pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
Powered By Blogger

segunda-feira, 4 de março de 2019

Veneza, Agamben

                                          
Cláudio Oliveira (arquivo)
                                                                                                                                                                 

Veneza, Agamben                 


Agamben em sua casa, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

Estou em Veneza, onde vim encontrar Agamben. Tínhamos várias coisas para tratar. Semana passada não consegui publicar a coluna em função de vários trabalhos que tinha que realizar aqui. Como já o vi três vezes desde que cheguei, pensei em escrever algo sobre essa estadia de três semanas e sobre nosso reencontro, mas decidi fazer outra coisa: como Veneza e Agamben são de certo modo, para mim, uma coisa só (sempre vim a Veneza para encontrá-lo), decidi contar um pouco da minha primeira visita à cidade para visitá-lo, em 2007. Lembrei-me de ter escrito e publicado a história neste blog. O que vocês lerão a seguir são textos extraídos daí. Eles têm um frescor e uma inocência que me agradam, passados já quase dez anos, e por isso não os modifiquei. Seguem como foram publicados na época. Em 2007, eu ainda não era tradutor do Agamben e nem sonhava que viria a dirigir a série Filô Agamben da Autêntica. Mas a história que conto nesses textos, da minha busca por um ensaio inédito de Agamben sobre Lacan (da qual já falei anteriormente num artigo publicado na Folha de S.Paulo) parece ter chegado finalmente a seu fim. Falarei sobre isso, talvez, na próxima coluna. Adianto que foi um final feliz.
Dormir e acordar em Venezaescrito sexta-feira à noite, 27/07/2007
Estou agora no quarto do hotel. A janela do quarto dá para um lindo jardim interno, com o solo coberto de seixos. Ha casarões vizinhos, com lindas janelas e paredes de tijolo muito antigas que também dão para o jardim. Esta noite dormirei em Veneza. É quase um pecado dormir em Veneza. Mas é preciso dormir. Amanhã, acordarei em Veneza.
Café da manhã em Venezaescrito na manhã de sábado, 28/07/2007
Acordo em Veneza. O hotel é realmente muito bom, o café da manha é farto e ótimo. Ao entrar no salão de chá, uma senhora italiana muito distinta e muito enérgica, me pergunta: “Un cappuccino, signore?” Estou viciado nos cappuccini italianos. Após o café, vou fumar um cigarro no jardim externo do hotel. É um lindo jardim. Veneza é muito silenciosa. Nada do barulho do tráfego de Firenze. Há enormes poltronas em frente ao jardim, onde se pode sentar confortavelmente e onde escrevo essas linhas. No centro do jardim há uma bela fonte com uma escultura de algum deus marinho cercado de peixes monstruosos. Em torno da fonte há algumas mesas cobertas onde alguns hóspedes tomam seu café da manha. É bom estar aqui.
Não encontrando Agambenescrito no sábado, 28/07/2007
Depois de ter andado muito e de ter conhecido a Scuola Grande di San Rocco (onde pude ver muitos Tintorettos, inclusive sua impressionante “Crucificação”) e a Basílica de Santa Maria Gloriosa dei Frari (onde pude ver “A madona e o menino” de Bellini), estou agora num café em frente à Chiesa di S. Paolo. Comi um spaghetti ai frutti di mare que tinha mais frutti di mare que spaghetti. Fui também até a rua de Agamben que, creio, não está na cidade. Em Veneza não há nomes de ruas e o endereço é apenas um número. No caso de Agamben, 2366. Foi muito difícil encontrá-lo. É bem escondido. Fica numa rua em que podem passar apenas duas pessoas ao mesmo tempo, muito estreita. Acho que agora a tarde vou à Bienal, que fica em um lugar chamado I Giardini. Há uma estacão de Vaporetto lá.
Agamben em sua casa, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

O primeiro encontro com Giorgio escrito no trem, de Veneza para Firenze, domingo, 29/07/2007
Aconteceram tantas coisas de ontem para hoje que não sei de quantas páginas precisarei para contá-las. Após voltar da Bienal, mas antes de ir para o Hotel, passei num ponto de internet para ver meus e-mails (três Euros por vinte minutos!). Quando abro minha caixa de mensagens, há uma mensagem do Agamben dizendo apenas: “Caro Cláudio, chiamami”, e me dá em seguida o número do seu telefone. Eu já não tinha mais esperanças de encontrá-lo. Tinha até deixado uma mensagem escrita em sua caixa de correio, dizendo que tinha estado em Veneza. Mas apenas para dizer que tinha estado ali. Não tive coragem de tocar a campainha. Se mesmo no Rio ninguém aparece sem antes telefonar, imaginem aqui na Itália, e na casa do Agamben. Bem, saí do cyber café correndo. Fui para o hotel e quando chego lá a recepcionista me diz que me tinha telefonado um senhor chamado Giorgio, que tinha deixado o número do seu telefone. Corro pro quarto, ligo para o número, chama, chama, ninguém atende. Tento outra vez. Uma terceira vez. Nada. Desisto. Cansado, vou tomar banho e penso: “Ele já deve ter saído”. Afinal, já são 19:30, embora ainda haja sol lá fora. Penso: “Quem sabe amanhã?” Mas antes de entrar no banho, o telefone do quarto toca. Atendo: “Pronto!” E alguém me diz do outro lado da linha: “Cláudio, sono Giorgio”. Conversamos em italiano. Ele briga comigo por eu ter deixado uma mensagem na caixa de correio dele e não ter tocado a campainha. Porque ele estava em casa naquele momento. Eu me desculpo. Marcamos de jantar num café próximo a Rialto. Mas é preciso que eu parta imediatamente porque em Veneza tudo fecha muito cedo. Não estou muito seguro das indicações que ele me deu ao telefone, porque falava em italiano e muito rápido, mas parto mesmo assim. Ao menos sei onde é Rialto. Não o encontro imediatamente. Houve alguma confusão entre “sinistra” e “destra”, porque eu vinha do outro lado do Grande Canal, já que peguei o Vaporetto, mas ele imaginava que eu viria a pé, e que, portanto, já estaria do lado de cá do Grande Canal, em S. Polo. Fico uma meia hora procurando-o entre os vários cafés à beira do Canal e não o encontro. Ele não me tinha dado nenhum nome para o Café, apenas a indicação de uma piazza em frente a uma igreja com um grande relógio. Começo a ficar triste. Fico imaginando que ele me esperaria, depois jantaria, e seguiria finalmente para casa, pensando: “Que brasileiro estúpido!” Até que tenho a genial ideia de seguir para a direita da ponte. E lá está ele, sentado num café, numa piazza, com dois estudantes, um dinamarquês e uma menina, mezzo belga, mezzo italiana.
Agamben e Andreas na casa do filósofo, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

