pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
Powered By Blogger

sexta-feira, 24 de maio de 2019

O paradoxo do silêncio em "Aurora de cedro", de Tito Leite


O paradoxo do silêncio em ‘Aurora de cedro’, de Tito Leite

O monge beneditino Tito Leite, autor de 'Aurora de cedro' (Foto: Divulgação)

No novo livro de poemas do monge beneditino Tito Leite, Aurora de cedro (7Letras, 2019), nos deparamos com o silêncio da linguagem metafórica que nos leva a um não-lugar, a um desconhecimento de tudo por suas analogias que quebram com a lógica binária e estruturalista. Rompendo com uma alma poética aparentemente barroca, com suas oposições entre carne e espírito, o poeta aqui em questão hibridiza polaridades, nos fazendo lembrar da “música calada”, de um San Juan de la Cruz, que unia elementos díspares num mesmo sopro de vida, criando a unidade em meio á multiplicidade. Retomando uma voz lírica de Manoel de Barros com seus encantos dos pássaros que não poderiam ser medidos pela lógica racional, a linguagem literária de Tito Leite é composta pela junção entre o corpus linguístico e a temática de cunho social, revelando uma realidade plena e cortante. O monge não vive na reclusão de um mosteiro, mas salta os olhos adiante para o real circundante, mostrando seus problemas e impasses na contemporaneidade.
Dividido entre a temática do sagrado e o campo do sociológico, Tito Leite consegue unir estes elementos opostos num amalgama metafórico exemplar. Como disse, André Luiz Pinto, no seu belíssimo prefácio sobre o poeta por ora aqui apresentado: “O que é uma metáfora? Qual a sua natureza? É a pergunta que me faço ao ler Aurora de cedro, o novo livro de poemas de Cícero Leilton Leite, o poeta e monge beneditino Tito Leite, depois do excelente Digitais do caos, de 2016.” A metáfora se esconde nas entrelinhas de Deus, no Deus absconditus, que oculta sua face dos pecados dos homens: “É um abrir as portas/da morada de Deus/e no íntimo do seu/ínfimo não entrar.” Como no poema “Monte Carmelo”, de San Juan de la Cruz, para se chegar a Deus são necessários o desprendimento e o despojamento, algo que nos falta, devido a nossa carne pecadora traduzida na origem, nos seres originários do Paraíso. Em “Misereri Nobis”, encontramos a temática social que se mescla nas linhas fiáveis do sagrado poético: “A resistência/ é um gato branco/ numa noite/de blecaute/ Muitos pastores/ um só holocausto:/ Deus nos salve/ de Deus”. Após a expulsão dos primeiros seres do Paraíso, que tinham a totalidade da natureza, resta aos seres expulsos o mundo do trabalho, do suor e das lágrimas, o universo em sociedade com suas prisões, injustiças e medos: “Adão, tu ganhas/o pão com o suor/da tua tarde,/mas muitos dos teus/filhos comem/a nossa carne”. Esses componentes inusitados, unindo o sagrado, o poético e o social, ganham peso em sua poesia que mescla o perene ao imanente e transitório.
Apesar de sermos medidos e catalogados em nossa convivência social a partir de um tom taxonômico e hierárquico, Deus não pode ser medido, assim como a natureza plena que nos circunda. Essa imensurabilidade está presente a partir dos versos do místico Angelus Silesius: “Deus se funda sem sonda, sem medida se mede! Quem com Ele se une, isto percebe”. E Manoel de Barros completa a partir de sua bela poesia: “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá/ mas não pode medir seus encantos/ A ciência não pode calcular quantos cavalos de força/ existem/nos cantos de um sabiá.” A poesia de Tito Leite não pode ser julgada por olhos simplórios. Sua poesia ultrapassa o usual, o trivial, para se fazer sublime e eterna, algo que não pode ser calculado pela ciência exata. Sua poesia produz o desconcerto e a junção entre pares inconciliáveis, sem desdizer a aurora dos tempos atuais. É um trabalho riquíssimo no campo da literatura através de suas imagens impactantes e originais. Os olhos de Tito Leite observam a aurora de cedro das manhãs não contaminadas pelo lodo da exatidão matemática. Sua poesia é paradoxal a partir do silêncio das metáforas que traduzem o que os olhos não veem.
A própria expressão do título do livro é de uma beleza metafórica ímpar. Vejamos o que nos dizem os grandes dicionaristas Jean Chevalier e Alain Gheerbrant sobre as palavras “aurora” e “cedro” no Dicionário de símbolos: a aurora para eles, é “símbolo de todas as possibilidades, signo de todas as promessas” e o cedro, “assim como todas as coníferas, é consequentemente um símbolo da imortalidade”. Dessa forma, unindo todos os dois elementos, temos o encontro das águas incorruptíveis da alma, a essência do ser em toda a sua grandeza e eternidade. O impossível, que ultrapassa a lógica, é o conviver de nossa originalidade e criatividade que surge com os primeiros rompantes do dia. A claridade é luz que ilumina o pensar e o sentir. A poesia de Tito Leite é feita de iluminuras, do tecer das manhãs mais belas a partir do rejuvenescer e ressignificar das metáforas mais ricas. O reino das possibilidades poéticas na sua escrita é um jorro que anima o desejo pela imortalidade das palavras que se eternizam pelos versos plenos e libertos das amarras do que é estrutural e massacrante. Sua poesia é feita de claridades e mistérios que tecem as auroras mais belas dos destinos dos homens que são perfumadas pelos cedros da terra. O que é transcendente se recolhe na imensidão da paz original e se enraíza no terreno a partir do imanente. O imensurável da aurora é um terreno de possibilidades de novas auroras que são queimadas pela árvore da matéria. Alma e corpo se unem num mesmo dedilhar de segredos.
Em Comunicação em prosa moderna, singular livro de Othon M. Garcia, este diz sobre o verbete “metáfora”: “Em síntese – didática -, pode-se definir a metáfora como a figura de significação (tropo) que consiste em dizer que uma coisa (A) é outra (B), em virtude de qualquer semelhança percebida pelo espírito entre um traço característico de A e o atributo predominante, atributo por excelência, de B, feita a exclusão de outros, secundários por não convenientes à caracterização do termo próprio A”. É recorrente na poesia de Tito Leite a utilização das metáforas mais ricas e originais, mapeando uma floresta de símbolos que percorrem os labirintos inusitados da literariedade. Sua poesia é plena na sua convivência implícita com as palavras energizadas pelo poético no seu tom mais alto e dinâmico. Mas suas metáforas não vivem em castelos sublimes de cristal, longe dos sussurros e gritos do real. Suas imagens se inundam na esperança de uma sociedade mais justa.
A revolução dos seus versos produz o retorno da poesia à sua função engajada e libertária a socorrer os pequenos, os proscritos, os malditos e os refugiados, o gesto maior de Jesus Cristo frente aos desvalidos na sua cultura circundante. O hábito do monge se comove com os apelos do mundo que o cerca, produzindo uma poesia diferente, ao unir o sagrado, o literário e o social, como recursos que se enriquecem e se catalisam pelo poder da metáfora e sua força em mover o silêncio das montanhas mais distantes para trazê-lo para perto de nós, a partir de sua escuta de nossos irmãos menores que poderiam naufragar nos novelos do delírio, mas que pela dinamicidade de sua poesia, podem alcançar a “aurora de cedro” das possibilidades e da eternidade: “Não é a lua/ que sangra/ são os pés/dos retirantes”. Fugindo de um lugar distante e inalcançável, sua poesia alcança o acorde dos sentidos mais plenos e mágicos, possibilitando a doação de toda a humanidade. Tito Leite não nos desfamiliariza, ele produz um processo de familiarização com o real através do dom da caridade e da solidariedade: “O que é/ distante nos é semelhante”. A mistura entre o peso do social e a leveza de seu lirismo faz de sua poética algo ambivalente em sua força poética: “Fazendo das dúvidas/ que ardem/ uma begônia”. Tito Leite busca o sentido a todo custo. Como explicar o mundo em que vivemos pelas palavras, fugindo do ostracismo do zero? “Enquanto isso, no gume da estrela/ high-tech,/ há poetas que fogem do dígito 0.” Saindo do nonsense e da ilogicidade, sua poesia também não se espelha numa lógica dual, é feita de luz e sombra, memória e esquecimento, reunindo num só canto de pássaros a verve criativa da poesia verdadeira que flerta com os ditames de uma fala originária, anterior a toda caoticidade. A verdade de Tito Leite é oceânica, não pode ser medida pela razão humana, suas ideias são livres como os cantos dos pássaros, suas verdades não são digitáveis, mas imensuráveis e grandiosas como os oceanos das ideias. Portanto, sua poesia recolhe no seu claustro o silêncio paradoxal das metáforas, unindo o grito dos silenciados à linguagem silenciosa de seus cantos e encantos sagrados.
Alexandra Vieira de Almeida  é escritora e doutora em Literatura Comparada pela UERJ
Aurora de cedro
Tito Leite
7Letras
88 páginas – R$ 38
(Publicado originalmente no site da revista Cult)

