pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 28 de junho de 2019

A crítica de Guimarães Rosa

  Sílvio Holanda

A crítica de Guimarães Rosa
Benedito Nunes em seu escritório-biblioteca “abarrotado de livros” (Fotos: Patrick Pardini)

Apoiado em um sentido humanístico de ampla formação acadêmica, aberto e de contornos fluidos, o ensaísmo de Benedito Nunes contribuiu para a elucidação crítica de nomes importantes da cultura brasileira, como Farias Brito, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Oswald de Andrade etc. Em relação a Guimarães Rosa, o professor paraense também trouxe uma interpretação original, cujos contornos se desenham entre a dimensão imagético-poética e o nível conceitual das especulações filosóficas, planos esses articulados por uma constante interpelação da própria linguagem, à luz de pensadores como Heidegger e Sartre.
A produção bibliográfica nunesiana conta com aproximadamente vinte e seis artigos e cinco capítulos de livros. Os textos publicados em jornais e revistas datam do período que vai de 1957 a 2007, perfazendo cinco décadas de uma produção ensaística relevante para os estudos rosianos no Brasil e no exterior. Publicados em revistas brasileiras e estrangeiras ou nos mais importantes suplementos literários nacionais, tais textos abordam, sob diversas perspectivas, temas como a tradução, o menino, o amor, a viagem etc., com base no estudo interpretativo de diversas obras rosianas, como Sagarana, Grande sertão: veredas, Corpo de baile, Tutaméia, entre outras.  
Sintetizar tais textos, cuja dimensão material supera, em muito, o artigo dos nossos dias, levando em consideração sua base teórico-crítica, é uma tarefa que aqui não é possível, contudo salientemos suas linhas de força, centradas em temas fundamentais como a concepção erótica da vida e as relações entre poesia e filosofia. No ensaio “O amor na obra de Guimarães Rosa” (1964), republicado em O dorso do tigre, considerando as obras Grande sertão: veredas, Corpo de baile e Primeiras estórias, o crítico postularia a tese da centralidade do amor, no que diz respeito à cosmovisão rosiana: “O tema do amor ocupa, na obra essencialmente poética de Guimarães Rosa, uma posição privilegiada. Em Grande sertão: veredas, onde aparece entrelaçado com o problema da existência do Demônio e da natureza do Mal, atinge extrema complexidade e envolve diversos aspectos que compõem toda uma ideia erótica da vida”.
As três espécies de amor existentes na obra rosiana poderiam ser representadas por Otacília (o enlevo), Diadorim (a dúbia paixão pelo amigo) e Nhorinhá (a volúpia). Embora os tipos de amor sejam qualitativamente diversos, ocorre uma interpenetração entre eles. Sem recorrer à interpretação alegorizante dos trabalhos de Heloisa Araujo, o professor paraense buscará mostrar que a temati­zação do amor, na obra rosiana, remonta ao platonismo, porém numa perspectiva mística heterodoxa, “que se harmoniza com a tradição hermética e alquímica, fonte de toda uma rica simbologia amorosa, que expri­me, em linguagem mítico-poética, situada no extremo limite do profano com o sagrado, a conversão do amor humano em amor divino, do erótico em místico”.
A visão erótica da vida, em Guimarães Rosa, assim, segundo Benedito Nunes, permitiria a aproximação entre o profano e o sagrado. Assim, de Nhorinhá a Otacília, há uma como uma ascensão, partindo da explosão erótica de Nhorinhá à imagem angelical de Otacília, objeto ideal, à semelhança do mundo inteligível de Platão. Dessa forma, o platonismo está subjacente a essa ideia de amor, uma vez que se pode falar numa espécie de conversão do carnal em espiritual.
Grande parte dos trabalhos lançados inicialmente em periódicos foi republicada em livros organizados pelo autor ou por outrem: O dorso do tigre (1969 e 1976), Teoria da Literatura em suas fontes (2. ed., 1983), Seminário de ficção mineira II (1983), O livro do seminário (1983), Guimarães Rosa (1991), Crivo de papel (1998), Veredas no sertão rosiano (2007). Como se trata de livros muito conhecidos e debatidos pela crítica especializada, propõe-se uma breve referência ao primeiro texto rosiano escrito por professor Benedito Nunes em 1957: “Primeira notícia sobre Grande sertão: veredas”, estampado no Jornal do Brasil de 10 de fevereiro de 1957.
O artigo de 1957, lido em confronto com a tradição crítica que se formou em torno de Guimarães Rosa na última década, põe em foco o vínculo entre Guimarães Rosa e Mário de Andrade. Além disso, discutem-se a linguagem, o processo narrativo, o problema do gênero, entre outros aspectos.
O texto rosiano apresenta-nos em uma “nar­ração inteiriça” e oscila, abandonando-se a língua culta, entre dialeto regio­nal e criação arbitrária. A inovação introduzida pelo autor mineiro se justifica esteticamente pela “necessidade irrecorrível, exigida pela natureza do próprio romance, cuja tra­ma, situações e personagens demandavam forma especial de tratamento”.
No que diz respeito à técnica narrativa, Benedito Nunes apoia-se no conceito de discurso livre para explicar a autonomia do narrador em relação ao romancista. “Ele não é, entretanto, o narrador controlado pelo romancista que, em geral, quando adota este recurso de fa­zer com que o personagem exponha os acontecimentos ou as próprias ideias, não desaparece atrás de sua criação e com ela não se confunde. Mas, nesse romance, o autor quis se enredar num problema dificílimo de técnica. Como permitir que Riobaldo falasse, num discurso livre, ele mesmo contando a sua história, sem desfigurar-se a condição humana do sertanejo, inculto, mas extremamente sensível, ligado ao mundo pelo constante pelejar, com um código moral diferente do nosso, sem dúvida e, ainda, com seu linguajar próprio, limitado, regio­nal?”.
A relação entre Mário de Andrade e Guimarães Rosa – depois retomada por Mary Daniel e outros intérpretes – é um dos eixos do artigo de 1957. O linguajar do sertão se transforma em linguagem artística, em estilo, resolvendo o problema do regionalismo, debatido desde a recepção crítica primeira de Sagarana. “Sob esse aspecto, o processo de Guimarães Rosa não é novo. Mário de Andrade em Macunaíma fez, guardadas as proporções, o mesmo, for­jando uma língua que reuniu várias moda­lidades linguísticas existentes no país; en­trosou os termos de origem indígena aos de origem africana, alterou a sintaxe, deu vi­gor literário às expressões familiares e de gíria”.
Assim, relacionando, de modo original, a linguagem ao tema, às situações e aos personagens, fazendo daquela “instrumento psicológico”, cuja intensidade garante a unidade da obra e o seu “poder expressivo que confina com a poesia”.
Não se limitando a uma gesta do sertão, Grande sertão: veredas ultrapassa o âmbito regional, pois, no drama do sertanejo ou do jagunço, “irrompem os grandes problemas humanos – seja a luta do homem contra natureza que o estimula e o abate ao mesmo tempo, seja o ímpeto do jagunço que se põe em armas para defender uma causa indefinível, adota a lei da guerra menos pela rudeza de seu espírito do que pela necessidade de viver e de realizar o seu destino”.
Antecipando tanto leituras sociológicas quanto esotéricas da obra-prima rosiana, Benedito Nunes postula uma interpretação “espiritual” da terra e do povo que nela vive. Os fatores mesológicos, sociais e históricos, na mesma linha do conceito de reversibilidade de Antonio Candido, tomam a forma de um problema mais amplo (o Diabo existe ou não? O que leva o homem à crueldade e à violência?). Ademais, o crítico refere à presença, no texto, de “expressões acordes com a tradição do misticismo – tanto no oriente como no ocidente”. Entre essas, cite-se: “Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas e as coisas não são de verdade”.
Em consonância com a crítica estilística então vigente, o estudioso aponta a saturação de elementos pitorescos na linguagem de Grande sertão: veredas, a fim de defender um estilo afim do poético, dada a sua peculiar configuração rítmica, algo que Oswaldino Marques já fizera para a obra até então publicada por Guimarães Rosa: “Mas quase sempre o estilo é extremamente poético. A prosa tem ritmo: é célere ou lenta conforme a situação exige. […] Mas raras são as mudanças do léxico e da sintaxe que não correspondam a uma contorsão necessária, para dilatar o poder expressivo da linguagem. […] Mas devido mesmo à comunicação emotiva que se estabe­lece, participamos de seus problemas, de suas lutas, alegrias e aflições”.
Ao lado das deficiências, entre elas o abuso de desarticulações sintáticas, contrações e elipses, o crítico salienta, no “livro tumultuoso e imenso”, episódios hoje consagrados pela crítica brasileira e estrangeira: o amor de Riobaldo por Diadorim, a morte dos cavalos assassinados pelos cangaceiros, o encontro da tropa de jagunços com os catrumanos, as lembranças tumultuosas de Riobaldo, os últimos combates entre os dois bandos que dividiam o domínio dos “gerais” e a descoberta de que Dia­dorim é mulher.
Como se viu, o artigo de 1957, lançado nas páginas do Jornal do Brasil, onde já atuava Mário Faustino, embora datado e ligado a circunstâncias diversas, insere-se na tradição crítica rosiana, tanto pelas vias que abriu, como a aproximação com Mário de Andrade, quanto pela retomada de perspectivas já em consolidação, como a via da crítica estilística de um Oswaldino Marques e de um Cavalcanti Proença. A esse primeiro trabalho, viria somar-se um conjunto de textos que, malgrado a modéstia do crítico paraense, mudaram, definitivamente, a leitura crítica do maior romancista brasileiro do século 20.