O primeiro encontro com Giorgio, continuação
Ele me recebe muito bem, com alegria. Briga comigo de novo por eu não ter tocado a campainha e me convida para sentar. Fala com a menina que serve a mesa para me trazer uma lasanha de peixe e uma taça do mesmo vinha branco que eles estavam tomando. Ele está muito alegre e jovial, bronzeado do sol do verão de Veneza. Conversamos um pouco, todos (o outro rapaz é estudante de Filosofia, estuda Hobbes, a garota estuda crítica de arte, ambos são alunos de Giorgio). Giorgio me convida para ir almoçar na casa dele, no dia seguinte, domingo. Deverá estar lá, também, seu tradutor alemão, que vem para tentar esclarecer suas ultimas dúvidas antes de mandar publicar sua tradução de O reino e a glória. Continuamos a conversar e quando eu termino de comer minha sobremesa, já que eles já tinham acabado de jantar há muito tempo, ele pede a conta, que insiste em pagar sozinho. Percebo, não sei bem por quê, que ele quer se livrar dos dois estudantes. Diz a eles, então, que nós vamos caminhar um pouco por Veneza. À noite, Veneza, mesmo no verão, fica praticamente vazia e pode-se caminhar por toda a cidade tranquilamente. Como o comércio e os restaurantes fecham muito cedo (no máximo às 22 horas, mas às 21h não aceitam mais nenhum pedido), os turistas vão dormir e só reaparecem no dia seguinte. Então a cidade se torna de novo a mesma que vem sendo há séculos, talvez a mais bela do mundo. Mesmo em minha primeira noite em Veneza, antes de ter encontrado Giorgio, caminhei sozinho pelas ruas e pontes da cidade até bem tarde da noite, e só voltei para o hotel após meia-noite. Mas na noite de ontem era sábado, e havia ainda, aqui e ali, alguns bares abertos. Giorgio me leva primeiro ao mercado de peixe, pelo qual eu já tinha passado durante o dia, mas que, àquela hora, estava deserto. Seguimos andando e no céu, de repente, surgindo entre os pallazzi de Veneza, vem até nós uma enorme lua cheia, muito amarelada. Belíssima. Ficamos um tempo admirando o luar de Veneza e seguimos. Lembro, então, a Giorgio que Henry James tinha escrito alguns de seus romances e contos em Veneza. Ele me diz que tinha acabado de ler uns dez livros de Henry James, um após o outro. Conversamos algum tempo sobre o autor, andando pelas ruas de Veneza, e eu confesso a ele que Henry James sempre foi um dos meus escritores preferidos. Ele concorda comigo que, numa estória em que os personagens agem sem saber ao certo o que está acontecendo, Henry James introduz esse narrador que vê tudo (o que ninguém vê) e que, ainda assim, não conta tudo (o que vê). Ele dá ao leitor o crédito de saber que não é preciso contar tudo. O leitor (ele acredita, ele espera) certamente sabe o que “falta” contar, que, de fato, “não falta”. Contá-lo seria obsceno, indelicado, indiscreto. Um exagero, uma perda de medida. Não é preciso contar. Não se deve contar. Seguimos caminhando por Veneza e eis que reencontramos o jovem casal de estudantes sentados numa mesa no terraço de um bar. Fugimos deles, mas acabamos reencontrado-os. Eles propõem que a gente se sente, mas percebo que Giorgio está indeciso quanto a ficar ou não. Ele me pergunta o que prefiro fazer. Digo que nós podemos ficar, sem problemas, que eu preciso apenas comprar cigarros. Ele então diz aonde fica exatamente a unica piazza em que àquela hora se poderia comprar cigarros em Veneza. Na Itália, só se pode comprar cigarros em tabacarias, que fecham às oito da noite (!). Mas a partir das nove horas algumas tabacarias deixam disponíveis máquinas automáticas em que se pode comprar cigarros por toda a noite. Mas entre as oito e as nove da noite, portanto, durante uma hora, ninguém pode comprar cigarros em Veneza. Giorgio me diz que me acompanhará até a piazza onde há uma dessas máquinas. Eu digo que não é preciso, que, se ele me explicar como posso chegar ate lá, eu posso ir sozinho. Mas ele insiste. Despede-se de novo do casal e diz que, de repente, volta mais tarde. O casal diz que outros estudantes estão a caminho. E de fato, assim que saímos para a tal piazza, poucas ruas depois, encontramos um grupo de estudantes que, ao ver Giorgio, o saúdam com entusiasmo. Ele me apresenta rapidamente a todos (são seus alunos) e diz que o casal estava no bar esperando por eles. Nós nos despedimos todos com o já clássico “ci vediamo” que é a tradução perfeita do famoso carioca “a gente se vê, a gente se fala” (acho que o ensaio de Francisco Bosco vale não só para os cariocas, mas também para os venezianos). Depois que o grupo de alunos se vai, eu pergunto a Giorgio se ele de fato não preferiria ficar com eles, já que me pareciam todos muito simpáticos. “Sim”, ele diz, “são muito simpáticos, mas os vejo sempre, quase todos os dias”. Toda essa conversa durante o passeio se dá em italiano. Ele diz que eu estou falando muito bem e que o meu sotaque (“l’accento”) está muito bom. Eu fico orgulhosíssimo, mas não aceito o elogio, pois ainda acho o meu italiano muito macarrônico. Após comprar meu cigarro, ele propõe que a gente vá na direção do canal da Giudeca, a beira do qual eu tinha jantado na noite anterior. Ele me diz que gosta muito dessa margem do canal, onde é mais fresco. Não havia mais quase ninguém nos cafés à beira do canal, quando chegamos. Mas conseguimos ainda que um garçom nos servisse uma bebida. Eu pedi uma birra e ele, alguma bebida desconhecida por mim, uma espécie de refrigerante em lata italiano, que, segundo ele, é o seu “o de sempre” naquele café. Ficamos ali, na noite enluarada de Veneza, conversando até meia-noite, quando decidimos que deveríamos partir, já que, no dia seguinte, eu devia ir à sua casa para almoçar com ele e com seu tradutor alemão. Ele cozinharia para nós. Combinamos que eu chegaria entre meio dia e um da tarde.
Agamben em sua casa, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

Pegar o Vaporetto pela última vezainda no trem, voltando de Veneza para Firenze, domingo, 29/07/2007
Aproveito que estou bem perto da Praça de São Marcos e, antes de almoçar com Giorgio, olho pela última vez Veneza. Atravesso a piazza, onde há uma enorme fila para entrar no duomo e sigo para a estação S. Marco do Vaporetto. Penso que sera ótimo andar pela última vez de vaporetto no Grande Canal. E de fato, andar pelo Grande Canal é uma experiência da qual a gente nunca se cansa.
Na casa de Agamben, com Heidegger e Lacanescrito em Paris, na Biblioteca do Centre Georges Pompidou, terça, 01/08/2007
Pego o Vaporetto em S. Marco e desço na estação S. Toma, a mais próxima da casa de Agamben. Ele mora num palazzo de apenas dois apartamentos: o segundo e o terceiro andares destinam-se apenas ao apartamento do Agamben. Toco a campainha e ele me recebe alegremente. Está na cozinha preparando o almoço: segundo ele, uma receita que aprendeu recentemente, em Lisboa, quando esteve lá para falar. É um risoto com legumes e um peixe de cujo nome não me lembro. Agamben cozinha muito bem. Quando chego, já está lá o seu tradutor alemão, Andreas, um “jovem” de 44 anos que já esteve no Brasil por duas semanas (Rio, Salvador, Brasília). Andreas é muito simpático e gentil. Fala com Agamben em inglês, pois apesar de ser seu tradutor, fala muito mal o italiano. Agamben, por sua vez, também não fala muito bem alemão (segundo Andreas). É um encontro engraçado, pois ambos são leitores, até tradutores da língua um do outro, mas não falantes, ou falantes precários. Então decidimos que falaremos todos em francês, depois de minha tentativa de manter a conversa em italiano. Converso um pouco com Giorgio na cozinha, enquanto aproveito para tirar algumas fotos dele cozinhando. Ele percebe, diz para eu parar, mas não me impede de fazê-lo. Tirei algumas fotos durante o almoço (não muitas, porque também fico envergonhado), mas não sei se ficaram boas, ainda não as revelei. Acho que ele não me recrimina pelo que estou fazendo, pois ele mesmo possui, na sala de estar, emolduradas e penduradas na parece, duas fotos do Seminário de Thor, onde aparece num grupo, ao lado de Heidegger (ele tinha 24 anos quando participou do primeiro, no qual estavam presentes apenas seis pessoas!). Sobre a mesa da sala há um livro de François Fédier com fotos de Heidegger, no qual há, entre outras, uma foto de Giorgio, muito jovem, sentado ao lado do filósofo, que Andreas me mostra. Heidegger, já bem velhinho, e Agamben, um menino, muito novo. Em outra parede da sala, há outras duas fotos emolduradas e penduradas. São fotos que Heidegger enviou a Agamben logo após o primeiro encontro em Le Thor, na França. Como o fundo do quadro também é de vidro, pode-se ler a letra de Heidegger e entender com facilidade o que ele escreveu (ele agradece os votos de feliz ano novo que Agamben tinha enviado em uma carta anterior, entre outras coisas). A primeira foto é da cabana de Heidegger em Todtnauberg, na Alemanha, completamente coberta de neve. A segunda, um foto da região de Messkirch, onde Heidegger nasceu. Ao ver todas essas fotos e mensagens fico muito emocionado. Sinto como se estivesse repetindo o gesto de Agamben de ir procurar Heidegger. Há ainda outra surpresa no apartamento. Quando o encontrei, na noite anterior, para jantar, disse a Agamben que tinha vindo a Veneza com uma missão: conseguir o texto que ele tinha escrito sobre Lacan e apresentado no colóquio “Lacan avec les philosophes”, realizado em Paris, em 1990. Quando a reunião dos trabalhos apresentados no encontro foi publicada, os organizadores da publicação colocaram a seguinte nota na abertura da edição: “O Sr. Giorgio Agamben não enviou seu texto para publicação”. Essa foi uma informação da qual eu soube desde que comecei a ler Agamben, e ficava sempre imaginando como seria um texto de Agamben sobre Lacan. O único motivo, segundo ele, para não ter enviado seu texto, foi que ele se encontrava, como se encontra até hoje, escrito à mão. Agamben não escreve diretamente no computador nunca. Quando ele esteve no Rio, em 2005, disse a ele que viria a Veneza pegar o texto. E aqui estava eu. Na noite anterior, lembrei-lhe da minha missão. Para minha surpresa, ao chegar em seu apartamento, no dia seguinte, ele já tinha encontrado o manuscrito. Dou uma olhada rápida no texto, escrito em francês, bastante legível. Ele me pergunta se eu consigo ler. Digo que sim, mas que certamente, encontraria passagens ilegíveis. Combinamos que ele me enviaria uma cópia do texto pelo correio, para que eu o traduzirei e o publicasse no Brasil. Será que existe algum editora no Rio interessada em publicar um texto mundialmente inédito de Agamben sobre Lacan?
Cláudio Oliveira e Agamben na casa do filósofo, em Veneza (Foto: Andreas Hiepko)
Cláudio Oliveira e Agamben na casa do filósofo, em Veneza, 2007 (Foto: Andreas Hiepko)

O ghetto de Veneza, Andreas e as dedicatórias de Agamben
Após sair da casa de Agamben, sigo com Andreas para caminhar no ghetto de Veneza (tenho ainda umas duas horas e meia antes de pegar o trem para Firenze). Segundo Giorgio, o primeiro ghetto do mundo é o de Veneza. Andreas deve ficar ainda uns quatro dias na cidade para trabalhar com Giorgio na tradução alemã de O reino e a glória. Aproveitei para pedir a Agamben um autógrafo na minha edição, comprada em Veneza. Ele escreve: “A Cláudio, de Giorgio carioca”. Depois me pergunta se tenho a edição italiana de A potência do pensamento, uma grande coletânea também publicada em 2007. Digo que não e ele me diz que acredita ter ainda um exemplar, que me dará de presente (já tinha me dado a edição brasileira de Profanações, da qual tinha em casa alguns exemplares). EU digo que não, mas ele insiste e escreve na dedicatória: “A Cláudio, com a recordação veneziana do amigo ex-carioca Giorgio”. Digo a ele que não deve escrever nunca “ex-carioca”, mas sempre “carioca”. Ele ri. Eu e Andreas nos demos muito bem. Seguimos para a piazza principal do ghetto, onde há mais de uma sinagoga e onde se pode ver muitos judeus ashkenazi andando pela rua. É realmente um lado muito bonito de Veneza. Andreas faz um doutorado em filologia que, segundo ele, não termina nunca, pois não possui bolsa e está sempre trabalhando em traduções para sobreviver. Tem um interesse fecundo por Agamben, pela relação entre filologia, tradução e filosofia. É uma cara muito legal. Tentaremos ir visitar um ao outro. Despeço-me dele e sigo para a estação para pegar meu trem.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Por uma nova crítica das desigualdades sociais

