pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 18 de agosto de 2019

Ética, hoje: O que a Lava Jato nos coloca como questão

  Marcia Tiburi


Ética, hoje: o que a Lava Jato nos coloca como questão

Obra do artista polonês Pawel Kuczynski (2011) (Reprodução)

O caso da operação Lava Jato desde seu começo até o momento vem sendo um dos melhores exemplos de ruptura com a ideia de ética no amplo contexto do Brasil. Gostaria de fundamentar essa colocação buscando entender em que sentido a Lava Jato se mostra em sua intenção e recepção públicas, como sendo ainda mais do que uma questão política ou de jogo de poder. A Lava Jato e o que dela vem se apresentando como uma espécie de situação limite no que concerne à problemática ética – e também moral – em nosso país.
Conversas gravadas e conteúdos de chats entre figuras exponenciais da operação, tais como o juiz Sergio Moro e o promotor Deltan Dallagnol, que se apresentavam socialmente como heróis nacionais moralmente intocáveis, vieram apresentar uma outra face da operação insuspeitada pela maior parte do povo brasileiro que neles confiava. O site The Intercept coordenado por Gleen Greenwald, renomado jornalista americano que vive no Brasil com sua família e que já ganhou prêmios importantes tais como o Pulitzer, é o responsável pela publicação do conteúdo que choca aquela parte da população ainda capaz de se relacionar com algo como ética.
Nesse ponto, já começamos a perceber com que tipo de problema estamos confrontados. Há em todas as esferas da sociedade muitas pessoas que aceitam as atitudes de juízes e promotores tal como vêm sendo expostas como algo natural. Há quem até mesmo defenda tais atitudes, por mais nefastas que possam parecer, sem refletir sobre elas de um ponto de vista ético e também moral. É como se a ética e a moral realmente fossem excrecências inúteis no momento.
Meu interesse com esse artigo não é qualquer tipo de julgamento moral, embora todas as teorias éticas e morais possam e devam dar base a julgamentos, inclusive morais. Mas há, em um nível cultural, uma certa “mania de julgar” que se tornou nacional e que eu gostaria de tentar evitar. Portanto, me parece importante um pequeno exercício filosófico de suspensão do julgamento para que possamos ver mais longe. É uma tentativa que pode ser válida.
Sugiro que, nesse momento, façamos um exercício de análise, o mais longe possível do que quer que possa soar como julgamento moral. Não podemos deixar de lembrar que juízes devem ser especialistas em julgamentos legais com base no conhecimento das Leis com as quais devem lidar minuciosamente conforme exigências profissionais ligadas à Constituição. Espera-se de juízes também uma atitude legal, embora deva ter base moral, que julguem de modo imparcial e que protejam a Lei sem a qual sua capacidade de julgar – e portanto de ser um juiz e seguir com sua profissão segundo a excelência (aquilo que os gregos chamaram de “areté”, e que significa aquilo para o quê uma coisa existe) dessa profissão – fica comprometida.
Nesse momento, proponho metodologicamente que nos afastemos da tentação de sermos juízes nós mesmos – eu que escrevo, você que atenciosamente me lê – para sermos simples “analistas” de uma questão que podemos denominar como “desprezo pela ética”. A meu ver é isso o que está em cena em torno da Operação Lava Jato. Ao mesmo tempo, não é um exagero dizer que o que está em jogo nessa operação e seus desdobramentos é o destino do Brasil, um destino institucional, político e, como quero abordar aqui, também um destino no campo da ética ou aquilo que podemos definir como sendo, em um sentido mais básico, o “destino moral” do país.
Esse desprezo a ser analisado toca todos os poderes – formais e informais –, toca governantes, políticos em todas as esferas, juízes, procuradores, funcionários públicos e privados, homens e mulheres, ativistas, religiosos e, de um modo profundo e muito delicado, toca também aquele contingente de pessoas comuns, a população mais simples despreocupada de sua real inscrição social. É que hoje em dia, não podemos deixar de perceber que cidadãos e cidadãs comuns também fomentam o desprezo pela ética quando já não a exigem de quem governa ou ocupa cargos de poder em nossa nação.
Quando falamos de ética, tendemos a pensar em uma separação entre teoria e prática, mas a ética refere-se muito mais à unidade entre esses mundos. Àquele momento complexo em que pensar e agir se misturam até o ponto de perderem seus contornos. Nessa hora todos pensam que os atos não são orientados pelos discursos. No entanto, no Brasil, há muitos discursos que soam coerentes em relação às ações que lhes seguem. E, ao mesmo tempo, são discursos que rompem com ideias clássicas da ética, ideias tais como a da liberdade e da dignidade humana que aparecem em várias teorias.
Ao mesmo tempo, a ruptura com os parâmetros dos direitos fundamentais e humanos já nos coloca em uma situação espinhosa em termos de cultura política. Desde que os discursos autoritários e de extermínio de populações indesejáveis venceram eleições, é até mesmo o princípio religioso e moral básico do “Não matarás” que está sendo violado com o consentimento de imensos contingentes populacionais.
É verdade que isso é uma questão política e social, mas no seu fundo é a questão ética que está em jogo. E essa questão pode ser traduzida nos termos da seguinte pergunta: “como nos tornamos o que somos?”, e em termos ainda mais diretos e adequados ao Brasil: “como nos tornamos, como população, assassinos em potencial”? À medida que somos cúmplices de um projeto de governo que promete a matança, é disso que se trata, do assassinato potencial. Mesmo aqueles que não o elegeram estão moralmente implicados nisso. E só se salvam pela crítica e pela luta contra esse estado de horror.
Não precisamos analisar as conversas mostradas pelo The Intercept que, como trabalho de jornalismo investigativo, apenas cumpre seu papel de expôr o que lhe chega como material. Podemos ficar com uma questão mais geral partindo de um pano de fundo que nos é oferecido há bastante tempo pela mídia tradicional. Esse pano de fundo se compõe de dois exemplos de conduta em um cenário complexo no qual a “espetacularização” é a regra. Trata-se de fatos expostos a todos em jornais e revistas, e que dão provas bastante elementares do desprezo pela ética – e de sua crise – que pretendo analisar, ainda que brevemente, nesse artigo. Vamos a eles:
Sergio Moro renunciou ao seu cargo de juiz após ter conseguido manter o principal adversário político do vencedor das eleições na cadeia longe das exigências do Processo Legal, atuando na contramão da Constituição, para assumir como ministro da Justiça no governo vitorioso. Deltan Dallagnol, por sua vez, manifestou-se na época por meio de um famoso power point no qual expunha o que seria a sua visão de “Lula”, cujo nome estava colocado ao centro de várias bolas azuis.
Dallagnol naquele momento chegou a dizer que ele não tinha provas do que afirmava, mas tinha “convicções”, como se isso devesse ser levado em conta. Moro teve um alto lucro político a partir de sua atuação marcada pelo rompimento com leis que regem a magistratura e o Processo Penal – e assim toda a justiça penal do país. Moro alcançou um objetivo político partidário e foi premiado. Dallagnol, de sua parte, na condição de promotor, rompeu com as leis substituindo-as por “convicções”. Ora, o valor de uma convicção sem provas é zero. Mas no caso, devido a todo um cenário de “messinianismo” em que o próprio Dallagnol se colocava como um salvador religioso da justiça (lembremos o “jejum” em nome do combate à corrupção que se tornou espetáculo midiático), alcançava-se um efeito simbólico imenso na população seduzida pela mística da anticorrupção.
Aceitar convicções no lugar de provas é uma questão que implica consequências nefastas no mundo da justiça. Ela implica o domínio soberano e o Estado de Exceção, o poder de “quem pode mais” diante de “quem pode menos”, do poder de uma pessoa qualquer que pode acusar outrem daquilo que bem entender e lucrar com isso, com o logro que impõe aos outros.
Esses personagens foram ungidos como heróis nacionais por grande parte da população, inclusive por outros personagens do judiciário e da política que deveriam ser ainda mais responsáveis pelas leis e pela Constituição de um país à medida que são agentes públicos. As consequências de seus atos são nefastas tanto simbólica quanto pragmaticamente para o país. Hoje, quando o lado oculto desses comportamentos e gestos começa a aparecer, vemos interesses pessoais, políticos e inclusive financeiros de agentes que deveriam zelar pela justiça muito acima dela. E não é demais dizer que, no contexto da crise ética pela qual o Brasil passa como nação, muitas pessoas não veem problema algum também nisso, mesmo que possam, elas mesmas, virem a ser vítimas de acusações infundadas. Talvez as pessoas pensem que, desde que nunca aconteça com elas, o contrato social que deixa o mundo humano em sua órbita é dispensável. Evidentemente estamos diante de um caso em que a banalidade do mal se tornou explícita e cada vez mais desavergonhada.