Sílvio Holanda é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e professor associado do Instituto de Letras e Comunicação da UFPa

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Publisher: Democracy in vertigo

 
 
 Resultado de imagem para democracia em vertigem
 

I just watched the documentary by Petra Costa, Democracy in Vertigo, recently released by Netflix. There are already four documentaries produced addressing the 2016 coup in Brazil: The Process (Maria Augusta Ramos), Excellencies (Douglas Duarte), The Wall (Lula Buarque) and Democracy in Vertigo (Petra Costa). I have not had the opportunity to watch the others yet. Petra's documentary has received a lot of praise and even a possible nomination for an Oscar for the documentaries category. I analyze the documentary by Petra Costa as a political scientist, refraining from making other considerations, certainly more pertinent to the people of the cinematographic field, which is not our beach.


Our lens is the lens of Political Science. In this aspect, the documentary does not bring great news, except for the blatant scenes of savagery produced by the intensification of the political moods of those dark days, with reflections to this day. A sharpening, indeed, intensely stimulated, when it should be restrained, in the name of a civilized coexistence. We refer here to the chain of successive events that culminated in the coup of 2016, identifying the political actors who participated in these tessituras, such as the international financial banking, consorted with sectors of the political and economic elite, aligned with segments of the media and the judiciary. As Petra Costa notes, we are a republic of families. One day they get tired and take power. This "tiredness" or indisposition of our elite with the rules of the democratic game, Petra Costa, is in fact a constant. The country lives of authoritarian upheavals, with few moments of tranquility and democratic normalcy. It is a democracy bound to be unbound.


I recorded here an interview granted by an American jurist who, well before the recent leak of the audios of The Intercept Brazil, already pointed out the clamorous flaws in the process that condemned the former president Lula to the prison. The failures in the conduct of the process that has condemned Lula, as his defense has pointed out, are blatant since then. What the website brings again is the fabric of the frame of this plot, consubstantiating what impartial lawyers had already denounced. Incidentally, at the end of the speech, the jurist concludes that the greatest guarantee of a fair trial for a defendant is an impartial judge. In a country with a minimum of democratic normality and legal order, the evil would have been avoided since the illegal staples and the subsequent leakage of them, an affront to the Constitution.


A renowned jurist from Pernambuco, after watching the documentary, was impressed by the suffering of President Dilma Rousseff. In fact, yes. She cries a lot when she remembers the fear of the torture sessions she was subjected to, the cancer that she has overcome, and the death of our democracy. After the presidential elections, with Dilma Rousseff's victory, her executioners had already decided that she would not rule. Leaks from The Intercept Brazil site - the material is said to be robust - help us understand the coup sewing, the interests at stake, and its main architects. As the journalist Luis Nasiff observed, the republic fell along with the plane that drove former Federal Supreme Court Justice Teori Zavascki, who was determined to prevent excesses.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Crônica: Um muçulmano nos terreiros do Recife



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     José Luiz Gomes


    Ao seu biógrafo oficial, Edson Nery da Fonseca, Gilberto Freyre confidenciou algo curioso: chegou a concluir o livro Jazigos & Covas Rasas, aquele que completaria a tetralogia de sua obra, abordando como os habitantes da Casa Grande e da Senzala deixam o plano terrestre. Ao viajar ao exterior, deixou o livro envolto num pano vermelho e, ao voltar, não mais o encontrou. Apenas o prefácio da obra teria sido localizado. Trata-se, certamente, de uma perda irreparável não apenas para o sociólogo, sua família, mas para a cultura do país, que foi privada do acesso à análise do tema, produzida por um dos mais importantes intérpretes do país. 

