do processo de impedimento permite que qualquer maioria eventual – produzida por uma união eventual de interesses na Câmara e no Senado – possa mover esse processo contra o governante de turno, seja de que partido for, tenha ou não cometido crime de responsabilidade.

Naturalmente, num ambiente como esse, onde a desinformação e a má-fé andam juntas, muito ajudadas pela ação reconstrutiva dos meios de comunicação de massa, a suprema corte judiciária do País teria a grande responsabilidade de fazer valer a Constituição, esclarecendo, através de seus pareceres e sentenças, o perigoso equívoco de se usar o expediente impeditivo como antídoto contra a eventual beligerância do Parlamento ou o revanchismo da oposição ou um meio diversionistas daqueles que estão hoje na mira da Justiça (como  o presuntivo futuro vice-presidente da República, Eduardo Cunha). Os ministros são, por força da lei, os guardiões da Constituição, são os principais responsáveis pela chamada jurisdição constitucional, são eles que dizem a lei, não podem – por consequência – se omitirem diante desse possível estrupo constitucional, dessa ruptura constitucional, sob pena de serem acusados de coniventes, acovardados, omissos diante da crise que se avizinha. 

Permitir que se demova de seu cargo legitimamente conquistado pelo voto soberano de 54 milhões de eleitores, um Presidente da República, em função da desídia de um Parlamento cheio de réus, denunciados, investigados pela Justiça, é ajudar abrir a caixa de pandora de todos os malefícios, malquerenças, interesses escusos, antinacionais, antipopulares e antidemocráticos que hoje não ousam mostrar a sua cara. Mas uma vez consumado o golpe, não terão nenhum escrúpulo de aprovar no congresso, aquilo que negaram à Presidente da República, para dessangrá-la até a paralisia e a inação do Poder Executivo.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE


segunda-feira, 2 de maio de 2016

Semelhanças e diferenças entre o golpe de hoje e o golpe nazista em 1933


Hitler deu um golpe inteiramente 'legal', através de uma votação no Parlamento. com o apoio da classe média alta. Se olharmos os métodos, como se parecem!


Flávio Aguiar
reprodução
“Nem sempre o que é, parece. Mas o que parece, seguramente é”. Ditado brasileiro.

Muito se tem escrito, contra e a favor, sobre semelhanças e diferenças entre o golpe nazista de 1933 e o que hoje está em curso no Brasil.

Bom, vamos começar por alguns personagens principais. Ninguém de bom senso vai comparar o tacanho e tragicômico Michel Temer com o trágico e sinistro Adolf Hitler. Nem um nem outro merecem tanto. Aquele, “do lar”, este, bem, também era “do lar”, abstêmio, vegetariano, fiel pelo que se sabe, mas, de qualquer modo e por exemplo, os penteados eram completamente diferentes. Além disto, Hitler ficou no poder durante doze anos, de 33 a 45, digamos. Temer não ficará tanto. No Inferno de Dante Hitler estaria na boca de Lúcifer, mascado com os grandes traidores da história. Onde estará Temer? Provavelmente na porta do Inferno. Nem lá ele será admitido. Na porta, sem direito nem a meia-entrada, estão os que carecem até mesmo de um forte caráter pecador. Para alegria dos pós-modernos, estão no não-lugar universal e eterno. 

Também ninguém vai comparar o grotesco Cunha ao também grotesco Göring, que foi quem presidiu a sessão do Reichstag que começou o golpe de estado nazista em 23 de março de 1933. Se estivessem num romance de Dostoyevski, ambos seriam qualificados como psicopatas. Mas não esteve um, nem está o outro. Vamos aguardar para ver como a história qualificará o mais recente deles. Boa coisa não será.


Agora, se olharmos os métodos, como se parecem!

Em primeiro lugar, Hitler deu aquilo que a revista alemã qualificou, em relação ao Brasil, um “kalter Putsch”, um “golpe frio”, ou “branco”, na nossa tradição. Foi um golpe inteiramente “legal”, através de uma votação no Bundestag, o Parlamento, depois confirmado pelo Bundesrat, que equivaleria ao nosso Senado (como deve acontecer), assinado pelo presidente von Hindenburg, e largamente deixado correr ou apoiado pelo Judiciário.

O golpe ganhou o nome histórico de “Ermächtigungsgesetz”, que poderia ser traduzido por “Lei de Empoderamento”. Era muito breve, como o nosso Ato 5: tinha um preâmbulo de algumas linhas e cinco artigos. Em essência, dizia que o Gabinete Executivo - presidido por Hitler - tinha poderes para decretar leis sem aprova-las no Parlamento, e que estas leis estariam acima da Constituição, que não poderia ser invocada para contesta-las. Dizia que a exceção se referia ao Bundestag e ao Bundesrat, coisa que, evidentemente, foi desrespeitada depois. Ou seja, como hoje no Brasil, rasgava-se a Constituição “legalmente”, e abria-se o período de exceção, diante de uma pequena burguesia (hoje diríamos alta classe média) gessificada pelo medo da ascenção dos “debaixo”. Mas tanto lá como hoje, nesta classe média isto não era unânime, diga-se de passagem. Por isto a repressão que se seguiu foi generalizada. E hoje, não será?

Mas houve também o processo de votação. Como o nosso presidente da Câmara, Göring se dedicou a criar regras próprias para a votação. Depois do incêndio do Reichstag, no final de fevereiro de 1933, Hitler desejou que na nova votação que haveria no começo de março ele tivesse assegurada uma maioria absoluta no Bundestag. Isto não aconteceu. O Partido Nacional-Socialista precisava ainda do apoio de partidos de coalizão (basicamente o Partido do Centro, católico - parecido com os evangélicos de hoje - e o Partido Nacional do Povo Alemão, coligado com os nazistas. Por isto os nazis decidiram adotar o caminho da Lei do Empoderamento, para prescindirem deste apoio futuramente. E os outros morderam a isca.