3 – Moro e Dallagnol romperam com limites que seriam exigidos deles como agentes da lei e como cidadãos, mas são apoiados como se não existisse problema algum no modo como procederam. É como se Leis já não importassem. Eles, por sua vez, têm a institucionalidade e a autoridade ao seu lado e muita gente do povo os aceita sem crítica. De um ponto de vista ético, a parte que concerne ao povo é infinitamente problemática porque a população que os apoia, seja a classe que o faz em um contexto de interesses políticos e econômicos, sejam aqueles que o fazem em um contexto de irracionalidade, quando os atos desses agentes não apenas não favorecem os apoiadores como, inclusive, os prejudica, no caso, pessoas marcadas pelos preconceitos que servem de bandeira ao governo autoritário, é uma população que não se manifesta buscando defender a lei como aquilo que é o correto. Aceitam o “estado de exceção” que implica a lei criada pelo “Soberano” ao seu bel prazer como se isso fosse normal politicamente e socialmente falando. A posição fascistoide que adula o líder autoritário é uma questão que não se deve também esquecer.
Os atos de Moro e Dallagnol são atos de uma profunda corrupção. E de uma corrupção ainda pior, porque foi realizada se utilizando dos discursos contra a corrupção e de uma poderosa operação para acabar com ela enquanto isso tudo não passava de uma cortina de fumaça. É como se os maiores corruptos pretendessem lograr a população dizendo que acabariam com os corruptos. É como se criminosos se elegessem prometendo acabar com criminosos. Como se traficantes discursassem contra traficantes e quisessem apenas tomar seu lugar. Em filosofia chamamos de paradoxo de Epimênides o discurso da autocontradição que implode aquilo que é dito, mas essa consciência é apagada no Brasil.
Cito esses dois personagens e seus exemplos públicos e notórios de desprezo pela ética tanto ao nível individual relacionado aos atos dos profissionais envolvidos, quanto ao nível público pelo consentimento e aceitação, muitas vezes elogio e apoio, dado por um imenso público a essas atitudes. A ética como questionamento da ação e sustentação de princípios se torna em nossa sociedade um conteúdo e uma forma desprezadas. E, em se tratando de ética, não estamos diante apenas de um desinteresse que poderia não ter grandes consequências. A ética implica sempre muito mais e é sobre a sua falta que devemos nos ocupar mais um pouco.

4- A falta de importância da ética em nossa sociedade é a cada dia mais perceptível. A ética foi deixada de lado, não por acaso ou por falta de tempo para se falar no assunto. Ao mesmo tempo, o moralismo avança em vários discursos políticos e religiosos, aliás, a cada dia mais misturados. Muitas vezes o moralismo se transforma em cinismo. Quando um personagem mente e insiste em sustentar sua mentira como se fosse uma verdade. Ora, um conceito geral de ética que a distancie da mera moral pode revitalizar nossa memória acerca do tema em um contexto no qual o moralismo realmente parece ter vencido. E essa vitória está em ter crescido de tal modo, como ausência de reflexão e como astúcia, que chegou ao ponto de ter conseguido apagar a ética.
A diferença entre ética e moral é a análise e a reflexão que definem a primeira, e o caráter irrefletido da segunda. Enquanto a ética dá nome à ciência da ação, a moral expõe apenas costumes e hábitos, inclusive de pensamento que visam apenas a manutenção de si mesmos. Nesse sentido, há algo de ideológico na moral, enquanto a ética deve ser sempre filosófica devido ao seu caráter reflexivo.
O desprezo atual pela ética revela a sua falta, não como um acaso, mas como um programa. O fim da ética e seu desprezo aponta caminhos para um futuro específico a ser plantado no tempo presente. Esse é o futuro do poder, contra o futuro da democracia que, tanto mais intensa será quanto mais pensada e efetivada dentro de parâmetros éticos ela puder ser.
Dizer que a ética não importa para toda uma população quer dizer que as pessoas estão a cada dia mais inconscientes da barbárie na qual estão lançadas. E essa inconsciência tende a aumentar a barbárie contra a qual um projeto de humanidade autônoma em cada um dos seus indivíduos deve sempre se realizar. Mas é um fato também que a ética não ajuda o poder. Ao contrário. Inclusive, ela pode ser algo perigoso para ele. Por isso, muitos preferem fingir que ela não é uma questão. Outros preferem agir contra ela. Todos, de qualquer modo, preferem apagar sua existência.
É um fato também que pouca gente costuma refletir sobre o que seja ética, seus limites e alcances porque considera que a questão legal e jurídica se resolveria sem precisar recorrer a essa instância marcada pelo lugar da subjetividade. No entanto, sem uma reflexão sobre o uso político das instâncias subjetivas, tendemos a continuar submetidos às regras que hoje nos transformam em robôs, inclusive na hora do voto.
Entendendo a ética como um campo de análise da ação e da mentalidade que a produz, devemos, por uma questão ética, nos perguntar diariamente por que a ética desapareceu da esfera pública e por que ela atualmente não está sendo considerada em um nível geral. Se ética não vem mais ao caso, se ninguém se importa muito com ela, é porque sofremos uma mutação cultural e política que precisa ser melhor pensada. É como se a separação entre ética e política que vemos na formulação “os fins justificam os meios” enunciada por Maquiavel há 500 anos tivesse se efetivado como o espírito da ação em geral que há no Brasil hoje. Mas isso precisa ser urgentemente repensado.
Com isso, quero dizer que ética é algo da ordem do que podemos definir como sendo o “mais fundamental”, o que está na base, o que dá sustento às construções que podemos fazer. Isso porque todo o edifício social, bem como o edifício individual que somos, é insustentável sem ela.