    Este prólogo, leitores, é para chamar a atenção sobre um acervo recentemente doado à Fundação Joaquim Nabuco pela esposa do antropólogo Waldemar Valente. Waldemar Valente, ao lado de René Ribeiro, Mauro Motta e o próprio Gilberto Freyre formavam uma espécie de núcleo duro do então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, depois Fundação Joaquim Nabuco. À época do então IJNPS, a despeito de enormes dificuldades, pesquisas importantíssimas foram realizadas, colocando a Instituição, nas palavras do próprio Gilberto, como uma instituição de excelência nos trópicos, numa perspectiva principalmente européia. Apesar dos tempos de estudos de Gilberto Freyre nos Estados Unidos, a Instituição nunca conseguiu ampliar seu capital simbólico naquele país. 

    Numa entrevista, Waldemar Valente fala daqueles tempos, relatando alguns fatos importantes de sua passagem pelo Instituto. Chama a atenção, por exemplo, entre outras tantas coisas, uma pesquisa realizada por ele sobre os terreiros do Recife e região metropolitana, num total, à época, salvo melhor juízo, de 4.500 terreiros dedicados aos cultos de matriz africana. Possivelmente um levantamento realizado entre as décadas de 40 e 60 do século passado, quando esses cultos foram bastante perseguidos na província, notadamente pelo Estado Novo. Mais ainda, um possível vídeo gravado por ele de um desses ritos, com o pai de santo em transe, vestido com uma indumentária muçulmana, falando línguas estranhas, como diriam os evangélicos. Algo inusitado. 

    Quando, recentemente, numa viagem a Salvador, no contexto de uma pesquisa inserida nos Programas Institucionais, relatamos o fato aos pesquisadores do CEAO, Centro de Estudos Afro-Orientais, eles ficaram curiosíssimos, pois são raríssimas as referências sobre a presença dos escravos muçulmanos naquele Estado. Essas referências foram completamente dizimados depois da Revolta dos Malês. O respeitado pesquisador João José Reis, por exemplo, levanta dúvidas até mesmo em torno da existência de Luísa Mahin, que supostamente liderou a revolta e depois refugiou-se na região do Recôncavo Baiano, precisamente na cidade de Cachoeira, tendo seu nome também associado à fundação da Irmandade da Boa Morte. João José Reis não encontrou nenhum documento que comprove a sua existência. Há de se perguntar: Seria mais uma dessas lendas? À exemplo da escrava Anastácia?

    Difícil saber se este tal vídeo encontra-se entre o acervo recentemente doado pela família de Waldemar Valente à Instituição. Se estiver, reputo-o já como numa dessas preciosidades que vem se juntar ao pré-sal de acervos da Fundação Joaquim Nabuco, numa expressão feliz de uma de suas servidoras.



Editorial: Democracia em Vertigem

sábado, 22 de junho de 2019

Direita, esquerda e a incompetência política contemporânea

  Roberto Dutra

Direita, esquerda e a incompetência política contemporânea
(Foto: Harold Edgerton / Divulgação)