domingo, 19 de maio de 2019

Editorial: Colapso do sistema político



sexta-feira, 17 de maio de 2019

Graça Machel:O tesouro de todos os tempos e a educação

                                          
Amanda Massuela


Graça Machel: O tesouro de todos os tesouros é a educação


A ativista e ex-ministra da Educação moçambicana Graça Machel (Foto: Divulgação)

O conhecimento é o principal instrumento para a construção de um mundo mais igual – e caso não seja aplicado para a libertação da consciência humana, servirá para reproduzir sistemas de opressão. A fala é da ativista e ex-ministra da Educação moçambicana Graça Machel, que na manhã desta quinta (16) convocou alunos e professores da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, a engajarem conhecimento, energia e capacidade de organização na luta contra a discriminação racial, a pobreza e a violência de gênero.
“A luta contra o apartheid parecia um monstro, um sonho irrealizável, mas eles se organizaram e viveram a manhã da liberdade. Disseram com convicção: freedom in our lifetime, ou seja, ‘liberdade ainda no nosso tempo de vida’. Pode levar 30 ou 50 anos, não importa, mas [essas mudanças] têm que acontecer ainda no vosso tempo de vida”, afirmou Machel, que aos 25 anos se juntou à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) na luta armada pela independência do país.
Aos 73, é uma das mais importantes ativistas pelos direitos humanos do continente africano. Ex-professora, foi ministra da Educação do governo moçambicano entre 1965 e 1979, período no qual elevou para mais de 80% a taxa de crianças em idade escolar matriculadas em instituições de ensino.
Sua experiência como educadora e defensora dos direitos das crianças levou o então secretário-geral da ONU Boutros Boutros-Ghali a convidá-la, em 1993, para liderar um estudo inovador sobre o impacto de conflitos armados na infância – documento mais tarde conhecido como “relatório Machel”. Hoje, por meio da Graça Machel Trust, instituição que criou em Joanesburgo em 2010, lidera ações pela saúde, nutrição e educação infantil e pela autonomia econômica das mulheres.
“Sou parte de uma geração em África que lutou contra o colonialismo e o apartheid. Talvez hoje os vossos alvos pareçam difusos, não tão claros como eram os nossos, mas primeiro é preciso entender que, como seres humanos, não há absolutamente nada que nos distingue”, disse ela, dirigindo-se principalmente ao corpo discente da universidade, formado em sua maioria por alunas e alunos que se autodeclaram negros (90% deles, segundo a faculdade). 
Ovacionada pela plateia que lotou o auditório, pediu que a juventude não apenas ocupe “instituições estabelecidas para oprimir”, mas que também promova transformações. “Esse processo pode ser lento, mas tem que ser o vosso alvo principal. Vocês têm tudo para tecer esse espaço coletivo de iguais”, disse. “Leiam livros, mas também libertem outros.”
Machel também mencionou a necessidade de reformulação dos sistemas de ensino, que “continuam a formar e a conduzir pessoas de acordo com as necessidades do mercado do século 20″. “Aqui e lá [Moçambique e África do Sul] temos milhares de jovens que saem das instituições de ensino, mas que estão totalmente mal equipados para o trabalho. Portanto a tarefa está aí: diminuir o gap entre educação e mercado de trabalho”. 
Nascida em uma família de seis filhos na vila moçambicana de Manjacaze, ela mesma afirma ter tido a vida transformada pelas oportunidades de estudo proporcionadas pela mãe e pelos irmãos mais velhos: “A educação é o tesouro dos tesouros”, disse, lembrando-se de outras mulheres do seu vilarejo que não tiveram a mesma chance, e já muito jovens se casaram e tiveram filhos. “Sei que se o meu destino tivesse sido o mesmo eu também não existiria mais, assim como elas”.
Machel se casou em 1976, aos 31 anos, com o primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel, com quem teve dois filhos. Tornou-se viúva dez anos depois, e em 1998 casou-se com o primeiro presidente negro da África do Sul, Nelson Mandela.
Em São Paulo para participar da conferência internacional Fronteiras do Pensamento, a ativista impôs como condição que sua passagem pela cidade incluísse uma visita à Zumbi dos Palmares, instituição comunitária de ensino superior que tem como foco a cultura, a história e os valores cultura negra – a primeira nesses moldes na América Latina.
Não foi a sua primeira vez no campus, que têm até uma placa em sua homenagem. Em 2014, recebeu ali o Troféu Raça Negra e participou da festa literária FlinkSampa. “O negro e o branco nascem iguais, homem e mulher nascem iguais, e quando chega o fim da vida morrem iguais. O mundo que nossa geração quer deixar para a de vocês é um mundo de iguais, e não de integrados.”

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 12 de maio de 2019

Editorial: Lipset e um chocolate amargo para a democracia brasileira.

 
 
 
 
Há algum tempo, por dever de oficio, identificação  e convicção, tenho lido bastante sobre os regimes democráticos. Observo que há muito mais convergências do que divergências entre os estudiosos do assunto, sobretudo quando se está em discussão a estabilidade ou a ruína desse sistema de governo. Entre as variáveis apontadas, que poderiam assegurar sua estabilidade, naturalmente, a chamada democracia substantiva ou econômica, relacionada à distribuição de renda numa determinada sociedade; o arcabouço e a saúde das instituições que dão suporte ao regime democrático, que proporcionam o equilíbrio e a distribuição do poder, evitando, assim, a tirania; o padrão de assédio ou comprometimento dos direitos e garantias individuais e coletivas, regidos pela Constituição; eleições regulares e limpas (sem o uso de fake news, de preferência com a participação de atores competitivos, sem o uso de artimanhas jurídicas para afastá-los do pleito); um sistema político menos corrupto e, de fato, identificado com os anseios da média da população. O que temos, hoje, na realidade, quando se raciocina em termos de sistema político brasileiro, são lobbistas, financiados e identificados com interesses corporativos escusos, de corte nada republicano; por fim - e não menos importante - as chamadas oportunidades educacionais, elencada pelo cientista político Martin Lipset, uma tese com a qual guardo muita afinidade. Naturalmente que o nosso Lipset é aquele da infância nos bairros pobres de Nova York, da vida de operário, das privações da juventude e do flerte com o marxismo.  
 
