pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
Powered By Blogger

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Le Monde: A democracia no Brasil ou a (des)esperança equilibrista

A democracia no Brasil ou a (des)esperança equilibrista

A “democracia” brasileira encontra-se na “corda bamba equilibrista”: de um lado, o autoritarismo enevoado pelas formalidades legais falsamente democráticas, desestruturadoras dos direitos políticos, sociais e trabalhistas; de outro, a luta dos trabalhadores e dos pobres em busca destes
por: Francisco Fonseca
4 de setembro de 2017
Crédito da Imagem: Daniel Kondo

equilibrio 2
O trecho acima, da letra da canção O bêbado e o equilibrista, de 1978, expressa como nunca o Brasil de hoje, em que o impedimento da presidenta Dilma Rousseff significa, em verdade, o impedimento da democracia no Brasil.
Grande parte da cultura de resistência política nas mais diversas manifestações artísticas que marcaram a oposição à ditadura militar é hoje vigorosamente contemporânea. Em outras palavras, passados menos de trinta anos da “transição para a democracia”, supostamente consolidada na Constituição de 1988, o país revive a ditadura e sua (des)esperança equilibrista! De modo similar a 1964, deu-se a repaginada interrupção da democracia política e social, “velha” como aquela em seus métodos e intuitos.
Personagens semelhantes de ontem e de hoje assumiram o protagonismo do golpe de Estado desfechado em 31 de agosto de 2016, após amplo, complexo e articulado – nacional e internacionalmente – processo de desestabilização política, econômica e ideológica: agências estatais norte-americanas;1 capital transnacional; fração rentista do capital externo e interno; grande empresariado interno desnacionalizado articulado a grupos e corporações internacionais; Poder Judiciário, atuante como partido político sem voto; classes médias superiores zelosas pelo retorno e aprofundamento da “Belíndia” (Bélgica para as elites e Índia para a imensa maioria dos pobres, terminologia adotada até o governo FHC); desprezo pelas “regras do jogo democrático” por parte significativa do sistema partidário – PSDB à frente, como revivescência da UDN –; meios de comunicação oligopolistas e golpistas, atuantes como outro partido sem voto; entre outros.
Portanto, todos esses personagens se amalgamaram, não sem contradições, num consórcio golpista responsável pela instauração do ódio (à igualdade, à democracia, aos pobres, à esquerda, ao PT, a Dilma e a Lula) e consequentemente do golpe de Estado que nos legou, desde o ano passado, o profundo estado de exceção em que a mínima “segurança jurídica” deixou de existir.
Deve-se notar que, mesmo considerando as definições minimalistas de democracia, como as de Norberto Bobbio (aceitação das regras do jogo em torno da maioria eleitoral com respeito às distintas minorias) e de Robert Dahl (garantia da contestação política e da participação nas decisões governamentais), a interrupção daquilo que se chamou de “democracia brasileira” contou com o escancarado escárnio das elites e das instituições políticas pelos princípios elementares da “democracia”!
Do ponto de vista institucional, a facilidade com que setores do Ministério Público (Federal e de algumas seções estaduais), do Supremo Tribunal Federal e da força-tarefa da Lava Jato, entre outras instituições judiciárias, além da Polícia Federal, têm suplantado a Constituição, os códigos de direito e processo penal, as leis de delação, grampo e “vazamento” de informações, entre inúmeras outras, tem colocado o país de costas para a mais elementar concepção de “estado de direito democrático” e de país adepto ao respeito aos “direitos humanos”. Neste caso, o desrespeito aos tratados internacionais tem isolado fortemente o país da chamada “comunidade internacional”.
Para além dos inúmeros erros políticos cometidos pelos governos Lula e particularmente Dilma – sobretudo vinculados à conciliação entre as mais distintas classes sociais, eximindo-se consequentemente de enfrentar grandes poderes –, nada justifica o golpe de Estado à luz da teoria democrática e sobretudo da legitimidade do voto. O pretexto das – midiaticamente chamadas – “pedaladas fiscais” e do “combate à corrupção” nada mais representou que “cortinas de fumaça” ocultadoras de interesses do grande capital mancomunados com as elites políticas/sociais e com as instituições:2 a imposição de governo e agenda plutocráticos.
Uma possível explicação para o golpe remonta às insuficiências e contradições da transição para a “democracia” – tomada, nos anos 1980, quase como um “consenso” de que estaríamos caminhando rumo à “democracia” –, que na verdade geraram um “monstro” de certa forma imperceptível, mas essencialmente útil. Afinal, uma arquitetura político/econômica/ideológica antidemocrática foi estruturada desde a “transição”, associada a instrumentos provenientes da ditatura militar, tendo permanecido até os dias de hoje, sem alterações significativas, como veremos a seguir.
O sistema político tutelado pelas elites3
A “transição democrática” do final da década de 1980 foi marcada, como se sabe, pelo “alto”, cujo velho mote do conservadorismo se fez inteiramente: “Alterar para não mudar efetivamente”. Sem que se tenha pretensão de esgotá-las, as seguintes características marcaram a aludida arquitetura, cuja ideia de “transição lenta, gradual e segura” da década de 1970 se mantém curiosamente como fator explicativo para o golpe de 2016.
O financiamento empresarial de campanhas e partidos
Embora formalmente o financiamento político seja misto (público, via fundo partidário, e privado, por meio de doações de empresas e de pessoas físicas), na prática sempre foi largamente privado/empresarial, tendo em vista o chamado caixa dois. Mas, mesmo o financiamento privado legal, regido por leis e controles, é, por princípio, ilegítimo, em razão da assimetria econômica que impõe à representação política. Em outras palavras, a vida pública tornou-se, desde a “redemocratização”, essencialmente organizada pelo poder privado do capital; além disso, a própria dinâmica do poder implica relações ocultas – que permanecem, mesmo com os avanços nos processos de transparência –, por meio da ampla rede de fornecedores privados e da participação vigorosa dos agentes privados nas políticas e na administração públicas. Isto é, o financiamento privado ilegal não ocorre apenas em períodos eleitorais, pois tende, sobretudo após a “emenda da reeleição” – verdadeiro golpe branco desferido contra a democracia pelo governo FHC –, a fazer parte do cotidiano de quem assume o poder, excetuados os que lutam contra a roldana do sistema.
Somente em fins de 2015 o STF, após enorme atraso provocado pelo ministro Gilmar Mendes, proibiu o financiamento privado empresarial, tendo significado talvez a única ação democrática da alta corte nos últimos anos. Não é garantia, contudo, do abuso do poder econômico, tendo em vista a fragilidade das instituições fiscalizadoras.
Multipartidarismo: extrema flexibilidade, baixa representatividade e “mercado da política”
Embora, em tese, a existência potencial de diversos partidos seja fundamental à democracia, uma vez que pode permitir a expressão de interesses e visões de mundo distintos, o multipartidarismo criado ao final da ditadura objetivava justamente a pulverização das forças políticas de oposição, de tal modo que não tivessem poder suficiente para derrotar o status quo civil-militar e promover grandes mudanças político-sociais. Consolidada a retirada dos militares da cena política, o multipartidarismo teve outros objetivos, para além da pluralidade político-ideológica demandada pela sociedade: a) a necessidade de formação de alianças eleitorais, em larga medida não programáticas, tendo em vista a soma do tempo de rádio e TV referente à propaganda eleitoral; b) a coalizão, incluindo-se partidos derrotados nas eleições, para a composição de maiorias após a vitória eleitoral, igualmente não programáticas, com vistas a constituir “base governista” ampla capaz de aprovar medidas de governo; c) o chamado “balcão de negócios”, em que barganhas dos referidos tempos no rádio e TV e na formação de alianças, assim como todo tipo de “varejo” parlamentar perante o Executivo, tornaram-se o modus operandi da vida política; e d) a fragilização dos partidos políticos como agentes de representação social popular. Isso implica a desvalorização dos partidos enquanto instituição, com a consequente personificação de indivíduos, cuja consequência é a desmobilização coletiva, bem como a pulverização e a fragmentação da representação partidária.
Tudo isso foi sintetizado na expressão “presidencialismo de coalizão”, que representou nada mais que o arranjo institucional voltado à “conciliação de classes”, no sentido de impedir maiorias populares. Os governos petistas jogaram esse jogo exaustivamente, até que, na primeira oportunidade, as elites romperam a conciliação, tanto por não mais precisarem dela como por vislumbrarem a possibilidade de desestruturação dos direitos sociais e trabalhistas.
A destituição do Parlamento como “casa do cidadão comum”
A destituição dos poderes do Parlamento quanto à proposição da “agenda política” e de políticas públicas transformadoras, em contraste ao potencial lócus de representação plural e particularmente popular, é parte do projeto “pelo alto”. A chamada “crise do Parlamento” é, dessa forma, estratégica para o jogo das elites, uma vez que o rebaixamento do Legislativo implica hipertrofia do Executivo, em que a tomada de decisão é infinitamente mais rápida, informal e sobretudo controlável.
O baixo “controle social” da sociedade politicamente organizada
Em termos institucionais, o baixo controle social dos cidadãos perante os representantes eleitos, cujo mandato se torna “propriedade” destes, faz da representação política arena de negociação distante e muitas vezes em oposição aos interesses populares. Portanto, quanto mais distante do cidadão comum, mais privatizado e elitista se torna o sistema político. De certa forma, a judicialização das políticas públicas e, mais ainda agora, a partidarização do Poder Judiciário distanciam mais ainda os interesses coletivos populares do “controle social” sobre a tomada de decisão, em benefício dos que transitam pelos gabinetes. Os avanços na institucionalização da participação ocorridos parcialmente a partir de Lula foram bruscamente interrompidos.
A oligopolização oligárquica da mídia
O sistema midiático permanece oligopolizado e oligárquico, notadamente a rede concessionária de TVs e rádios, porém articulada a jornais, revistas e ao mundo digital, que atuam como “aparelhos privados de hegemonia”. A mídia é ator político paraestatal, com grande poder de influenciar tanto a percepção social da vida política como os comportamentos. É claramente partícipe do jogo político, embora estrategicamente seu discurso o oculte. Deve-se, dessa forma, considerá-la parte do sistema político, o que implica necessariamente sua reforma, à luz, por exemplo, do que ocorreu na Argentina por meio da Ley de Medios. Não regulamentá-la e não controlá-la põe por terra qualquer possibilidade democrática.
A corda bamba da democracia
Apesar de claramente disfuncional para a representação dos interesses populares, essa arquitetura tem sido justificada no debate político e pela ciência política dominante como garantidora da chamada “governabilidade”, isto é, das condições de obtenção de maioria para governar, com vistas à consecução dos objetivos da coalizão de governo… notadamente o impedimento das mudanças profundas. Portanto, implica essencialmente a proteção dos proprietários (de diversas frações do capital) em detrimento da maior parte dos cidadãos. Afinal, tanto para se elegerem (reitere-se o papel do financiamento privado, mesmo que informal, e das coligações para obtenção de tempo no rádio e na TV) como para governarem (“dívida” para com os financiadores e necessidade de maioria parlamentar para ter “governabilidade”), os partidos políticos que chegam ao poder necessitam, inescapavelmente, negociar compromissos assumidos durante as eleições e o próprio “programa” de governo. Governar implica, portanto, não contrariar grandes interesses e consequentemente estabelecer políticas apenas “incrementais”.
A “democracia” brasileira encontra-se, portanto, na “corda bamba equilibrista”: de um lado, o autoritarismo enevoado pelas formalidades legais falsamente democráticas, desestruturadoras dos direitos políticos, sociais e trabalhistas; de outro, a luta dos trabalhadores e dos pobres em busca desses, entre outros, direitos. Quanto às instituições, pouco se espera delas, uma vez que enlameadas no golpe e fortemente facciosas.
Os “artistas” aos quais se refere a canção da epígrafe são, portanto, os trabalhadores, os pobres e um sem-número de militantes, partidos de esquerda e progressistas, organizações sindicais, movimentos sociais, mídias alternativas, entre tantos anônimos: são a grande esperança de que, ao ocuparem as ruas e os mais diversos espaços, revertam a trágica correlação de forças que se abateu sobre o país.
Tarefa árdua, mas “o show tem de continuar”…
*Francisco Fonseca é professor de Ciência Política da FVG-Eaesp e da PUC-SP.
[Texto publicado na edição 120 do Le Monde Diplomatique Brasil – Julho de 2017]