As semânticas políticas contemporâneas, à esquerda e à direita, aprofundam o uso daquilo que Armin Nassehi (no livro Die letzte Stunde der Wahrheit. Kritik der komplexitätsvergessenen Vernunft) chamou de “razão que esquece a complexidade” (komplexitätsvergessene Vernunft). Esta “razão” consiste basicamente na crença de que a sociedade possui um ponto central a partir do qual se pode conduzir e controlar a mudança social, oscilando entre a moral, a política, o direito ou a educação, mas nunca considerando a complexa situação de concorrência e incongruência simultânea entre estas esferas diferenciadas.
Tradicionalmente, cética de que a política pudesse realizar este papel, a direita via este ponto central de condução na reforma e na seleção moral de pessoas, no cultivo das virtudes, enquanto a esquerda tomava exatamente a política como o centro de condução e controle das mudanças na sociedade e em suas esferas. Frustradas com suas respectivas apostas, direita e esquerda tendem a inflacionar suas expectativas sobre a educação, como se esta pudesse direcionar a mudança das estruturas da ação social por meio da formação e da integração moral e cultural dos indivíduos e da sociedade. A dificuldade é entender e falar da mudança como algo que ocorre no plural, de modo simultâneo e não integrado em diferentes esferas da sociedade, sem um centro que conduza os diferentes processos de transformação, embora seja necessário para a política a produção de narrativas unificadoras. Não se trata de abrir mão destas narrativas, mas de entender que elas não resolvem todos os problemas da política e da arte de governar.
Em seu novo livro sobre o assunto (Gab es 1968?), Nassehi avança a tese de que 1968 se tornou uma “fonte de narrativas simplificadoras” sobre a transformação social, nutrindo uma moralização duradoura e amplificada da política e tornando a nova direita (nacionalista) e nova esquerda (identitária) cada vez mais parecidas em sua forma de fazer política: ambas tendem a propor a transformação da sociedade a partir da promoção das boas intenções, da pureza de princípios e da condenação ou conversão dos moralmente indesejáveis como âncora para a ação coletiva. Esta fusão semântico-discursiva entre moral e política aprofunda a “razão que esquece a complexidade”, pois, enquanto a sociedade se torna mais complexa e mais difícil de ser transformada a partir de um único ponto de condução, mais se cultiva a fixação por “histórias simples” do “bem” contra o “mal”.
Um dos sintomas mais fortes deste aprofundamento da “razão que esquece a complexidade” é o desprezo crescente pela “técnica” tanto na nova direita como na nova esquerda. Na direita, basta observar o “governo” Bolsonaro (um aborto, um feto que não nasceu e já parece morto) para perceber como a crença na fusão entre política e moral (“guerra cultural” contra a esquerda) leva a se desconsiderar a complexidade de uma sociedade diferenciada em esferas e lógicas que reagem a todo esforço de transformação externa pela moral e/ou pela política. Para ação prática, o maior problema é que isto implica em não perceber que os setores de políticas públicas precisam levar em conta a “tecnologia social”, ou seja, o modo como intervenções produzem efeitos pretendidos e não pretendidos, de acordo com as lógicas diferenciadas da economia, da educação, da segurança.
A ideologia neoliberal de Paulo Guedes não é exceção que confirma a regra. É a regra: não se trata, como é vendido pelo banqueiro e seus seguidores, de uma visão “técnica” da economia, comprometida em considerar a complexidade interna deste subsistema da sociedade, mas sim de mais uma “história simples”, igualmente moralista (como sabemos desde Reagan e Thatcher), sobre como gerar riqueza e prosperidade. A crença de Guedes de que as virtudes do livre mercado vão resolver os problemas da economia é tão subcomplexa como a crença de que o estado pode conduzir este subsistema. Guedes e os neoliberais não tem nada a ver com ciência econômica. Geram vergonha em liberais como Andre Lara Resende e Monica de Bolle, atentos à complexidade real do mundo econômico.
Na esquerda, o desprezo pela “técnica” se dá, por exemplo, na hiperinflação do discurso de que “tudo é política”, especialmente como escapismo para a abstinência econômica que tomou conta com a “virada pós-estruturalista” que ensinou que tudo é poder. Falta um discurso econômico capaz de levar em conta a complexidade e a autonomia operativa da economia, com relações de causalidade, expectativas e processos construídos internamente que ressignificam e redirecionam as tentativas de intervenção pela política.
Em vez de estudar e levar em conta os desafios e os meios mais efetivos para que a intervenção estatal não seja neutralizada, mas sim potencializada pela economia, a esquerda se fixa no bordão do “tudo é poder” e joga a culpa do fracasso na ganância dos empresários, oscilando entre moral e política, sem passar pela inteligência. Ora, a ganância dos empresários, assim como desejo de poder dos políticos, são as razões sociais criadas pela sociedade complexa com suas esferas diferenciadas, com suas lógicas autônomas e simultâneas, e quando estas razões são desconsideradas, qualquer esforço de mudança social torna-se cego e inconsequente.
Não se trata de defender o “livre mercado” e desaconselhar a intervenção do Estado, mas sim de entender que a intervenção do Estado precisa levar em conta que a lógica e os motivos próprios da ação econômica são um fato da realidade, e que o sistema econômico vai observar e interferir na interferência do estado, com uma resultando que pode fazer os efeitos não pretendidos predominar sobre os pretendidos. A construção e a reconstrução das estruturais sociais da economia não podem ser diretamente conduzidas pelo estado, mas podem ser induzidas ou irritadas por ele. A impossibilidade de condução direta resulta da diferenciação de “tecnologias sociais”, entre as quais está a formação de relações mais ou menos seguras entre “causas” e “efeitos” específicos da lógica econômica.