Reparem que todas as variáveis apontadas acima divergem profundamente da lógica capitalista atual, traduzida, de alguma forma, nas nefastas políticas ultraliberais, cuja adoção apenas seria factível num regime de força, portanto autoritário, daí essa onda conservadora que varre o mundo, com reflexos aqui no Brasil. Jamais as propostas dessa agenda indecente poderiam ser discutidas em praça pública. Mas, voltemos a Lipset e as suas oportunidades educacionais. Até o ano de 2013, quando setores da elite econômica e política - com o apoio da classe média porra-louca e da banca internacional - se uniram para as escaramuças que solapariam a ainda frágil experiência de democracia país - havíamos conquistados avanços significativos nesse quesito, promovendo o maior programa de ingresso de jovens negros empobrecidos ao sistema universitário brasileiro.
 
Além de o fato representar, em si, um amplo programa de oportunidades educacionais, enfrentou a nódoa do racismo estrutural da sociedade brasileira, sendo o único indicador em que avançamos em ralação à raça negra nestes mais de  cinco séculos de existência de um simulacro de país chamado Brasil. Daí se entender, igualmente, a ira de setores conservadores de nossa elite escravagista desde sempre, que jogaram no tapetão para impedir os avanços e conquistas obtidas pelo andar de baixo da pirâmide social. Durante esse período de abertura e oportunidades educacionais, ocorreu uma verdadeira revolução no país, uma vez que 83% dos pais desses jovens não tiveram acesso ao ensino superior, conforme levantamento realizado por uma instituição de pesquisa vinculada ao próprio Ministério da Educação. Há, na realidade, muitos golpes de misericórdia na fragilizada democracia brasileira, mas, certamente, os recentes cortes em bolsas de mestrado e doutorado, assim como nas verbas de custeio das universidades públicas é um desses chocolates amargos que conduzem, paulatinamente, ao esfacelamento de nossas instituições democráticas.

Nem entro aqui no mérito da autonomia universitária, assim como na questão da liberdade de cátedra - princípios constitucionais que credenciam as IFES como redutos naturais de contraponto às investidas autoritárias - mas, igualmente, ao fato de, por força das políticas públicas de caráter inclusivo, esses espaços acadêmicos se tornarem espaços da diversidade, da pluralidade de opiniões, não-segregacionistas. Aparentemente, pode-se observar alguns sintomas de esquizofrenia na condução de um governo que deseja colocar o país no seleto clube da OCDE e, ao mesmo tempo, reduz verbas de custeio, corta bolsas de pesquisa de mestrado e doutorado, reduzindo nossa participação nos rankings internacionais de excelência de produção acadêmica, assim como na formação universitária de sua população. Um setor estratégico que, como observou o professor Wilson Gomes, nem os militares de 1964 ousaram mexer, apesar das idiossincrasias com os professores.    

Bourdieu e a educação

                                          
Ana Paula Hey e Afrânio Mendes Catani
                                                                                

Bourdieu e a educação      


Tratando todos os educandos como iguais, o sistema escolar é levado a dar sua sanção à desigualdades iniciais de cultura, diz Bourdieu (Reprodução)