5- Escrevo esse artigo em um contexto específico, quando a famosa Operação denominada Lava Jato se revela corrompida em sua base. Durante anos essa operação foi motivo de esperança para brasileiros que acreditavam em um honesto “combate à corrupção” por parte de agentes da justiça, mas acabou se revelando uma operação que buscava apenas perseguir e aprisionar inimigos políticos. No caso, um personagem em específico, o ex-presidente Lula da Silva, então pré-candidato e seguro vencedor da eleição para presidente, caso não tivesse sido injustamente aprisionado e impedido de concorrer. A consequência é que, em nome da “luta contra a corrupção”, se promoveu uma ação corrupta em si mesma e que jamais seria desmontada porque teria sequestrado o discernimento das pessoas. Mas apareceram jornalistas descomprometidos com os poderes vigentes e o que estava oculto veio à tona.
As motivações que levaram a Lava Jato adiante eram de ordem moral. As pessoas estavam dispostas a pagar qualquer preço em nome da luta contra a corrupção. De um ponto de vista pragmático, os resultados concretos foram pífios em termos de “devolução” de valores aos cofres públicos. A operação custa financeiramente muito aos cofres públicos, sendo seus benefícios inexistentes. Até porque os efeitos da operação incluem a destruição de empresas estatais e também privadas e, desse modo, a perda de empregos e o desmantelamento de toda uma cadeia econômica.
Esse cálculo a ser feito é fundamental. Se quisermos ver quanto custa o moralismo e as soluções messiânicas precisamos ficar atentos. Certamente, o fomento à filosofia e à sociologia, à educação e à formação das pessoas irá ajudá-las a serem mais éticas, mais comprometidas moralmente e menos moralistas. Os efeitos na economia serão imensos porque sabemos que a economia também precisa de ética e também se deixa levar por afetos. A ética implica racionalidade e preservação de valores fundamentais como direitos e dignidade humanos, liberdade e autonomia individuais, sem perder jamais de vista que tudo isso só poderá se sustentar em contextos de democracia.
Ao fim e ao cabo, o desprezo pela ética é parte do desprezo à democracia, como é parte do desprezo ao outro, às pessoas e ao povo, desprezo que é parte essencial do jogo das posturas autoritárias a serem superadas.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Charge! Mor via Folha de São Paulo

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Charge! Benett via Folha de São Paulo

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Rafiki: alegrai não é luxo por aqui

  Cecília Floresta 

Rafiki: alegria não é luxo por aqui

Sheila Munyiva (Ziki) e Samantha Mugatsia (Kena) em cena de Rafiki, de Wanuri Kahiu (Foto: Divulgação)

Tribadismo é uma panaceia ancestral e vale a pena
uma panaceia ancestral e vale a pena
[do poema “intimacy no luxury”, de Cheryl Clarke]
Rafiki, termo em suaíli que significa “amigue”, deu nome ao segundo longa-metragem da diretora Wanuri Kahiu, co-fundadora do movimento AfroBubbleGum, cujas premissas apontam para a importância da arte em benefício da arte e da imaginação, evidenciando a importância de narrativas que não passem necessariamente pelo crivo da dor e da denúncia. O primeiro longa queniano a ser exibido no Festival de Cannes, que veio para a 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e compôs a Mostra de Cinemas Africanos no CineSesc, carrega um título que remete à amizade entre duas mulheres e abriga uma história de amor em um país que condena “práticas homossexuais” com pena de reclusão de até 14 anos.
O enredo do longa foi baseado no conto “Jambula Tree”, da escritora ugandense Monica Arac de Nyeko, com suas personagens Anyango e Sanyu. O título do filme e ambas as histórias encontram facilmente proximidades por aqui. Digo, quantas vezes não chamamos um afeto de “amiga” por alguma imposição externa em determinados espaços? Embora, sim, sejamos amigas e companheiras, essa palavra é usada muitas vezes pra encobrir a outra parte da história, aquela que precisa ser omitida dos outros, que nos livra do julgamento social e da vergonha de nossos pais. E embora a lei teórica e muito seletivamente (pois sabemos a quem serve) não alcance o nosso amor, a reclusão ainda existe, assim como o linchamento físico, social ou psicológico, a exclusão, a solidão.
Mas Rafiki também me fez pensar em sonhos. Anyango e Sanyu naquele galho proibido no alto da mangueira, Kena e Ziki no telhado de um prédio dizendo uma pra outra que poderiam ser qualquer coisa. A grandiosidade dos sonhos, o ato grandioso de sonhar e compartilhar desejos. Kena diz que sonha em ser enfermeira. Ziki rebate, afirmando que ela pode ser médica, que pode o que ela quiser ser. Eu já estive aí, pensei. Nesta mesma cena. Nós já estivemos, lembra? Quando tentavam nos dizer tudo o que a gente podia e devia ser, quando tudo o que por nós se vislumbrava adiante era um futuro borrado, incompleto. Um futuro sem sonhos. Uma vida sem possibilidades, sem as nossas possibilidades.
Após assistir ao filme, além de lembrar de mim mesma porque, pensei, as personagens poderiam ser sapatões pretas de qualquer comunidade periférica daqui, me peguei pensando em algumas vozes. Pensei em Noir Blue: deslocamentos de uma dança (2018), um curta de Ana Pi em que a artista desvenda ancestralidades ancoradas em África, já começando pela tripulação do avião, toda composta por pessoas negras, e passando por sua experiência de se ver pertencente a nenhum lugar específico do continente, mas a todos. Pensei, então, em negritude. O que é ser negrx aqui, pra mim, pra gente? O que significa o desejo de Ziki de viajar pra um lugar em que as pessoas provavelmente nunca viram uma africana? Desejo de ser e se encontrar em qualquer lugar, e que não seja na condição de outra.
Lembrei de Sokari Ekine, escritora nigeriana cujo artigo “Narrativas contestadoras da África queer” (2013) ajuda a elucidar a noção essencialista de uma “africanidade autêntica” que apoia a ideia de que a homossexualidade seria algo “não-africano”, num discurso fundamentalista que afirma que as iniciativas ocidentais em prol das identidades queer em África são imperialistas. Por outro lado, há também uma narrativa que taxa o continente como um lugar de “homofobia obsessiva”, alvo de interesse por parte de ativistas LGBTQI brancos ocidentais que “espetacularizam a homofobia africana como sendo um fenômeno geográfico único, sem conexão com a história local e global e essencialmente inerente à cultura africana”, numa tentativa de universalizar forçosamente o queer a partir de um viés da branquitude europeia e estadunidense, quando não impor controle variado de poder se utilizando do assistencialismo pró-LGBTQI como fachada, movidos pela premissa absurda de “salvar os africanos da África”.
Ekine, denunciando a imposição de uma “narrativa ocidental sobre as lutas queer africanas”, encontra seu eco decolonial no “cuírlombismo literário”, conceito cunhado em uma “tradução-retomada” por Tatiana Nascimento, numa aproximação de nossa linguagem própria, e que dá nome a um artigo seu recentemente editado, Cuírlombismo literário: poesia negra lgbtqi desorbitando o paradigma da dor (n-1, 2019), que já abre da seguinte forma:
“a negritude LGBTQI+ enfrenta estereótipos que taxam homossexualidades/dissidências sexuais de ‘praga branca’, contaminando os viris povos negros ‘africanos’ […] pela via da colonização. consequentemente, orientações sexuais, identidades de gênero, prática de sexo-afeto que são, efetivamente, negramente ancestrais y documentadas por exemplo em mitos fundacionais (como os itans) são ditas embranquecimento/colonização.”
Na escrita-potência de Tatiana encontramos também reflexões que nos fazem retomar justamente o AfroBubbleGum de Wanuri Kahiu: “o racismo tem tentado, secularmente, nos calar ao proferir discursos ‘autorizados’ sobre nós. quer nos roubar o direito à existência plena, complexa, diversa. mas somos seres complexos. não só máquinas de resistência e denúncia”.
Rafiki, que me remeteu a todas essas e a muitas outras vozes, que tanto me fez lembrar origens ancestrais quanto futuros possíveis de invenção e reinvenção, desperta (e é fruto de) muita coragem e realização imaginativa. Com suas cores vibrantes e texturas tão táteis que não remetem a outra coisa senão ao riso, sua narrativa não nos fala de redenção diante de uma sociedade que nos invisibiliza e pune de formas variadas, negando o reconhecimento de nossos afetos e existências, pois, como Kena e Ziki, não precisamos sucumbir às narrativas de dor e denúncia para criar e encontrar esses futuros possíveis. Trata-se antes de uma narrativa conduzida por e condutora de vida, de vidas que possuem suas ambiguidades, enfrentamentos, dúvidas como outra qualquer. E com alegria. Pois a alegria, como bem disse Wanuri Kahiu, é política.