A “razão que esquece a complexidade” prefere ignorar tudo isso e apostar na justificação moral de seu próprio fracasso: o que explica o fracasso das boas intenções são os “corruptos”, para a direita, e os “gananciosos e opressores”, para a esquerda. Que se tratam de “histórias simples” é fácil de ver na mudança dos personagens, mas nunca da estrutura narrativa: num momento é a “elite de rapina”, noutro o “lixo branco”; num os “corruptos”, noutro os “comunistas”.
Quando mais a política ignora a “complexidade” e a “técnica”, mais ela se torna incapaz de entregar o que promete. A necessidade de simplificar o discurso no momento eleitoral não pode significar a necessidade de simplificar o discurso sempre. Na construção e implementação das políticas públicas ignorar a “complexidade” e as “tecnologias sociais” é ignorar as condições de sucesso e fracasso das ações do estado, é praticamente amputar a política para entregar resultados (output) e assim se legitimar na sociedade (input). A aceleração e a fragmentação da esfera pública que orienta a ação política e governamental, com oscilações quase diárias entre as “histórias simples” relevantes para a opinião pública, tendem a aprofundar ainda mais a “razão que esquece da complexidade”: a necessidade de “lacrar” todo dia torna ainda mais difícil a busca de alternativas institucionais e organizacionais capazes de viabilizar mudanças sociais em uma sociedade complexa, ou seja, de “tecnologias sociais” adequadas. Atentar para a complexidade e a técnica como elementos indispensáveis para a mudança social não é defender governos fracos. Não se trata de ser contra as mudanças produzidas a partir da política, mas sim de entender sua complexidade. É defender, de modo consequente e realista, governos fortes e capazes de produzir mudanças, pois o que temos hoje, com o uso da “razão que esquece a complexidade” dominando a política, é um desaprendizado da arte de governar, compensada pelo cultivo da arte de contar “histórias simples” (lacrar) e atribuir a destruição do final feliz à maldade do outro lado.
As reflexões de Nassehi sobre a “razão que esquece a complexidade” na política alemã chegam a conclusões parecidas com as de Mark Lilla (O progressista de ontem e o do amanhã) sobre a política identitária nos Estados Unidos. A moralização excessiva da política, que Lilla identifica e critica na política progressista de viés identitário, torna a esquerda incompetente politicamente, tanto para ganhar legitimidade e formar maiorias, como para administrar o estado. A política identitária tende a reduzir a conduta política a discursos concorrentes de grupos com suas moralidades sectárias e “histórias simples” sobre como transformar a realidade – a mesma aposta na conversão ou reconversão moral e no ativismo inconsequente que Nassehi identifica na geração de 1968, com seus segmentos pró e contra, mas compartilhando o mesmo quadro de referência hiper-simplificador da realidade e de suas possibilidades de transformação. No momento político recente, as “histórias simples” da direita parecem ter mais sucesso que as da esquerda. Mas a disputa entre elas tende a agravar a incompetência, partilhada não tão secretamente por ambas, de governar e entregar resultados. A amplificação das disputas morais, ao substituir as habilidades de abertura ao outro, à realidade empírica e à dimensão “tecnológica” da vida social, cria o que Lilla chama de “pseudo-política”. Pseudo, aqui, não porque seja de esquerda ou de direita, mas sim porque é incapaz de realizar a função específica da política, seja com programas de direita ou de esquerda: produzir decisões coletivamente vinculantes para formar maiorias e para produzir e implementar transformações como resultado da ação do estado na sociedade.
A ingovernabilidade e o colapso da função política só interessam a quem deseja a manutenção do status quo, ainda que seja em rumo à catástrofe civilizatória, e à neutralização das decisões coletivas e das maiorias sociais e políticas no rumo da história. Só interessa à direita, não à esquerda.
O que é ser de esquerda? Dominar a arte de governar em um mundo complexo ou “contar histórias simples” que só servem para marcar uma identidade política cheia de moral e vazia de programa e inteligência?
Roberto Dutra é doutor em sociologia pela Humboldt Universitaet zu Berlin/Alemanha e professor associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Folha de São Paulo

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quinta-feira, 20 de junho de 2019

Michel Zaidan Filho: A fragilidade da criatura humana


 

Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, descreveu um comportamento patológico chamado de “narcisismo primário”. Todos nós, quando pequenos, temos uma boa dose de narcisismo nas nossas atitudes. O duro e lento exercício de descentramento do “eu”, ou seja, não se achar o centro do universo, leva muito tempo. É uma etapa psicológica semelhante a do assassinato psicanalítico da figura paterna. A maioria, contudo, se liberta desse comportamento, e aprende a duras penas que não é o umbigo do universo, mas um grão de poeira ou uma cabeça de alfinete, num vasto mundo que pouco se interessa pelas nossas fantasias de onipotência. Ocorre que um grupo de pessoas não consegue jamais superar esse “narcisismo”, e continuam, vida afora, a se acharem o centro de todas as atenções. Estão inseridas nesse grupo certas personalidades do meio jurídico que têm vida pública ou visibilidade pública através dos meios de comunicação ou por ocuparem cargos públicos.