1 É fundamental ressaltar que o que veio a público por meio dos “vazamentos” expostos por Julian Assange e do WikiLeaks acerca da bisbilhotice internacional do governo dos Estados Unidos aos e-mails e telefones do governo brasileiro – entre outros governos –, incluindo-se extensa espionagem das autoridades da Petrobras, deixa claro que eram de amplo conhecimento daquele país o pré-sal e as decisões estratégicas a serem tomadas pela estatal, entre outras. Não se trata de “teoria da conspiração”, mas simplesmente de conspiração seguida de desestabilização!
2 A Operação Lava Jato, que tem produzido supostos “heróis nacionais”, paradoxalmente nada mais significa que a criminalização do modus operandi da vida política e de um modelo específico de desenvolvimento econômico/social: trata-se de um partido político derivado do partido maior, o aludido “Partido do Judiciário”. Faz política sem voto, com consequências brutais ao Estado, à sociedade e ao sistema político. Pretende, na esteira da Ação Penal 470, capitaneada por Joaquim Barbosa, “limpar o Brasil”. Seu resultado tem sido a devastação do estado de direito democrático – naquilo que se aproximava dele – e do desenvolvimento econômico e social, rebaixando o país a patamares da década de 1980/1990. Tudo isso para o gáudio dos grandes players e governos internacionais.
3 Esta seção é baseada no artigo de minha autoria publicado neste jornal (out. 2014), antes das eleições presidenciais, em que chamei atenção para a lógica e a dinâmica do sistema político, uma vez que voltado à proteção das elites. A análise das características apontadas foi atualizada e adaptada. Após quase três anos de sua publicação, pareceu premonitório, incluindo-se o título (“A que(m) serve o sistema político brasileiro?”), embora não tivesse essa pretensão.
 
(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique)

 

Michel Zaidan: A cozinha da Casa Grande

 
 
 
Segundo as informações de um conceituado blog da cidade do Recife, a viúva (e pessoa sempre presente nos atos da atual administração de Estado de Pernambuco)  teria tomado a decisão de candidatar o filho mais velho ao mandato de deputado federal e o secretário de Turismo,  Felipe Carreras, à sucessão de Paulo Câmara, nas eleições do próximo ano. A se confirmarem essas informações, a solução para os problemas políticos e sociais do Estado continuarão  "caseiras", tomadas por um "petit comitê",  chefiado pela matriarca da família Campos.  Solução que conta naturalmente com o apoio da avó, com a oposição do tio, e com a aceitação tácita dos amigos e seguidores da oligarquia ora dominante. Desde o cortejo fúnebre do ex-governador, esposo, pai e filho de Ana Arraes, que essa pré-candidatura foi alimentada no bojo da construção de uma falsa e pretendida legenda política em Pernambuco: o avô, o pai...e agora, o neto. Uma linhagem familiar nos padrões da política patrimonialista do nosso Estado, onde os cargos e mandatos parecem prebendas ou privilégios de membros de certas famílias ilustres, que nasceram para governar.
 
Descontando a  receita preparada no interior da cozinha da Casa Grande, é preciso atentar para as características do momento político que ora atravessamos, seja no Estado ou no país. O destino político incerto dessa oligarquia em relação à sucessão presidencial, e o governo ruinoso e impopular do atual gestor da capitania (hereditária?). O nome deste gestor já vem sendo objeto de muitas especulações, no sentido de sua troca ou pelo nome do atual prefeito da capital e, agora, do secretário de turismo. Pelo visto, quem decide  a política estadual é a viúva e seu seus  conselheiros, à revelia dos interesses da população de Pernambuco.
 
Curioso é o destino das alianças do PSB, nas próximas eleições estaduais e nacionais. O  partido parece está dividido entre o PSDB paulista  e o PT de Lula. A opção da oligarquia estadual pela aliança com o PT teria que enfrentar a tendência do partido em São Paulo de se compor eleitoralmente com o PSDB, apoiando Alckmin ou Doria  em troca da sucessão estadual paulista. O que pode significar uma ruptura do grupo pernambucano com o PSB nacional. Por outro lado, a possibilidade de  uma aliança com o PT, aqui no Estado, causaria arrepios e calafrios  nos opositores  (do próprio partido) à ação desagregadora produzida pelo PSB no campo da esquerda pernambucana.É difícil  engolir os sapos da administração socialista, com as perseguições, as denúncias, a incúria na gestão dos negócios públicos etc.
A esquerda tem um enorme desafio político pela frente:  reconstruir o seu campo e a seu programa, sem se comprometer - de um lado ou de outro - com projetos políticos meramente eleitorais e estratégicos, cujas as alianças ajudam a desacreditar os seus princípios e o seu programa. Mais ainda num terreno minado como esse daqui do nosso Estado. É preciso pensar que há objetivamente  o fim de um ciclo político-partidário no nosso país e a necessidade de construção de um novo tempo político. 
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

Barreiras da academia são de linguagem, não de inteligência, diz autor de tese em quadrinhos

                                          
Helô D'Angelo
                                                                                

Barreiras da academia são de linguagem, não de inteligência, diz autor de tese em quadrinhos
O pesquisador Nick Sousanis, autor de 'Desaplanar' (Divulgação/Editora Veneta)