                                          
Roberto Dutra Torres Junior
                                                                                                                                                                 

Por uma nova crítica das desigualdades sociais

 
A sociedade é uma pluralidade de sistemas nos quais diferentes formas de desigualdade emergem (Foto: Markus Spiske)

Em conversa informal sobre igualdade e desigualdade no Brasil, um amigo meu foi confrontado com o problema do racismo estrutural. Em algum momento deu uma lacrada “protoliberal”: “A sociedade é racista, mas que sociedade? É preciso saber se as pessoas são racistas. Eu sou a sociedade”. A primeira e mais óbvia associação é com a recusa ideológica em enxergar desigualdades estruturais. Mas acredito que há mais a ser considerado nesta sentença, pois ela faz alusão a um dos maiores problemas do discurso progressista de crítica a desigualdade social: perceber as estruturas de desigualdade como característica totalizante da sociedade. A sociedade não produz apenas desigualdade, não produz apenas racismo e não produz apenas sexismo. Ela também produz os ideais de igualdade pelos quais medimos e criticamos todas estas e outras estruturas de desigualdades.
O discurso progressista acredita que a sociedade possui estruturas de desigualdade que definem a identidade da sociedade: o que ela é e o que ela não é. Neste sentido, a sociedade pode ser definida como sendo de classes, patriarcal e racista. As estruturas de desigualdade definem a sociedade. Para não ser de classes, sexista e racista, a sociedade teria que ser completamente outra. A identificação da sociedade com a desigualdade obriga a pensar em uma unidade estrutural para a desigualdade, mesmo que estas sejam plurais. Assim, o discurso progressista fala, no singular e não no plural, da estrutura de classes, do racismo estrutural e do patriarcado. Esta unidade estrutural é tratada, quase sempre, como traço do estado nacional, reproduzindo-se um “nacionalismo metodológico” insustentável na sociologia. O discurso progressista sobre as desigualdades sofre de um “deficit sociológico” que o impede de ver as possibilidades de transformar as estruturas de desigualdade, uma vez que não apreende as estruturas e decisões estruturais plurais e concretas que determinam as chances de vida das pessoas.
A crítica à desigualdade é reduzida à forma geral e inconsequente de crítica da sociedade, o que coloca para o crítico o paradoxo da crítica externa: quem critica a desigualdade está na sociedade ou fora dela? E a igualdade, está fora ou dentro da sociedade? A sentença de que a sociedade não pode ser racista, mas pessoas sim, não é apenas reprodução da “fala protoliberal” de que a sociedade não existe. É observação de que a crítica da desigualdade estrutural dos progressistas carece de autocrítica. Essa autocrítica passa por questionar as premissas acima.
A sociedade não é uma unidade estrutural, mas uma pluralidade de sistemas nos quais diferentes formas de desigualdade emergem, se reproduzem e se transformam. Desigualdades econômicas, políticas, jurídicas, educacionais, afetivas não seguem a mesma estrutura, embora se influenciem mutuamente. Por isso, classe, raça e gênero podem produzir desigualdades muito distintas em cada uma destas esferas. A redução das desigualdades de gênero na educação e sua maior perenidade no mercado de trabalho evidenciam isso. A crítica à desigualdade não deve ter como foco uma estrutura unitária. A crítica deve ser concreta e plural: quais formas de desigualdade de classe, raça e gênero determinam as chances de vida das pessoas em que sistemas sociais? A sociedade tem muitos racismos, muitos sexismos e muitas formas de desigualdade de classe.
A sociedade não é definida pela desigualdade, pois ela também inclui, como parte da vida social, não só a crítica à desigualdade, mas também estruturas de igualdade como a cidadania social etc. A crítica só é possível porque se apoia em normas e valores de igualdade vigentes na sociedade em que vivemos. Uma sociedade não machista, não racista e sem classes não seria inteiramente outra. A sociedade é mundial e possui um conjunto contraditório de possibilidades de evolução.
A sentença “protoliberal” de que a sociedade não é racista tem parte de razão, pois a sociedade é também antirracista, sobretudo porque vivemos numa única e mesma sociedade mundial. Não pode ser definida unicamente como racista.
Mas o que o “protoliberal” nos ajuda mesmo a ver é o problema do endereço da crítica às desigualdades: organizações, pessoas, grupos formalmente visíveis podem ser endereçados, responsabilizados por desigualdades ilegítimas, pois decidem sobre estruturas sociais, mas a sociedade, como unidade que abarca tudo que é social, da desigualdade à igualdade, não é alcançável, não tem endereço e sua crítica é tão charmosa quanto conceitualmente errada e politicamente inútil. A única crítica social com sentido real é aquela devotada a decisões e estruturas reais de organizações, que é o contexto responsável por alocar a maior parte dos recursos importantes nas desigualdades, como renda, poder e conhecimento.
A crítica e o lugar de fala
O conceito de “lugar de fala” foi banalizado pela política identitária que hoje domina o discurso progressista sobre as desigualdades sociais. Seu uso atual é predominantemente moral, e isto destrói seu potencial de servir a um discurso mais reflexivo (mais consciente de seus alcances e limites) sobre a desigualdade e suas consequências: as diferentes formas de sofrimento e humilhação de pobres, negros e mulheres. O objetivo dos identitários é demarcar posições de superioridade moral com base em um “campeonato de sofrimento”, no qual somente as “vítimas autênticas” da desigualdade e de suas consequências ganham o direito de falar e discursar sobre o problema.
Isto é uma prática moral, pois sua lógica é justamente construir julgamentos totalizantes sobre pessoas e grupos de pessoas, o que sempre resulta em repetição do binômio bom/mau. Não é uma prática política, pois a lógica da política é construir decisões coletivas, mesmo que seja necessário a ajuda de pessoas moralmente questionáveis. E também não é uma prática de esclarecimento científico crítico da sociedade, pois a diferença moral entre bons e maus, entre oprimidos e opressores, é insuficiente, para não dizer que atrapalha, o entendimento do mundo e por isso mesmo o melhoramento do mundo. Os identitários transformaram o conceito de “lugar de fala” em um mesmo e único “lugar de fala puritano”, que visa catequizar os moralmente inferiores, e não construir uma decisão coletiva (política) ou visão esclarecedora capaz de ajudar na política (ciência).
No entanto, julgo ser possível recuperar o conceito de “lugar de fala”, e justamente para explicitar quais os alcances e limites desta crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades. Proponho substituir o uso moral da ideia de “lugar de fala” por uma noção sociológica de “lugar de fala”: em vez de ser (moralmente) definido como a posição de superioridade moral de quem sofre de forma “original e autêntica” as consequências das desigualdades sociais, defini-lo como posição parcial de observação, com alances e limites, em determinado sistema social.
Nesta proposição, o elemento moral é relativizado pelo elemento cognitivo: o que define os limites e alcances de um “lugar de fala” são a relevância e as chances comunicativas de quem fala em um determinado sistema social. Na política, o “lugar de fala” é definido pela relevância e repercussão na ação de outros políticos, do público e dos setores politicamente envolvidos e organizados, das falas proferidas, das posições tomadas, das agendas de políticas públicas adotadas, formuladas e implementadas. Na ciência, o “lugar de fala” é definido pela relevância e repercussão na ação de outros cientistas de sentenças de verdade e falsidade sobre os fenômenos. Nesta visão sociológica, não é apenas quem profere a fala, ou seja, o indivíduo ou grupo isolado, que define o “lugar de fala” de quem quer que seja, mas também, e prioritariamente, o modo como a fala ou discurso são entendidos, aceitos ou recusados. O “lugar de fala” é co-produzido, como ensina a sociologia, pelo receptor. O “lugar de fala” é um “endereço social”, uma construção comunicativa e social fixada não apenas pela relevância pretendida pelo falante, mas também e sobretudo pela relevância atribuída pelos ouvintes.
Para explicitar o “lugar de fala” desta crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades, especialmente o discurso identitário, retomo a distinção que Weber traçou entre as vocações do político e do cientista. Existe uma tradição de sociologia crítica que acredita que o cientista social possui posição privilegiada para a crítica social, como se a ciência fosse, no mundo moderno, herdeira da religião na produção de uma visão de mundo válida para todos os domínios da sociedade. Ignora que a ciência não tem o condão de dirigir a política, como nenhum outro sistema da sociedade, com exceção da própria ciência. Por isso, é uma tradição de sociologia crítica arrogante e ingênua: não quer saber das condições de aceitabilidade e repercussão de seus discursos críticos em outras esferas, como a política, acreditando que a recusa e a não repercussão são frutos da “ignorância”, da “tolice”, enfim, da falta de adesão ao que seria o centro cognitivo do mundo.
Na crítica às desigualdades, esta tradição sempre confunde crítica científica com crítica política, e recorre ao insulto moral dos dissidentes para evitar ver que a crítica política das desigualdades não é um reflexo da crítica científica. Esta tradição ignora, portanto, a lição clássica de Weber sobre a diferenciação das esferas e das vocações da ciência e da política. Não há como explicitar corretamente o “lugar de fala” da crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades sem romper com esta tradição arrogante e ingênua: Não espero que a ciência possa dirigir ou reorientar o discurso, e muito menos a prática, dos progressistas sobre qualquer coisa, mas apenas que ela possa disponibilizar uma alternativa, cuja realização depende dos envolvidos com a política, cabendo ao crítico da ciência apenas refletir ou antecipar as condições que tornam mais provável esta realização.
O discurso dominante entre os progressistas sobre a desigualdade foi influenciado pela sociologia do unitarismo estrutural, que orienta a descrição e a crítica das desigualdades por uma noção unitária e totalizadora de estrutura social: a estrutura de classes, a divisão étnico-racial, o patriarcado. A crítica que proponho a este discurso parte de uma outra sociologia, baseada na diferenciação da sociedade em subsistemas e no pluralismo efetivo das estruturas de desigualdade. Nesta sociologia, o sentido da crítica da desigualdade é definido em cada sistema social. Isto significa, por exemplo, que uma crítica acadêmica sobre as desigualdades de gênero não orienta diretamente a desconstrução ou a mudança das estruturas de desigualdade entre homens e mulher na educação ou na economia: somente uma crítica educacional e uma crítica econômica são capazes disto. Por quê? Porque a mudança estrutural só é possível com disponibilização de alternativas reais em cada sistema social, com a oferta de soluções alternativas para os problemas – como a seleção social na educação e na economia – que antes só se resolviam com a estrutura vigente de desigualdade.
Desta forma, a crítica progressista das desigualdades precisa ser não apenas plural – situar-se em um sistema social específico –, mas também concreta, ou seja, envolvida com a imaginação de alternativas reais de mudança estrutural, o que exige um foco privilegiado na dimensão das organizações que regulam os modelos institucionais instituídos e reproduzidos nas esferas mais importantes da sociedade como a economia, a política, o direito e a educação. Do “lugar de fala” da ciência, que não decide nada sobre nenhum tipo de estrutura social relevante para a coletividade, a questão é: como criar descrições, discursos críticos sobre a desigualdade, plurais e concretos, que possam não apenas inspirar novas semânticas na política, mas também serem úteis na prática decisória sobre desigualdade nas mais diferentes esferas da sociedade.
O rebaixamento das expectativas
A crise do discurso progressista sobre as desigualdades reside no rebaixamento das expectativas de mudança estrutural que assola a esquerda no mundo inteiro. O modelo social-democrata europeu, fruto de críticas sociais concretas a desigualdades capazes de dirigir mudanças estruturais de largo alcance na política, na economia, no direito e na educação, perdeu seu ímpeto transformador. Para criar dignidade para todos, os sociais-democratas do final do século XIX e início do XX sabiam que precisavam reinventar a infraestrutura organizacional e institucional dos mais importantes subsistemas da sociedade, e isto se refletiu em programas robustos de transformação estrutural, que afetaram não apenas a distribuição de bens e recursos sociais, mas também e prioritariamente a sua própria produção.
Hoje, a social-democracia é um fetiche destituído de ímpeto transformador, e significa apenas a “humanização” de um mundo social tomado como inevitável. O máximo que se deseja é a distribuição marginal de bens e recursos, não mais a transformação estrutural. Neste ambiente de expectativas rebaixadas, a “crítica da sociedade”, totalizadora e sem aderência aos problemas reais de cada sistema social, fica reduzida um discurso de denúncia de processos sociais, sem nenhuma contribuição sobre as alternativas reais, “as possibilidades objetivas”, como diria Alberto Guerreiro Ramos. Comparemos a crítica de um Darcy Ribeiro, desde sempre composta por um elemento programático que desnuda e explora possibilidades de transformação social, mesmo denunciando as mais brutais formais de desigualdade e opressão, com a crítica de um Jessé Souza, desde sempre destituída de qualquer elemento programático, exceto alusões despolitizadas sobre o nível de “aprendizado moral” do “modelo social-democrata europeu”.
A contribuição científica para renovar a crítica progressista das desigualdades deve se concentrar na desconstrução dos discursos que naturalizam as desigualdade em cada sistema social, mas não apenas em forma de denúncia inconsequente, como se faz na “crítica da sociedade”, mas sobretudo na forma de um discurso programático humilde, reflexivo e consequente, ou seja, que reflita sobre as condições de sua utilização na política, buscando pensar não apenas políticas de redistribuição e reconhecimento identitário, mas sobretudo políticas capazes de transformar a infraestrutura organizacional e institucional da economia, da política, do direito e da educação, pois somente este tipo de transformação estrutural pode garantir redistribuição e reconhecimento para maiorias e minorias.
A crítica das desigualdades precisa se reaproximar da análise de políticas públicas enquanto instrumento de transformação estrutural e justiça social, que cria capacidade não só de redistribuir, mas também de reorganizar a produção da riqueza social e a ação coletiva. Sem isso, a redistribuição igualitária das chances de vida vai sempre encontrar limites enormes. A análise e a imaginação institucional de políticas públicas podem ser um momento de aprendizado humilde do cientista social crítico, pois aí ele é obrigado a disciplinar suas denúncias dos problemas com a necessidade prática de encontrar ou criar soluções para eles. Não deve servir para castrar o ímpeto transformador e rebaixar ainda mais as expectativas, mas sim para dar efetividade e consequência às aspirações progressistas de transformar o mundo para o engrandecimento da mulher e do homem comum.