São parecidas àquelas notabilidades de aldeia, onde que tem pedigree familiar ou estudou fora do país, realçam o seu brilho, como uma gota de água no deserto. O velho Sergio Buarque de Holanda já tinha se referido ao caráter retórico, vistoso, ligado à afirmação da personalidade da pessoa, de nossa formação ibérica, portuguesa. Segundo ele, daríamos mais valor à afetação, ao teatro, do que ao conteúdo do que falamos. Interessaria mais a impressão e o modo do que dizemos/fazemos do que a mensagem propriamente dita.

Nosso estado (ia dizer capitania hereditária), se ufana da sua longevidade histórica e suas raízes coloniais e imperiais. Pernambuco vive desses fantasmas antigos que sempre voltam ou são invocados para impressionar os vivos. Aqui, dizia o conde da Boa vista, quem não é Cavalcanti é cavalgado. Pelo visto, as coisas ainda caminham nesse passo. Os Cavalcantis permaneceram, com o seu brilho, sua tradição retórica e sua vaidade. São como os “narcisistas primários” de Freud, fazem de tudo (bom e ruim) para chamar a atenção. Trocam de lado na política, apoiam candidatos fascistas e autoritários, desqualificam as comissões onde pontificam e usam – como podem – os meios de comunicação para se expressarem como “prima donas” num teatro burlesco e regional. Um arremedo de esfera pública dominado por um punhado de famílias tradicionais e ricas torna-se o palco, por excelência, dessas personalidades performáticos, onde o meio é a mensagem. Ou seja, onde não há mensagem.

Rebentos da oligarquia ou associados a ela, por relações familiares, acham que têm direito natural a tudo: cargos, influencias, posições de prestigio etc. Quando são contrariados, fazem da frustração pessoal uma questão política e assumem posições polêmicas e controversas. É o seu jeito de manifestarem sua revolta pela contrariedade de seus desejos de onipotência infinita. Foi o que ocorreu com o episódio das últimas eleições presidenciais no Brasil. Pessoas de conhecida notabilidade local e regional, tomaram o lado do candidato fascistóide, não por identificação ideológica ou política, mas pela vaidade ferida, por terem sido “esquecidas” pelo governo petista para cargos, comissões ou simples consultores. Acharam-se ofendidos, preteridos, quiçá perseguidos pelo governo de turno. Lamentavelmente, esse tipo de gente pensa que tudo o que acontece no universo tem a ver consigo, para o bem ou para o mal. Se são lembrados e contemplados, ótimo. É merecimento natural. Se são esquecidos, é crime de lesa-vaidade. E aí vem a retaliação na forma de ”ser do contra”, de remar contra a corrente, independentemente de seu conteúdo ideológico, ético ou político.

É preciso considerar esse tipo de comportamento como uma patologia séria e perigosa; se fosse possível criar um reino imaginário, um castelo de cartas, um refúgio qualquer (como a religião) e colocar essas pessoas aí dentro, seria uma terapia social de muita valia. Causaria menos danos à sociedade e a si mesmo. Infelizmente, essas criaturas andam por aí pousando de sumidade jurídica, esperteza político-ideológica, quando não de corregedores morais da nação. Muito triste tudo isso.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Crônica: As paixões de Joaquim Nabuco

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Cláudio Willer, o memorioso

  Wilson Alves-Bezerra 

Claudio Willer, o memorioso
O poeta e ensaísta Claudio Willer (Foto: Reprodução)

Em que idade um escritor deve escrever suas memórias? O dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues iniciou as suas precocemente, em 1967, aos 54 anos de idade, nas páginas do Diário da Manhã. Depois recolheu-as em livro, sob o título A menina sem estrela. Eladio Linacero, personagem literário do uruguaio Juan Carlos Onetti do romance El Pozo (1939), achava que o momento era antes: “Isto que escrevo são minhas memórias. Porque um homem tem que escrever a história de sua vida ao chegar aos quarenta anos, ainda mais se lhe aconteceram coisas interessantes. Li isso não sei onde.” O argentino Ricardo Piglia queria para suas memórias um eterno presente, de modo que optou prematuramente por escrever um diário de escritor: iniciou-o aos 17 anos e adiou a publicação até os 75 anos, quando rearticulou-o transformando seu eu pessoal em um de seus personagens; assim nasceram os três volumes de Os diários de Emilio Renzi.
O poeta e ensaísta brasileiro Claudio Willer, aos 78 anos acaba de publicar suas memórias, que seguem uma quarta via: velar o caráter memorialístico da obra – Dias ácidos, noites lisérgicas (Córrego) – com um despretensioso subtítulo: crônicas. Tampouco são suas primeiras memórias: também precocemente, há duas décadas, escreveu Volta (Iluminuras, 1996), livro que além de ser um ensaio sobre surrealismo, contava muito de suas experiências pessoais nos anos 60 e 70 e era ainda a história singular da circulação de um livro de nome circular, e da memória de um poeta – Augusto Peixoto – sobre a Terra. Dias ácidos, no entanto, é sobretudo memorialístico. São quinze textos, alguns recentes, outros recolhidos de cadernos antigos e há ainda os reaproveitados de entrevistas ou pesquisas não publicadas, agora reescritos, como o longo texto que descreve suas experiências lisérgicas e que dá título ao volume.
É um livro relativamente curto, mas não por isso menos intenso. O poeta passa como um raio sobre vários acontecimentos pessoais, sem se preocupar em torná-los grandiosos. Assim, de passagem, na página 134, ficamos sabendo que foi o livro de estreia de Willer, Anotações para um apocalipse (Massao Ohno, 1964), que inspirou o romancista Roberto Freire a criar o personagem “Claudio, poeta surrealista” de seu romance de estreia, Cleo e Daniel (Brasiliense, 1965). Na página 127 sabemos também que o poeta, ainda aluno de psicologia na USP, fora aluno de Durval Marcondes, um dos importantes difusores da psicanálise freudiana em São Paulo, trazida à universidade pelas mãos de Franco da Rocha, seu professor. Mas esses são dados laterais, o livro é outra coisa.
Dias ácidos, noites lisérgicas se constrói em uma curiosa contraposição entre a leveza da crônica e a força de tempos e cenários idos – sobretudo de São Paulo – que os textos evocam. Claudio Willer não busca o ordenamento cronológico: quase todos os textos têm data, e são de diferentes épocas, entre os anos 60 e a atualidade. O poeta busca não um monumento para si mesmo, mas um mosaico distorcido, uma imagem fugidia, tal qual o espelho do antigo bar Persona, no Bixiga, criado pelo artista plástico Roberto Campadello. Nele, há “no porão, espelhos reversíveis e lanternas, conforme se iluminava, você se enxergava, via quem estivesse do outro lado ou fundia as imagens, podia ser um ou outro.” Não é um livro sobre Claudio, é um livro sobre ele e seus leitores.
O texto de abertura, “A voz” se constrói a partir leitmotiv “Baudelaire”, dito pela boca de um gringo magricela, no Maranhão, em 1964, um lugar anterior ao culto à cor local, onde comia-se filé à parmegiana e não frutos do mar, lugar “não existente. O exótico para além do exótico: desconhecia-se”. O que fazia Claudio lá? Não sabemos. Mas vemos uma outra São Luís pelos olhos do jovem poeta. Sabemos de suas incursões, dos lugares por ele frequentados, mas tal qual nos espelhos do Persona, falta uma parte, uma imagem coesa de fundo, falta o poeta afirmando: “eu sou isso”. O principal, no entanto, não falta: suas leituras de Baudelaire e dos baudelaireanos Rimbaud, Desnos, Bataille, Lautréamont.
Complete a história quem quiser, parece dizer o autor, que passa adiante, retrocedendo a 1959, com “A festa e o homofóbico”, uma saborosa crônica sobre a repressão à sexualidade, com a lembrança de um rapaz da Associação Cristã de Moços, Milton, um homofóbico contumaz que de repente se libera numa festinha na casa do poeta, no bairro do Brooklin, em São Paulo, fazendo em público um ménage com dois outros rapazes. Os nomes? Não sabemos e não importa.
Páginas adiante, lemos “Muradas”, texto resgatado de um caderno, com data de março de 1967: nele, Claudio aclimata Proust, ao evocar uma mítica banana split do bar Muradas – da rua Martins Fontes, no centro de São Paulo – consumido depois de sessões de maconha, música e álcool com os amigos. Já então o jovem de 27 anos queixava-se do desaparecimento da iguaria, do advento anódino dos sorvetes de máquina da rua Augusta. Para os leitores de 2019, um mundo desaparecido comentando outro mundo desaparecido, mas também uma experiência familiar de perda na paisagem sempre movente da cidade, a cidade que não cessa de se transformar.
O texto seguinte “Dias ácidos, noites lisérgicas” é a narração de memórias a partir de paraísos artificiais, desde os anos sessenta até a atualidade, texto poderoso que termina em tom menor ao evocar as quebradas da zona sul de São Paulo, nas fronteiras da cidade em expansão rumo à periferia.
Ao fim do livro, o leitor vacila: não sabe se leu um livro de memórias de um poeta, ou se leu um livro das memórias de uma cidade, ou ainda, se leu memórias inventadas suas ou memórias da literatura de outros. Pois Dias ácidos, noite lisérgicas é tudo isso ao mesmo, e ainda mais: é o relato de experiências lisérgicas, sexuais, afetivas de um homem cujas memórias se inscrevem no corpo da cidade, sua cidade – um ente vivo que se metamorfoseia enquanto ele a rememora.
Wilson Alves-Bezerra é crítico, tradutor e escritor. Escreveu Vapor barato (Iluminuras, 2018), O pau do Brasil (Urutau, 2016), entre outros
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Existe uma sociologa weberiana?