A partir dos anos 1960, e durante quase 45 anos, Pierre Bourdieu produziu um conjunto de análises no âmbito da sociologia da educação e da cultura que influenciou decisivamente algumas gerações de intelectuais, obtendo o reconhecimento de pesquisadores, estudantes e ativistas que atuam em várias outras esferas da sociedade. Em “Uma sociologia da produção do mundo cultural e escolar”, introdução a Escritos de educação (1998), que reúne 12 textos do sociólogo francês, Maria A. Nogueira e Afrânio Catani escrevem o seguinte: “Ao mesmo tempo em que colocava novos questionamentos, sua obra fornecia respostas originais, renovando o pensamento sociológico sobre as funções e o funcionamento social dos sistemas de ensino nas sociedades contemporâneas, e sobre as relações que mantêm os diferentes grupos sociais com a escola e com o saber. Conceitos e categorias analíticas por ele construídos constituem hoje moeda corrente da pesquisa educacional, impregnando boa parte das análises brasileiras sobre as condições de produção e de distribuição dos bens culturais e simbólicos, entre os quais se incluem os produtos escolares”.
Bourdieu, em seus escritos, procurou questionar, nas sociedades de classes, temática que persegue muitos intelectuais: a compreensão de como e por que pequenos grupos de indivíduos conseguem se apoderar dos meios de dominação, permitindo nomear e representar a realidade, construindo categorias, classificações e visões de mundo às quais todos os outros são obrigados a se referir. Compreender o mundo, para ele, converte-se em poderoso instrumento de libertação – é esse procedimento que ele realiza, dentre outros domínios, no educacional.
A cultura vem a ser um sistema de significações hierarquizadas, tornando-se um móvel de lutas entre grupos sociais cuja finalidade é a de manter distanciamentos distintivos entre classes sociais. A dominação cultural se expressa na fórmula segundo a qual a cada posição na hierarquia social corresponde uma cultura específica (elitista, média, de massa), caracterizadas respectivamente pela distinção, pela pretensão e pela privação. Definida por gostos e formas de apreciação estética, a cultura é central no processo de dominação; é a imposição da cultura dominante como sendo “a cultura” que faz com que as classes dominadas atribuam sua situação subalterna à sua suposta deficiência cultural, e não à imposição pura e simples.
O sistema de ensino desempenha papel de realce na reprodução dessa relação de dominação cultural, funcionando ainda, para Bento Prado Jr., “como chancela de diferenças culturais e linguísticas já dadas, antes da escolarização, no quadro da socialização primeira, que é necessariamente diferencial, segundo a inscrição das famílias nas diferentes classes sociais. (…) O código linguístico da burguesia (com seus cacoetes, idiotismos, sua particularidade) será encontrado, pelos futuros notáveis, nas salas de aula, como a linguagem da razão, da cultura, numa palavra, como elemento ou horizonte da Verdade. O particular é arbitrariamente erigido em universal e o ‘capital cultural’ adquirido na esfera doméstica, pelos filhos da burguesia, lhes assegura um privilégio considerável no destino escolar e profissional. No Destino, enfim” (“A educação depois de 1968”, em Os descaminhos da educação, ed. Brasiliense).
A escola como reprodutora da dominação
A função do sistema de ensino é servir de instrumento de legitimação das desigualdades sociais. Longe de ser libertadora, a escola é conservadora e mantém a dominação dos dominantes sobre as classes populares, sendo representada como um instrumento de reforço das desigualdades e como reprodutora cultural, pois há o acesso desigual à cultura segundo a origem de classe.
O filósofo idealista Alain (Émile Chartier, 1868-1951) foi professor durante décadas na Khâgne (classes preparatórias às Escolas Normais nas áreas de letras e filosofia, onde são recrutados os intelectuais de maior prestígio no campo intelectual francês) do Lycée Henri IV (Paris) tendo, dentre centenas de outros alunos, Raymond Aron, Simone Weill e Georges Canguilhem. Em 1932, Alain escrevia em Propos sur l´éducation – Pédagogie enfantine, de maneira apologética, que “se pode perfeitamente dizer que não há pensamento a não ser na escola”.
Bourdieu construirá sua trajetória analítica no domínio da sociologia da educação procurando opor-se a um idealismo como o preconizado por Alain, em que a reflexão é destituída de qualquer fundamento histórico, como na velha tradição francesa. Em artigo de 1966, “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”, rompe com as explicações fundadas em aptidões naturais e individuais e critica o mito do “dom”, desvendando as condições sociais e culturais que permitiriam o desenvolvimento desse mito.
Desmonta, também, os mecanismos através dos quais o sistema de ensino transforma as diferenças iniciais – resultado da transmissão familiar da herança cultural – em desigualdades de destino escolar. Explora a relação com o saber, em detrimento do saber em si mesmo, mostrando como os estudantes provenientes de famílias desprovidas de capital cultural apresentarão uma relação com as obras da cultura veiculadas pela escola que tende a ser interessada, laboriosa, tensa, esforçada, enquanto para os alunos originários de meios culturalmente privilegiados essa relação está marcada pelo diletantismo, desenvoltura, elegância, facilidade verbal “natural”. Ao avaliar o desempenho dos alunos, a escola leva em conta, conscientemente ou não, esse modo de aquisição e uso do saber.
Segundo Bourdieu, “para que sejam desfavorecidos os mais favorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais. Tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura”.
Bourdieu constrói seu esquema analítico relativo ao sistema escolar e às relações não explícitas que o ancoram em uma longa trajetória que envolve análises empíricas objetivas, centradas em estatísticas da situação escolar francesa. Já em 1964, em Les étudiants et leurs études (Os estudantes e seus estudos) e Les héritiers. Les étudiants et la culture (Os herdeiros. Os estudantes e a cultura), escritos com Jean-Claude Passeron, examina como os estudantes se relacionam com a estrutura do sistema escolar e como são nele representados, e constata a desigual representação das diferentes classes sociais no sistema superior. Investiga a cultura “legítima”, aquela das classes privilegiadas que é validada nos exames escolares e nos diplomas outorgados, e o ensino, aquele que autentica um corpo de conhecimentos, de saber-fazer e, sobretudo, de saber dizer, que constitui o patrimônio das classes cultivadas.
O fato de desvendar as desigualdades do ensino francês, tanto como sistema como em seu interior, significa uma grande mudança no pressuposto já canonizado – principalmente com Durkheim, que personifica o ideal da Terceira República (1870-1940), conhecida como “A República dos Professores” –, em que a escola deveria fornecer a educação para todos os indivíduos, proporcionando-lhes instrumentos que pudessem garantir sua liberdade, mas, também, sua ascensão social.
Ao afirmar que o sistema escolar institui fronteiras sociais análogas àquelas que separavam a grande nobreza da pequena nobreza, e esta dos simples plebeus, ao instaurar uma ruptura entre os alunos das grandes escolas e os das faculdades (ao analisar o campo universitário francês e o papel das Grandes Écoles), Bourdieu desvela a crueza da desigualdade social e, ao mesmo tempo, como ela é simulada no sistema escolar e entranhada nas estruturas cognitivas dos participantes desse universo – professores, alunos, dirigentes.
Conhecimento e poder
Assim, a instituição escolar é vista como desempenhando uma grande função de produção de diferenças cognitivas, uma vez que ajuda a produzir esquemas de apreciação, percepção e ação do mundo social por via da internalização dos sistemas classificatórios dominantes no mundo social global.
Suas análises da educação, então, passam a pertencer ao campo da sociologia do conhecimento e da sociologia do poder, pois como ele mesmo afirma, longe de ser uma ciência aplicada e adequada somente aos pedagogos, ela se situa na base de uma antropologia geral do poder e da legitimidade, porquanto se detém “nos mecanismos responsáveis pela reprodução das estruturas sociais e pela reprodução das estruturas mentais”.
Para Loïc Wacquant, Bourdieu oferece uma anatomia da produção do novo capital [o cultural] e uma análise dos efeitos sociais de sua circulação nos vários campos envolvidos no trabalho de dominação. Em La noblesse d´État (A nobreza do Estado) comprova e reforça suas teses iniciais sobre o sistema de ensino e a “relação de colisão e colusão, de autonomia e cumplicidade, de distância e de dependência entre poder material e poder simbólico”. Sua sociologia da educação é, antes de tudo, uma “antropologia generativa dos poderes focada na contribuição especial que as formas simbólicas dão à respectiva operação, conversão e naturalização. (…) O interesse de Bourdieu pela escola deriva do papel que ele lhe atribui como garantidor da ordem social contemporânea via magia do Estado que consagra as divisões sociais, inscrevendo-as simultaneamente na objetividade das distribuições materiais e na subjetividade das classificações cognitivas”.
A apropriação do autor no campo educacional brasileiro ocorre de forma mais incisiva no uso de suas noções mais evidentes e, não raramente, desvinculadas de sua epistemologia. É por isso que podemos encontrar os “teóricos” de Bourdieu, os “ativistas” e, de forma menos usual, aqueles que se apropriam de sua “prática epistemológica”. Constata-se a necessidade de re-conhecer o autor, buscando o entendimento da teoria sociológica que embasa suas noções mais conhecidas e também mais banalizadas, assim como o sentido da percepção do mundo social que tal teoria informa. Bourdieu nos ensina que toda prática humana encontra-se imersa em uma ordem social, sobretudo essa categoria específica de práticas inerentes ao mundo acadêmico. Fazer uma sociologia da educação bourdieusiana, analisando o papel do sistema de ensino na consagração das divisões sociais e consolidando um novo modo de dominação, torna-se um desafio até para os acadêmicos mais ousados.

ANA PAULA HEY é professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da UMESP e autora do livro Esboço de uma sociologia do campo acadêmico: A educação superior no Brasil (EDUFSCar/FAPESP)
AFRÂNIO MENDES CATANI é professor na Faculdade de Educação da USP e pesquisador do CNPq. Organizou, com Maria Alice Nogueira, Escritos de educação (Vozes), reunindo ensaios de Pierre Bourdieu.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2019/05/11/15576265845cd77ed839d0b_1557626584_3x2_th.jpg

terça-feira, 7 de maio de 2019

O papel dos juízes no grande encarceramento: um estudo sobre sentenças de tráfico

                                      
                                                                                                                                                                                                                                                                                           
Além da lei
                                                                                

O papel dos juízes no grande encarceramento: um estudo sobre sentenças de tráfico
Pesquisa conduzida por Marcelo Semer sepulta definitivamente a ideia de leniência por parte dos juízes (Arte Revista CULT)