ROBERTO DUTRA TORRES JUNIOR é ex-diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

O maravilhoso mundo mágico do ministro Moro

                                           
Marcos A. R. Peixoto 
                                                                                                                                                                 

O maravilhoso mundo mágico do ministro Moro                                                                              
(Arte Revista CULT)

“O meu mestre feiticeiroUm dia quis se ausentar.
Seus espíritos tomei
E fiquei em seu lugar.
Vi suas magias
Vou fazer igual.
Farei maravilhas
Com força mental!”
O Aprendiz de Feiticeiro, Goethe

“Abracadabra, sinsalabim, a violência desaparecerá porque eu quero assim! Plim!”
Se de fato não foram, poderiam ter sido estas as primeiras palavras do ministro Moro (doravante, MM) à frente do superministério do governo de extrema-direita recém eleito e que optou por integrar.
Influenciado (e ora, vejam: quase disse “deformado”) por anos de magistratura e catapultado ao Executivo (para breve passagem, segundo dizem) por força de um trampolim de ouro chamado “Lava-Jato”, acostumou-se MM ao longo daquele tempo a, cada vez mais, acreditar que suas palavras eram capazes de formar (deformar?) a verdade. Se cabe aos juízes dizerem a verdade (afinal, proferem veredictos – do latim veredictum: “verdadeiramente dito”), a verdade (ora bolas…) pode passar a ser o que dizem os juízes e ponto final. Por que não?
Assim “influenciado”, aportou MM no Executivo piamente acreditando que suas palavras (agora não mais contidas em decisões ou sentenças, mas em decretos e anteprojetos de leis e de emendas à Constituição) serão suficientes para formar a verdade e, como num passe de mágica, a verdade se subjugará às suas palavras, tal como ocorria enquanto membro do Judiciário. Voluntarismo elevado à enésima potência – o poder (além de outras coisas) inebria e vicia.
Momentaneamente transformado em ministro no Executivo (já que, segundo dizem, sua verdadeira intenção seria assumir como ministro, sim, mas no Supremo), MM trouxe consigo, sob sua falsa premissa de que “o que dirá, será”, algumas fórmulas mágicas que começou a proferir aqui e ali com o intuito de enfeitiçar incautos, como se fossem fake news agora empoderadas.
A primeira das fórmulas mágicas veio através do decreto de flexibilização da posse de armas de fogo. Plim!
Contrariando centenas de pesquisas abalizadas em torno do mundo (não, o mundo não é plano) que demonstram, com a necessária seriedade, que armas em mãos de civis somente aumentam a letalidade da violência – violência que está aí e que, com o decreto, somente será municiada –, MM apostou nas palavras populistas de seu presidente (vitimado pela violência) de um lado, e de outro na prática do Grande Irmão do Norte (que MM idolatra) para trazer ao Brasil uma fórmula que, sendo promessa (dívida?) de campanha, só provocou até hoje, naquele país, grandes morticínios de inocentes, isto ao mesmo passo em que inexiste um único dado concreto no sentido de que, de algum modo, colabore a flexibilização da posse de armas de fogo para a paz social, senão para uma falsa sensação de segurança comumente quebrada ao som de tiros e à vista de tragédias.
Em seguida, MM trouxe à lume um (depois cindido em três) anteprojeto de lei anticrime em relação ao qual alguns incautos ainda nutriam um fio de esperança no sentido de que, em consonância aos princípios constitucionais vigentes, poderia ser produtivo em favor da por todos almejada segurança pública. Mas assim não foi.
Ao contrário e como era de todo previsível da parte de quem não nutre maiores afetos pelo texto da Constituição (como tantas e tantas vezes já demonstrou), o que MM pariu a partir de suas “influências” foi mais uma profusão de fórmulas mágicas ora inconstitucionais, ora fortemente violadoras de secular evolução da dogmática penal, ora inócuas, ora grave e preocupantemente potencializadoras da violência que pretende combater.
Segurança pública não é (ou ao menos não deveria ser) campo de atuação ou experimentação para neófitos ou, pior, ignorantes – este um primeiro e basilar ponto que, de todo esquecido ao longo de anos, tem nos lançado cada vez mais fundo numa espiral de violência da qual (literalmente) a cada dia que passa se torna mais difícil sair. Segurança pública não é tampouco (ou não deveria ser) campo para a atuação de demagogos que somente enxergam a curto prazo, ou têm em mira exclusivamente a próxima eleição ou, no máximo, o próximo cargo para nomeação.
Apesar disto, em nosso país a segurança pública se tornou, dentro da “melhor” tradição brasileira, tema para papo de botequim, em que cada um tem sua própria opinião, seu achismo, sua fórmula mágica. E se todos as têm, por que não as teria MM, não é mesmo?
Eis que sem maiores consultas a especialistas (pasmem: juízes, pelo simples fato de serem juízes, não são especialistas em segurança pública, matéria sequer cobrada em concursos públicos de ingresso na carreira) ou mínimos debates democráticos e plurais, num passe de mágica MM apresenta seu(s) anteprojeto(s) de lei(s) anticrime: plim! Um anticlímax, já que praticamente nenhum dispositivo proposto tem (por falar em mágica) o condão de gerar quiçá 1% de diminuição nos índices de violência – pelo contrário!
Inúmeros artigos de doutores em segurança pública, direito e processo penal, criminologia, sociologia, história, já foram e ainda serão escritos em torno das diversas propostas apresentadas. Contudo, bastante em resumo, o que se pretende é mais do mesmo que há décadas só vem assolando o país e o afundando em um grau cada vez maior de violência, apostando tanto o Executivo quanto o Legislativo federal todas as suas fichas no direito penal como panaceia, se esquecendo do ditado de Paracelso, médico e físico do século 16: “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”. Para prosseguir na analogia médica, por vezes insistem em aplicar ao paciente meros analgésicos enquanto se necessita de antibióticos; por vezes se tem aumentado a dose do mesmo remédio que já se provou ineficaz e tem agravado a doença. Como disse Einstein, “não há maior sinal de loucura do que fazer uma coisa repetidamente e esperar a cada vez um resultado diferente”.
A ampliação do instrumental punitivista, seja na esfera penal ou processual penal, é parte do problema e não da solução. E o pior cego não é aquele que não quer enxergar, é o que finge não enxergar: anos e anos dessa política nada mais fizeram que ampliar a violência ao mesmo passo em que ampliou exponencialmente o encarceramento, não sendo tão difícil perceber a interrelação dos dois fatores por qualquer um que minimamente conheça os efeitos deletérios do cárcere, principalmente em sua estreita vinculação com organizações criminosas na medida em que provocam, de um lado, o aprofundamento na criminalidade para aqueles que ingressam no sistema penitenciário quiçá pela primeira vez através das dívidas que lá são geradas e que serão cobradas quando em liberdade, de outro a busca incessante daquelas organizações, em razão das inúmeras prisões de seus agentes, por novos corpos a serem submetidos às graves, danosas e brutais exigências da vida criminosa, tudo num círculo vicioso que se retroalimenta inclusive (talvez sobretudo) por meio do agravamento de penas e da flexibilização/facilitação da punição, sempre erigidas em detrimento de garantias fundamentais ora convenientemente esquecidas, ora flexibilizadas em reinterpretações que as deformam e por vezes as recriam em normas frontalmente opostas à original – lembremos, afinal, que para alguns a verdade é aquilo que o juiz diz.
Variados são os temerários exemplos contidos no anteprojeto originário da varinha de MM, contudo tomemos como mero exemplo a barganha proposta, segundo a qual através de acordo (como se, com a Espada de Dâmocles sobre sua cabeça, ali houvesse para o investigado livre vontade, pressuposto à validade de qualquer avença) o Ministério Público e o indiciado poderão convencionar uma pena a ser, logo em seguida e sem mais, homologada, imposta e cumprida, tudo num verdadeiro vapt-vupt penal, alegria dos eficientistas, quiçá (como querem alguns) já em audiência de custódia, verdadeira perversão de um instituto erigido por convenções internacionais como garantia do preso e não como facilitação à punição.
Como se não bastasse a barganha ferir de morte os princípios constitucionais da inafastabilidade do efetivo controle jurisdicional, da garantia ao duplo grau de jurisdição, do contraditório, da ampla defesa e, sob tal ótica pressuposta, do devido processo legal (por outras palavras: o devido processo legal sob parâmetros constitucionais pressupõe o contraditório e a ampla defesa, logo, inexistindo estes não existe aquele), mesmo o Grande Irmão do Norte idolatrado por MM não só atualmente revê a prática (geradora, lá, de um dantesco hiperencarceramento de cidadãos jovens, pobres e negros assolados, como aqui, por uma sociedade consumista, narcisista e racista – e em matéria de dantesco hiperencarceramento já temos nossos próprios meios, não precisamos importar outros), como a instituiu no passado com base em pressupostos absolutamente diversos e inexistentes seja em nosso ordenamento penal e processual penal (aqui não há os julgamentos complexos, longos e custosos por Grandes ou Pequenos Júris para todo e qualquer delito), seja na própria filosofia que o rege (bem distante da concepção contratualista comum ao direito norte-americano).
Portanto, tal importação num passe de mágica, a par de engendrar um Frankenstein jurídico ao pretender implantar à fórceps no corpo legal um membro que não lhe pertence e fatalmente será combatido pelos anticorpos constitucionais (mais uma vez paráfrases médicas para um sistema doente), somente potencializará o encarceramento, contribuindo mais uma vez para o fortalecimento do círculo vicioso já acima referido e, assim, para a ampliação e aprofundamento da violência que, por mais incrível e surpreendente que possa a alguns parecer, não será subjugada pelas “verdades” insustentáveis ditas por MM – em um mundo real, alheio a sentenças e decisões, a verdade fática não pode ser subjugada por meras palavras, ainda que venham a se tornar leis.
No filme Fantasia, magnífico, lançado em 1940 pela Disney, Mickey Mouse (e vejam só: outro MM!) – tudo ao som do poema sinfônico “O aprendiz de feiticeiro”, de Paul Dukas, baseado em poema homônimo de Goethe – na ausência de seu mestre, resolve fazer experiências com aquilo que não domina minimamente: usando mágica com um determinado propósito (fazer esfregões e baldes com água trabalharem por ele), rapidamente vê tal propósito fugir ao controle e colocar o estúdio de seu mestre em grave risco, até que este ressurge e o corrige, evitando o pior.
Infelizmente, na vida real não há mestres feiticeiros que no último instante evitam o mal maior. Infelizmente, na vida real, pessoas que não dominam totalmente seus misteres, ainda que com as melhores intenções, produzem grandes maus e em larga escala.
Assim são os anteprojetos de leis anticrime do ministro Moro.

Marcos A. R. Peixoto é juiz de Direito e membro da Associação Juízes para a Democracia

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2019/02/25/15511482575c74a4e16021d_1551148257_3x2_th.jpg

Crônica: Vale dos Rouxinóis


Imagem relacionada

José Luiz Gomes                        

Rouxinóis são pássaros pequenos, de cor castanho, que ocorre com muita frequência aqui na região Nordeste. Apesar do canto bonito - nobre, diria - não se adaptam ao cativeiro, o que os tira da lista dos prendedores de animais em gaiolas. Mantenho uma página na internet sobre a região do Brejo Paraibano, mais precisamente sobre a cidade de Bananeiras. Outro dia publicamos ali uma foto de um vale, com uma imensa campina, com a legenda de “Paraíso dos Rouxinóis”. Como era natural, a foto gerou algumas polêmicas, com leitores sugerindo tratar-se, quem sabe, da melhor imagem obtida do Brejo Paraibano. E, naturalmente, questionamentos sobre de onde ela havia sido obtida. Não pode ter sido de Bananeiras. É mais provável que seja das famosas serras de Serraria. Quem sabe da zona rural de Areia? 
 
Na realidade, trata-se de uma foto antiga, ainda do nosso perfil no Flick, que hoje perdeu enorme espaço para o Instagram. A foto foi tirada há alguns anos atrás, quando ainda existia o Hotel Fazenda Vale do Paraíso, no alto de uma colina, entre as cidades de Bananeiras e Solânea. Era um dos melhores equipamentos de hospedagem de Bananeiras, hoje, infelizmente, desativado. Bons apartamentos, espaços de lazer, horta orgânica, culinária regional de boa qualidade e farta. Ah, já ia esquecendo do melhor: uma paisagem de tirar o fôlego, deliciando os hóspedes, ao acordarem, logo cedinho, com um frio danado, ouvindo o canto dos pássaros, notadamente os Rouxinóis, os verdadeiros donos do pedaço, em suas revoadas nas árvores, na campina, em seus ninhos no casarão do Hotel, num frenesi constante, entre a corte e a busca de alimentos para os seus filhotes.   

Ainda cheguei a voltar outras vezes ali, desta vez acompanhado do comendador Arnaldo, para o lançamento de mais um dos seus livros. Foi maravilhoso matar a saudade daquele local, voltar a experimentar o tradicional café do Brejo - cuscuz, mel de engenho e queijo coalho - ouvir o concerto dos Rouxinóis nas primeiras horas da manhã e ao final das tardes. Como conheço bem a região, suas matas, seus engenhos, suas cachoeiras, suas trilhas, seus bares de estrada, com uma gastronomia toda especial, fica difícil para mim apontar este ou aquele local como o mais bonito do Brejo. No entanto, não posso discordar dos leitores que assim definem o Vale do Paraíso como o mais bonito deles. Quem sabe eles não têm razão?

Aliás, o comendador já prepara uma nova edição de suas crônicas para ser lançada na cidade, lançamento que deverá ser acompanhado pelo pessoal da confraria. Arnaldo chegou ali meio que por acaso, mas não resistiu ao nevoeiro que encobria a cidade num desses dias de inverno, quando a rainha do brejo paraibano exibe todos os seus encantos aos visitantes.  