  Michel Misse

Existe uma sociologia weberiana?

Max Weber, conhecido como um dos fundadores da sociologia moderna (Foto: Reprodução)


Embora seja usual falar-se de uma sociologia “weberiana” e de sociólogos “weberianos”, ou de uma escola “weberiana”, não podemos aceitar rigorosamente essas classificações, a não ser quando se pretende demarcar uma tendência dominante, em certos autores e obras, da influência de conceitos e perspectivas desenvolvidos nos diferentes trabalhos de Max Weber. Mesmo assim, não há nada, nesse caso, comparável, por exemplo, seja à apropriação e desenvolvimento das teorias de Marx no marxismo, seja à apropriação e desenvolvimento das teorias de Freud na psicanálise. Não há nada na obra de Weber que permita desenvolvimento similar ao do marxismo e ao da psicanálise, e isso por duas razões.
Em primeiro lugar, Weber não propõe uma revolução científica ou um deslocamento teórico fundamental, um novo paradigma científico, e nem foram esses os efeitos epistemológicos de sua obra, como, ao contrário, parece acontecer com as obras de Marx e de Freud (tal, pelo menos, como reivindicam marxistas e psicanalistas). O próprio Weber condenava, no marxismo e na psicanálise, sua unilateralidade radical, que os lançava, em seu entender, na metafísica e na disputa de pressupostos últimos aos quais a ciência não poderia responder.
Em segundo lugar, Weber reivindica a tradição acadêmica e científica da pesquisa histórico-social de seu tempo, mesmo quando de sua contribuição original para essa ciência, a sociologia, que também se desenvolve, independentemente de sua obra, e com base em outros paradigmas, em outros lugares. Ainda que proponha métodos e conceitos suficientemente abrangentes e rigorosos para entronizá-lo como fundador de uma escola, sua obra não produziu influência dessa maneira, mas de outra, mais difusa, e também mais coerente com o sentido que a distinguia das demais.
Weber não formou uma escola, como aconteceu com Marx e Freud, e mesmo com Durkheim. Não teve discípulos diretos, com os quais precisasse retificar constantemente o desenvolvimento de seu próprio paradigma. No entanto, é indubitável que no desenvolvimento da sociologia, tal como vem se realizando desde o início do século, a contribuição weberiana é decisiva, fundamental mesmo, por demarcar um de seus principais paradigmas. Curiosamente, embora Durkheim tenha uma posição análoga à de Weber por ter também contribuído com outro paradigma fundamental, e ao mesmo tempo divergente do dele, não é usual falar atualmente de sociólogos “durkheimianos” ou de uma sociologia “durkheimiana”, e isso quando se sabe que a influência de Durkheim foi mais sistemática que a de Weber, a ponto de ter existido uma “escola durkheimiana” na França, o que nunca ocorreu com Weber, nem mesmo na Alemanha.
A influência da obra de Weber, embora crescente ainda quando ele estava vivo, não era do tipo que possibilitasse uma escola. Mesmo essa influência foi drasticamente interrompida, na Alemanha, 12 anos após sua morte, pela chegada dos nazistas ao poder. Suas principais obras, com exceção de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, permaneceram esgotadas e sem reedições durante quase 20 anos, e em grande parte espalhadas em revistas e periódicos de pouco acesso ao público não germânico. Apesar disso, sua influência foi decisiva em obras que foram publicadas antes da Segunda Guerra, algumas das quais vieram conformar grande parte do quadro atual da sociologia. Entre essas obras, basta citar Ideologia e Utopia, de Karl Mannheim; História e Consciência de Classe, de Georg Lukács; Estrutura da Ação Social, de Talcott Parsons; e Fenomenologia do Mundo Social, de Alfred Schutz.
O weberianismo como contrassenso
Desde aqui já se pode notar a abrangência e o tipo de influência que a obra de Weber começará a exercer. Nenhum desses trabalhos é “weberiano” e, no entanto, todos estão numa relação fundamental com a obra de Weber; em todos eles, também, a posição weberiana é posta em situação de interlocução, de diálogo com outros pensadores-chave; Lukács e Mannheim, de modo diferente e pesos desiguais, põem Weber em relação com Marx, e daí destilam suas contribuições originais; Parsons põe Weber em relação com Durkheim e Pareto; Shutz coloca Weber em relação com Husserl.
Para cada uma dessas posições, enfatiza-se um aspecto da obra de Weber. Pode-se dizer que são Webers diferentes os que saem dessas posições: um Weber subsumido no marxismo hegeliano de Lukács; um Weber que retifica e modera Marx, na sociologia do conhecimento de Mannheim; um Weber fenomenológico, intuicionista, neoidealista, na “síntese” de Shutz. No campo substantivo da influência, a abrangência e a variedade não são menores. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é o rosto mais badalado da influência, mas não é nem a principal nem a mais duradoura, apesar de ter produzido um dos grandes veios polêmicos do século. Weber trabalhou sobre campos extraordinariamente diversos e sua influência acompanha essa diversidade, que vai do direito à sociologia da música, da história econômica à sociologia das religiões, da filosofia da ciência à política alemã. Conceitos como “tipo ideal”, “ação social”, “compreensão”, “autoridade”, “dominação”, “carisma”, “vocação”, “racionalidade”, “burocracia”, “estamentos”, “legitimidade” e muitos outros estão inteiramente orientados, na sociologia contemporânea, pela influência de Weber.
O peso das interpretações pioneiras de Weber, em especial por sua influência sobre toda a sociologia acadêmica mundial, aquela que veio da obra de Talcott Parsons, vem passando por ampla reavaliação crítica há quase cinco décadas. Os resultados dessa reavaliação, que incluiu um renovado interesse dos marxistas por sua obra, têm possibilitado – 90 anos após sua morte – o conhecimento de um Weber muito mais profundo e contemporâneo do que as primeiras interpretações poderiam fazer supor. Não é exagerado afirmar que sua influência, hoje, é comparativamente mais abrangente, mais sistemática e mais rigorosa do que em sua própria época ou em qualquer outra, não obstante manter sua característica de não formar escola. O propalado “weberianismo” é um contrassenso com a própria perspectiva científica de Weber, e o próprio Weber testemunha contra esse equívoco: “Na ciência, sabemos que nossas realizações se tornarão antiquadas em dez, vinte, cinquenta anos. É esse o destino a que está condicionada a ciência: é o sentido mesmo do trabalho científico… Toda realização científica suscita novas ‘perguntas’: pede para ser ‘ultrapassada’ e superada. Quem deseja servir à ciência tem de resignar-se a tal fato”.
A influência de Weber, apesar disso, ultrapassou seus próprios cálculos e merece uma reflexão porque é isso que ainda legitima o emprego de expressões como “weberianismo”. A ciência social carrega a bendita maldição filosófica de sua origem: a política. E como a filosofia e a política, o marxismo e a psicanálise, a sociologia precisa desenvolver-se renovando sempre suas relações teóricas com seus pais-fundadores: a reinterpretação das obras clássicas acompanha e indica esse desenvolvimento, tanto quanto os avanços obtidos nos campos substantivos (empírico e teórico). Não é impossível escrever uma história da sociologia com base na sucessão das reinterpretações de seus clássicos. Essas reinterpretações são tão inesgotáveis quanto sua tendência para avançar para além do que estava originalmente escrito, conferindo-lhe uma nova dimensão, só possível pelo avanço substantivo efetivamente realizado. O que define uma obra como “clássica” é exatamente isto: manter-se contemporânea.
A influência disseminada
Talcott Parsons, cuja obra dominou a sociologia norte-americana por mais de duas décadas (1950-1960) e exerceu – e ainda exerce (embora seja declinante) – influência sobre toda a sociologia acadêmica mundial, travou contato com a obra de Weber ainda nos anos 1930, na Alemanha. Sua tese de doutoramento versava sobre o conceito de capitalismo em Weber e Sombart, o que lhe permitiu preparar o terreno teórico sobre o qual desenvolveria, em 1937, uma original tentativa de síntese sociológica, a primeira elaboração de sua teoria geral da ação. O livro, um grosso calhamaço de mil páginas, intitulado Estrutura da Ação Social, dedicou quase um terço das páginas à interpretação parsoniana de Weber. No entanto, sua apropriação de Weber caracteriza-se pela ênfase posta sobre as normas e valores sociais, em função de sua preocupação em construir as bases de uma teoria da integração social. Se isso lhe permitiu aproximar Weber de Durkheim muito mais facilmente do que é efetivamente possível, facilitou, no entanto, uma apropriação da obra de Weber nos Estados Unidos que, além de incorreta e problemática, enfatizava excessivamente sua utilização conservadora. No entanto, a influência de Weber na sociologia norte-americana, até então pequena, pegou carona no funcionalismo parsoniano e cresceu, até que no fim dos anos 1960 a revisão interpretativa de suas contribuições começasse a ser feita, resgatando-o contra Parsons. Quanto a isso, o pioneiro foi C. Wright Mills, cuja obra reflete uma influência weberiana bastante diferente daquela encontrada em Parsons e sua escola.