CECÍLIA FLORESTA afrodescende, é escritora, candomblezeira e sapatão. Ganha a vida editando livros. Pesquisa narrativas, poéticas ancestrais iorubás e seus desdobramentos na diáspora negra contemporânea, lesbianidades e literaturas insurgentes. Tem editados os poemas crus (Patuá, 2016) e a zine genealogia (Móri Zines, 2019).

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Michel Zaidan Filho: Verborragia presidencial


sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Michel Zaidan Filho: A vida e a morte de Lula




  • O grande líder sul-africano que comandou a luta contra o "apartheid" em seu país, Nelson Mandela, passou 15 anos preso numa cela comum. Condenado várias vezes a morrer na forca, Mandela inspirou inúmeras campanhas internacionais de solidariedade para si e sua causa humanitária. Quando se findou o regime de segregação racial e espacial da África do Sul, o prestígio mundial e nacional do líder africano só fez crescer até torná-lo a  maior personalidade política de seu país. A  prisão - mormente, por razões políticas - não retira o brilho e a legitimidade de ninguém. Pelo contrário. Contribuí para a aura de sacrifício e desprendimento do líder social. A morte seria uma consagração definitiva  de uma tipo de liderança carismática como essa.

    Essas considerações vêm a pelo, em razão da prisão política e ilegal do maior líder político do Brasil, depois de Getúlio Vargas, o ex-metalúrgico e  militante sindical, Luis Inácio Lula da Silva.Hoje, com a publicação das conversas de bastidores dos integrantes da operação Lava-Jato, tem-se a prova irrefutável (até para os "mais" crentes) das motivações políticas do processo ilegal e da prisão do líder político brasileiro. Desde que foi preso e condenado a 15 anos de prisão, o prestígio político e eleitoral de Lula só fez crescer, no mundo e no Brasil. Romaria e peregrinações de caravanas de intelectuais, políticos, militantes ao seu  cárcere curitibano só fizeram aumentar cada vez mais. Pode se dizer, como uma consagração indiscutível de sua reconhecida e justa popularidade nacional. Ele se transformou numa bandeira de luta contra o estado de coisas ruinosas que temos diante de nós. O sinônimo de tudo aquilo que contraria esse nefasto (des)governo.

    Por isso, se essa manobra da juíza das execuções penais do Paraná,  tinha um efeito diversionista em razão dos formidáveis protestos da sociedade em face da reforma da previdência social (ora em fase final de votação), ela continha  uma mensagem mais grave: uma ameaça direta à vida do ilustre preso político. Numa prisão comum, como a de Tremembé (SP), Lula poderia simplesmente ser assassinado e tudo ficaria limitado ao universo das super populações carcerárias e suas intermitentes revoltas. E assim, os golpistas de 2016 se veriam livres de um incômodo e perigoso nome, acusando-os permanentemente do assalto ao estado brasileiro, a serviço do mercado.
     
    A decisão do STF, por quase unanimidade, sob a pressão de 70 parlamentares, deve agora ser completada, se não tivesse sido uma mera manobra diversionista, com a análise e deliberação sobre o processo de suspeição do senhor Sergio Moro na condução do fraudulento processo de investigação e condenação do presidente Lula, bem como pela perda do cargo do senhor Deltan Dalagnol, pelo Conselho Nacional do Ministério Público Federal. São medidas correlatas com a grande farsa judiciária do início do século XXI no Brasil.

    Michel Zaidan Filho é Filósofo, Historiador, Cientista Político, Professor Titular da Universidade Federal de Pernambuco e Coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia

Charge! Jaguar via Folha de São Paulo

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segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Charge! Montanaro via Folha de São Paulo

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Editorial: A abolição da verdade ( e da Comissão da Verdade, naturalmente)



 Imagem relacionada
Michel Onfrey

Ao longo da História, os regimes fascistas sempre guardaram algumas semelhanças entre si. Elegem uma causa - quase sempre uma cruzada contra a corrupção, normalmente liderada por agentes de conduta nem tão ilibadas assim - identificam seus inimigos e liberam a trupe entorpecida para persegui-los. Com o avanço da tecnologia, esses métodos tornaram-se mais sofisticados. A disseminação de mentiras(fake news), por exemplo, hoje é realizada através dos robôs criados com esta finalidade, por meio das redes sociais. Talvez pudéssemos falar aqui numa espécie de tecno ou neofascismo, onde  o repertório de sordidez do adeptos do regime é amplamente empregada para destruir a reputação dos adversários, não importando sua condição, se doente grave com câncer, como é o caso da mãe do jornalista Gleen Greenwald, violentamente atacada pelas redes sociais, assim como a filha do presidente da OAB, a atriz Duda Santa Cruz, de apenas 13 anos.

Na realidade, o termo mais apropriado seria "inimigos" e não adversários. Afinal, já não estamos numa democracia, onde pressupõe-se um certo grau de tolerância e respeito com quem pensa diferente. Dando sequência à série de editoriais onde estão sendo tratadas as  categorias das ditaduras de um novo tipo, a partir da leitura que o filósofo francês Michel Onfrey, faz da obra de George Oswell, 1984, o tema que gostaria de tratar hoje diz respeito à abolição da verdade.Como o Brasil tem algumas singularidades, o conjunto de maldades inerentes aos regimes fascistas, aqui, também guarda algumas especificidades, como, por exemplo, ridicularizar famílias que tiverem seus entes queridos torturados e mortos pela ditadura militar instaurada no país com o golpe civil-militar de 1964. 

Mas, a rigor, a abolição da verdade é o tema desta semana. Nos regimes fascistas ou de ditaduras de um novo tipo, observa o jurista Rubens Casara, ocorre uma substituição da verdade pela pós-verdade. Aqui, consoante os interesses dos governantes de turno, a mentira produz efeito de verdade. Trata-se de um novo regime de verdades, sem que a verdade esteja presente.  Em texto recente, publicado nas redes sociais, o cientista político Michel Zaidan Filho observa que no livro 1984, de George Oswell há referência a um Departamento da Memória, que cumpria a missão de recontar o passado consoante as conveniências do presente. Nada mais apropriado às circunstâncias políticas hoje observadas pelo país. Somente nesta semana, até o aparato tecnológico de verificação técnica sobre o desmatamento da região amazônica foi desmentido e o diretor do INPE afastado do cargo. Competência técnica e altivez tornaram-se uma combinação explosiva, num país onde a mentira assume status de verdade.

Está em curso um manual de perversões. Num momento em que as instituições da democracia estão sensivelmente fragilizadas. Posso ter reticências em relação a algumas posturas de nossa Suprema Corte, o que se enquadra perfeitamente dentro do escopo do jogo democrático. No entanto, O STF foi massacrado pelas redes sociais ao requisitar os áudios comprometedores antes que eles sejam reeditados ou mesmo apagados. Quando ainda se há algum respeito pela democracia, não se pode achincalhar o Poder Judiciário, mesmo sabendo-se que ele se tornou susceptível às injunções de caráter político. Mas, por outro lado, como conter uma trupe ensandecida, movida pelo ódio, pela raiva, inflada pela intolerância, numa condição que somente os bons analistas de psicologia de massa poderiam explicar o fenômeno?



Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Ensaio: "O Brasil não é para principiante"


Celebrado na última Flip, o angolano Kalaf Epalanga faz um balanço de sua passagem por aqui e questiona: “até quando irá durar esse fla-flu?”
Kalaf Epalanga 31jul2019 15h10
 

O escritor angolano Kalaf Epalanga
A frase título deste texto é atribuída ao maestro António Carlos Jobim, e surgiu-me no momento em que as rodas do Boeing 777 que me levava de regresso à Europa se desprenderam do asfalto de Guarulhos. A luz crepuscular que cobre a selva urbana paulista revelou-se então em todo o seu esplendor. Um momento melancólico que caracteriza as despedidas, não fosse o Brasil, como todos os países que se expressam na língua de Noémia de Sousa, um país tão íntimo da saudade. É um género de tristeza que tanto ri como chora, confundindo gente bem-intencionada que a tenta entender, mas que ainda desconhece este nosso gingado. Sou vosso cúmplice, sei bem onde a melancolia começa e do que se alimenta, de incerteza.

Que Brasil é este?
A pergunta leva até os mais céticos a coçarem a cabeça diante de tanto absurdo, desconfiados de estarem a viver dentro de um enredo saído do lápis de Dias Gomes. O frio da situação fazia-se sentir nas noites de Paraty, onde a convite da sua Festa Literária Internacional (Flip) pude testemunhar o aflorar das emoções sempre que o tópico se esquivava da literatura e fugia para a política. Nasci no país da Rainha Nzinga Mbande e, por lá, a discussão acabar em política é-nos inevitável, até quando falamos de amor damos um jeito de politizá-lo. Para nós, angolanos, o conceito de soberania saiu-nos caro, foi conquistado, e levar política para todas as discussões tornou-se uma forma de nos mantermos vigilantes, exercitando o músculo da memória.

Diante das plateias que visitei no festival, pensei no quão jovens são os nossos estados democráticos, talvez por sentir a presença de uma nuvem bem carregada pairando sobre a cabeça dos presentes. Os nervos nem sempre foram de roer unha, mas a tensão foi sempre palpável. Assim foi no Auditório da Matriz, quando o ruído da rua invadiu a arena onde decorriam os debates da festa literária mais celebrada do Brasil. Alguém sussurrou, explicando, que eram ‘os pró-situação, protestando contra a presença de Glenn Greenwald’, que naquele momento discursava, junto à margem esquerda do rio Perequê-Açu, sobre os desafios do jornalismo em tempos de Lava Jato. O hino nacional começou a tocar no volume máximo para silenciar um dos pilares da democracia, o direito a uma imprensa livre. As ameaças de morte feitas ao gringo da Intercept destoavam dos versos da canção nacional, e até direito a foguetes o jornalista teve, como manobra explosiva para afastar a atenção da sua voz. 
Dentro do auditório, Grada Kilomba, a generosa xamã de voz serena, nos tocava fundo na alma a cada frase proferida, expondo feridas e aplicando bálsamo da verdade, lembrando-nos a todos de como se luta jogando limpo. Por um pouco, suspirou-se de alívio. Eu, sentado no palco, ao lado de Grada e da historiadora Lilia Schwarcz, com quem partilhei o privilégio de moderar a conversa com uma das mais importantes vozes culturais do nosso tempo, respirei fundo. Olhando para o rosto das pessoas que lotavam os 512 lugares daquela arena, não pude deixar de me questionar: até quando irá durar esse fla-flu entre brasileiros?
Tempo. 
“Como soube bem”, partilhavam conosco os leitores que nos chegavam, depois de enfrentarem longas filas de autógrafos. Entre os sorrisos e confissões de gratidão, era possível identificar-lhes o ar atordoado, fazendo lembrar um pugilista que recupera no intervalo de um combate. As pessoas estão cansadas de defender a punho os seus pensamentos e posicionamentos ideológicos e, em Paraty, com os nossos livros nas mãos, ou num abraço afetuoso para a obrigatória selfie, senti que aquele contacto com as autoras e autores representavam a tão desejada pausa, o momento em que os lutadores estão recolhidos no canto do ringue, com a cabeça a latejar da troca de socos. Quase todos pareciam tentar lembrar-se de quando tudo isto começou e como foi possível chegar onde se chegou. 
A primeira vez que visitei a Flip foi em 2017, como espectador, e lembro-me de me sentir maravilhado com a proximidade entre autores e público. A minha atenção, na altura, foi sobretudo para a participação de autoras negras, presença essa que se fez sentir na edição seguinte, em 2018, e se refletiu também neste ano, onde não só marquei presença enquanto autor, como acabei por fazer parte da lista de livros mais vendidos. No topo da tabela, duas escritoras negras de origem africana: Grada Kilomba e Ayọ̀bámi Adébáyọ̀. Depois delas, Ailton Krenak, um brasileiro original da tribo dos crenaques, e depois, eu e Gaël Faye, parceiro de mesa com quem me encontrei ali pela primeira vez, mas que, durante a nossa conversa, moderada por Marina Person, senti como se tratasse de um reencontro de velhos amigos. ‘A Flip também é isso’, confessavam-nos os veteranos do mercado literário. 
Isso e muito mais. 
Uma lista liderada por autoras e autores negros suscita muitas perguntas e, quando questionado sobre o assunto por jornalistas, não consegui deixar de reparar que, embora seja motivo de celebração, essa possibilidade de festa existe devido ao conjunto de politicas sociais — incluído o sistema de cotas nas universidades brasileiras — que permitem o surgimento lento, mas consistente, de um grupo de consumidoras e consumidores ávidos por uma cultura plural, que até há bem pouco tempo não tinha acesso a espaços de produção e celebração de pensamento. 
No entanto, para celebrarmos esta lista feito bloco Olodum a passar na avenida, faltam ainda, ao lado destas autoras e autores, os nomes de editoras e editores negros, que nos garantirão, sem mais desconfianças, que estes números de vendas não se tratam de uma moda no mercado editorial brasileiro, reagindo a uma tendência global no universo da literatura contemporânea. É preciso que em quantidades ajustadas com a realidade social brasileira, as estórias e a história dos 54% dos brasileiros -  negras e negros - narradas por autores e autoras de pele escura, como a de Conceição Evaristo, sejam visíveis e recebidas por todos os amantes de literatura, só assim os dados estatísticos dessa ordem deixarão de dominar as manchetes. 
Numa sociedade onde nas suas Letras perfilam nomes como os de Maria Firmina dos Reis e o de Machado de Assis, listas com autores negros estrangeiros, ainda que importantes, não deveriam ser motivo de manchete. Em destaque no jornal deveria estar o que, nos últimos três anos, os leitores da Flip, ao colocarem na tabela dos mais vendidos Lázaro Ramos, Djamila Ribeiro e Geovani Martins, demonstram: um Brasil que, entre explosões e hinos em volume máximo, luta desde sempre, e não aceita mais que a sua voz se pareça a um grito abafado junto a um rio. Pede agora, e mais do que nunca, um Brasil brasileiro. E dentro dele, sabemos que cabe o mundo.
Que se abra então a cortina do passado!

(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros Quatro Cinco Um)

Moradores do Recife em situação de rua

Resultado de imagem para moradores do recife em situação de rua

Fome e frio, emergenciais para quem?
O desamparo programado das pessoas em situação de rua na cidade do Recife
Michel Zaidan Filho *
Mauricio Ferreira **
Patrícia Félix*** 
A cidade do Recife é um braço de mar – um longo braço de um mar de misérias. A frase é do célebre geógrafo pernambucano Josué de Castro [1] em seu livro “Homens e Caranguejos”, na busca de caracterização da capital pernambucana. Esta, segundo o autor, chamada, igualmente Veneza e Amsterdã, cidade anfíbia, dada a razão de ela ter nascido e crescido tendo por base “bancos de solo ainda mal consolidado – mistura ainda incerta de terra e água”, numa vista aérea percebendo-se a conformação de seus diferentes bairros “esquecidos à flor das águas” [2]. Sua paisagem urbana moderna parida em mais de quatro séculos de aterramento de alagados e manguezais.