 

 

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Michel Zaidan Filho: A Reforma do Sistema Previdenciário Brasileiro


 
0 projeto de Emenda à Constituição (PEC) que foi encaminhada, nesta segunda feira, ao Congresso Nacional que pretende “reformar” a Previdência Social Brasileira é um meio caminho entre a de Fernando Henrique Cardozo e a de Michel Temer. Menos escandalosa do que a do ex-presidente e mais ousada do que a de FHC. Imagina-se que seja a primeira grande fatura que o capitão deseja entregar, logo no início de sua gestão, aos seus patrocinadores de campanha: a transformação do sistema de repartição simples num sistema de capitalização. Ou, um sistema de benefício definido num sistema de contribuição definida. A previdência social não é só uma das grandes conquistas sociais e trabalhistas brasileiras, que em muito se assemelha à concessão da “renda mínima universal”, ou seja, um benefício para todos os brasileiros, independentemente do vínculo do emprego formal ou não. Haja vista os benefícios de prestação continuada (BPC), garantido pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Foi um grande avanço, na Constituinte de 1988 a desvinculação do benefício em relação à garantia do emprego formal. Muita gente, graças a essa conquista, passou a receber esse benefício (inválidos, idosos, arrimo de família, donas de casa). Mas além dessa enorme significação social, o sistema arrecadatório da previdência é uma imensa máquina (hoje reforçada pela super-receita) que produz grandes superávits. Ou seja, o caixa da previdência pública está sendo atacado pelo governo e seu ministro da fazenda, não porque é deficitário, mas exatamente pelo contrário: porque tem muito dinheiro. Além do que suas receitas não provêm só do recolhimento dos trabalhadores formais e autônomos, vêm de contribuições para fiscais, do COFINS, das loterias, da contribuição sobre o lucro líquido das empresas etc. O que se pretende com esta “reforma” é assaltar o pecúlio do trabalhador brasileiro. Aliás, isto já vem sendo feito: a DRU que permite o governo desviar dos cofres da previdência até 30% de suas  receitas para pagamento das obrigações financeiras da dívida pública (hoje na casa dos 39% do Orçamento Nacional), da  extravagante e indevida isenção e renuncia fiscais concedidas pelo governo a empresas nacionais e estrangeiras, à formidável dívida de 400 bilhões das empresas à Previdência Social e, agora, se esta reforma vingar, as empresas de capitalização que vão abocanhar grande parte dessa riqueza social.

Um Projeto de Emenda à Constituição requer a sua aprovação por 3/5 da Câmara dos deputados, em dois turnos de votação. Teria o governo essa base de apoio no Congresso, mesmo oferecendo a cada deputado a bagatela de 6.000.000 de reais? – Não creio. Posso estar muito enganado, mas o capitão não está no seu melhor momento para confiar no apoio irrestrito de sua base. Base fisiológica, diga-se de passagem. A família do capitão tem provocado seguidos atritos e fissuras nesse apoio ao Poder Executivo. Há o problema de comando e hierarquia, nesse governo. Afinal, quem manda ou ordena na República: é o capitão, o general, os filhos do capitão, os ministros ou a base parlamentar? – Tem se falado muito que a articulação política do primeiro mandatário seria entregue a Rodrigo Maia e ao presidente do Senado. Não me parece, contudo, muito segura essa operação. O deputado do DEM parece querer pousar de independente em relação ao Palácio da Alvorada. E o dirigente do Senado é um novato que assume a direção de uma Casa fragmentada e dividida.

Essa PEC é menos ousada do que o projeto original, elaborado pelo senhor Paulo Guedes para agradar às empresas de capitalização. Falou-se até em fazer as mudanças através de projetos de lei ou até mesmo, medida provisória. Mas há direitos e garantias que só podem ser alterados com a reforma da Constituição. É aí que mora o problema desse governo.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Nosso trono são será usurpado

                                           
Bianca Santana

Nosso trono não será usurpado
 
Mãe Hilda Jitolu, do Ilê Aiyê (Foto: Mario Cravo Neto/Divulgação Itau Cultural)

Ao redor de bancos simples de madeira ou imponentes cadeiras de vime — tronos de mães de santo, foram estruturadas famílias que ofereceram proteção espiritual e articularam táticas materiais para que nossas ancestrais seguissem vivas. O poder negado pelo Estado às soberanas negras foi reverenciado no Candomblé. Há fotografias belíssimas dos tronos de Mãe Andresa, na Casa das Minas; Mãe Senhora, no Ilê Axé Opo Afonjá; Mãe Beata de Yemanjá, no documentário Fio da memória, de Eduardo Coutinho. Obrigada, Alex Ratts, por compartilhar referências. A cadeira-trono da tal festa é ícone do poder preto desde os Panteras Negras. E é muitíssimo bem empregada em cenas de Elza Soares, Mãe Hilda Jitolu, do Ilê Aiyê, no curta Kbela, de Yasmin Thayná. Como escreveu o antropólogo Hélio Menezes, curador da recente exposição Histórias afro-atlânticas: “O símbolo é forte demais, negro demais, ancestral demais para ser profanado por sinhazinha moderna, socialite-diretora descafeinada de revista de moda.” Assino embaixo.
Demonstrar-se racista é parte de uma estratégia consciente por visibilidade? Ou é tão insuportável conviver com pessoas pretas em posições diversas, que vale encenar, em 2019, uma alegoria do Brasil colônia escravocrata? Deboche da luta antirracista, que, finalmente, não é mais possível ignorar? Reafirmação de quem é quem no país que mantém a mesma estrutura social 130 anos depois da abolição? As perguntas nos servem como tentativa de elaborar o absurdo. Mas pouco importam as respostas. Porque a mim, e imagino que à maior parte da sociedade brasileira, não interessam as intenções de uma mulher branca rica ao organizar seu aniversário de 50 anos de idade. Mas muito interessa a mim, e a quem trava a luta antirracista, que nossos símbolos não sejam usurpados. E que seja considerado inaceitável o elogio a um crime hediondo sem proporções na história da humanidade.
A imagem de mulheres pretas vestidas como mucamas a serviço da sinhá remete a sequestros, aos navios negreiros, aos estupros dos senhores, ao trabalho forçado, à tortura, às humilhações de diversas ordens. Além dos inúmeros estudos da historiografia, há notícias de jornais de época ilustrativos. E há a riqueza de detalhes da literatura. No romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, a personagem Kehinde prefere a brutalidade das plantações e dos capitães do mato à proximidade com a Casa Grande e a crueldade dos brancos, vivenciada por quem era feito escrava doméstico. Sinhá Ana Felipa arrancara os olhos da negra Verenciana por ciúmes do marido. Toda essa carga é atualizada a cada reprodução da imagem da preta servil.
Abro parênteses e peço perdão por retomar o exemplo recorrente. É que quando as vítimas são pessoas brancas, cuja humanidade não precisa ser defendida a todo momento, parece mais fácil a compreensão. Quem julgaria admissível uma festa de aniversário que reproduzisse imagens de campos de concentração? Não é tolerável que se brinque com o holocausto, independentemente das motivações de quem pudesse ter a brilhante ideia de ambientar uma festa reproduzindo imagens de Auschwitz. Assim, é necessário argumentar o óbvio: não é aceitável que cenas da escravização de seres humanos sejam exaltadas, independentemente das intenções de quem teve a brilhante ideia. Neste ponto, me embrulha o estômago lembrar da quantidade de pessoas que toma seu cafezinho apreciando a cena de uma colheita realizada por pessoas escravizadas, no imenso painel que decora um café na galeria do Edifício Copan, cartão-postal de São Paulo.
A ferida da escravidão segue aberta. Porque a estrutura racista da sociedade brasileira permanece e as discriminações racistas não nos dão trégua. Em Kindred, romance de Octavia E. Butler, a personagem Dana desmaia nos Estados Unidos de 1970 e desperta no século 19, no sul do país, em uma fazenda escravista. Se o mesmo acontecesse com alguma de nós no Brasil de 2019, é provável que a paisagem, vestimentas, indumentárias do século 19 fossem outras. Mas pessoas com os mesmos tons de pele e origem social estariam na mendicância, no trabalho braçal, nos cuidados domésticos, nos presídios, mas também nos parlamentos, à frente de grandes negócios, beneficiando-se das estruturas racistas. O tempo passou, mas o Estado brasileiro segue como instrumento das elites brancas para que o poder e a riqueza sigam com os mesmos. E os deslocamentos conquistados com muita luta provocam reações das mais diversas. Até alegorias escravocratas em festas de aniversário. A reação ao absurdo desta imagem é um aviso. Nosso trono de vime não será usurpado. E exigimos assento em outros espaços também.

BIANCA SANTANA é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da Informação pela USP, autora de Quando me descobri negra (SESI-Sp, 2015)

Charge! Jaguar via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2019/02/21/15508025995c6f5ea7cfcd4_1550802599_16x9_th.jpg

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

O quão obscurantista é o emplasto filosófico de Olavo de Carvalho?