Teses de doutorado, em geral, podem ser leituras difíceis para o público leigo, especialmente quando tratam de conceitos complexos ou muito específicos. Buscando simplificar e democratizar o acesso ao pensamento – e sair dos “muros da universidade” -, o quadrinista americano Nick Sousanis deixou as palavras de lado para utilizar um formato pouco convencional para a publicação de um trabalho acadêmico: os quadrinhos.
Resultado da empreitada do pesquisador, Desaplanar (Veneta) foi publicada em 2014 nos Estados Unidos, mas só chega ao Brasil neste mês – junto com o autor, que deve participar da quarta edição das Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da USP, de 22 a 25 de agosto, em São Paulo.
A obra foi a primeira tese de doutorado em formato gráfico da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e no ano passado recebeu honrarias dentro e fora do mundo dos quadrinhos: além de ter sido indicada ao prêmio Eisner, equivalente ao Oscar das HQs, foi a primeira neste formato a vencer o American Publishers Awards, o prêmio mais tradicional de pesquisas e trabalhos acadêmicos dos EUA. 
“As maiores barreiras que cercam a academia e mantêm pessoas de fora dela são de linguagem, não de inteligência”, afirma Sousanis à CULT . Em Desaplanar, o autor defende que a melhor forma de compreender o mundo é “analisando, respeitando e aceitando” diferentes perspectivas sobre ele, “em vez de tentar explicá-lo de forma plana” (daí o neologismo que dá título à obra).
À CULT, o autor falou sobre os quadrinhos como meio de transmissão e democratização do conhecimento, refletiu sobre o preconceito que o formato ainda sofre na academia – e defendeu que novas formas de pensar e transmitir o conhecimento podem ser essenciais para as crises sociais que vivemos nos dias atuais.
Trecho de ‘Desaplanar’, do pesquisador norte-americano Nick Sousanis (Divulgação/Editora Veneta)
CULT – O que o inspirou a pensar sua tese em um formato gráfico?
Nick Sousanis – Eu já fazia quadrinhos há muito tempo, desde criança, passando pelo colegial e também de forma meio escondida na faculdade. Mas só me voltei a eles de forma completa e complexa quando já era adulto, com algumas HQs políticas que fiz durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2004. Essas histórias realmente abriram meus olhos: percebi que eu poderia usar quadrinhos como uma ferramenta para a educação e para a transmissão de ideias. Então as levei para alguns potenciais orientadores em Columbia, sugerindo que eu poderia fazer a minha dissertação e outros trabalhos acadêmicos neste formato. 
Por que os quadrinhos facilitam os processos de educação e de transmissão de ideias?
Quando eu estava na academia, notei que a profundidade das ideias discutidas ali tende a permanecer presa entre os muros da universidade. Essas ideias dificilmente atingem o grande público – e eu sentia fortemente que as maiores barreiras que cercam a academia e mantêm as pessoas de fora são de linguagem, e não de inteligência. Com os quadrinhos, é possível juntar e transmitir informações complexas de forma sofisticada – sem que isso as torne idiotas ou bobas -, o que traz mais pessoas para debates que antes estavam confinados às salas de aula. 
Como uma ideia pode ser simplificada sem se tornar “boba”?
Os quadrinhos nos permitem ver coisas de forma única, porque unem o pensamento sequencial (que é como nós lemos) e o pensamento simultâneo (como nós vemos) – o que, na minha opinião, é o mais próximo de como nossos pensamentos funcionam: nós temos pensamentos lineares, e daí tangentes; e ao mesmo tempo pensamentos pairando aos lados, e pensamentos que se sobrepõem. Tudo isso fica muito difícil de representar de uma forma rígida e direta sem que muito se perca. Acho que os quadrinhos colocam tudo no papel de uma vez, de forma organizada e com menos perdas de conteúdo, para que o leitor possa descobrir tudo em seu próprio tempo. E isso não é bobo: é o jeito que nossas mentes trabalham.
Desaplanar também aborda pontos de vista: você diz que, em uma discussão, os dois lados poderiam ouvir um ao outro, respeitar-se mutuamente e construir algo além do simples desacordo. No entanto, hoje há uma escalada dos discursos de ódio. Como vê essa questão?
Minha nossa, estou respondendo a isso horas depois de Trump dizer que a culpa do que tem acontecido nos Estados Unidos é de “diversos lados”, e que há “boas pessoas” entre os supremacistas brancos que marcharam em Charlottesville. O centro de Desaplanar é justamente a necessidade de adotarmos múltiplas perspectivas como uma forma de expandir o nosso ponto de vista, com o objetivo de chegar a um entendimento maior do mundo que nos cerca. Minha tese é sobre ouvir e aprender com aquilo que se ouviu. Mas nem tudo deve ser incluído nisso.
Como separar as coisas?
Em um debate sobre a mudança climática, por exemplo, não há como um pesquisador que estudou o assunto a fundo por anos conversar com uma pessoa que vê neve e dizer “viu só? as coisas não estão tão ruins”. Não há nada válido sobre o ponto de vista de uma pessoa que não acredita no aquecimento global, porque é uma perspectiva formada apenas por negação e ignorância. É esta pessoa, no final das contas, que não vê outras perspectivas – ela deveria abrir-se a novos olhares. Isso acontece de forma similar com os racistas e neonazistas. Se você dissemina ódio, eu diria que você já está cego para outras visões de mundo; sua visão já é planificada. Mesmo assim, se quisermos entender o que leva uma pessoa a ter um ponto de vista neonazista, é importante olharmos para isso de diversos pontos de vista também – até porque, fazendo isso, é mais fácil ajudar essa pessoa a perceber que ela pode deixar este ponto de vista para trás. É por isso que o título da tese é Desaplanar e não Desaplanado: porque este é um processo contínuo.
A imaginação é um dos temas centrais do seu livro. Sem ela, você diz que “é impossível se colocar no lugar do outro para compreender pontos de vista diferentes” – e você cita exemplos de histórias narradas por pessoas que não as viveram. Acha que a imaginação pode ser problemática em relação ao lugar de fala de minorias?
A imaginação não nos faz roubar o lugar do outro. Ela não nos transforma no outro; ela simplesmente nos dá a capacidade de desenvolver empatia, de tentar entender a perspectiva do outro. Nós aprendemos a fazer isso melhor se nos ouvirmos mutuamente, mas também se pudermos nos imaginar no lugar do outro. Posso dar um exemplo disso. Na graphic novel de Thi Bui, The Best We Could Do [ainda sem versão brasileira], a autora imagina a história de refugiados do Vietnã. Esta era a situação de seus pais, mas jamais foi a realidade dela. O ato de criar essa narrativa claramente fez com que ela entendesse melhor sua família e as experiências que eles passaram, o que, de certa forma, “desplanificou” sua visão sobre o assunto. Enquanto leitor, seria impossível não ser tocado pelos eventos que ela relata, e seria muito difícil não desenvolver uma relação mais tridimensional e profunda com este tema – coisa que, antes de ler o livro, eu não tinha.
O que pode ser feito para mudar a visão que se tem dos quadrinhos – e de outros formatos alternativos ao texto – de mídias “sem seriedade” ou valor acadêmico?
Quando as pessoas começaram a ouvir sobre o que eu estava fazendo, acabei sendo muito bem recebido na academia, o que só cresceu desde que publiquei Desaplanar em formato de livro. Por isso, acho que ter exemplos como o meu trabalho, com a atenção que ele recebeu, ajuda a criar precedentes para outros tentarem projetos um pouco fora do que tem sido pensado desde sempre. E não falo só de quadrinhos. No ano passado, um rapaz chamado A.D. Carson fez sua dissertação na Universidade de Clemson em formato de um álbum de rap [Owning My Masters: The Rhetoric’s of Rhymes and Revolutions, algo como “Dominando os mestres: a retórica das rimas e revoluções”], o que foi incrível. Quanto mais exemplos tivermos, mais pessoas terão coragem de se embrenhar em outros tipos de formato. E quem sabe, assim conseguimos atrair mais pessoas para a academia.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

O xadrez político das eleições estaduais de 2018, em Pernambuco: Coelho entra. Jarbas sai?




José Luiz Gomes da Silva

Cientista Político



Há alguns anos atrás, ao admitir a possibilidade de uma reaproximação com o então governador Eduardo Campos, o Deputado Federal Jarbas Vasconcelos(PMDB) afirmou que o seu gesto significava preservar a sobrevivência da nova geração de peemedebista do Estado. Entre eles, possivelmente, o seu afilhado político Raul Henry(PMDB), hoje vice-governador, da chamada ala jovem do partido. Numa entrevista recente, mesmo diante de um certo rebuliço na política local, ele reafirmou sua convicção de que deveria marchar com o projeto de reeleição do governador Paulo Câmara(PSB). Suas chances de afastar-se da aliança governista, conforme ele afirmou a um repórter, eram próximas de zero. Há quem pudesse ver nisso um certo blefe, em razão das crescentes negociações que indicavam uma iminente filiação ao PMDB de integrantes da família Coelho, entre eles, o senador Fernando Bezerra Coelho. Jarbas Vasconcelos, em Brasília, supostamente, teria conversado com o presidente nacional da legenda, o senador Romero Jucá(PMDB-RR), assim como já teria na agenda um encontro com o senador FBC. Antes, porém, aguardava a volta do seu afilhado político, que se encontra na China, em viagem oficial, para decifrar as nuvens políticas.

