pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

A política pictórica de Godard

 

Em toda sua obra, da Nouvelle Vague aos filmes do século XXI, cineasta francês que faz 90 anos em dezembro utilizava a pintura como elemento essencial. Às vezes de forma irônica, noutras para afastar o cinema da vulgaridade capitalista

Por Dalila Camargo Martins, na Revista Cult

No incontornável texto “Jean-Luc Godard: cinema e pintura, ida e volta”, integrante do livro Cinema, vídeo, Godard (Cosac Naify), Philippe Dubois distingue dois momentos da relação ubíqua entre cinema e pintura na obra godardiana. No primeiro deles, concernente aos filmes produzidos na década de 1960, a pintura se mostra no cinema como uma prática de “citação” e “ex-citação” generalizada, pela qual reproduções frontais de quadros canônicos invadem a diegese, interagindo implícita ou explicitamente com as personagens, seus rostos, situações ou vínculos afetivos. Lembremos, por exemplo, em Acossado (1960), da mania de Patricia (Jean Seberg) de colar na parede de seu apartamento pôsteres de retratos pintados por Pierre-Auguste Renoir, Paul Klee e Pablo Picasso com os quais se identifica. Ou, então, em Tempo de guerra (1963), da cena hilária em que os soldados Michelangelo (Albert Juross) e Ulysses (Marino Mase) voltam para casa e presenteiam solenemente suas esposas, Venus (Geneviève Galéa) e Cleopatre (Catherine Ribeiro), com uma valise repleta de tesouros do mundo: monumentos, meios de transporte, lojas, obras de arte, indústrias, riquezas da terra, maravilhas da natureza, os cinco continentes, tudo sob a forma de cartões-postais cujo ganho parece valer exatamente como a posse das coisas em si — o valor de exposição tornado “objeto de culto, de reinvestimento simbólico de segundo grau”.

Nesse amálgama entre turismo e pilhagem, espetáculo e barbárie, já despontava a chave da reflexão godardiana sobre arte pop e cultura de massa, cada vez mais evidente ao longo dos anos 1960. Digamos que, no começo da carreira, Godard partiu de referências espirituosas a gêneros hollywoodianos, especialmente filmes B, noir e de gângster, mas também de musicais, frutos da paixão cinéfila contraída enquanto era redator exímio da revista Cahiers du cinéma, e desembocou no exame detalhado da sociedade de consumo, acentuando seu aspecto mortífero, em um paralelo sugestivo com o melhor de Andy Warhol. Em Week-end à francesa (1967), um casal burguês viaja pelo interior da França para reclamar uma herança e no caminho depara com um engarrafamento descomunal, filmado em travelling e livremente inspirado no conto “A autoestrada do Sul” (1964), de Julio Cortázar, no qual a violência escala desde acidentes de trânsito, estupro, assassinatos, até canibalismo, fenômenos testemunhados com indiferença atroz em meio a passatempos. Sem dúvida, por perpetuar a lógica industrial do trabalho alienado e do tempo livre, o cinema estava no cerne da crítica godardiana, sendo então abandonado na iminência de maio de 1968, quando Godard, na companhia de Jean-Pierre Gorin, fundou o Grupo Dziga Vertov, coletivo audiovisual militante de orientação maoísta que, em vez de proceder segundo tais modelos, filmava politicamente.

Acossado (1960)