Na aula sobre o texto “O que é a Ilustração” são tantos os absurdos ditos por Olavo de Carvalho sobre Kant, que chega a ser difícil comentar. Seu objetivo: atacar a democracia, a liberdade e a diversidade.
Dimitrius Dantas, do jornal O Globo, convidou a mim e a dois colegas, Maria de Lourdes Borges, da UFSC, e Maurício Keinert, da USP, para assistirmos a uma das aulas de Olavo de Carvalho e darmos nossa opinião. A matéria, publicada no dia 10 de Fevereiro, ficou interessante e gerou alguma polêmica[1], chegando até mesmo a figurar entre os trend topics do Twitter. Como toda matéria de jornal, restou muito por ser dito. Gostaria de retomar então alguns pontos que ficaram fora do texto publicado, justamente para tentar mostrar que, por detrás de disputas filosóficas, estão em jogo questões muito mais fundamentais.
Conta-se por aí que em ao menos duas vezes a filosofia de Kant deu azo a discussões tão acaloradas que acabaram em atos de violência e em duelos para decidir a questão disputada. Mais interessante do que saber, porém, se a interpretação A ou B é a correta, é saber por que esta questão ocupa tanto espaço. Não que Olavo de Carvalho ofereça um interpretação. Não. O que ele fornece é uma simples e pura falsificação, afirmações absurdas sobre o filósofo que não encontram nenhuma sustentação. Nenhuma, zero. Mas ele oferece isso a pessoas que querem saber, ou seja, milhares de jovens que chegaram até ele e que foram por ele acolhidos. Olavo de Carvalho existe porque existe uma demanda legítima, da parte dos jovens, por orientação, por uma explicação sobre o que está acontecendo. Se ele faz isso, e se atinge o público enorme que atinge, é porque há procura e ele acabou ocupando esse espaço. Nós, que trabalhamos seriamente com filosofia, precisamos reconhecer: deixamos o espaço aberto para que uma figura sem qualquer escrúpulo ou honestidade o ocupasse.
É claro que a Universidade não pode ocupar todos os espaços. Isso não é apenas impossível, é indesejável. É fundamental que haja vida intelectual fora da Universidade. No caso da filosofia principalmente. Quando alguém procura um curso de filosofia, no mais das vezes está em busca de algum tipo de orientação, um modo de lidar com suas angústias, suas fobias, suas incertezas, de compreender processos políticos, enfim, de se orientar no mundo e na vida. Esta é uma dimensão que nós, da Universidade, como que perdemos, e acabamos reduzindo a filosofia a questões técnicas, internas ao pensamento dos diversos filósofos que compõem os nossos cursos.  Mais ainda: os estudantes querem respostas e nós, quase que de modo perverso, multiplicamos as perguntas, em certos casos de modo insuportável para alguns.
Na verdade estamos lidando aqui com dois conceitos de filosofia: a) filosofia como um certo saber, como uma visão abrangente do mundo, que nos oferece uma série de explicações para questões que consideramos relevantes, e b) filosofia como a compreensão destas mesmas questões, de procurar saber de onde elas vêm, se são questões necessárias, questões que não podemos evitar. Questões filosóficas são poucas. Respostas, bem, são muitas. O modo, porém, como o filósofo constrói a sua resposta depende do modo como ele coloca o problema, como ele o vê, em estreita relação com o que ele  considera mal resolvido por outro filósofos. Em nosso trabalho técnico, tratamos disso muito bem. Apresentamos os diversos sistemas filosóficos – e também os filósofos não sistemáticos, os anti-sistemáticos, etc; analisamos os diversos argumentos, as milhares de passagens difíceis, nos menores detalhes, tomando sempre conhecimento do que melhor se publica sobre o assunto; é sempre um cartesiano apresentando Descartes, um kantiano apresentando Kant, um aristotélico apresentando Aristóteles, e por aí vai. Ou seja, mesmo com limitações damos excelentes cursos de história da filosofia.  A questão é então inevitável: o aluno entra no curso de filosofia e tudo o que ele vê é história da filosofia?
Kant dividia a filosofia em duas partes. Uma parte crítica, na qual se avaliam as diversas figuras da racionalidade  e se julga se tais esforços se estavam bem fundados, se não se afirma algo além do que se poderia ter afirmado, etc; e uma parte dogmática, posterior à crítica, na qual se constrói o sistema, ou a visão (filosófica) do mundo. A primeira parte, a parte da crítica, implica conhecer a história da razão, ou seja, no limite a história da filosofia. Não é gratuito, portanto, que a história da filosofia tenha sua matriz justamente em Kant. Mas não dá simplesmente para afirmar que história da filosofia e filosofia sejam a mesma coisa.  Na chamada Lógica de Kant  há uma passagem que muitas vezes é utilizada para ressaltar essa distinção. Ela é, no mais das vezes, compreendida do seguinte modo: não se deve ensinar filosofia (história da filosofia), e sim ensinar a filosofar. Mas quando vamos para o texto, lemos que não se ensina filosofia porque não há filosofia a ser aprendida. Kant afirma o seguinte: “Não se pode aprender filosofia já pela simples razão que ela ainda não está dada. E mesmo na suposição de que realmente existisse uma, ninguém que a aprendesse poderia se dizer filósofo; pois o conhecimento que teria dela seria sempre um conhecimento tão-somente histórico-subjetivo.”[2]