A política criminal brasileira para as drogas conseguiu a proeza de reunir todos os defeitos: não ajudou a reduzir o consumo e manteve a distribuição em pleno crescimento; não cuidou efetivamente da saúde pública e produziu um desgaste sem precedentes nas forças policiais, além de ter impulsionado de forma contundente o encarceramento. Enquanto o homicídio mal representa 10% dos presos, quase um terço deles estão atrás das grades em razão do tráfico.
Embora o momento político não enseje qualquer fragmento de esperança, dos idealistas aos pragmáticos, a convicção de que algo não vai bem com a política de drogas, é razoavelmente consensual. Mas sempre há aqueles que se aproveitam, política, econômica ou criminosamente mesmo, daquilo que Jeffrey Reiman chamou de Derrota de Pirro: um sistema que se valoriza, sobretudo, pelos seus fracassos.
É o medo do crime que vitamina os investimentos em segurança, tanto os públicos quanto os privados. Do lado de dentro das celas, o encarceramento é pré-requisito para o empoderamento das facções criminosas; para as opções externas, comunidades terapêuticas se fortalecem à custa das internações compulsórias.
E os juízes, que papel representam no teatro de operações desta guerra às drogas?
O vertiginoso crescimento dos presos após a Lei Antidrogas de 2006 dá uma pista importante.
Embora a lei tenha excluído a prisão do mero usuário, ao mesmo tempo em que distinguiu punições entre grandes e pequenos traficantes, até esses tímidos pontos acabaram perdendo relevância na vida real.
A uma, porque a polícia continuou se concentrando nas prisões em flagrante, sem investigações, quando a chance de atingir executivos do crime é praticamente inexistente; a duas, porque sem critérios razoáveis, usuários são presos como traficantes. Ademais, os juízes resistiram, mesmo após decisões reiteradas do STF, a aplicar o privilégio, a fixar regime aberto ou substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos aos microtraficantes primários. Ao final, são justamente esses pequenos que lotam os cárceres, quando muito peões facilmente substituíveis, sem qualquer abalo ao comércio.
Os dados que apresento neste artigo foram fruto da pesquisa de meu doutoramento em Criminologia, recentemente defendido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que envolveu a análise de 800 sentenças de tráfico de drogas em oito Estado do país (SP, RS, PR, MG, BA, MA, GO e PA), entre o segundo semestre de 2013 e o primeiro de 2015. É possível entender um pouco melhor o papel dos juízes neste processo e aquilatar a responsabilidade que têm pela formação de um grande encarceramento – aliás, das maiores populações prisionais do mundo, a brasileira é a única que continua em pleno crescimento.
O primeiro dado situa quem são os “traficantes”, os réus destes processos: pelo menos dois terços deles são pobres (número que só não é maior pela falta de dados em muitas sentenças); 80% são primários. Em pouco mais de 70% dos processos, há apenas um réu envolvido (a média geral é de 1,52 acusados por processo, ou seja, nem chega a dois). Menos de 10% das pessoas presas foram encontradas com armas de fogo. As apreensões de dinheiro, quando existem, são em regra pouco expressivas: a média não passa de R$ 266,00, sendo que 67% das apreensões se dá com menos de 10% do salário mínimo.
Como se prende é outro dado significativo: cerca de 89% dos processos se iniciam com a prisão em flagrante – em 70% deles, pelos policiais militares. Pouco mais de 10% dos casos se iniciaram com investigações prévias, que levaram, por exemplo, a buscas e apreensões domiciliares ou interceptações telefônicas. O forte mesmo são as ações de patrulhamento, nos quais a seletividade das abordagens é historicamente conhecida.
Concentrar a prisão nas ruas significa deixar de lado a droga de grandes transações ou mesmo as festas privadas. O pobre é, efetivamente, o grande alvo da abordagem policial – e, embora, a pesquisa em si não tenha tido recorte racial, em face da ausência de informações nas sentenças, sabe-se, por outros levantamentos, que o assédio é muito maior sobre a população jovem e negra.
Por fim, o que se apreende: 97% das drogas entre as três mais recorrentes são maconha, cocaína em pó e na forma de crack. Os volumes são díspares, mas prevalecem as pequenas apreensões: 56% a 75% abaixo de 100g (maconha) ou 50g (cocaína e crack); medianas respectivamente de 66,1g de maconha, 30,66g de cocaína e 13,36g de crack. Mesmo nas grandes apreensões (2,5% dos casos acima de 10kg), as prisões são, em regra, das pessoas de menor expressão, como o motorista que transporta a droga, ou o cuidador do barraco onde ela é alojada. Quase não há prisão por venda, remessa ou importação da droga. As condutas incriminadas são as mais próximas à posse e estocagem: ter consigo e guardar.
Apesar deste quadro relativamente minimalista, os resultados das sentenças impressionam: média de 78% de condenação; pena-base fixada no mínimo apenas em 52% dos casos; pena definitiva três vezes superior a menor pena possível (1 ano e 8 meses de reclusão). Apesar da baixa reincidência e da pouca denúncia por associação, o redutor do tráfico é empregado apenas em 44% dos casos e no seu patamar maior (2/3 da pena), só em 20% dos processos. Não obstante o STF tenha expressamente permitido aos primários a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, apenas 16% a fixam e o regime mais comumente empregado ainda é o fechado (68%).
Para a análise qualitativa, resgatei de Stanley Cohen, o conceito de pânico moral: o alarde, a desproporção, o perigo iminente que ameaça a sociedade, a estereotipação do inimigo público (folk devil), a necessidade imperiosa de providências que possam minorar os efeitos maléficos, o enrijecimento das agências de controle e, ainda assim, a amplificação do desvio.
Todos os elementos são encontradiços na pesquisa, a começar pelo julgamento com base em crenças generalizadas, a caracterização do traficante como verdadeiro folk devil, que a nada faz jus, e consequente falta de individualização. Em muitos casos se conclui que os juízes estão julgando não os réus, mas o próprio crime de tráfico. Seus fundamentos são assim indicativos: “O narcotráfico é o flagelo da humanidade. Semeia terror e morticínio”; “O tráfico é uma das condutas mais danosas que existe no seio da sociedade moderna”; “Nefastas são as suas consequências, eis que promove a decadência dos valores”; “Inexiste delito mais odioso”; “Coloca em risco a própria existência sadia da humanidade”.
Entre os resultados surpreendentes, uma enorme diferença regional. Estados de maior porte, como SP, MG e RS aplicam em menor escala os parâmetros do STF e, portanto, as penas são mais severas do que as aplicadas por Estados como Maranhão e Bahia, que seguem o STF com mais frequência.
Esta inusitada diferenciação regional, que seria compreensível em um país de legislação estadualizada (como os EUA), é incompatível com nossos instrumentos de federalização: uma legislação que é de competência exclusiva da União e tribunais superiores com a incumbência de unificar a interpretação destas normas. E isso só tende a piorar com a manutenção da “prisão em segundo grau”, pois autorizar o início da execução pelo julgamento local, apenas consolida a regionalização e praticamente inutiliza a jurisprudência dos tribunais superiores – com decisões mais garantistas, apenas para inglês ver.
Nessa distinção regional, deve-se observar, São Paulo é uma espécie de Texas brasileiro. Seu apenamento é bem mais severo (muito mais regime fechado e quase nada de restritiva de direitos), ao mesmo tempo em que os índices que possam apontar para a gravidade dos fatos são os menores.
Pela pesquisa, o Estado lidera o índice de apreensões de dinheiro de baixo valor (97% abaixo de um salário mínimo); apresenta média de apenas 1,31 réus por processo (o menor índice de coautoria entre os Estados pesquisados); 7% de investigações (o segundo menos investigativo); menos de 5% de armas apreendidas (o menor índice entre os oito Estados), 8% de apreensão de balança de precisão (também o nível mais baixo). São Paulo lidera, ainda, o maior índice de pequenas apreensões de crack (82% de apreensões inferiores a 50g) e é o segundo Estado em que nos processos mais se apreende quantias pequenas de maconha (67% de apreensões inferiores a 100g).
Por outro lado, é o líder em condenações (85% para uma média de 78%) e o que menos absolve (9% para uma média de 15%). É o Estado com penas em regime fechado em maior proporção, de longe (89%, de uma média de 68%) e o que menos aplica as penas restritivas (5%, de uma média de 16%), sendo que 34% das rejeições de aplicação não se fazem por nenhum impeditivo legal. Não é preciso muito para compreender a força estatística da maior severidade em São Paulo, onde já se localizam cerca de um terço dos presos.
No que diz respeito à prova, ela é quase toda construída sobre as palavras dos policiais. Tidos como portadoras de fé pública ou legitimidade sempre presumida (numa confusão com o conceito que é próprio ao direito administrativo), o que quer que digam tem uma “especial eficácia probatória”. Tudo que é contrário a seus relatos, está “isolado” nos autos.
Enfim, os policiais são críveis, quando coerentes, são tolerados quando contraditórios e são auxiliados quando desmemoriados; não resta mais do que o mero aval policial para desencadear a persecução e fixar bases para a condenação. Do outro lado, o desprezo absoluto pela versão e testemunhos de defesa (repelidas em abstrato pela parcialidade) além de mecanismos que privilegiam a inversão do ônus probatório –como a necessidade do próprio réu de fazer a prova diabólica de que a droga apreendida consigo teria exclusivamente a finalidade de consumo.
Os juízes funcionam sob a órbita dos estados de negação também estudados por Stanley Cohen: sabem e ao mesmo tempo não sabem dos vícios que são imputados aos policiais.
Os exageros do pânico moral, que vitaminam prisões e condenações com fundamentações genéricas se casam com os silêncios acerca das atrocidades. Pouco importa que os policiais brasileiros sejam os mais violentos contra a população civil no mundo: em suas mãos, e só nelas, os juízes depositam a confiança para julgar os crimes que reputam de maior gravidade.
A pesquisa sepulta definitivamente a ideia de leniência por parte dos juízes. Para o bem ou para o mal, é importante destacar que o quociente de encarceramento se dá em razão deles mesmos, inclusive e principalmente quando há alternativas menos draconianas na lei.
Isto pode ser um começo de explicação para o fato de que o crescimento prisional não se distinguiu tanto entre os diversos governos desde os anos 1990, quando começa a crescer vertiginosamente. O que significa dizer que a alteração política não define todos os passos no horizonte do encarceramento – embora, é óbvio, sempre possa atrapalhar bastante.
Há um ator importante, cujo estudo vinha sendo negligenciado pelos modelos que se debruçaram para entender o grande encarceramento: o juiz. É preciso prestar mais atenção nele para compreender que a política de drogas não se exaure na produção de uma lei.
MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, doutor em Criminologia pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 23 de abril de 2019