Ao cinema, Godard retornaria de uma vez por todas na década de 1980, após um período de realização – com sua companheira, a fotógrafa, roteirista, montadora e também diretora Anne-Marie Miéville – dos programas de televisão Six fois deux/sur et sous la communication (1976) e France/tour/détour/deux/enfants (1977-78), além dos filmes-ensaios Número dois (1975), Como vai você? (1976) e Aqui e acolá (1976), nos quais se escrutam os grandes meios de comunicação mediante trucagens videográficas (câmera lenta, sobreimpressões, incrustações, grafismos, variação de janelas, simultaneidade de telas etc.) que consistem nos desdobramentos eletrônicos do trabalho de decomposição-recomposição de imagens empregado em A chinesa (1967), com suas colagens e estética de histórias em quadrinhos, e A gaia ciência (1969), com suas fotos desviadas e contralegendadas. Dubois enfatiza o protagonismo do vídeo nessa mudança de paradigma na obra godardiana, em que as imagens perdem o estatuto de objetos e se tornam estados (im)puros, fluxos entre olhar e pensamento, cujo ápice seria a minissérie televisiva História(s) do cinema (1988-98). Há, pois, uma atenção refinada à espectralidade da forma-mercadoria, sua estranha idiossincrasia. Godard parece nos alertar: para examinar a sociedade de consumo não basta sinalizar seus produtos, os resultados concretos de suas causas, sem tentar apanhar o processo que lhe é imanente, pelo qual tudo o que pesa se propaga no ar e, como a luz – matéria-prima do cinema –, é partícula e onda ao mesmo tempo.

Esses experimentos transformariam de forma substancial, nos anos 1980, a relação de Godard com a pintura, a qual passaria a ser um efeito do próprio filme, um tratamento figurativo do dispositivo cinematográfico, “não mais a pintura ex-citada mas a pintura sus-citada, evocada por baixo e de dentro”, na bela definição de Dubois. A chamada trilogia do sublime, composta dos filmes Paixão (1982), Carmen de Godard (1983) e Eu vos saúdo, Maria (1985), faz de motivos clássicos da pintura problemas cinematográficos, atualizando-os. Em Paixão, destacam-se os deslumbrantes tableaux vivants a partir de Rembrandt, Francisco de Goya, Jean-Auguste Dominique Ingres, Eugène Delacroix, El Greco e Jean-Antoine Watteau. Carmen, vaga adaptação escrita por Anne-Marie Miéville da novela homônima de Prosper Mérimée e da ópera de Georges Bizet, consiste em um estudo rítmico, ou melhor, coreográfico, em que se esboçam poses copiosas de corpos frequentemente nus, com nervos à flor da pele, em dados intervalos de tempo marcados pela música de Ludwig van Beethoven — e de Tom Waits! Quanto a Eu vos saúdo, Maria, trata-se do mito da criação, ostensivamente pintado ao longo da história da arte, o que implica a questão de como representar o irrepresentável recorrendo a arquétipos da natureza.

Assim, completa-se uma volta dialética. Sabe-se que a primeira polêmica provocada pela Nouvelle Vague se deu antes da instauração de um novo modo de produção cinematográfico, quando os “jovens turcos” – apelido dessa geração de redatores dos Cahiers e futuros cineastas – cunharam o conceito de política dos autores, segundo o qual certos diretores hollywoodianos, como Orson Welles e Alfred Hitchcock, foram capazes de deixar suas marcas nos filmes, engendrando estilos únicos mesmo sob o jugo da lógica industrial. Ora, não é difícil circunscrever a mudança de paradigma da obra godardiana a esse contexto, pois foi Godard quem radicalizou a política dos autores ao filmar, transformando o conceito de aplicação retroativa em ponto de partida estético. Em suas palavras: “o verdadeiro objetivo desse conceito não era demonstrar quem faz a direção, mas, principalmente, explicar o que faz a direção”. Tal método de modulação entre “ex-citação generalizada” e “sus-citação”, passando pela negação determinada do cinema, assevera todo o esforço de Godard em dirigir através das contradições estruturais do próprio meio. Inicialmente, em seus filmes, o trabalho pictórico serviu sobretudo para denunciar, em chave irônica e também trágica, o pacto do cinema com a cultura de massa, com a sociedade do espetáculo. O abandono da autoria com a fundação do Grupo Dziga Vertov – “quando lançamos a política dos autores, nos enganamos ao privilegiar a palavra ‘autor’, enquanto na verdade é a palavra ‘político’ que era preciso ressaltar” – funcionou como grau zero da imagem, propiciando a Godard expandir seus horizontes ao retomar o cinema e revisitar alguns temas inerentes à autonomia artística.