Para Kant, então, a Filosofia não está dada, ou seja, ela é uma ideia, uma ideia de ciência (como conhecimento racional e rigoroso), e não uma ciência.  Cabe insistir um pouco mais nesse ponto. Para Olavo de Carvalho, ao contrário,  e com o perdão da justaposição a Kant, a Filosofia está dada em um conjunto de dogmas que ele afirma ter pensado e que ele se põe a ensinar.  Chega a ser patético. Mas vamos em frente: não é porque para Kant a filosofia não está dada que somos condenados à inação e à morte do pensamento. Muito pelo contrário. Pensar, é uma atividade, fazer filosofia e filosofar são justamente atividade do pensamento. Assim, filosofar e pensar por si mesmo são a mesma atividade. Como Kant afirma, um pouco acima no mesmo texto da Lógica, se quisermos nos dedicar a esta atividade, teremos de “olhar mais para o método de nosso uso da razão do que para as proposições mesmas a que chegamos por intermédio dele”. E, assim, olhamos para o método de nosso uso da razão quando vemos como Leibniz pensa, como Locke pensa, como Aristóteles pensa, como Marx pensa, como Giannotti pensa. Pensar por si mesmo, portanto, não é pensar sozinho, é pensar com o outro e muitas vezes contra o outro. Não é aceitar, de modo acrítico, o que o outro pensa. E é isso que Olavo não está disposto a aceitar.
A diferença entre filosofia e religião nem sempre é clara, e pode mesmo variar de uma compreensão a outra do que seja filosofia. Há também uma distinção entre religião, como o conjunto de valores e crenças de uma certa comunidade que a liga ao transcendente, e igreja, como a instituição que cuida desses valores. É importante também distinguirmos entre igreja e seita. O mínimo que podemos dizer é que Olavo de Carvalho criou uma seita.  Ele se apropria de algumas ideias caras a pensadores cristãos e pretende ter feito com elas a sua filosofia. Como disse minha colega e amiga Maria de Lourdes, um verdadeiro “liquidificador delirante”. Como liquidificador é coisa séria, uma arma poderosa, precisamos ter cuidado. Pois bem. Olavinho me acusa de ter deturpado seu pensamento, ao não distinguir entre a comunidade de amigos-discípulos que ele cria e a comunidade tal como ele afirma criar e que estaria baseada no conceito de amizade tal como pensado por Tomás de Aquino. Conversa fiada. Que comunidade há entre uma figura patética que fica defronte de um computador dizendo absurdo atrás de absurdo e os pagantes de seus cursos? Comunidade? A comunidade de Olavo é apenas isso, um espaço que ele controla de modo absoluto, no qual entra quem paga e fica quem ele deixa. Se discordou, está fora.  Não há espaço para verdadeira discussão.  Se todos o tratam como mestre, é porque ele se coloca nesta posição, como se sábio fosse. De sábio, porém, não tem nada. É, isto sim, para usar uma distinção conhecida Giannotti, um grande de um sabido!
Um sabido, porém, que tem feito um estrago enorme, em um ambiente já deficiente de discussões sérias e democráticas.  Ele é um vírus que infecta a esfera pública e que encontra seu lugar de reprodução no ambiente putrefato de seu curso on-line.  Compreender ou não Kant é irrelevante para a nossa democracia. Agora, defender uma visão de mundo aberta, livre, que vive do pensamento honesto, que aposta na razão e na liberdade, ou defender uma visão de mundo obscurantista, que recusa o diálogo porque tem na ofensa e na violência os únicos argumentos, que defende valores retrógrados, não, aí o debate não é irrelevante para a democracia. Ao atacar Kant, o que Olavo ataca são os valores da modernidade, modernidade que não é nem um pouco fácil e sem problemas, mas que tem um compromisso inquestionável com a democracia.  E nesse projeto moderno ou mesmo democrático Kant é autor que não vacila! Como muitos pensadores do século XVIII (não todos, vejam bem) Kant tinha visão estreita sobre certos temas, por exemplo com relação as mulheres, sobre as quais diz coisas inaceitáveis; sua posição com relação ao problema das raças, que então começava a se colocar de modo muito forte, não é nem um pouco isenta de ambiguidades. Então não se trata de defender Kant cegamente, nenhum autor está livre da crítica, mas de defender a democracia, ou melhor, os princípios que a dão sustentação e que se encontram formulados por Kant. É a ela, democracia, que Olavo visa, ao atacar Kant. É à liberdade e à pluralidade, para começarmos.
Na aula on-line de Olavo sobre o texto de Kant “O que é a Ilustração”, são tantos os absurdos que chega a ser difícil comentar. Mas vamos lá. O texto de Kant é um texto de intervenção no debate público. O ano de publicação é 1784 e o que estava em questão era um brutal esforço de unificação da legislação do Império da Prússia, que ocupava um grande território, com culturas e costumes relativamente distintos, e portanto com legislações diversas e contrastantes, em especial a legislação tributária, sob forte controle dos poderes locais. O que serve de pretexto à intervenção de Kant foi uma publicação anterior, no mesmo periódico em que Kant publica o seu texto, em que se acusava a Ilustração de ir longe demais, de atacar a moralidade, ao pretender que o casamento poderia ser considerado um vínculo civil apenas, sem a necessidade da sua consagração pela Igreja. A Prússia era território da Igreja Reformada. Como dois jovens de fé católica poderiam se casar? Teriam de se casar em uma Igreja Protestante, contrariando a sua fé? E jovens de origem e religião judaicas? O Estado Prussiano reconheceria a autoridade religiosa de catolicismo e judaísmo? E jovens que não tivessem religião alguma? Jovens sem religião, pensava provavelmente o autor contra quem Kant escreve, são depravados, e depravados não devem casar. Pois que moral passarão para seus filhos?
Olavo de Carvalho ignora completamente o contexto da intervenção de Kant. Seja o pretexto, a questão do casamento, seja a questão maior, a unificação da legislação e a relação entre igreja e Estado. Ignora e já começa dizendo besteiras. Kant abre seu texto com uma definição muito preliminar do que é a Ilustração: é a saída do homem da menoridade da qual ele mesmo é culpado. O caminho para tal saída está em ter coragem de pensar por si mesmo. A primeira batatada de Olavo está em dizer que, para Kant, pensar por si mesmo é pensar o que a gente bem entende, quando não é nada disso. Pensar por si mesmo envolve uma relação livre entre o indivíduo e a comunidade, na qual a única autoridade é a autoridade da razão, do pensamento. Pensar não é, portanto, uma atividade que se faça de modo isolado. Porque se eu quero pensar de modo consistente, preciso comparar o meu pensamento com o pensamento dos demais – e para isso precisamos ser livres. Vejam que Kant logo se apressa em afirmar que a Ilustração talvez seja, para o indivíduo, impossível. Mas que talvez um povo possa pensar por si mesmo, isto é, chegar a um pensamento ilustrado, chegar ao ponto de ser capaz de decidir quanto ao seu destino, ser senhor de si mesmo, soberano. Então, por trás do lema sapere aude, tem coragem de fazer uso do teu entendimento, o que está em questão é uma figura da modernidade política: o exercício da soberania popular em regime de democracia representativa. Mas isto não interessa a Olavo. Interessa a ele insistir em uma suposta contradição, presente no que ele, Olavo, acredita que Kant está dizendo. Ora, quando encontramos uma contradição em um grande filósofo, o mínimo que se espera de nós é que leiamos o texto algumas vezes, porque muito provavelmente  o equívoco está no nosso lado, fomos nós que não entendemos. Com Olavo é exatamente isto que se passa; ou não, talvez seja proposital.