 
Os fatos políticos, no entanto, atropelaram a diplomacia. O PMDB local foi tomado de surpresa pela filiação do senador Fernando Bezerra Coelho(ex-PSB), com indícios de que ele deverá ficar com o comando da legenda local, habilitando-se a uma disputa ao Governo do Estado nas próximas eleições estaduais, previstas para 2018. Aqui, em certa medida - e sem exagero - pode-se falar numa espécie de intervenção nacional no diretório regional da legenda, se considerarmos o mal-entendido gerado entre o senador Romero Jucá e o ex-governador Jarbas Vasconcelos. Jucá tenta minimizar os atritos, afirmando que os ajustes haviam sido feitos antes, preservando-se, inclusive, a candidatura de Jarbas Vasconcelos ao Senado Federal. Jarbas, por sua vez, nega qualquer acordo. Peemedebistas locais mais ligados ao ex-governador demonstraram a mesma surpresa e indignação com a medida, tomada notadamente para atender aos interesses da cúpula nacional da legenda, que prepara o terreno para as eleições presidenciais de 2022, de acordo com o próprio Caju (Ops!) 

 
A cúpula da legenda não aceitou a decisão de Jarbas Vasconcelos em votar a favor do prosseguimento da denúncia contra o presidente Michel Temer, contrariando a orientação do partido. Veio a punição e, agora, como disse, uma espécie de intervenção no diretório regional da legenda. Ainda não se sabe muito bem como esse grupo ou frente de oposição ao governador Paulo Câmara(PSB) irá se arranjar entre os seus principais atores. Armando Monteiro(PTB), em tese o candidato a governador da frente, teria festejado o ingresso do senador Fernando Bezerra Coelho na legenda peemedebista. Cede sua vaga  na cabeça de chapa para o novo companheiro? Tentaria renovar o seu mandato de senador pela "nova" aliança? São interrogações que ainda persistem, mas cabe aqui a observação de que a construção de consenso entre eles é facilitada pelos objetivos comuns, além, claro, da perspectiva de poder no curto e médio prazo.

 
Na semana passada, um jornalista local arriscou um palpite. Segundo ele, já havia sido costurado o acordo de uma aliança entre o governador Paulo Câmara e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT). Por esse acordo, o PT ainda tentaria preservar o mandado do senador Humberto Costa(PT), amigo pessoal de longas datas do ex-presidente. Marília Arraes(PT) concorria a uma vaga na Câmara Federal. A eventualidade desse acordo suscitou muitas críticas de petistas pelas redes sociais. As feridas abertas com o apoio dos socialistas ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff ainda sangram. Soma-se a isso, a nítida rejeição dos movimentos sociais e sindicais locais ao Governo Paulo Câmara. Boa parte desses movimentos tem forte influência do PT. Esta, aliás, seria uma das motivações de uma possível aliança, ou seja, minimizar, junto a esses setores, a rejeição ao governador Paulo Câmara. 

 
Mantida essa contingência de Jarbas Vasconcelos em manter-se fiel ao projeto de reeleição de Paulo Câmara, duro será convencê-lo a aceitar essa reedição da aliança com o PT. Como disse antes, num dos nossos artigos de monitoramento das eleições do Estado, as manobras dessa frente - denominada por nós de Conspiração Macambirense - está jogando o campo situacionista na retranca, na contingência de tomar decisões e iniciativas motivadas sobretudo pelas ações dos adversários. A jogada de hoje, urdida pela família Coelho e a cúpula do PMDB, é mais uma dessas situações. Pelas razões expostas em artigos anteriores, o capital político da família Coelho no contexto de uma eleição estadual não é nada desprezível. A saída do grupo, a princípio, representa um desfalque no projeto de reeleição do governador Paulo Câmara, sobretudo se considerarmos o fato de que a frente de oposição, seja quem a lidere, parece convergir para um único projeto, ou seja, conquistar o Campo das Princesas nas próximas eleições estaduais.  

Michel Zaidan: Sobre a propalada "reforma política" em tramitação

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Editorial: Estamos no limite, diz DaMatta.


Imagem relacionada

O programa Canal Livre, do último domingo, transmitido pela Rede Bandeirante, entrevistou o antropólogo Roberto DaMatta, um dos estudiosos que mais entendem de Brasil. Alguns críticos dizem que ele sofreu uma espécie de "massificação", tornando-se, hoje, muito próximo ao status quo do pensamento conservador vigente, o que ofuscaria suas grandes reflexões do passado. Pode ser até que seus críticos tenham alguma razão, mas o fato é que ele continua com uma percepção bastante aguçada do momento político delicado que atravessamos, constituindo-se, ainda, numa grande referência, quando se está em jogo pensar o país. Uma pena mesmo não ter acompanhado a sua entrevista desde o início. Mas, já no finalzinho do programa, ele falou duas coisas importantes. Quando questionado sobre a crescente onda de intolerância que se observa no país, observou que o "mal sempre volta" e que "estamos no limite". Torna-se necessário, portanto, que construamos algum consenso e repactuemos os padrões de convivência social, sob pena de sucumbirmos de vez.

Os reflexos dessa crise institucional já se tornaram perceptíveis em todos os momentos do nosso cotidiano. No altíssimo número de desempregados - que engrossam o mercado dos vendedores ambulantes, dos moradores de rua; no escárnio de nossa classe política - um desses políticos, mais recentemente, ao ser acusado mais uma vez pela PGR, informou que o procurador parecia ter fetiche pelo seu bigode; nas temporadas de caça aos deputados - para livrar o mandatário do prosseguimento de  mais uma denúncia de crime que pesa contra ele, cujas faturas são regiamente cobradas, com um ônus altíssimo ao erário; mais preocupantes ainda são a onda de agressões- movidas pela intolerância - que se sucedem por todo o país. Parece-nos que devemos adotar aqui a técnica do descaramento ou do cinismo, na medida em que o povo brasileiro - ao cobrar a lisura na condução do negócios públicos - são acusados de pregaram o atraso, serem partidários de uma agenda negativa e até de anti-patriotismo.

De uma certa forma, ele tem razão ao se colocar assim, uma vez que, como se sabe, essa "agenda" ultraliberal se sobrepõe a tudo. Nunca esteve entre as preocupações dos seus proponentes as "qualificações" ou "condutas ilibadas" dos seus executores. O ônus, como sempre, deve ser pago pelo cidadão comum, aquele brasileiro que ainda consegue pagar os seus impostos, vítima constante do assédio aos seus direitos. Como nunca se descuidaram dos seus interesses essenciais, já estão articulando um "novo" agente político para dar continuidade a esse projeto. Trata-se o atual prefeito de São Paulo, João Dória Jr.(PSDB), que já afirmou que não irá à convenção do partido para bater chapa com o seu padrinho, Geraldo Alckmin(PSDB), concorrendo á indicação dos tucanos como candidato presidencial nas eleições de 2018. Até a ex-presidente Dilma Rousseff sabe que, apesar dos pesares, Geraldo Alckmin(PSDB) ainda é  um mal menor do que o engomadinho, de figurino preparado sob medida pelos operadores dessa elite econômica, que o trata com todas as pompas e fanfarras por onde quer que ele passe. O que não falta para ele são partidos de aluguéis dispostos a bancarem a candidatura do "ungido". 

Vale a observação do antropólogo DaMatta, de que o "mal sempre volta'. Há alguns anos atrás, quem poderia imaginar que teríamos um retrocesso político dessa magnitude? de consequências nefastas para o tecido social? seguido dessa onda de intolerância? Já são mais de 14 milhões de desempregados; crescem assustadoramente o número de pessoas em situação de rua no país. Para atender às demandas dos ruralistas, o cara, numa canetada só, desabilita uma reserva ambiental do tamanho do Estado do Espírito Santo., no coração da Amazônia. Ainda bem que apareceu um juiz federal que entendeu que isso precisava ter um limite. Precisamos, porém, de outros limites, sob pena de o país ser conduzido a um caminho sem volta. Como observa DaMatta, chegamos ao limite. Isso precisa parar.  

Um prefácio, um aplauso, um abraço

                                           
Tarso de Melo:

Um prefácio, um aplauso, um abraço
O crítico literário Carlos Felipe Moisés (Divulgação)