Nos três primeiros longas-metragens godardianos do século 21, Elogio ao amor (2001), Nossa música (2004) e Filme socialismo (2010), tal expansão paulatina manifesta-se mediante recursos pictóricos. Elogio ao amor se divide entre o presente e o passado de um filme a ser feito. A defasagem temporal é marcada pelo uso de 35mm p&b para o presente e de vídeo em cores, espécie de fauvismo digital, para o passado. São apenas dois anos entre o momento em que Edgar (Bruno Putzulu) presencia a assinatura do contrato que autoriza a adaptação da história de um casal de idosos atuante na resistência francesa pela produtora de Steven Spielberg e seus entraves em realizar uma obra sobre o amor e que consiga narrar a História. Mas a trama só se esclarece no fim, quando o passado ilumina o presente; seu fio condutor é uma mulher argelina (Cécile Camp), advogada consultora do caso, pela qual Edgar se apaixona. Constitui-se, portanto, um elo entre poeta e musa, de matriz romântica ainda que distanciada – a colorização dos planos do mar exprimindo o lirismo de um indivíduo que enfrenta a frivolidade da indústria cultural.

Em Nossa música, organizado como a Divina comédia de Dante Alighieri, porém, o eu já é um outro – nos versos citados de Arthur Rimbaud – com o protagonismo duplicado de Olga Brodsky (Nade Dieu) e Judith Lerner (Sarah Adler), alegorizando a aporia entre ativismo e mídia em prol da paz no Oriente Médio. É como se a crise existencial ambientada no métier cinematográfico de Elogio ao amor se tornasse, três anos depois, uma expiação coletiva pelos conflitos da humanidade, e a busca fracassada por “um adulto” se estendesse à profecia do rosto como responsabilidade, baseada no filósofo Emmanuel Lévinas, uma preocupação em restabelecer pela linguagem uma “ética como o a-Deus ou a relação ao Outro, na santidade do Rosto de Outrem, ou na santidade da minha obrigação para com ele”.

Já Filme socialismo consiste em uma indagação a respeito da origem e dos descaminhos da civilização ocidental, a partir de três pontos de vista: a história do continente europeu, por meio da interação entre anônimos e celebridades a bordo do cruzeiro Costa Concordia; as inquietudes de duas crianças francesas sobre os lemas liberdade, igualdade e fraternidade; as lendas de seis cidades ao longo do Mediterrâneo. Na segunda parte, denominada Quo vadis Europa, o jovem casal de irmãos sai candidato à eleição para o Conselho de Estado francês, “fato sem precedentes”, e se elege com 93% de aprovação. Apesar da vitória democrática, sua postura é irreconciliável. Florine “Flo” (Marine Battaggia) evita conversar com quem conjuga os verbos ser/estar (être) e ter (avoir), pois, com eles, a falta de realidade se tornaria flagrante; prefere falar, por exemplo, “Barcelona nos receberá em breve”, em vez de “em breve estaremos em Barcelona”. Lucien “Lulu” (Gulliver Hecq) é capaz de “acolher uma paisagem de outrora”; reproduz um Renoir adicionando nuances inatingíveis ao pintor, o que se estende a toda imagem vista na tela, em uma espécie de fissão cromática que faz vibrar o espaço. Logo, ambas as atitudes se pautam por uma heteronomia sem sujeição, abrindo-se empaticamente ao entorno. Tais recursos pictóricos integram uma complexa série de procedimentos audiovisuais que articulam um vigoroso raciocínio especulativo, o qual, nesses três filmes, explode a noção de autonomia – da autonomia artística à autonomia do sujeito – à procura de uma verdadeira emancipação.