Mas houve mais. A Constituição alemã previa que para uma votação destas, que a modificava, era necessária a presença de dois terços dos deputados, ou seja, 432 dos 584 membros. Para vencer esta dificuldade, Göring inventou uma nova conta. Como os comunistas tinham sido acusados pelo recente incêndio do prédio do Reichstag (o Parlmento se reunia num teatro, a Casa da Ópera Kroll), os deputados do KDP (Kommunist Deutsche Partei) tinham sido presos, banidos, ou estavam foragidos. Assim Góring simplesmente descontou os 81 que eles eram da soma geral, e o quorum ficou reduzido a 378. Boa matemática, não?

Além disto, Göring abriu as portas do Parlamento aos Nazisturmabtellung, os SA, Camisas-Pardas (que depois seriam sacrificados para ratificar o poder dos SS). Hoje, no Brasil, não há SA, mas há as tratativas entre a presidência da Câmara e a Rede Globo, fazendo a votação no domingo, com esta mudando horários de jogos… enfim, cada momento tem a SA que pode e merece.

O processo de votação foi uma farsa. Estaremos falando de 1933 ou de 2016? Tanto faz. Aquele não foi transmitido pela TV, porque TV não havia, pelo menos na escala de hoje. O de hoje foi, para vergonha dos deputados perante o mundo inteiro. Vários deputados do SPD tinham sido presos, ou já haviam fugido para o exterior. Mas o inventivo Göring criou uma nova cláusula, ad hoc: deputados que não comparecessem, mas que não tivessem apresentado uma justificativa por escrito, deviam ser contados como presentes, para para garantir o quorum. (Lembram da alegação de um um deputado pró-impeachment que os deputados ausentes teriam de apresentar atestado médico?).

Bom, na sessão, apenas o líder do que restava do SPD, Otto Wels, que terminaria morrendo exilado na França antes da ocupação, falou contra a nova Lei. Os outros discursos foram acachapantemente ridículos (alguma coincidência será mera semelhança?). Bom, ninguém invocou a mãezinha ou o vizinho, mas saíram coisas como a Pátria e a Ordem. Resultado: 444 a favor da nova lei, 94 contra, todos estes do SPD. 

Um detalhe muito interessante: Hitler negociara com Ludwig Kaas, o líder católico, que respeitaria o direito da Igreja e os funcionários católicos nos cargos de Estado, além das escolas. No dia seguinte ao da votação, que foi logo aprovada no Bundesrat e assinada por Hindenburg, Ludwig Kaas foi despachado para o Vaticano para explicar a nova situação ao então Cardeal Pacelli, futuro Papa Pio XII, de triste memória (alguma semelhança com a viagem do ex-companheiro Mateus, hoje senador Aloysio Nunes Ferreira, despachado aos States logo depois da votação na Câmara?) Ele cumpriu a missão religiosamente, como o Mateus. Porém, Hitler lhe prometera (a Kaas) uma carta com as garantias. Ela nunca foi entregue.

Satisfeitas e satisfeitos? É, mas tem mais…

Porque ainda resta o triste papel do Judiciário. Em primeiro lugar, juízes alemães legalizaram a perseguição aos comunistas porque eram “traidores” incendiários do Reichstag. Depois, fizeram vista grossa para as demais perseguições que vieram. Quando não apoiaram. Deve-se lembrar que quem inaugurou a queima de livros em 10 de maio de 1933, na hoje Bebelplatz, foi o diretor da Faculdade de Direito, ao lado, trazendo uma braçada de livros “degenerados” da sua biblioteca. 

Hitler acusou um comunista holandês, Marinus Van der Lubbe, e mais quatro outros militantes búlgaros pelo incêndio, que ocorreu em fevereiro de 1933, alguns dias antes da eleição de março. Eles foram levados a julgamento no segundo semestre de 1933. Lubbe foi réu confesso - sabe-se lá como sua confissão foi obtida, mas pode-se julgar pela declaração em juízo de um dos outros acusados, Georgi Dimitrov, de que passara sete meses acorrentado em sua cela, dia e noite. Bem, a gente pode pensar numa justificativa: naquela época não havia delação premiada… Era pancadaria mesmo. Os outros quatro foram absolvidos por falta de provas, mas Lubbe foi condenado à morte e executado no começo de 1934.

Farsa? Sim, mas o pior vem depois.

Em 1967 um juiz da Alemanha Ocidental, na reabertura do processo promovida pelo irmão do condenado, Jan, “comutou” a pena de van der Lubbe de condenação à morte para 8 anos de prisão (!), quando o réu já estava, bem, digamos, no outro mundo. Em 1980, novo julgamento anulou a decisão de 1933 e de 1967. Mas em 1983 nova decisão anulou a de 1980, a pedido do… Ministério Público (!). O caso só foi resolvido definitivamente em 06 de dezembro de 2007 (!), 71 anos depois da decisão original, quando o equivalente ao nosso Promotor Geral da República proclamou “o perdão" de van der Lubbe, com base em uma lei de 1998 que declarara todas os julgamentos da época do nazismo juridicamente nulos. 

Até hoje as alegações de que o incêndio foi provocado pelos próprios nazistas para começar sua série interminável de desmandos nunca foi oficialmente investigada. É um bom exemplo para quem acha que o caso das omissões e vagarosidade do Judiciário brasileiro é algo único na história.

Depois deste exercício de história comparada, que as leitoras e os leitores tirem suas próprias conclusões.
(Publicado originalmente no Portal Carta Maior)