Se Parsons procurou aproximar Weber do funcionalismo durkheimiano, Wright Mills fez a aproximação com a tradição marxista, extraindo daí não só uma interpretação, mas um efeito – em suas próprias obras – crítico e politicamente renovador. Mills foi praticamente uma voz isolada numa América conservadora e exposta ao maniqueísmo da Guerra Fria, e uma voz que se calou precocemente (ele morreu aos 47 anos, em 1961). Apesar disso, sua influência na renovação antiparsoniana da sociologia norte-americana dos anos 1970 deveu-se, em grande parte, à extração marxista de sua apropriação de Weber, que lhe permitiu enfatizar, ao contrário de Parsons, os conceitos de classe, de interesse e de conflito. No entanto, ao contrário daquele, Mills jamais tentou uma sistematização conceitual que lhe permitisse construir uma abordagem tão abrangente quanto a parsoniana. Por isso, sua contribuição terminou confinada à sua época.
Lukács, o grande pensador marxista, frequentou assiduamente o Círculo de Heidelberg, que se reuniu na casa de Weber por quase uma década. Nos dois últimos anos da vida de Weber, quando já se tornara marxista, Lukács, ainda sob sua influência, redige alguns dos trabalhos que vão compor seu livro mais célebre. Além de abundantes referências aos trabalhos de Weber, Lukács promove uma inusitada aproximação marxista com a problemática weberiana da “racionalização”, cuja influência posterior não deve ser negligenciada. Mannheim, que foi chamado de “marxista burguês” e de weberiano “marxista” (sic), escreveu suas principais obras entre as décadas de 1920 e 1940. Sua influência, particularmente no campo da sociologia do conhecimento, é decisiva, e tão grande quanto sua pretensão de construir uma ponte entre Weber e Marx que resolvesse algumas das antinomias postas por essa relação. Sua influência sobre Mills permitiu a este se apartar da todo-poderosa interpretação parsoniana de Weber. Do mesmo modo, sua obra permitiu aos funcionalistas manter uma porta aberta ao marxismo (pelo menos nessa área da “sociologia do conhecimento”), como no estudo de Robert K. Merton sobre sociologia da ciência.
No pós-guerra, a influência de Weber alastra-se pela Europa e pela América. Raymond Aron, na França, forja o conceito de “sociedade industrial” e se apoia em Weber para criticar o marxismo. Ralf Dahrendorf, na Alemanha, sob forte influência weberiana, revisa o conceito de classe e, como Aron, substitui capitalismo por “sociedade industrial”, para enfatizar a dimensão mais abrangente (principalmente política) dos conflitos sociais do capitalismo tardio. A sociologia inglesa renova-se com a influência de Weber, principalmente nas obras de John Rex, J. Goldthorpe, David Lockwood, Frank Parkin e Anthony Giddens. Na França, Michel Crozier e Alain Touraine estudam a burocracia e a classe trabalhadora em aberto diálogo com as hipóteses weberianas, e Pierre Bourdieu reinterpreta Weber em seus trabalhos de sociologia da cultura.
Apesar da forte influência de Parsons, a sociologia norte-americana reencontrou Weber de diversas maneiras, desde o pós-guerra até hoje. Obras muito importantes como as de Seymour M. Lipset, Reinhardt Bendix, Robert Bellah, Clifford Geertz, Randall Collins e S. Eisenstadt, entre outros, foram desenvolvidas em constante recuperação e reinterpretação das hipóteses weberianas. Tendências que aparecem na época da Guerra Fria, como a sociologia fenomenológica, a etnometodologia, a sociologia radical, o interacionismo simbólico, retomam Weber exatamente onde Parsons o havia recalcado: no seu “idealismo”, na sua “sociologia compreensiva” e nas minuciosas questões metodológicas.
Em compensação, o “materialismo” de Weber é recuperado pelo marxismo do pós-guerra, que antes lhe havia reservado a indiferença dogmática ou o ataque superficial. Essa indiferença não existiu nos clássicos do marxismo, mas tornou-se dominante no período stalinista. Kautsky, Bukhárin, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Lukács e Max Adler citam Weber e quase sempre em apoio às suas próprias ideias. Mas o conhecimento da obra de Weber era ínfimo, se comparado ao que os marxistas contemporâneos passam a ostentar a partir dos anos 1960. A influência de Weber na Escola de Frankfurt é reconhecida e bastante significativa, principalmente na obra de Habermas. A crítica superficial foi abandonada e o rigor com que muitos marxistas reavaliam a obra de Weber não fica nada a dever ao ostentado pelos “weberianos”.
Uma verdadeira história das reinterpretações de Weber e de suas disputas teria, agora, que descer ao campo temático e conceitual. Acompanhar a disputa dos conceitos, a detecção de suas ambiguidades originais, o aparecimento de novos problemas sobre os escombros de problemas que pareciam resolvidos, enfim, teria de ser uma história da constante reatualização de Weber, como a feita brilhantemente por Wolfgang Schluter nas últimas décadas. Aqui entrariam, por exemplo, a penetrante e nem sempre admitida influência de Weber sobre as obras seminais de Norbert Elias e Michel Foucault, apenas para citar dois nomes que continuam em evidência. Naturalmente, isso não pode ser feito aqui. De qualquer modo, será feito por cada sociólogo, em sua área específica de atuação. Isso será inevitável sempre que se descobrir que o sociólogo “weberiano” se dedica a uma coisa “que na realidade jamais chega, e jamais pode chegar, ao fim”.
Quem foi
Max Weber é conhecido como um dos fundadores da sociologia moderna, ao lado de pensadores como Vilfredo Pareto (1848-1923), Émile Durkheim (1858-1917) e Georg Simmel (1858-1918). Seu pensamento é marcado por uma crítica do materialismo histórico, que, em seu dizer, petrifica as relações entre as formas de produção e de trabalho e as outras manifestações culturais da sociedade. Para ele, o pensador social deve estar disposto a reconhecer a influência que as formas culturais, como a religião, por exemplo, podem exercer sobre a própria estrutura econômica.Karl Emil Maximilian Weber nasceu em Erfurt, em 1864, em uma família protestante.A partir de 1869, instala-se com a família em Berlim. Seu pai foi deputado do Partido Nacional Liberal, e, graças a ele, Weber, desde cedo, teve contato com homens políticos e pensadores influentes que eram frequentemente convidados à sua casa.
O jovem Max, entediando-se na escola e tendo pouco contato com os colegas de sua idade, tornou-se um leitor insaciável. Suas leituras (Cícero, Maquiavel, Kant etc.) testemunham sua grande precocidade intelectual. Terminada sua formação básica, Weber inscreve-se na Faculdade de Direito de Heidelberg, seguindo igualmente cursos de economia política, filosofia, história e teologia.Em 1889, Weber conclui seu doutorado sobre o desenvolvimento das sociedades comerciais nas cidades italianas da Idade Média. Em 1891, termina o trabalho A Importância da História Agrária Romana para o Direito Público e Privado, que o qualifica para ser professor na universidade. Esses anos foram decisivos na formação de Max Weber, porque o fizeram se interessar pelos problemas sociais de sua época.Aos 29 anos, em 1893, assume o cargo de professor de história do direito romano e de direito comercial na Faculdade de Berlim. Casa-se com Marianne Schnittger, ícone da causa feminista e intelectual engajada em questões políticas. Ela terá um papel decisivo na edição da obra de Weber, supervisionando principalmente a publicação dos escritos póstumos de seu marido, em especial de sua obra magna Economia e Sociedade.
De 1897 a 1903, Weber sofre de uma grave depressão nervosa, sendo obrigado a interromper seu magistério. Em 1903, retomando suas atividades intelectuais, reorienta suas pesquisas para a sociologia. É nesse contexto que ele publica A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em 1909, funda a Sociedade Alemã de Sociologia.
Durante a Primeira Guerra Mundial, Weber inicia a redação de seu vasto projeto de sociologia comparada das religiões mundiais. Em 1919, muda-se para Munique, a fim de ocupar a cátedra de sociologia que a universidade havia criado especialmente para ele. É nessa ocasião que ele pronuncia duas de suas mais conhecidas conferências: “A Ciência como Vocação” e “A Política como Vocação”. Morreu subitamente em 1920, em consequência de uma pneumonia mal tratada.

Michel Misse é professor de sociologia da UFRJ

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)