Elogio ao Amor (1999)

Nota-se, por conseguinte, na trajetória de Godard, um movimento espiralado infinito e ascendente, em que o regresso às esferas (cinema/sociedade de consumo/militância/vídeo/arte/estética/ética/política) ocorre por meio de alargamento, aprofundamento e iluminação.

(Publicado originalmente no site Outras Palavras)

Tijolinho: Em Pernambuco, 2022 já começou.


Ainda no calor da derrota para João Campos(PSB) na disputa pela Prefeitua da Cidade do Recife, a militância da candidata petista, Marília Arraes, ainda mobilizada, lançou o seu nome ao Governo do Estado, nas eleições de 2022. Militância é militância e dirigentes partidários são dirigentes partidários. Em razão da musculatura política obtida pela candidata, epesar da derrota, essa tese começou a ganhar fôlego na legenda. Esse grupo aposta num afastamento difinitivo do PT da base aliada do governador Paulo Câmara(PSB). Assim que foi anunciado o resultado das eleições, o futuro prefeito João Campos(PSB) anunciou que não entregaria nenhum cargo político ao PT na sua gestão. Os ânimos estavam bastante acirrados, e, como ensinava ex-governador Paulo Guerra, em política não existem as palavras "nunca' nem "jamais". Embora improvável, uma reconciliação ainda seria possível, apesar do desgaste produzido pela campanha. A conversa entre o senador Humberto Costa(PT) e o governaror Paulo Câmara(PSB), no sentido de aparar essas arestas e definir a saida ou não do partido do governo, ainda não teria ocorrido. 

A costura de um nome como candidato da oposição no Estado teria que contar, como disse antes, com o sinal verde de núcleos políticos familiares que já se articulam no sentido desse enfrentamento, como é o caso dos Coelho, de Petrolina, dos Ferreira(Jaboatão dos Guararapes) ou dos Lyra, de Caruaru. Esse triângulo das bermudas deve ser decisivo na batida deste martelo. Não se descarta aqui, dependendo do nome ungido, do concurso de outros partidos do centro para a direita, quem sabe até da ultra-direita. Apesar das tecituras políticas da última eleição municipal - que envolveu o apoio de Progressistas e do Podemos à candidata petista, é pouco provável que um grupo com interesses politicos tão diversos possam endossar o nome de uma candidata do PT. Impossível não é, mas é pouco provável. 

Pelo lado da situação, como observei no dia de ontem, o nome mais cotado é o do ex-prefeito Geraldo Júlio, por uma condição "natural", embora essa condição "natural" seja muito questionada. O mais interessante, entretanto, é entender como essas articulações políticas locais estão sendo construídas já de olho nas eleições presidenciais de 2022. Aqui na província, 2022 já começou. No segundo turno das eleições, o Recife recebeu a visita do presidencial Ciro Gomes(PDT),que veio emprestar o seu apoio ao candidato João Campos(PSB). Fala-se bastante numa aliança entre as duas legendas visando as próximas eleições presidenciais. Nas eleições dos anos anteriores, o PSB sempre emprestou apoio ao PT no plano nacional. Essa possibilidade torna-se cada vez mais improvável. Não apenas pelas rusgas produzidas aqui na provínca, mas, sobretudo, em razão dos rumos políticos que o partido está assumindo, se afastando cada vez mais do espectro político de suas origens. 

 

Editorial: O STF disse não à manobra inconstitucional. Ponto para o STF.


Mesmo com um placar apertado, o Supremo Tribunal Federal disse não à manobra inconstitucional que previa a reeleião dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. A letra da Carta Constitucional é bastante clara sobre o assunto, mas há sempre aqueles atores políticos que tentam burlá-la, consoante interesses políticos de natureza nada republicanos. Louva-se aqui a decisão do STF, esperando que tal decisão construa a jurisprudência necessária para inibir tentativas do gênero pelo país afora, uma vez que tais impulsos de mosca azul se replicam em toda a federação, numa demonstração de pouco apreço de segmentos da classe política pela democracia no país. Manobras assim apenas ganham força quando há um ambiente político favorável nas Casas Legislativas, cujos membros acabam beneficiados, de alguma forma, com a condução da liderança por mais um mandato, mesmo contradizendo os preceitos constitucionais. 