Era abril de 2015 quando recebi uma mensagem do poeta Carlos Felipe Moisés (1942-2017) dizendo que havia preparado uma segunda edição, revista e ampliada, para seu livro Poesia & Utopia: sobre a função social da poesia e do poeta (Escrituras, 2007). Segundo ele, com sua alta exigência, dos livros sobre poesia que escreveu, era o que mais “merecia ficar”. Não concordei com ele, mas aceitei o surpreendente convite para escrever um prefácio para a nova edição, a que ele acrescentara dois novos capítulos, além de aprofundar um ou outro aspecto dos textos da primeira edição.
Levei mais de dois meses para me desincumbir da tarefa – a responsabilidade era muito grande e me embaraçava tanto quanto minha agenda. Não sabia por onde entrar naquela floresta de questões que Carlão, com uma leveza incrível, conseguia enfeixar em seus artigos críticos. E muito menos sabia como sair dali com um prefácio à altura do livro. Quase toda semana mandava para ele um e-mail pedindo desculpas pelo atraso (além de comentar a campanha do Corinthians e combinar pizzas na Urca). Quando entreguei o texto, que eu ainda considerava como primeira versão, ele, generoso como sempre, disse que havia gostado muito e que não me deixaria mexer em nada. Assim ficou.
O Poesia & Utopia de 2007 era o ponto culminante de uma reflexão que vinha de longe, passando por A multiplicação do real (1970), Poesia e realidade (1977), Poética da rebeldia (1983), Poesia não é difícil (1996) e O desconcerto do mundo (2001). No entanto, quando Carlos Felipe organizou a segunda edição, sua reflexão já havia dado outras voltas incríveis, nos livros Poesia faz pensar (2011), Tradição & ruptura (2012) e Frente & verso (2014). E todas essas reflexões se enfeixam no novo Poesia & Utopia, mas maturidade, em Carlos Felipe, nunca era ponto de chegada: era novo ponto de partida.
Não duvido que, de 2015 para cá, tenha reescrito ou ampliado ainda mais o livro (por mais que, desde então, tenha enfrentado justamente o período mais atribulado de sua vida pessoal). Nem perguntei muitas vezes para ele qual o destino editorial daquela reedição, mas me disse que estava procurando um editor, entre vários outros projetos em andamento. Sempre e sempre. Espero que o livro venha a público em breve, mas publico aqui o prefácio que pude fazer, como elogio e homenagem ao Carlos Felipe e também como um tímido agradecimento diante do tanto que ele deu a seus leitores. Ter podido ser um destes, além de seu amigo, é motivo de imensurável gratidão.
Prefácio ao POESIA & UTOPIA de Carlos Felipe Moisés
Recebo de Carlos Felipe Moisés a missão – dificílima como toda missão tão honrosa – de dialogar, num prefácio, com as ideias do livro que agora está nas mãos dos leitores. Passo semanas sobre os originais e hesito sobre quais os principais aspectos da reflexão trazida neste livro que deveriam ser colocados em destaque. Hesito muito, mas a resposta estava na sua face mais evidente. Sim: na capa.
Poesia & Utopia: o encontro dessas duas palavras na capa do livro já é, por si só, um evento. E uma provocação. Nessas duas palavras está concentrado, de alguma maneira, tudo o que mais precisamos hoje em dia. Ao pronunciá-las e escrever sob seu manto, Carlos Felipe congrega toda a reflexão sobre poesia e sociedade que o absorveu durante seus mais de 70 anos de vida, a maior parte deles dedicada a estudar, lecionar, escrever, debater, traduzir, enfim, fazer poesia em todos os sentidos.
O que temos em mãos agora é a segunda edição – revista e ampliada – de Poesia & Utopia: dentro do projeto sólido que a obra já apresentava na edição anterior, de 2007, o autor encaixou novas reflexões que apenas confirmam o potencial multiplicador da forma como sua inteligência investe nas grandes questões que, de Platão à era das redes sociais, rondam persistentemente a escrita e a leitura de poesia.
Impressiona saber que este livro, repleto de reflexões tão profundas, densas, assentadas sobre um vasto conhecimento da história, da teoria e das grandes e pequenas obras da poesia de várias épocas e culturas, passa longe de se apresentar como o ponto final – ou estável – de uma “carreira”. Pelo contrário, Carlos Felipe vem aqui justamente usar todo seu conhecimento para impedir que cicatrize qualquer uma dessas grandes questões que enfrenta no livro. E se traz algum conforto ao leitor é o de mostrar-lhe que tais questões, antes de serem uma etapa a ser vencida durante o amadurecimento como leitor e/ou escritor, são próprias da poesia em seu movimento na história – no passado, no presente e no futuro. Manter tais questões vivas talvez seja a razão de ser da poesia e dos poetas em cada contexto em que surgem e atuam.
Lembro-me de Murilo Mendes, autor de um livro chamado Poesia Liberdade (1974), afirmar que entre essas duas palavras não caberia nem mesmo uma vírgula. Entre as palavras do título deste livro de Carlos Felipe talvez fosse conveniente suprimir qualquer sinal intermediário, mas a conjunção pela qual optou o autor nos remete à necessidade de promover esse encontro-enlace entre poesia & utopia, condição tanto para uma quanto para a outra se realizarem em nossas vidas. (A propósito, o símbolo que conhecemos como “e comercial”, em determinadas famílias de fontes, tem mesmo a aparência de uma fita solta e esvoaçante aguardando um laço – ou não.)
Ao repor, por perspectivas variadas, a questão-chave do livro – “Para que serve a poesia?” –, Carlos Felipe provoca o leitor a acompanhar os labirintos de um raciocínio que é antes fiel à poesia que ao intento aparente de descobrir sua função “prática” no mundo em que vivemos – e mesmo noutros mundos possíveis. A pergunta, portanto, serve antes como um instrumento para desvendar ainda mais poesia do que respostas diante da constatação recorrente de que submeter a poesia a uma função – ainda que esta possa enriquecê-la aos olhos de quem não liga para poesia – é antes negá-la do que afirmá-la. É antes afastá-la do que enlaçá-la à necessária utopia.
Aliás, Carlos Felipe não coloca em primeiro plano a questão complementar que seu leitor talvez busque: “Para que serve a utopia?”. E não é sem propósito ou por descuido. Ao associar poesia e utopia na capa do livro, antecipando ao leitor o tipo de abraço que pode encontrar nas páginas deste livro, o autor já está nos ajudando a (não) responder à questão sobre a “utilidade” da poesia. Posso dizer: o que aprendemos nas páginas deste livro é que a poesia, se serve para algo, é para nos alimentar de utopia(s). E é por isso que esta resposta não pode se apresentar como uma “solução” da questão, porque dizer que “a poesia serve à utopia” está longe de ser a pacificação de nossos conflitos. Pelo contrário: é o reinício deles, ainda mais intensos, porque agora não nos contenta mais descobrir a função de um objeto artístico feito de palavras, mas sim investigar que energias nele são capazes de alterar a forma como vivemos.
Nas páginas e páginas de convite à meditação – e à poesia, claro, e à utopia, também – que se seguem estamos diante de nossas mais indisfarçáveis fraturas, porque cada linha aqui nos acusa de alimentar uma vida em que, estranhamente, é necessário perguntar qual é o lugar da poesia e, mais ainda, uma vida em que o presente só se justifica pelo quanto sejamos capazes de fazer para dele se afastar, ou seja, pelo quanto de utopia sejamos capazes de cultivar – contra o que somos.
Carlos Felipe, com a elegância dos grandes, não vem dar broncas ou opor o “alto nível” da poesia a um mundo menor em que nos desencaminhamos. Suas reflexões antes se ocupam de mostrar que dedicar-se à poesia é algo como escavar, no mundo em que estamos, o mundo que queremos: “Quanto mais certeza tivermos de que só nos resta a Utopia, mais a Poesia insistirá em alimentar o espírito que nos move”.
No seu mais recente livro de poemas, Disjecta membra (Lumme, 2014), Carlos Felipe dedica a seção final a uma série de aforismos sob os austeros títulos “O poeta”, “O poema” e “A poesia”, que ecoam muito da sabedoria que é revirada em Poesia & Utopia. Se o aforismo, isoladamente considerado, dá um peso excessivo à “verdade” que enuncia, basta passear pelo conjunto deles para perceber que, lá e cá, Carlos Felipe é antes um “perguntador” que um “respondedor”, antes perturbador que pacificador. Num desses aforismos, a propósito, o autor crava: “A verdadeira vida dispensa a poesia”. E não temos como evitar a pergunta: o que seria a vida verdadeira? E por que chegar a ela dispensaria a poesia? A poesia, então, é uma forma de estarmos ligados não à vida (falsa) em que estamos, mas a uma vida (a verdadeira) que pretendemos?
Admiramos as pessoas que passam a vida fazendo poesia, mas é provável que tenhamos ainda mais o que admirar nas pessoas que passam a vida fazendo perguntas. Ou naquelas que, com sua poesia, nos levam a fazer mais e mais perguntas. Carlos Felipe Moisés, com seus livros e com seu exemplo, é a cada dia mais alguém que leva seus leitores e alunos (não há palavra melhor para dizer como me sinto diante dessa figura que dedicou toda sua vida a ler e escrever poesia, pensando e fazendo pensar a partir dela) muito além do ponto em que se encontravam antes de conhecê-lo. E não é porque os carrega de um canto a outro, mas porque os convida a passear por lugares para os quais não tem mapa, talvez apenas o tíquete raro da poesia.
Se a utopia é o lugar que (ainda) não existe e o mundo que queremos e devemos criar, saímos deste livro absolutamente tomados pela urgência de mergulhar noutras tantas páginas de poesia até que a vida se revele, delas para fora, mais digna. Ou a mergulhar nas fraturas da vida sem receio de se afogar na poesia que pode haver por lá. Encorajar-nos a tanto é o que faz de Poesia & Utopia um livro de livros, ocupando aquele raro lugar na estante em que ficam os que gostaríamos não apenas de ter escrito, mas principalmente de estar à altura da entrega que suas palavras merecem.
TARSO DE MELO (1976) é poeta, autor de Poemas 1999-2014 (Dobradura, E-galáxia, 2014) e Íntimo desabrigo (Alpharrabio, Dobradura, 2017).

Cartum!