No período de inverno, diante do reconhecido estado de calamidade, sobremodo ao travamento da mobilidade urbana e ao aumento da tensão nas áreas de risco, o cidadão e a cidadã recifense e os de suas cidades vizinhas da Região Metropolitana, que diariamente vem trabalhar em seu território enfrentando as dificuldades do trânsito e do tempo, sempre se perguntam pela resistência, ou falta de estrutura, da cidade no enfrentamento às fortes chuvas, questionando esse dom anfíbio da cidade. A ameaça de possíveis deslizamentos nas áreas de morro - onde via de regra mora somente povo pobre - e a possível e ameaçadora notícia de uma tragédia com vítimas da decorrente também é, infelizmente, um ritual que já é íntimo da população recifense.

Para amortizar esse problema a Prefeitura do Recife conta, há muitos anos, com a “Operação Inverno”, num trabalho conjunto coordenado pela Secretaria de Defesa Civil, em parceria com a ENLURB, CTTU e outras secretarias, executando atividades desde dezembro de monitoramento das áreas de risco, visitações às residências ameaçadas, colocação de lonas plásticas para contenção de barreiras, limpeza de canais, etc.,

Quando há mais chuvas que o esperado, como neste ano de 2019, a situação se agrava. Apesar dos esforços empreendidos, a Região Metropolitana do Recife, nestes dois últimos meses, já registrou 23 mortes, cinco delas em Recife, uma das maiores médias das últimas décadas.

Diante dessa realidade trágica, como se sabe já existe, há muitos anos e gestões, no Recife, um plano emergencial e uma estrutura preparada, ainda que insuficiente, pela administração da prefeitura para o enfrentamento ao período de inverno. As críticas de que algumas de suas medidas são tão somente paliativas, no trato às raízes do problema habitacional e da pobreza é outra face da questão, ainda que componha a mesma história. De todo modo é inegável a atenção e a alta destinação orçamentária que a Prefeitura da Cidade do Recife realiza para este setor. Tendo destinado mais de 80 milhões de reais para esse fim, segundo nota divulgada pela própria instituição. O erário público deve ser gasto para cuidar das pessoas, nada mais justo que assim o seja. 

No último 24 de julho, após uma das maiores precipitações pluviométricas do período, a Prefeitura do Recife divulgou balanço sobre as chuvas no qual reafirmava seu compromisso de assistência às vítimas, inclusivamente às que ficaram desabrigadas seriam oferecidos abrigos a expensas da Prefeitura. Os alertas de previsão de chuvas fortes são emitidos pela Agência Pernambucana de Águas e Clima (APAC) e difundidos pelo Governo do Estado e demais municípios, sempre com a orientação de buscar abrigo e um local seguro.

E se a rua fosse a sua casa? Sr. Geraldo Júlio, Prefeito do Recife e - por compartida de responsabilidade - o governador do estado, Sr. Paulo Câmara, seria ela, a rua, um local seguro para se abrigar neste período do inverno, ou, na verdade, o avesso disso?

O período de chuvas traz novos perigos para além dos já existentes nas ruas do Recife, do centro à periferia. E quem não tem para onde ir, quem vive nas ruas o que pode fazer? As mulheres e homens, meninos e meninas que não tem lugar seguro e casa para se abrigar, como indica a Prefeitura às suas cidadãs e cidadãos que assim o façam durante as precipitações pluviométricas, a essas pessoas lhes é garantido abrigo igualmente aos demais desabrigados das chuvas? Foi elaborado algum plano emergencial nesse sentido?

Estas perguntas não são nada absurdas, poderiam partir de cada uma das mais de mil pessoas que vivem em situação de rua no Recife [3], certamente elas tem todo direito de perguntar. Aliás, elas têm direitos por lei, ainda que sejam constantemente violados, inclusive pelos entes públicos.

Igualmente a ausência de um plano emergencial para abrigar as pessoas em situação de rua no período das chuvas, também nada foi providenciado emergencialmente referente à alimentação, haja vista o único restaurante popular co-administrado pela prefeitura do Recife, foi fechado há alguns anos e nunca reaberto outro que ofertasse alimentação a baixo custo. A Prefeitura já foi oficiada pelo Ministério Público do Estado, a partir de reivindicação de entidades da sociedade civil, no sentido de debater e providenciar o serviço após audiência pública realizada sobre o tema, mas até o momento somente apareceram promessas de distribuição de quentinhas que ainda não se efetivou [4]. Mesmo sabendo que quem tem fome, tem pressa, e também quem passa frio.
Mas, no atendimento às pessoas em situação de rua, que representam uma das faces da pobreza extrema no Brasil, e no Recife, a Prefeitura não tem se mostrado sensível às urgências dessa população, para além do discurso de apoio, esse sim, sempre há. Mas na administração pública julgam-se os feitos e não apenas o discurso, ainda que seja o mais bem intencionado. Quem está “na ponta” da administração, como é o caso dos representantes da gestão presentes no Comitê, independente do cargo, não tem como avançar sem que haja a chancela autêntica do mandatário municipal, Sr. Geraldo Júlio de Mello Filho.
E não é deveras por falta de cobrança, já que todas as entidades da sociedade civil que integram o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua do Recife (Comitê Pop Rua/Recife) [5], inclusive representantes das pessoas em situação de rua e o Grupo de Estudos Pobreza, Trabalho e Lutas Sociais do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia da Universidade Federal de Pernambuco [6], têm reivindicado insistentemente nos últimos meses, dentre várias outras pautas, pela elaboração desse plano emergencial, que atendesse no mínimo esses dois itens: alimentação e abrigo no período do inverno. Mas ambos foram negados, sempre com a justificativa orçamentária, ou seja, não se tem dinheiro para esse fim. Todavia, não resta dúvida de que a questão não é falta de dinheiro, mas sim de prioridade.

Uma equipe do Comitê PopRua, buscando viabilizar esse possível local para as pessoas em situação de rua no inverno, chegou a visitar no mês de junho um abrigo da Prefeitura situado no bairro de São José, à Travessa do Gusmão, nas imediações da Rua Imperial, este com a funcionalidade de acolher os possíveis desabrigados da chuva. Lá se diagnosticou condições favoráveis para receber as pessoas, no entanto, em reunião ocorrida em junho entre membros do Comitê e a Secretária Executiva Geruza Felizardo, vetou-se tal possibilidade por “não comportar nas contas da Prefeitura”.

As pessoas em situação de rua sofrem durante todo o ano nas ruas do recife – como em tantas outras cidades brasileiras, expostas às violências e insalubridades do ambiente da rua diuturnamente, e comumente sem proteção do estado, sobremodo à noite [7]. Para essas pessoas que tem no período das chuvas de enfrentar o alagamento de seus locais de dormida e a dura intensidade do frio, para elas não há qualquer plano emergencial neste período de inverno na cidade do Recife. Nem também para garantir sua alimentação a baixo custo ou gratuitamente.
É desolador chegarmos à conclusão que nem em demandas simples, mas urgentes e fundamentais, a gestão da Prefeitura tem dado a devida atenção à população em Situação de Rua. Um exemplo emblemático é o fato de que nas reuniões do Comitê, que ocorrem sempre à última quarta-feira de cada mês, normalmente das 14h às 17:30, não foram até o momento garantidas as condições dignas de participação das pessoas em situação de rua neste ambiente, já que várias vezes ocorreu de pessoas em situação de rua terem de se ausentar antes do término da reunião para conseguir se alimentarem a tempo, pois a Prefeitura nunca, até agora, garantiu neste momento de reunião alimentação à elas, para que pudessem participar sem a pressa de correr para pegar a fila da distribuição de alimentação gratuita realizada por organização filantrópicas, religiosas ou não.