Agora, o jogo deverá ser reiniciado tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, envolvendo uma disputa acirrada pelo comando daquelas Casas, o que implica numa luta sadia pelo voto, convencendo a bancada de senadores e deputados federais a votarem consoante as suas expectativas sobre a melhor forma de condução dos trabalhos no Poder Legislativo. As rusgas entre o presidente da Câmara dos Deputados e o Planalto são indisfarçáveis, tendo alto e baixos durante toda a gestão do deputado federal Rodrigo Maia(DEM-RJ), não de todo superadas, a despeito das tentativas de reaproximação, regadas a canapés e amabilidades, por vezes trocadas. Assim, o Planalto anima-se em apoiar um nome de sua confiança, de sua base de apoio, que não torne a convivência tão indisgesta durante o próximo mandato. Esse  nome, contingencialmente, deve sair do chamado Centrão. 

Estão se movimentando no sentido de ocupar a Presidência daquela Casa o Deputado Federal alagoano, João Lyra(PP-AL), que já procurou, inclusive, o governador Paulo Câmara(PSB-PE), no sentido de obter o apoio da bancada pernambucana ao seu projeto. Quem também se movimenta neste sentido é o Deputado Federal Fernando Coelho Filho(DEM-PE), com o aval do pai, o senador Fernando Bezerra Coelho(MDB-PE), líder do governo, que também está de olho na presidência do Senado Federal. Ambos os nomes, afinados com o Palácio do Planalto. E, por falar em afinidades, Rodrigo Maia já insinou que o deputado João Lyra é um candidato que conta com o apoio do Planalto e, portanto, concorre contra ele. Há, por outro lado, uma penca de candidatos entre os seus apoiadores. Como já afrmei por aqui noutra ocasião, Maia é um político muito hábil,com chances de fazer seu sucessor. Concorrem pela situação, digamos assim, Aguinaldo Ribeiro(PP-PB), Baleia Rossi(MDB-SP), Elmar Nascimento(DEM-BA), Luciano Bivar(PSL-PE) e Marcos Pereira(Republicanos-SP). 

Seja qual for o resultado, a alternância de poder, um dos princípios basilares da demcoracia, fica assegurada. As instituições da democracia no Brasil, que foram tão assediadas nos últimos anos,  precisam passar por um processo restaurativo. Muitos equívocos foram cometidos em razão de uma insegurança juridica instaurada em nome de um modelo de racionalidade econômica ultraliberal, que não tem nenhum pudor em mandar às favas os valores democráticos pelas razões do capital. Uma consequência direta dessa lógica insana é a formação de Executivos fortes, na mesma proporção ao enfraquecimento dos poderes Legislativo e Judiciário. Manter o equilíbrio desse pêndulo é fundamentalmente importante num regime democrático. A decisão do STF preserva sua condição de guardião da Cosntituição e ,ainda, obriga o Poder Legislativo a conviver com o exercicio da democracia.  É bom que assim o seja. Apenas aqueles que tem vocação autoritária não gostam desse exercicio. Ponto para o STF. 


Charge! Via Folha de São Paulo


 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

O exílio em James Joyce e a ética lacaniana do sujeito falante

 

O exílio em James Joyce e a ética lacaniana do sujeito falante
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O autor irlandês James Joyce, o exilado da língua que inventa outra língua (Foto: Encyclopedia Britannica)

 

Como ler James Joyce a partir da ética lacaniana? O que, na leitura de Joyce, ajudaria a pensar o trauma da incidência da língua e a questão desconcertante de sermos falantes e exilados? O autor inventou uma língua própria, ensinando sobre aquilo que nos atravessa e escapa, que nos torna seres que vivem sempre fora de uma suposta terra natal originária.