Le Monde: Dois minutos de ódio ( ou o perigo de ignorar os ressentidos)

 

Com a crescente maré conservadora e autoritária global, ondas de ódio tem atingido a sociedade brasileira com frequência horrenda. Não levar seus impulsionadores a sério é um risco e não intervir pode ser um equívoco danoso, capaz de dar espaço à efervescência de discursos fascistas.
por: Pedro Carvalho Oliveira
25 de agosto de 2017
Crédito da Imagem: Foto: Fiesp/cc

25845126742_2e99b4d984_h
Cresce no Brasil um velho conhecido tipo de medo e a insegurança. Não nos referimos aqui ao aumento no número de assaltos, sequestros e afins. São problemas aos quais se somam esses outros, cada vez mais frequentes em nosso país: as investidas agressivas de parte considerável da sociedade contra cidadãos defensores dos direitos humanos, politicamente alinhados a partidos ou movimentos progressistas, bem como a discursos contra o autoritarismo e o conservadorismo. Esses tem sido alvo de brasileiros aptos a bradarem seu ódio com base apenas em convicções morais ou apelos a argumentações frágeis, quando estas existem. Indivíduos que executam práticas fascistas sem mesmo compreenderem isso. Sujeitos que se consideram na linha de frente da política nacional, dotados do poder de derrubar governantes supostamente corruptos e agredir quem se mostrar minimamente associado a eles. Um tipo de violência extremada conhecida nos meios virtuais cada vez mais próxima de se materializar.
Disseminando o ódio
Na célebre obra “1984”, escrita por George Orwell, nos deparamos com um futuro distópico onde o Estado controla cada passo de uma sociedade e, por meio disso, impõe sua ideologia. Aqueles que não se submetem a ela são considerados inimigos. Nessa atmosfera, os inimigos do Estado são agredidos violentamente não apenas de forma física, sendo presos, mortos ou exilados, mas também de forma simbólica. A ficção nos mostra o seguinte: em um determinado momento do dia, parte da população gerida pelo chamado Grande Irmão interrompe todas as suas atividades e se volta a uma tela, na qual o rosto de algum inimigo nacional é exposto por um par de minutos. Nesse tempo, os indivíduos apoiadores da ditadura instaurada ou os que desejam não sofrer as sanções por ela empreendidas devem xingar o inimigo ininterruptamente, inclusive proferindo ofensas proibidas. São os “Dois Minutos de Ódio”.
Trata-se, portanto, de um momento no qual as pessoas, com o aval de uma autoridade maior e protegidas por ela, expressam seu ódio a alguém. Deixemos de lado as pessoas forçadas a se manifestarem visando não serem punidas e foquemos nos apoiadores do regime, cujas manifestações de ódio são reais. Eles direcionam suas ofensas e desejos de morte a símbolos de sua fúria, opositores do mundo que consideram ideal e supostas ameaças ao sistema que defendem, pois esse sistema os representa. Normalmente, os indivíduos mostrados na tela dos “Dois Minutos de Ódio” são considerados subversivos por defenderem políticas rejeitadas pelo Estado. Orwell criticava o stalinismo e sua perseguição política a dissidentes.
A forma como os apoiadores do regime extravasam seu ódio contra os inimigos no livro é bem semelhante a uma prática comum à era digital de hoje. Quando alguém compartilha nas redes sociais uma notícia de algum site, jornal ou blog, na qual um debate polêmico aparece, é comum vermos o seguinte alerta: “não leiam os comentários”. Trata-se das sessões destes sites voltadas à opinião dos leitores, nas quais eles podem se manifestar abertamente em relação ao que foi noticiado. O alerta normalmente é feito por pessoas que, intencionalmente ou não, defendem causas progressistas ou a equidade mesmo de forma tímida; no mínimo, são sensíveis ao ódio disseminado inescrupulosamente pelos internautas.
Em junho de 2017, um jovem tentou roubar a bicicleta de dois rapazes em São Paulo. As vítimas do roubo conseguiram evitar o crime, apreenderam o ladrão e o levaram à pensão onde estavam hospedados. Lá, uma das vítimas, um tatuador de 27 anos, usou seu equipamento para escrever “sou ladrão e vacilão” na testa do assaltante. O site do G1 publicou no mesmo mês uma matéria reportando a internação do adolescente em uma casa de recuperação particular, onde seria tratado por ser dependente de drogas[1]. Na página de comentários logo abaixo da notícia, lemos as seguintes palavras de um leitor: “se fosse eu não teria tatuado, teria dado um balaço nas testas (sic) mesmo..”. Mais adiante, outro comentário: “Nojo… vergonha… repulsa…agora só falta virar herói nacional e aparecer no Faustão”.
O mesmo portal noticiou em 17 de março de 2016 o caso de agressão sofrido por um adolescente que defendia Dilma Rousseff em São Paulo, quando as manifestações contra a então presidenta petista estavam em seu auge, pouco antes de sofrer o impeachment que a destituiu do cargo[2]. O jovem foi agredido por manifestantes na Avenida Paulista pelo simples fato de defender uma posição política divergente, como se estivesse numa briga de torcidas. Nos comentários, um leitor disse: “Amanha (sic) irei na rua para bater num vermelhinho….. eu e a turma da academia…..”.  Outro disse: “Ahhh mas uma porradinha não faz mal. Ainda mais para um filhote de petista”.
Nos dois casos há demonstrações explícitas de violência e ódio. No primeiro, o tradicional ódio brasileiro contra os criminosos, instituído frente a uma dicotomia cultural e histórica profundamente enraizada em nossa sociedade. Para a maioria dos brasileiros, existem os bandidos e as pessoas de bem. Como num filme, os bandidos são maus do começo ao fim e quase sempre promovem uma verdadeira cruzada contra o bem estar dos bons. As razões para alguém se tornar um criminoso não são expostas, levando as pessoas a acreditarem se tratar de má índole ou moral deturpada, de algo intrínseco ao seu sangue, à sua natureza. Dessa forma, apenas a punição pode resolver o problema, não reformas sociais, uma vez que os bandidos são vistos como uma espécie de aberração, incapaz de ser outra coisa. No linguajar da direita ressentida brasileira, criminalizadora da pobreza, reformas sociais “passam a mão na cabeça de bandido”. Para ela, “bandido bom é bandido morto”.
No segundo caso, o ódio é manifestado contra o Partido dos Trabalhadores (PT) e seus representantes, principalmente Lula e Dilma, mantidos no governo do país pela vontade popular desde 2001. Após o fervor proporcionado pela Operação Lava Jato, cuja atenção dada pela imprensa foi exaustiva, as acusações de corrupção feitas aos dois políticos, junto a muitos outros, levaram os brasileiros a “descobrirem” a corrupção no país. No entanto, essa corrupção foi atribuída tão fortemente ao PT, em consequência de interesses escusos, que o partido se tornou quase tão detestado quanto o comunismo em tempos anteriores. Para termos ideia, os manifestantes contrários ao PT acusavam o partido de ser comunista, ligado a Cuba e defensor de políticas antinacionalistas. No Brasil, pessoas de baixa renda frequentando aeroportos, empregadas domésticas protegidas pelas leis de trabalho ou negros no ensino superior e comunismo parecem ser a mesma coisa. É a permanência de um discurso que, além do anticomunismo frequente entre a classe média e seu entorno, evidencia a fragilidade do nosso sistema educacional.
A prática não se resume aos portais de notícias e se estende às redes sociais. Uma conta do Twitter denominada “Culpa do Nordeste” tratou de reunir postagens de ódio aos nordestinos a fim de denunciar os responsáveis por elas. Dos 443 tweets reunidos pela página até 20 de agosto de 2015, 81 relacionam a culpa pela reeleição da presidenta Dilma Rousseff aos nordestinos que, supostamente miseráveis, votaram massivamente na candidata a fim de manterem benefícios como o “Bolsa Família”, considerado pela oposição como instrumento eleitoral para tornar a população fiel ao PT. As mensagens compartilhadas também fazem uso de estereótipos que imaginam generalizadamente os nordestinos como pobres, ignorantes e incapazes de tomar decisões políticas importantes. Em alguns casos os internautas desejam a morte dos nordestinos, responsabilizados por um sem número de tensões sociais.
Esses são poucos exemplos perto dos quais podem ser encontrados na Internet. Trata-se de um ritual baseado na premissa de que os praticantes estão protegidos pela tela do computador ou smartphone, confortáveis em seus lares e longe de qualquer possibilidade de punição. Se fizermos uma analogia com a obra de Orwell, os indivíduos responsáveis por esses discursos têm os seus “Dois Minutos de Ódio” particulares, ofendendo sem restrições a quem se destinam a sua fúria descontrolada. Normalmente, os que assim se comportam são indivíduos ressentidos com grupos sociais ou movimentos políticos progressistas cujos esforços arrefeceram (menos do que o ideal) o politicamente incorreto e abriram espaço, com muita luta, para os excluídos falarem.
O problema é que, usando um jargão “memético” da Internet, “parece que a mesa virou”. Durante os últimos anos muitos políticos, artistas, jornalistas, entre outros, sentiram-se fortemente prejudicados pelo modesto, porém notável, avanço de uma forte onda de discursos progressistas que penalizavam, formal ou informalmente (por meio da execração pública nos meios virtuais, por exemplo), as piadas com negros, as ofensas aos homossexuais, o machismo, a rejeição aos direitos humanos e por aí vai. Pouco a pouco a compreensão e a empatia pareciam ganhar intensa visibilidade e aceitação nas classes favorecidas, de forma nunca antes vista. Agora, com o avanço conservador em diferentes âmbitos da política brasileira, esses indivíduos ressentidos, responsáveis pelo impulso dessa “maré de ódio” ao progressismo, se sentem mais à vontade para recuperar tudo que lhes foi tirado. Pior: parecem sedentos por propagarem todo o ódio silenciado e acumulado.
Até onde o ressentimento pode nos levar?