O POPULUS sempre cobrou veementemente, ao lado de outras organizações da sociedade civil que compõem o Comitê, o dever da Prefeitura neste quesito, sempre ficando com a promessa de que na próxima reunião seria garantida. As pessoas em situação de rua que permanecem no espaço correm o risco, ou arcam com a consequência, de ficarem com fome. Como dito, promessa houve, mas efetividade, nenhuma.

Situações como esta dizem muito da atual conformação da dinâmica e visão nutrida, até o momento, pela gestão do prefeito Geraldo Júlio a respeito do Comitê PopRua instituído por lei, o qual deveria, mas não tem, o poder de influir diretamente nas decisões e fiscalizar as políticas públicas direcionadas para a população em situação de rua. No entanto, esta prática é semelhante à obra “Legitimação pelo Procedimento”, teorizada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann em 1969 [8], na qual elabora um entendimento de que na administração dos conflitos de interesses sociais o Estado/Gestão exerce a centralidade, enquanto a Sociedade Civil a periferia, e as decisões, juridicamente reguladas e filtradas e sob a estrutura procedimental, são legitimadas como emanadas da coletividade. No discurso da administração municipal, o apoio a essa população está sempre posto como prioritário, porém, na prática a realidade tem se mostrado bem diferente. A análise do atendimento às pessoas em situação de rua em Recife partindo-se de tal discurso estaria fadada ao equívoco.

Estão muito distantes as condições que garantam paritariamente o poder ao Comitê Pop Rua/Recife para cumprir com a finalidade maior para o qual foi criado, qual seja, a de formular e monitorar a política de atendimento à população em situação de rua no Município do Recife, bem como propor medidas que assegurem a articulação das políticas públicas municipais para o atendimento à população em situação de rua.

Ou seja, nesse modus operandi os entes da sociedade civil compõem o “aparelho”, mas nada decidem, ainda que sejam elementos necessários e indispensáveis para tal legitimação. Nesta compreensão é improvável o exercício de um protagonismo da sociedade civil organizada como uma “força contra-hegemônica”, como pensou o filosofo italiano Antônio Gramsci [9].

Foi como força contra-hegomônica, através de muita luta e organização, protagonizadas pelos movimentos sociais compostos por pessoas em situação de rua, como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR, fundado em 1985) e o Movimento Nacional de População de Rua (MNPR, fundado em 2005), em conjunto com outras organizações da sociedade civil, que derivou um conjunto de conquistas para a Pop Rua, entre elas sua inclusão na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS (2005, Lei nº11.258), a realização da Pesquisa Nacional da População em Situação de Rua (2007/2008) e já citada Política Nacional para a População em Situação de Rua (2009), entre outras.

A agência desses atores insurgentes manifestou-se numa clara fissura com as seculares estruturas de exclusão dessa parte da população brasileira, tendo galgado progredir em sua saída da invisibilidade na atenção das políticas públicas ao garantir sua primeira contagem nacional, ainda que sem a abrangência do Censo Demográfico que, a despeito de ser realizado desde 1872, até a presente data mantém as pessoas em situação de rua de fora, inclusivamente do próximo, a ser promovido em 2020, ainda que figure entre os objetivos da Política Nacional para a População em Situação de “instituir a contagem oficial da população em situação de rua”. Mas a ruptura com tão profunda e entranhada exclusão é processual e comporta avanços e recuos em seu caminho, tendo que ser constantemente reafirmada pelos interessados. Constar na lei, não é garantia de efetividade. Aí está a distância entre o posto e o pressuposto do texto legal.

Na última reunião do Comitê PopRua/Recife fomos surpreendidos com a “novidade” de que pessoas em situação de rua já não haviam podido entrar no prédio da Prefeitura, em razão de uma normativa da administração de que pessoas de bermuda não podem entrar no edifício sede da administração municipal. Nem a autorização para a entrada havia sido providenciada. Um verdadeiro descalabro e insulto ao acesso dos mais interessados a um espaço que também é delas. E isso deveria e tem de ser garantido [10].

Mas não é de se estranhar que até mesmo os representantes da gestão tenham se admirado com essa “novidade” e dito não saber que havia ocorrido esse problema, ainda que tivessem ciência desta norma, inclusive válida para servidores. Sabem, também, tais representantes que as pessoas em situação de rua normalmente usam bermudas. Mas essa concatenação não parece ter lhes ocorrido. Realmente, integração das informações e secretarias, trabalhando e planejando de modo articulado, e compartilhando os dados, como preceitua as diretrizes e objetivo primeiro da Política Nacional Para População em Situação de Rua [11] – criada em 2009 e com adesão da PCR em 2015 - está muito distante de ser uma característica da gestão atual da Prefeitura da Cidade do Recife no atendimento a este setor.

Uma contradição se acariado com o que foi firmado por Geraldo Júlio no primeiro “Plano municipal de atenção integrada à população em situação de rua no Recife 2014 – 2017” no qual afirma que “A operacionalização desde plano se dará a partir da articulação intra e intersetorial e da transversalidade no desenvolvimento de ações prioritárias para promover o acesso da População em Situação de Rua ao conjunto das políticas públicas. Para tanto, deve estar em consonância com os princípios e diretrizes da Política Nacional instituída pelo Decreto Presidencial n° 7.053/2009”.

Nesse plano se observa em seus eixos 2 e 3 o compromisso dessa articulação intra e intersetorial no sentido de “favorecer o processo de articulação e diálogo entre as ações, os programas e projetos socioassistenciais do Sistema Único de Assistência Social, para garantia da integralidade das proteções ofertadas aos indivíduos e suas famílias; pactuar ações estratégicas para assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, assistência social, habitação, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda. Estas ações visam à garantia dos direitos; o resgate da autoestima e a reorganização dos projetos de vida das PSR.” Premissas essas endossadas pelo texto da lei que instituiu o Comitê Municipal (18.503 /2018) quando trata da condução de seus trabalhos “As ações deverão ser executadas de forma descentralizada e integrada, por meio da conjugação de esforços de secretarias, órgãos e instituições da Administração Municipal, que atuarão numa perspectiva de intersetorialidade e de interdisciplinaridade, garantido o controle social e a participação da sociedade civil, observados os objetivos e as diretrizes da Política Municipal de Atenção Integral à População em Situação de Rua.” Ainda hoje esperamos, entes da sociedade civil, por essa integração administrativa que lastimavelmente ainda não se concretizou, para além do discurso estatal e da azeitada propaganda que indica isso.

São muitos os casos que confirmam esta realidade, talvez o mais simbólico seja o fato de, mesmo a criação do Restaurante Popular e do abrigo noturno e ampliação dos serviços de atendimento à População em Situação de Rua, sendo reivindicações centrais do Comitê PopRua, e assunto corrente de debate e cobrança nas reuniões deste, nós e os gestores que participam do Comitê ficam sabendo [assim disseram] pela imprensa da previsão de inauguração, em parceria com a iniciativa privada, de três restaurantes populares, um abrigo noturno e criação de quatro centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), obras tais anunciadas publicamente pela titular da Secretaria que coordena o Comitê Pop. Rua/Recife, a Secretária de Desenvolvimento Social, Juventude, Políticas sobre Drogas e Direitos Humanos, Ana Rita Suassuna.[12]
Nesta política de dispersão, escassas são as possibilidades das organizações da sociedade civil presentes no Comitê PopRua alcançarem cumprir com a meta do Comitê, também estabelecida pela lei que o instituiu, de fiscalizar as condições e funcionamento da rede de serviços ofertados à população em situação de rua, ao mesmo tempo que realiza o controle social, por meio da fiscalização, do emprego dos recursos financeiros consignados para os programas e políticas para a população em situação de rua oriundos do Governo Federal, Estadual e Municipal, pois além dos números de tais recursos não nos terem chegado até o presente momento, sempre perdemos, não por acaso, o bonde do planejamento das ações. O que nos chegam são somente as notícias, por vezes pela imprensa, das obras prontas e projetadas para o futuro, sobre as quais não fomos consultados, não colaboramos em sua forma, nem tampouco em seus prazos e escala de prioridade.