Joyce se identificou inteiramente com seu sintoma de escrever e sustentou o seu exílio – uma espécie de tremor e desvario – a partir daí. Para Lacan, Joyce é a própria encarnação do sintoma. Prova disso é Finnegans wake (1939), texto ilegível que levou 17 anos para ser escrito. Joyce esperava da escrita a revelação, e viveu completamente imantado por essa questão: uma escrita radical e única, que inventa uma língua e um país próprios.

“Joyce, o sintoma” – ou sinthoma – é um seminário de Lacan proferido nos anos 1975-1976. Nos vídeos das lições pode-se sentir como, também para ele, entregar a palavra é da ordem da revelação. Para Lacan, o analista não deve falar em público como um professor que se apresenta com um saber já constituído, pelo contrário, deve se deixar conduzir pelo não-saber, exatamente como procede no consultório. Essa posição implica a coragem do lapso e do ruído. Uma certa forma de exílio também.

 

James Joyce escreveu na
língua do opressor, pois a
Irlanda estava sob a
dominação do Império
Britânico, por um lado, e
– assim dizia ele – da
Igreja Católica Apostólica
Romana por outro.

 

 

No entanto, a escrita na língua do opressor se deu de maneira que esta deixou de existir para dar lugar à língua poética em que Joyce afirma que, se Dublin fosse destruída, poderia ser inteiramente reconstruída a partir da sua obra.

O escritor se valeu “do exílio, da astúcia e do silêncio” para produzir sua catedral de prosa e, com ela, se opor à Irlanda de que não gostava para ser aceito e cultuado pelos irlandeses: uma condição paradoxal que estrutura algo desse estar sempre em exílio, o pertencer a lugar nenhum.

O que interessou a Lacan foi o tratamento dado por Joyce ao texto. Há algo de ilegível na escrita, há lapso no que se lê. Vejamos o que Lacan antecipara no Seminário 20:

(…) vocês podem ler Joyce, por exemplo. Então vocês verão como isso começou a se produzir. Vocês verão que a linguagem se aperfeiçoa e sabe brincar, sabe brincar com a escrita. Joyce, eu admito que ele não seja legível (…)

É a partir desse ponto que Lacan se debruça sobre a obra de Joyce, o exilado da língua que inventa outra língua. Essa dimensão do lapso, e disso que mais se enuncia do que se anuncia na palavra, é o exercício abismal de ler Joyce com Lacan: um solo para uma queda, um desabar tamanha a vertigem, a própria epifania encarnada no exercício de ir de uma a outra língua.

Vemos aqui um dos elementos essenciais: o som emitido pela fala. Eis algo que ajuda a clarear, para Joyce, a questão do exílio na língua, ideia trabalhada pelo escritor desde muito cedo, como uma marca de estilo. O som vem de um sujeito que fala e fala-se sempre também em nome de algo inominável. Fala-se para buscar o sentido lá onde ele escapa. Fala-se para eliminar o sentido prévio herdado, para estraçalhar a linguagem e invocar o impensável. Fala-se para poder fazer delirar todas as vozes que nos habitam.

 

 

E essa dimensão do som
aparece na obra de Joyce,
fazendo a palavra delirar,
tirando dela o que se ouve
mais do que o que se lê, ou
até mesmo tirando dela o
que se lê em uma dimensão
de puro exílio.

 

 

Joyce foi central para Lacan, sobretudo no “Seminário 23: o sinthoma”, em que o psicanalista desenvolve uma noção de corpo que não se sustenta sobre a imagem do corpo próprio, mas sobre um procedimento de escrita que implica sempre a produção de um resto, um excedente que não encontra representação e é marcado pela estranheza – como na discussão entre Stephen Dedalus, o alter ego de Joyce, com seus colegas de escola, a respeito de quem seria, para ele, o maior escritor.