É proposital, porque a ele não interessa a liberdade de pensamento. A ele interessa que seus seguidores repitam o que ouvem nos vídeos mal editados. Daí que, em uma aula sobre um texto de Kant, sequer apresente o texto de Kant , mas passe boa parte do tempo comentando outro texto que ele próprio publicou em um jornal. No texto “O que é a Ilustração”, Kant faz uma distinção entre uso público e uso privado da razão. Ela nos causa estranhamento porque é contraintuitiva: somos livres no uso público da razão, mas não somos livres no uso privado. Mas não é tão complicado assim. Todos nós pagamos impostos. E quanto a isto não somos livres, estamos privados de nossa liberdade de fazer ou não fazer algo. O que não significa, porém, que não possamos discutir o valor ou sobre onde incidem os impostos e, no limite, se é ou não legítima a cobrança de impostos. O sentido da discussão é justamente para que a legislação fiscal se aprimore. Então sou livre para discutir, e para discutir publicamente, isto é, sou livre no uso público da razão. Este é um exemplo dado pelo próprio Kant. Há um outro, agora em matéria de religião. É sobre este que Olavo realmente se detém. O que diz Kant? Um sacerdote, quando investido da função religiosa, isto é, no momento do culto, no púlpito, não pode criticar a religião a que pertence. Mas ele pode fazê-lo como alguém que conhece a religião, que reflete sobre ela, e que pode propor interpretações, alterações. Kant diz então o seguinte: uma religião que proibisse a discussão colocada nestes termos estaria cometendo um crime, porque impediria o progresso em matéria religiosa. Conclui Olavo: para Kant, Jesus foi o maior criminoso da humanidade.
Mas como se pode concluir isso? Para ele, todo filósofo tem “razões ocultas”, nunca escreve tudo o que pensa, método de leitura que ele afirma –só dando risada – basear-se em Leo Strauss. Daí Olavo poder afirmar (afinal, apelando para razões ocultas a gente afirma o que quiser) que o projeto de Kant, no porão clandestino da filosofia, é destruir o cristianismo. Isso porque o pacto que Jesus sela com os evangelistas é um pacto inquestionável. Mas como é que o pacto chega a nós, a não ser por meio de textos e leitura de textos e interpretações de textos? Vejam que, se Olavo tivesse razão, Lutero não poderia ter publicado suas 95 Teses na porta de uma igreja em Wittenberg e dado origem à Reforma.  A suposta filosofia de Olavo é retrógrada a tal ponto: ele não é contra o Iluminismo, ele é contra a Reforma Protestante. Desnecessário lembrar de que o próprio cristianismo deriva do judaísmo.  E por que Lutero não poderia fazer o que fez? Porque tem uma “alma consagrada”, e em relação a uma alma consagrada não se distingue entre uso público e uso privado da razão. Alma consagrada? O que é isto? Será que uma alma consagrada existe como existe o texto que vocês estão lendo agora?
O texto de Kant[3] é um texto sobre a relação entre religião e política, entre Estado e Igreja, entre Estado e Sociedade. Não tem nada de alma consagrada. Não tem qualquer ataque ao cristianismo. Agora, de modo absolutamente irresponsável Olavo[4] afirma que um projeto como o de Kant está na origem do regime político iraniano (!), justamente um regime no qual não há distinção entre política e religião. Mais ainda. Ele afirma que Kant é um dos principais autores que inspiram o terrorismo internacional. Eis o ponto de chegada de um trama urdida com a mais completa desonestidade intelectual. Repito. A questão não é Kant. Olavo tenta passar a ideia de que valores como liberdade do pensamento, respeito à dignidade humana, ao pluralismo de visões de mundo e à limitação do poder do Estado, distinção entre religião e política, enfim, valores liberais e democráticos, estão em colisão com os valores de nossa sociedade. Nossa sociedade não é uma sociedade de fanáticos intolerantes, como querem fazer crer Olavo e seus seguidores. É uma sociedade que tem na religiosidade um elemento muito importante, mas que é muito distante da que vem sendo propagada por Olavo, Malafaia e tantos outros, porque tolerante. Nosso imaginário, talvez como nunca antes, está fragmentado, partido. Olavo e seus asseclas, sobretudo aqueles que estão no poder, querem unificá-lo em um projeto obscurantista, antidemocrático e opressor, excludente, que naturaliza as desigualdades e perpetua nossa miséria.  A maior corrupção que nos afeta é a incapacidade para resolvermos, passados já mais de um século, o escravismo presente em nossa sociedade. Não é Kant, portanto, que está em jogo. O que está em jogo somos nós, como sociedade, como povo, como democracia. Por isso a filosofia é importante. Por isso perdi o meu tempo com esta figura nefasta.
Não me interessa o que pensa Olavo de Carvalho. Interessa-me o que vamos pensamos nós, juntos ou em divergência democrática. Mas a intolerância, o ódio e a violência que hoje parecem nos envolver a todos têm em Olavo talvez o seu ponto mais forte. Vejam o caso de Jean Wyllys, por exemplo, que foi meu aluno. A primeira turma a que dei aula na Universidade Federal da Bahia foi a turma de Jean. Não dá para simplesmente assistir a um indivíduo se utilizar da filosofia para fomentar um ataque de tal natureza a uma pessoa, a várias pessoas,  à democracia. Jean Wyllys, meu aluno, um dos deputados mais preparados e engajados na luta por suas ideias, é forçado a renunciar ao mandato por medo de ser assassinado. É como professor que não posso mais permitir que figuras como Olavo de Carvalho cometam os absurdos que cometem. Eu não vou abandonar Jean. Nós, verdadeiros professores, nós, que verdadeiramente trabalhamos com a filosofia, não podemos tolerar mais. Não podemos mais nos omitir. Precisamos entrar de modo muito decidido no debate público, elevar o nível, chamar as pessoas à razão e ao bom senso.
Daniel Tourinho Peres é Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia e pesquisador do CNPq. Sua área de atuação é História da Filosofia Moderna, com ênfase em filosofia alemã, e Filosofia Política. Publicou, entre outros trabalhos, Kant: Metafísica e Política. Salvador/São Paulo, Edufba/ UNESP, 2004.

[1] Olavo de Carvalho está errado e não entendeu Kant, dizem três nomes de destaque da academia brasileira, O Globo, 10 de Fevereiro de 2019.  https://oglobo.globo.com/sociedade/olavo-de-carvalho-esta-errado-nao-entendeu-kant-dizem-tres-nomes-de-destaque-da-academia-brasileira-23440419
[2] Kant, I. Lógica, Trad. Guido de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992, página 43.
[3] A melhor tradução do texto, que conta também com uma introdução e notas, foi feita Vinícius de Figueiredo, e pode ser encontrada aqui: https://www.academia.edu/7894936/I._KANT_Resposta_à_questão_O_que_é_Esclarecimento_Introdução_tradução_e_notas_por_Vinicius_de_Figueiredo
[4] Uma análise/depoimento do fenômeno Olavo de Carvalho e sua prática de deturpações pode ser lida em um ensaio excelente de Daniel Salgado, intitulado Transgressão à Direita, e publicado na revista Serrote, número 30.  https://revistaserrote.com.br/2018/11/transgressao-a-direita-por-daniel-salgado/

(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)