Ralph Ellison: a causa e o efeito

                                         

    Luiz Maurício Azevedo 
                                                                                                                                                                 

Ralph Ellison: a causa e o efeito

FacebookTwitterEmailPinterestAddThisO crítico literário Ralph Ellison, em 1960 (Foto: Agência de Informações dos Estados Unidos)

Em 2019 completam-se 25 anos da morte do escritor afroamericano Ralph Ellison. Nascido em 1919, em Oklahoma, Ellison tornou-se notório por escrever aquela que é, sem dúvida, a obra obrigatória de toda a tradição literária negra nos Estados Unidos: Homem invisível. Publicado em 1952, o livro é basicamente uma carta-explicação sobre os motivos pelos quais um homem decide optar por viver dentro do subsolo da cidade de Nova York. O protagonista salta de decepção em decepção, fracassando em toda socialização que empreende. A experiência de ser negro nos Estados Unidos é como uma trajetória trágica, cheia de mal entendidos, frustrações, injustiças e imoralidades.
No Brasil, há duas traduções do livro disponíveis: uma datada de 1990, produção da editora Marco Zero, editada na esteira do centenário da abolição da escravatura, ocorrido no ano anterior. A outra edição é de 2013 e foi produzida pela José Olympio. Àquela altura, Homem invisível só podia ser encontrada em sebos. Em 2012, exemplares da obra eram comercializados por até duzentos reais cada, em sites como Estante Virtual e Mercado Livre. O hiato entre a primeira e a segunda tradução tem muitas explicações editoriais: a aquisição dos direitos de publicação de uma obra é um processo complexo, que envolve longa negociação, poder aquisitivo e elementos culturais. E isso sem dúvida pesou na sentença de afastar o leitor brasileiro desse livro seminal. Contudo, é possível que a conjuntura social brasileira tenha tido mais peso nessas decisões do que as demandas editoriais.
Explico: Homem invisível é um ataque frontal a dois tipos de ilusão. A primeira é de que pessoas negras podem se comportar como pessoas brancas e obter do mundo as mesmas reações que colheriam se não fossem negras. A segunda é a de que um projeto de coletividade – seja ele político, seja ele religioso – pode oferecer resposta para as angústias profundas de um indivíduo. Ellison se esforçou para demonstrar em sua obra que fatores socioeconômicos turvavam a visão sobre um ser humano, mas que não podiam determiná-lo. Para grande parte dos leitores estadunidenses, o livro é uma potente bandeira liberal sobre os riscos do pensamento de manada, das associações e das entidades que vendem a ideia de que os trabalhadores desejam algo diferente de seus chefes.
Essa concepção tornou Homem invisível de certa forma inútil para o Brasil, país onde o capitalismo hiberna, há décadas, em um limbo que coaduna atraso e identidade racial esquizofrênica. Por aqui, o livro encontra dificuldades em sua recepção porque seus principais temas são conduzidos por nós de forma bastante negativa, e a questão racial é um pesadelo que negamos como país. Por outro lado, sempre foi interessante para grande parte de nossa crítica a descrição do outro como sendo uma vítima passiva, e nossa literatura – eurodescendente – jamais pode dar conta do problema racial.
Homem invisível parece ser o último suspiro essencialista de um autor profundamente existencialista. A complexidade de sua obra não deixa espaço para o proselitismo tão palatável ao ambiente das elites nacionais, sempre dispostas a ouvir a canção dos outros quando os outros se dispõem a louvá-los, no espetáculo perdido da vida humana.
Nos Estados Unidos, membros do Partido Comunista rejeitaram a obra. Acreditavam estar frente a um romance que desenhava com traços agressivos e pejorativos uma comunidade que já estava suficientemente massacrada pela má-fama. No campo conservador, a reação foi bastante diferente. Houve uma série de manifestações que misturaram racismo e admiração. Orville Prescott, célebre crítico do The New York Times, chamou o livro de “impressionante realização; o melhor talento literário que já vi em um negro”. Fredrik Spotchen, da extinta revista Millestone, disse ser Ralph Ellison “uma espécie de James Joyce do Harlem”.
Entre os negros a obra atingiu grande notoriedade ao longo das décadas. Barack Obama atribui um grande peso em seu processo de formação. A cultura pop também presta constantes tributos à obra: na série Luke Cage, produzida pela Netflix, o protagonista tem Homem invisível como livro de cabeceira, em meio à sua improvável rotina de super-herói.  Em Todo mundo odeia o Chris, série cômica, escrita por Chris Rock, há uma exploração bem humorada da centralidade da obra no sistema escolar americano e o modo como certos indivíduos negros lidam com a herança cultural do seu próprio grupo.
O autor, contudo, não goza de igual destaque. Seu temperamento difícil e a inclinação pelo criticismo mais ácido fizeram dele uma figura complexa, com poucos acessos sócio-midiáticos. Não há camisetas com seu rosto; não há canecas com suas frases; não há celebração pública de sua figura histórica. Ellison tornou-se uma espécie de raiz da qual a própria invisibilidade é uma mera consequência lógica.
Homem invisível foi publicado em um momento em que o Modernismo estava em franca crise nos Estados Unidos. A forma-romance parecia encontrar uma limitação. Os elementos centrais da vida cultural negra por aquelas bandas (a saber: o jazz, a oralidade, a religiosidade e o mito da ascensão social) foram usados pelo autor para refazer a indagação-base de toda investigação filosófica séria: “quem sou?” É por isso que a obra começa com um significativo: “sou um homem invisível”. Ser capaz de determinar aquilo que se é, longe de ser uma limitação, é uma libertação. E, especificamente para indivíduos negros, significa desfazer as minas tóxicas que foram ardilosamente colocadas pela ideologia racial.
Luiz Maurício Azevedo é doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP; autor de A toupeira invisível: marxismo negro e cultura antimarxista em Ralph Ellison (Editora Figura de Linguagem)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: Economia do "bico"


Resultado de imagem para gig economy

 