A história nos mostra o que ressentimento e ódio podem fortalecer em termos políticos. Muitas vezes nos negamos a acreditar nisso por se tratar de “um fantasma do passado”, algo já superado, mas não devemos nos enganar, pois os fascismos dão as caras diariamente e em nossa sociedade suas práticas são instrumentalizadas diariamente sem que sequer sejam percebias como tais. Como dito por Fernando Horta[3], o fascismo se inicia com a conjuminância de diferentes fatores, sendo um deles, na nossa opinião o mais importante aqui, por meio de um “fortalecimento do ideal punitivista jurídico ou físico, sempre resguardando o fascista como ‘reserva moral’ do mundo”. Nesse sentido, “o fascista crê que está certo, que sua moral é superior à dos outros, que ele é o único que trabalha e que preza pelos ‘valores tradicionais’”, sendo raro usarem argumentos, mas quase sempre a força bruta, física. “E ataca tudo o que é diferente disto. Tudo vira ‘corrupção’. Todos são ‘farinha do mesmo saco’”. Qualquer semelhança com nossa atual realidade pode não ser mera coincidência.
Isso pode ser só o começo. Se a tradicional e predominante cultura política autoritária brasileira continuar sendo a guia de indivíduos que a nutre e por ela é nutrido, é possível estes buscarem um representante que não apenas interrompa as diminuições nas diferenças sócio-econômicas, ou governe em favor dos ricos empresários ávidos por destituir os trabalhadores de seus direitos; esse representante pode surgir como alguém capaz de dar aval aos desejos mais grotescos daqueles que veem no diferente o seu inimigo. Daqueles cuja visão sobre os negros assassinados pelas autoridades em números abundantes diariamente é a de que “se morreu é porque fez coisa errada, pois no Brasil não existe racismo”. Daqueles que se regozijam ao ver um homossexual sendo agredido. Ou mesmo daqueles incapazes de suportarem a ideia de ver uma mulher desejando não mais se submeter, pois “hoje em dia tudo é machismo para essas feminazis”. Os “Dois Minutos de Ódio” podem ficar cada vez mais longos e corriqueiros para além dos muros virtuais. Encerro com um apelo: leiam os comentários. A dor nos mostra que algo não está certo.
*Pedro Carvalho Oliveira é mestre em História Política pela Universidade Estadual de Maringá. Integra o Laboratório de Estudos do Tempo Presente da mesma universidade e é colaborador do Grupo de Estudos do Tempo Presente, da Universidade Federal de Sergipe.


[1] Ver “Adolescente tatuado na testa é internado em clínica particular de recuperação, diz advogado” – Disponível em <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/adolescente-tatuado-na-testa-e-internado-em-clinica-particular-de-recuperacao-diz-advogado.ghtml>. Acesso em 16/08/2017, às 12h20.
[2] Ver “Adolescente é agredido em protesto contra o governo na Paulista” – Disponível em <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/03/adolescente-e-agredido-em-protesto-contra-governo-na-paulista.html>. Acesso em 16/08/2017, às 12h20.
[3] Ver “O fascismo nosso de cada dia… ou quem será comido primeiro? – Disponível em < http://jornalggn.com.br/blog/blogfernando/o-fascismo-nosso-de-cada-dia-ou-quem-sera-comido-primeiro-por-fernando-horta>. Acesso em 16/08/2017, às 14h30.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

O xadrez político das eleições estaduais de 2018, em Pernambuco: Tem cenoura no "Cozido"?

Resultado de imagem para Jarbas Vasconcelos/Fernando Bezerra Coelho

José Luiz Gomes da Silva

Cientista Político



Sempre que pode, o ex-governador Jarbas Vasconcelos tenta minimizar suas divergências com a direção nacional do PMDB. Esta postura tem sido mais observada nos últimos dias, quando ele vem tratando as especulações em torno de uma possível intervenção nacional no diretório regional do partido como parte de uma onda de fofocas que varrem o país. Depois, como ele chegou a enfatizar, se a punição tivesse partido de um homem com a estatura moral de um Ulisses Guimarães, de fato, talvez houvesse algum motivo para preocupação. Hoje, a legenda é presidida pelo senador Romero Jucá, que dispensa maiores apresentações. Em todo caso, o ex-governador o recebeu para tratar de algumas questões delicadas, como um possível ingresso na legenda do senador Fernando Bezerra Coelho(PSB), que se encontra descontente com a legenda socialista.   

Há muitas especulações em torno da engenharia política que está sendo montada no Estado, a partir de grandes interesses políticos nacionais, o que nos aconselham cautela ao tratar do assunto. Possíveis arestas, no entanto, estão sendo aparadas, como um desembarque - de preferência sem traumas - dos Coelho na legenda peemedebista, permitindo-se que o partido continue sob o controle do grupo jarbista, além de ser assegurada a sua candidatura ao Senado Federal, desta vez pelo bloco oposicionista. Como disse antes, existem muitos morubixabas nessa tribo de oposição, tornando-se difícil precisar a escalação de uma provável chapa. A despeito da intensa movimentação, especula-se que o senador Fernando Bezerra Coelho, na realidade, trabalha em prol do filho, o ministro Fernando Filho, a quem Jarbas Vasconcelos já trata como uma "boa surpresa". Fernando Bezerra Coelho poderia não ser candidato. Ainda assim, como acomodar atores políticos com o capital de João Lyra(PSDB), Bruno Araújo(PSDB), Armando Monteiro(PTB), Mendonça Filho(DEM), André Ferreira(PR)? 

Sabe-se, no entanto, que, quando os interesses maiores do grupo estão em jogo, eles acabam construindo um consenso. A direita não briga no "essencial", uma característica mais identificada com a esquerda. Depois, quando essas frentes se formam, descortinam-se em seus planos um projeto de poder de longo prazo. A União por Pernambuco, por exemplo, quando foi formada, previa-se que obtivesse uma hegemonia de poder de, pelo menos, 20 anos,onde não apenas o Palácio do Campo das Princesas estava nos seus planos, mas o Palácio Antonio Farias. Por isso não causa estranheza que alguns desses atores trabalhem com a perspectiva de apear do poder o prefeito Geraldo Júlio(PSB), nas próximas eleições municipais.Numa das possibilidades de composição vazada, o atual ministro da Educação, Mendonça Filho, se candidataria a uma vaga na Câmara Federal, em 2018, e ficaria aguardando, na fila, a sua pretensão majoritária. É preciso lembrar, no entanto, que o Recife, como dizia raposa Agamenon Magalhães, é uma cidade cruel. Noutros tempos, João Paulo, do PT, melou planos semelhantes.  

Uma colunista de política local informou que os senadores Romero Jucá(PMDB) e Fernando Bezerra Coelho foram vistos abraçados e sorridentes, após o manda-chuva peemedebista manter uma conversa reservada com o deputado federal Jarbas Vasconcelos. Não sei se há algo programado, mas convém ficar de olho no próximo "Cozido" oferecido por Jarbas Vasconcelos, em sua residência do Janga, um termômetro político das articulações aqui na província. Vamos ver se os Coelho aparecem, atraídos pelas cenouras, um dos ingredientes do prato. Essas movimentações políticas, apesar de intensas, ainda não chegaram na fase do prego batido de ponta virada. Recentemente, numa entrevista, Jarbas Vasconcelos afirmou serem nulas as chances de um rompimento com o Governo Paulo Câmara(PSB). Fernando Bezerra Coelho, por sua vez, negocia com a cúpula partidária uma saída para o impasse criado com a ameaça de punição ao filho, Fernando Filho, Ministro das Minas e Energias. Pouco provável que o impasse seja contornado, mas também aqui vale a máxima de Paulo Guerra: Em política não existem nunca nem jamais.   

Le Monde: Vem aí um novo golpe?