Mas há sentido no aparente caos. Não são poucos os que analisam que a protelação no atendimento emergencial às demandas da população em Situação de Rua, em favor de garantir essas grandes obras, além da falta de prioridade da gestão para este setor, obedece a interesses de impacto eleitoral, já em horizonte o pleito de 2020, num alinhamento projetivo e articulado dos atuais Prefeito do Recife e Governador de Estado, ambos afilhados políticos do ex-mandatário Eduardo Campos [13]. A máquina propagandista noticiosa das obras da Prefeitura funciona muito bem e com alto investimento, disso todos sabemos. Esta mesma que, na busca de criação de um consenso social, tão somente narra, como é do perfil destes aparelhos da indústria cultural, a versão triunfalista da história, nesse caso da gestão.

Mas é um preço demasiadamente alto a se pagar para assegurar dividendos eleitorais, sobretudo quando quem arca com as consequências de sempre ser jogado para o futuro e não ter atendidas suas demandas mais emergenciais no agora, mesmo que estas sejam fome e frio, são as camadas menos favorecidas, que compõem a faixa dos mais pobres, ou extremamente pobres, como é o caso da população em situação de Rua do Recife.

A negligência da Prefeitura em não atender os direitos de alimentação e abrigo dessas pessoas consiste numa prática que fomenta a naturalização da pobreza e da situação de rua, como se fosse aceitável a extrema pobreza ser parte da paisagem urbana, independentemente da temperatura e do que alerte a APAC. Fica-nos a ideia de que a melhoria na qualidade de vida das pessoas em situação de rua não é prioridade da Prefeitura de Recife, talvez pelo reduzido ganho político que ela possa obter.

Atender às pessoas em situação de rua em suas demandas mais prementes. Não! Isto Geraldo não fez.
NOTAS:
* Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE. Coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia (NEEPD) da UFPE.
** Membro do POPULUS – NEEPD/UFPE
*** Membro do POPULUS – NEEPD/UFPE

[1] - CASTRO, Josué de. Homens e Caranguejos. 2ª ed.. São Paulo: Editora Brasiliense, 1968, p.12.

[2] - Castro, Josué de. Fatores de localização da cidade do Recife: um ensaio degeografia urbana. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948, p.15.

[3] - Segundo conceito oficial, adotado em 2009, através do decreto nº 7.053 de 23 de Dezembro do mesmo ano, que formalizou a Política Nacional para População em Situação de Rua, esta População é um “Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares fragilizados ou rompidos e a inexistência de moradia convencional regular. Caracteriza-se pela utilização de logradouros públicos (praças, jardins, canteiros, marquises, viadutos) e de áreas degradadas (prédios abandonados, ruínas, carcaças de veículos) como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como das unidades de serviços de acolhimento para pernoite temporário ou moradia provisória.” Em 2004, Recife contabilizou 653, em 2005, Recife contabilizou 1.390 pessoas em situação de rua, das quais 888 eram adultas. A grande disparidade dos números entre esses dois anos deve-se ao fato de que em 2004 não foram contabilizadas as pessoas em situação de rua que se encontravam em albergues e em casas de acolhida. (Silva, Patrícia Marília Félix da. Pessoas em Situação de Rua em Recife: Cidadania através do trabalho como uma alternativa. Dissertação - Mestrado em Sociologia. Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco. Recife: 2015.)

[5] - O Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua do Recife (Comitê Pop. Rua/Recife), instituído pela Lei municipal de Nº 18.503 de 7 de julho de 2018, teve a posse de sua primeira gestão em 13 de março de 2019, formado (como dita seu art. 4º) pelas seguintes secretarias e organizações: formado por representantes das seguintes secretarias e organizações: I - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Desenvolvimento Social, Juventude, Políticas sobre Drogas e Direitos Humanos; II - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Saúde; III - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Educação; IV - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Infraestrutura e Habitação; V - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria da Mulher; VI - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Cultura; VII - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente; VIII - 02 (dois) representantes titulares e 02 (dois) suplentes da população em situação de rua organizada, por meio de movimentos sociais, fóruns e comissões de usuários de serviços; IX - 01 (um) representante titular e 01 (um) suplente de instituições acadêmicas e de pesquisa; X - 02 (dois) representantes titulares e 02 (dois) suplentes de instituições prestadoras de serviços voltados para o atendimento da população em situação de rua; XI - 01 (um) representante titular e 01 (um) suplente de instituições de assessoramento e defesa dos direitos da população em situação de rua; XII - 01 (um) representante titular e 01 (um) suplente de outras entidades, instituições, organizações e associações interessadas em contribuir para o fortalecimento da Política Municipal para População em Situação de Rua. Confiram o texto integram da lei em:
https://www.jusbrasil.com.br/diarios/198333604/dom-rec-07-07-2018-pg-3. Antes desta lei, o comitê PopRua/Recife funcionava sob o decreto municipal 27.993, de 30 de maio de 2014.
[6] – O Grupo de Estudos Pobreza, Trabalho e Lutas Sociais (POPULUS) do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia (NEEPD) da Universidade Federal de Pernambuco ocupa, no Comitê, a representação da categoria “Instituições acadêmicas e de pesquisa”. Os demais membros da sociedade civil eleitos para a gestão do biênio 2019/2021, foram os seguintes: Titulares e suplentes da população em situação de rua organizada - José Antônio de Souza, Jamelson Manoel de Souza e Luiz carlos da Silva, Carlos Alberto Pinheiro e Natanael da Silva; Instituições prestadoras de serviços voltados para o atendimento da população em situação de rua - Samaritanos e Fundação Terra; Instituições de assessoramento e defesa dos direitos da população em situação de rua - Pastoral do Povo da Rua; Outras entidades, instituições, organizações e associações interessadas em contribuir para o fortalecimento da Política Municipal para População em Situação de Rua - A Casa da Rocha.

[7] - Agregando-se dados da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua realizada em 2007/2008, realizada em 71 minicipios brasileiros com mais de 300 mil habitantes, com dados de outras pesquisas promovidas à época em outros quatro municípios (Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e São Paulo), estimou-se que existiam naquele momento cerca de 50 mil pessoas em situação de rua. Em 2016, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) realizou uma estimativa do número de pessoas vivendo nas ruas no Brasil, chegando ao total de 101.854 pessoas em situação de rua no Brasil.

[8] - LUHMANN, Niklas [1969]. A Legitimação pelo Procedimento. Tradução Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

[9] Cf. GRAMSCI, Antônio. Cartas do Cárcere. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991; GRAMSCI, Antônio. Concepção Dialética da História.  10ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

[10] – Art. 6º (do DL 7053/2009) - São diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua: VI - participação da sociedade civil, por meio de entidades, fóruns e organizações da população em situação de rua, na elaboração, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas; VII - incentivo e apoio à organização da população em situação de rua e à sua participação nas diversas instâncias de formulação, controle social, monitoramento e avaliação das políticas públicas.

[11] – Art. 6º (do DL 7053/2009) - III - articulação das políticas públicas federais, estaduais, municipais e do Distrito Federal; IV - integração das políticas públicas em cada nível de governo. Art. 7o  São objetivos da Política Nacional para a População em Situação de Rua: I - assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda.
[13] – Sobre o governo Eduardo Campos cf. FILHO, Michel Zaidan. A Honra do Imperador: Reflexões críticas sobre a era eduardiana em Pernambuco. Recife: NEEPD, 2014.