Na manhã da última Quarta-Feira, véspera do feriado da Semana Santa, havia um bom motivo para voltarmos à Universidade Federal de Pernambuco. Mais precisamente ao 13º andar do CFCH - onde realizamos parte de nossos estudos naquela Instituição - na Pós-Graduação de Antropologia, ocorreria a palestra do professor Mabuse, que abordaria um tema dos mais relevantes na atual conjuntura política que atravessamos, seja no Brasil, seja no mundo: a absoluta ausência de normas ou procedimentos éticos na construção de algoritmos. De acordo com Mabuse, a lógica que orienta a criação desses algoritmos segue um viés unicamente utilitarista, embora envolva mecanismos de controle e vigilância sobre indivíduos e coletividades, cujas implicações deixariam um filósofo como Michel Foucault - aquele do bio poder - de queixo caído.
Hoje, com o advento dos aparelhos de celulares android, é possível acompanhar todos os passos dos indivíduos, mesmo quando o aparelho está desligado. Sites de busca como o Google - nada sigiloso - por exemplo, ajudaram bastante o trabalho da polícia para se chegar aos assassinos da militante Marielle Franco. Espanta ao professor o fato de a juventude não demonstrar qualquer tipo de incômodo ou desconforto com este fato. Um bom sinal de wi-fi, já comentamos isso por aqui, figura entre os primeiríssimos critérios para se definir por algum tipo de hospedagem. Talvez até mais determinante do que uma boa cama e uma boa companhia. 
Algoritmo, na realidade, é um termo do campo da informática, que pode ser definido como uma sequência finita de ações executáveis que visam obter uma solução para um determinado tipo de problema. Em tese, por exemplo, podem ser utilizado para facilitar a vida dos velhinhos em filas intermináveis nos supermercados; ajudar as grávidas na escolha do enxoval das crianças; fazer intervenções em circuitos expositivos, consoantes as reações do público visitante de museus ou galerias de arte; coisas do tipo. A questão é quando as grandes plataformas se utilizam dos dados dos indivíduos para objetivos não necessariamente assim tão republicanos, invadindo sua privacidade, fornecendo esses dados para usos escusos, conforme já ocorreu, por exemplo, nas últimas eleições americanas, quando milhões de dados foram sutilmente utilizados por uma determinada empresa de marketing político, que trabalhou magistralmente as emoções e reações dos eleitores em favor de um determinado candidato.
A última eleição brasileira foi a eleição das fake news, ou seja, mentiras sistematicamente disseminadas através de robôs, utilizando-se das redes sociais, que acabaram tornando-se verdades, através da “construção” da opinião pública. Sou de uma época em que os bons debates ainda ajudavam a “formar” a opinião pública, num ambiente aonde ainda se respirava democracia. Hoje, no entanto, as pessoas são submetidas a linchamentos morais, sem direito de defesa, sem ser ouvidas, sem provas, sem que seja observado o princípio da presunção de inocência ou do contraditório, baseadas no "achismo". Desde que um certo magistrado da Suprema Corte resolveu orientar suas decisões pelo domínio do fato para condenar agentes públicos,  o trem constitucional saiu dos trilhos, desencadeando o caminho pantanoso da permissividade ou uma espécie de "relativismo" jurídico, já pedindo perdão aos juristas por alguma impropriedade na definição do conceito.   

No bojo desse debate, invoca-se a postura de instituições como o Estado, hoje absolutamente empenhado em ampliar os mecanismos de controle e as tecnologias de vigilância sobre os indivíduos, como o uso cada vez mais frequente de drones, GPS e as famosas câmaras de reconhecimento facial, numa tradução bastante aproximado do Grande Irmão de George Orwell. O Ministério da Verdade, então, esse já está completamente escancarado, com a divulgação de mentiras e a ocultação de dados e informações que, de fato, poderiam ser úteis aos cidadãos. As crescentes restrições à transparência de informações - um retrocesso - se encaixam aqui. Que interesse teria o cidadão comum em conhecer a caixa-preta da Previdência Social? 
Um fator ainda relacionado à conformação do aparelho de Estado na atual conjuntura política, diz respeito a uma previsão do filósofo esloveno Slavoj Zizek que, ainda no calor das passeatas das Jornadas de Junho de 2013, alertava sobre o recrudescimento do uso da força no exercício do poder político, uma profecia que está se materializando. Há, aqui, uma “nova” conformação que não se restringe apenas ao aparelho de Estado, mas ao próprio capitalismo, que se reinventa sempre, pouco se lixando para os segmentos sociais que não reúnem condições de participar dos seus banquetes consumistas. Mas este é um tema que, por envolver o "capital" das milícias, deixaremos para abordar num momento mais apropriado.
Vale aqui uma observação - que chegamos a discutir anpassant com o professor Mabuse - que diz respeito à institucionalização da Economia do Bico, ou, como preferem os americanos, o GIG Economy. Há, de fato, um crescente processo de “institucionalização do bico”, sobretudo quando se observa, simultaneamente, o “arrojo” de empresas como a Uber - que participou ativamente do último carnaval de Olinda, conforme lembrou o professor Mabuse - e amplia seus negócios, atingindo milhões de usuários e parceiros, em sua maioria jovens que estão iniciando suas atividades produtivas, ou desempregados que não conseguem uma recolocação num mercado de trabalho precarizado e desregularizado pelo Estado, como o nosso, cuja Constituição Trabalhista - era assim a CLT para os trabalhadores e trabalhadoras - está praticamente extinta.
Isso nos fez lembrar de uma visita que o sociólogo Ulrick Beck fez ao Brasil, anos atrás, quando saiu daqui entusiasmado com o fenômeno de nossa economia informal, chegando a cunhar a expressão “Brasilização do Ocidente”, numa alusão a uma espécie de “democratização do setor informal no Brasil “ - Não é nada improvável que o alemão tenha lido as teorias de um outro sociólogo brasileiro bastante conhecido - apresentando o caso brasileiro como um exemplo a ser seguido pelo Ocidente, uma vez que, por aqui, se irmanavam no mesmo barco, brancos, pretos, pardos, héteros, homossexuais, trans, mulheres, homens e crianças, numa situação pouco provável de ocorrer na Europa, onde os conflitos étnicos praticamente impediriam essa possibilidade. A visão idílica de Beck sobre a "democracia da economia informal no Brasil", possivelmente, turvou sua percepção mais efetiva sobre esse fenômeno, que já atinge 10 milhões de brasileiros, sem garantias de assistência à saúde, vivendo no limite, sem um plano de seguridade que garanta uma vida digna na velhice. Estes já estão, a priori, condenados a morrerem trabalhando.