 
O fato de Lula liderar as intenções de voto para 2018 cria um impasse para os donos do dinheiro que afastaram o PT do governo. Eles não deram um golpe para assistir, pouco mais de dois anos depois, à vitória de Lula e à volta do PT. Assim, abre-se um novo leque de possibilidades.
por: Silvio Caccia Bava
30 de agosto de 2017
Crédito da Imagem: Claudius

claudius-122-2018 VEM AI
O recurso que deve ser apresentado pelos advogados de Lula ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª região, em Porto Alegre, sobre a condenação sem provas de que o ex-presidente seja dono do tríplex do Condomínio Solaris, no Guarujá, pode, eventualmente, anular sua condenação e deixá-lo em condições de disputar as eleições de 2018. Mas, se os juízes Leandro Paulsen, Victor Luiz dos Santos Laus e João Pedro Gebran Neto, tidos como linha-dura e com a mesma perspectiva de Sérgio Moro, reafirmarem a sentença deste último, Lula se tornará ficha-suja e ficará de fora das eleições do ano que vem.
No cenário em que Lula pode ser candidato a presidente nas eleições de 2018, ele tem grandes chances de ganhar se observarmos os dados da última pesquisa Vox Populi/CUT, realizada no fim de julho, que o coloca na liderança das preferências do eleitorado com larga margem de vantagem sobre todos os demais candidatos pesquisados e crescendo em relação à pesquisa anterior. Na sondagem espontânea, isto é, sem apontar candidatos, Lula tem agora 42% da preferência do eleitorado. Bolsonaro, 8%. Marina, 2%. Moro, 1%. Ciro, 1%. Joaquim Barbosa, 1%. Doria, 1%. Alckmin, 1%. Aécio, 0%. Brancos e nulos, 16%. Não sabe/não respondeu, 25%.1 É importante observar o quanto a população está desacreditando nas eleições ou não sabe quem escolher. Se somarmos brancos e nulos e não sabe/não respondeu, teremos 41% dos entrevistados.
Essa situação cria um impasse para os donos do dinheiro que afastaram o PT do governo. Eles não deram um golpe para assistir, pouco mais de dois anos depois, à vitória de Lula e à volta do PT. Assim, abre-se um novo leque de possibilidades. A primeira delas é manter a condenação de Lula de qualquer jeito, mesmo sem nenhum crime, como foi feito com Dilma. Mas isso não assegura que o resultado das eleições mantenha a oligarquia financeira no controle da máquina pública. Mesmo impedido de disputar as eleições, Lula será um grande eleitor, e é preciso considerar que as políticas antipovo do governo Temer e a falta de uma forte liderança de direita levam a população a votar na oposição.
Outra possibilidade, já aventada no Congresso, é que, em nome de uma economia de recursos, a reforma política unifique as eleições municipais com a eleição federal, empurrando tudo para 2020. Os atuais mandatos seriam prorrogados. Mas aí fica o problema do que fazer com Temer, que poderia ser substituído por Rodrigo Maia (DEM-RJ), o atual presidente da Câmara dos Deputados. Na avaliação dos mesmos conservadores, Maia não tem perfil para cumprir essa missão.
A alternativa mais recente é a de Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que encaminhou aos presidentes da Câmara e do Senado proposta para introduzir o parlamentarismo no Brasil. Neste cenário, Lula pode ganhar, mas não governa.
Por fim, resta a via de reforçar o autoritarismo, simplesmente adiando as eleições de 2018, para quando não se sabe.
Todas essas possibilidades, arquitetadas pelas elites endinheiradas e seus representantes na política, não dão conta da complexidade do momento político brasileiro. A polarização produzida pelas políticas antipovo, o verdadeiro ataque aos direitos das maiorias, mudou o cenário. O atual governo não conta com apoio de mais de 5% da população, e não são só os trabalhadores que estão bravos em razão das reformas trabalhista e da Previdência, do corte nas políticas sociais e nos salários; as classes médias estão enfurecidas com a perda de seu poder aquisitivo, com o medo do desemprego, por terem sido manipuladas, embarcado num movimento anticorrupção e terem sido enganadas. Tudo isso até o momento está represado. Essa tensão toda ainda não encontrou seu canal de expressão.
Seria um erro das oposições, daqueles que defendem a democracia e os direitos, apostar todas as fichas na eleição do ano que vem. E se não houver eleições? Outro erro seria manter uma política de conciliação com aqueles que estão esfolando o povo.
O verdadeiro desafio para as oposições é buscar o contato com as pessoas comuns, mergulhar na sociedade e disputar a hegemonia apresentando as alternativas de como podemos sair da crise e construir um Brasil que coloque a economia a serviço do bem-estar de todos, assegure boas condições de vida e apresente um futuro promissor para os jovens, garantindo emprego, salário, saúde e educação.
O esforço de mobilização da sociedade já começou. As caravanas de Lula fazem parte dessa disputa. A iniciativa Vamos!, da Frente Povo Sem Medo, vai no mesmo sentido.2
O jogo está sendo jogado e a participação de cada um será determinante para sabermos o resultado…
Silvio Caccia Bava, diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 122 – stembro de 2017}


1 Pesquisa Vox Populi/CUT. Disponível em: <www.cartacapital.com.br/politica/cut-vox-populi-sentenca-de-moro-impulsiona-lula-candidato>.

 

Eduardo Saron: Investir na diversidade pode ser a resposta para a crise da cultura no Brasil

                                          


Eduardo Saron: Investir na diversidade pode ser a resposta para a crise da cultura no Brasil
O diretor do Itaú Cultural, Eduardo Saron (Itaú Cultural / Divulgação)

 
Nesta segunda (28), o diretor do Itaú Cultural, Eduardo Saron, falou à imprensa sobre a 18ª edição do programa Rumos, edital bienal de fomento à cultura cujo objetivo é financiar projetos culturais de todos os estados brasileiros – e que abre inscrições nesta terça (29).
Para o diretor, investir na diversidade e atrair artistas de fora da região sudeste para a gestão de projetos culturais grandes como o Rumos – que atrai cerca de 15 mil inscritos por edição – “pode ser uma resposta à crise da cultura no Brasil”.
Embora exista há duas décadas, só nos últimos seis anos o projeto tem apostado de fato na diversidade, uma postura que, segundo Saron, foi cobrada tanto pelo público quanto pela imprensa. 
Hoje, o foco do edital são as regiões do país que, em geral, têm “menos voz” em projetos culturais de âmbito nacional, como o Norte e o Nordeste, mas outras formas de diversidade além da regional também permeiam o projeto – a de gênero, a racial e a étnica são algumas delas.
As “diversidades” devem aparecer “diluídas” na forma de uma comissão composta de mulheres, negros, LGBTs e outros grupos vulneráveis, e principalmente por meio do esforço para reunir projetos sobre e de autoria desses grupos. “Se a arte é diversa, assumir essa diversidade é essencial”, diz Saron.
Rui Moreira, ex-bailarino do Grupo Corpo e parte da comissão de seleção do Rumos, vê o foco na diversidade como “a única forma de olhar a cultura no Brasil”: “A dimensão continental do país demanda essa visibilidade. É um ato de soberania”, aponta.
Segundo ele, quanto mais as pessoas se identificam com a arte, mais percebem a importância da cultura em suas vidas, como algo não só da esfera do lazer, mas da necessidade. Isso, diz, só é possível se o público notar que sua cultura regional tem representação em nível nacional. “Em momentos de extrema desvalorização da arte, ter esse apoio das pessoas é fundamental.”
A atriz e produtora acreana Karla Martins, que também faz parte da comissão, concorda. Para ela, sem levar em conta a diversidade, fica “impossível incentivar a cultura no país”.
“Só o Acre tem 22 municípios, mas apenas quatro com acesso de avião. O resto, só via rios. A cultura, que é extremamente rica, fica restrita em lugares como estes, pois é difícil a entrada do Ministério da Cultura e de outros editais e prêmios”, diz, citando a cultura indígena como uma das mais afetadas pelo “isolamento cultural”: “Roraima, por exemplo, tem muita cultura, mas poucos recursos para mostrá-la em nível nacional”, coloca.
Excluídos do Rumos desde 2012, estados do Norte e do Nordeste, como o Piauí e o Amazonas, agora terão “atenção especial” do edital: “Não se trata de privilegiar, mas de trazer oportunidades iguais àquelas que o Sudeste tem”, justifica a atriz.
“Outros ‘Brasis'”
A diversidade regional no Rumos, segundo Saron, deve ser alcançada por uma série de viagens da comissão avaliadora do edital, formada por integrantes do Itaú Cultural e artistas do país inteiro. Durante a seleção, os avaliadores passarão por 17 capitais do Brasil, para ouvir produtores culturais e artistas locais em discussões gratuitas e abertas ao público sobre a situação cultural de seus estados. “Não ligamos tanto para o Sudeste, que já tem representação. Achamos importante revelar estes outros ‘Brasis’”, diz Saron.
Com um orçamento de aproximadamente 15 milhões de reais, o Rumos investe em projetos que variam entre a criação, a pesquisa e a documentação – entre os contemplados já estiveram desde um documentário sobre Wilson das Neves até a Orquestra de Violinos dos índios Chiquitano, por exemplo. Diferente de edições anteriores, agora não haverá limite de orçamento para cada projeto: segundo o diretor, “o mais importante é a força da proposta, e não o orçamento”.
No fim do processo de seleção, que vai de agosto a maio do ano seguinte, apenas 100 projetos são aceitos pelo Rumos. “A ideia não é que os projetos sejam uma propaganda do Itaú. Queremos uma parceria mais do que um patrocínio”, coloca o Saron.
No entanto, uma das exigências já na inscrição é a “maleabilidade” do artista em relação a mudanças em seu projeto: “O proponente precisa estar aberto para alterações para viabilizar o próprio projeto”, diz. 
Apesar da dualidade entre a menor liberdade do artista e a garantia de um financiamento para o projeto cultural, Saron garante que o objetivo do edital é apenas “viabilizar a cultura em tempos de crise”: “O Rumos pode ser uma resposta à carência que o Brasil vive hoje em relação às artes.”