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2019/04/22/15559793405cbe5c4c99ac8_1555979340_16x9_th.jpg

terça-feira, 9 de abril de 2019

Filosofia em tempos bizarros

                                 
Charles Feitosa
                                                                                                                                                                 

Filosofia em tempos bizarros              


 
Platão, Sócrates e Aristóteles (Reprodução)


A filosofia de fato é “filha do seu tempo”, como afirmava Hegel. Cada época clama por mais e melhores pensamentos, mas a filosofia nunca dita o que deve ser feito, cabe a cada um de nós decidir como vamos corresponder a esse clamor. Onde quer que esteja, a tarefa do filósofo consiste sempre em questionar os discursos vigentes, as explicações hegemônicas, as unanimidades de cada era. Assim foi quando Platão questionou a falta de senso crítico dos seus concidadãos atenienses em relação à poesia de Homero ou quando Hegel denunciava as consequências éticas e políticas da ascensão do “indivíduo” na modernidade.
Hoje, no mundo globalizado, a filosofia continua sendo solicitada a questionar os lugares consolidados do pensamento, seja na esfera ética/política (quando nossos concidadãos absorvem de maneira acrítica os discursos da mídias ou os boatos das redes sociais); seja na esfera epistemológica (quando,  por exemplo, as ciências humanas se rendem à tendência reducionista de considerar o cérebro como o índice mais fundamental da humanidade); ou ainda na esfera estética (quando certas instituições arquivísticas acreditam deter o poder de determinar o que é ou não é arte).
Muitas vezes a estratégia dos filósofos consiste justamente em colocar à prova a validade de certas interpretações que o ser humano faz do mundo, dos outros e de si mesmo, esticando-as ao máximo, desvelando assim suas possíveis decorrências ainda não evidentes. É famoso o comentário de Heidegger na palestra A Coisa (1951) sobre a bomba atômica, evento histórico decisivo que surpreendeu o mundo inteiro em 1945. Para Heidegger a bomba atômica de alguma maneira já tinha explodido muito tempo antes, enquanto um efeito não apenas acidental, mas sim necessário, da aposta exclusiva pela racionalidade científica, ou seja, pela exploração tecnicista da natureza, que a civilização ocidental havia feito. Logo, nenhum protesto pelo desarmamento nuclear teria êxito completo se não fosse sempre acompanhado por uma constante reflexão crítica sobre a essência da técnica, na qual depositamos todas nossas esperanças.
Outra história que ilustra essa desconfiança da filosofia em relação aos “coros dos contentes” é a famosa entrevista que Adorno deu para a revista alemã Der Spiegel em maio de 1969, no auge das manifestações, das barricadas, dos protestos estudantis que contagiavam as Américas e a Europa. Apesar de eu discordar das posições ali defendidas sobre a relação entre teoria e da prática, considero emblemático o modo como a conversa se desenrola para se compreender a singularidade do gesto filosófico. O repórter inicia sua entrevista com a seguinte frase: – “Professor Adorno, duas semanas atrás, o mundo ainda parecia em ordem…” e é interrompido firmemente pelo filósofo, que diz simplesmente: -“Não para mim”. Essas e muitas outras anedotas contribuem para a imagem do filósofo como um portador de más notícias, sempre nos alertando de que o pior estar por vir. Isso fica especialmente nítido em relação a questão da morte, que é o nosso futuro mais certo, ainda que em hora incerta. A filosofia pode ser definida desde os seus primórdios como um memento mori [em latim: lembre-se da morte] uma espécie de sino que dobra constantemente para nos lembrar da nossa condição efêmera.
Aqui vale a ressalva que o objetivo da filosofia não é nos aterrorizar com a lembrança da morte, mas sim nos provocar e sacudir, para que possamos de vez em quando reavaliar nosso modo de ver o mundo e as nossas prioridades na existência.  Da mesma forma não se deve deduzir do exposto que o papel da filosofia se reduz apenas a profetizar apocalipses, individuais ou coletivos. Isso depende muito de cada contexto. A filosofia tem sido historicamente um alerta quando o otimismo se torna hegemônico, mas acredito que ela pode também se tornar uma brisa de ar revigorante, quando é o pessimismo e a sensação de impotência que predominam, tal como ocorre no Brasil de hoje.
Quais são portanto, as tarefas do pensamento nesses tempos bizarros? O termo “bizarro” está em moda no Brasil e corre o risco de perder a força devido à sua superexposição. Tudo o que não se entende, que é incomum, extravagante, ganha a alcunha de bizarro. A origem do termo é nebulosa, como de hábito, mas alguns historiadores afirmam que ainda no século 16, “bizarro” em espanhol tinha um sentido diverso, a de garboso, valente, admirável. Somente no século seguinte, transportado para a língua francesa, que o termo ganhou o sentido que prevalece até hoje, de algo “muito anormal”. Então quando falo em tempos bizarros para descrever o momento atual de exceção no Brasil, quero apostar na ambiguidade originária desse termo, pois certamente vivemos tempos muito estranhos, marcados por ataques políticos-midiáticos-jurídicos-econômicos à democracia. Mas acredito que também poderão vir a se mostrar como “tempos de coragem”, quem sabe até como “tempos admiráveis”, onde não mais será possível deixar de se posicionar e de participar dos combates.
É por isso que prefiro descrever nossos tempos como “bizarros” e não recorrer ao já consagrado jargão “tempos sombrios”. A expressão “tempos sombrios” foi eternizada pela filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt no seu livro Men in Dark Times (1968). Nele são descritas as vidas de homens e mulheres, tais como Rosa de Luxemburgo, Walter Benjamin ou Bertold Brecht, que por meio de suas ações foram exemplos de resistência contra os regimes totalitários que surgiram durante a primeira metade do século 20. A expressão que dá nome ao livro de Arendt foi inspirada no famoso poema Aos que virão depois de nós [An die Nachgeborenen] (1934-1938) de Bertold Brecht que diz: “Eu vivo em tempos sombrios [finsteren Zeiten]. / Uma linguagem sem malícia, é sinal de estupidez. / Uma testa sem rugas, é sinal de indiferença. Que tempos são esses?”.
Apesar desse heroico pano de fundo, considero que o termo “sombrio” ainda está irremediavelmente preso ao binarismo típico da modernidade, onde a luz evoca auto-consciência e conhecimento, ao passo que a escuridão e as trevas representam a ignorância e a violência. O uso da luz como remédio pode ter sido adequado para os tempos modernos, uma época em que ainda vigorava a luta da verdade contra a mentira, mas talvez não sirva mais para o momento atual, marcado ao contrário por uma inflação de verdades a todo custo, seja na forma das fake news da internet ou ainda dos assim chamados “fatos alternativos” de Donald Trump.
Desconfio que o diagnóstico da situação atual indique ao contrário um excesso de luminosidade na vida cotidiana (representada pela a omnipresença da tecnologia, da farmacêutica, das mídias de massa, da burocracia, etc.), o que acaba deixando cada vez menos espaço para a noite (representada pelas artes, pelos corpos, por seus gestos, seus afetos, suas ações). Luz demais também cega, já indicava Platão desde a alegoria da caverna.
Dentro desse contexto “pós-moderno” talvez a tarefa do filósofo não seja mais apenas disseminar a luz, mas ao contrário defender os espaços de escuridão. Tal como bem defende o historiador da arte francês Didi-Huberman no seu belo livro A Sobrevivência dos Vagalumes (2014), para que os “vaga-lumes” – simbolizando outras formas de saberes, fora do eixo, periféricas, tais como as oriundas da matriz africana, oriental ou ameríndia – possam ser preservados da ameaça da extinção.
Para mim, mais do que defender a noite, talvez a filosofia atual precise nesses tempos bizarros partir para uma dimensão ainda mais ativista e promover ela mesma alguns “apagões” ao seu redor. Um “apagão”, como bem sabemos, é uma situação incômoda que costuma interromper nossas atividades recorrentes, seja de trabalho ou de entretenimento. Mas dependendo da nossa atitude de resposta, um apagão pode vir também a se tornar um buraco criativo no tempo cotidiano, uma oportunidade de iniciar aquela conversa consigo próprio, muitas vezes adiada, que os antigos chamavam de pensar. Durante esses apagões quem sabe possamos nos “lembrar da vida” e contrapor o pessimismo e a sensação de impotência com a invenção de mais e melhores estratégias para reconquistar os territórios que estão sendo roubados de nós, brasileiros.
Vila Isabel, Rio de Janeiro, inverno de 2017
Charles Feitosa é doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg i.B./Alemanha; professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO; coordenador do Pop-Lab (Laboratório de Estudos em Filosofia Pop) e autor entre outros de Explicando a filosofia com arte (Prêmio Jabuti 2005).