Stephen insiste em defender a figura de Lord Byron,  mas é retrucado pelos colegas, com a acusação de que Byron teria sido herege e também imoral. A certa altura da discussão, o próprio Stephen é acusado de ser herege e leva golpes de bastão para admitir que Byron não valia nada. Mais adiante, numa reflexão sobre o mistério da Santíssima Trindade e das imagens do Pai, do Filho e do Espírito Santo sugeridas nos livros de devoção, Stephen irá se questionar sobre sua falta de convicção em acolher as paixões do amor e do ódio: ele pode ver sua raiva se destacar do seu corpo, como “a casca de uma fruta madura”. Algo aí desliza, escorrega para fora da cena, para um outro lugar. E é Joyce quem assinala essa condição desviante e do fora:

Não servirei aquilo em que não acredito mais, quer isso se chame minha família, minha terra natal ou minha Igreja; e procurarei me expressar por meio de uma certa forma de vida ou de arte tão livremente quanto possa e totalmente quanto possa, usando em minha defesa as únicas armas que me permito usar – o silêncio, o exílio e a astúcia.

O modo como  ele responde a nação é através do caminho do exílio, que não é um rompimento definitivo com a nação, mas uma escolha em habitar o seu exterior. O que fica evidente na obra de Joyce é o fascínio pela heresia, que permite com que ele encontre um modo de neutralizar e ao mesmo tempo usufruir da chamada língua dos invasores, a língua inglesa.

A substância que Joyce utiliza é a da escrita: uma escrita que mobiliza “efeitos de furo” na medida em que dá lugar para as significações fora de sentido, acentuando o impossível ao nível da língua. A referência à assonância como forma de abordar o objeto pela via do som, e não do sentido, está presente na sua obra como marcador de indexação de uma experiência corporal. A descrição dos efeitos da palmatória sobre o corpo, por exemplo, também parecem ser da ordem do “deixar cair”: suas mãos trêmulas se encolhem “como uma folha exposta ao fogo”, ou se desprendem “como uma folha solta no ar”, uma experiência radical que parece querer demonstrar justamente a condição primeira da palavra: a do exílio.

Bianca Coutinho Dias é psicanalista e crítica de arte.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 6 de dezembro de 2020

Foucault: a filosofia como modo de vida | Margareth Rago

Tijolinho: Petistas a céu aberto.


As articulações presidenciais do ex-governador Eduardo Campos causariam um estranhamento do socialista em relação ao Partido dos Trabalhadores. Na fase da lua-de-mel, tanto Lula quanto Dilma Rousseff eram muito bem recebidos aqui na província, com direito ao desfrute de iguarias de nossa gastronomia regional, acrescidas dos causos de Ariano Suassuna durante a sobremesa. Para viabilizar seu projeto político, algumas lideranças políticas locais conduziram o socialista para outros  encontros políticos - e também gastronômicos - mas desta vez regados a cozidos e cervejinhas geladas. Entre uma garfada e outra, informaram-no sobre a necessidade de afastar-se do Partido dos Trabalhadores, sob pena de não viabilizar o seu projeto. Assim foi feito e, ao longo dessa trajetória, apenas a morte prematura de Eduardo Campos permitiu uma reaproximação entre as duas legendas, ainda assim com altos e baixos, como o endosso de socialistas às tecituras que culminaram com o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República, algo nunca completamente digerido por alguns membros e militantes da legenda.

Algumas dessas questões vieram à tona durante essa última campanha municipal, que colocou de lados opostos a candidata Marília Arraes(PT) e João Campos(PSB). Sem rumo e completamente atordoado aqui na província, a única forma que o PT encontrou para continuar existindo foi procurar abrigo na legenda socialista, praticamente hegemônica na província, o que garantiu duas eleições para o Senado Federal, com Humberto Costa, e alguns cargos na administração do Governo do Estado. Dependentes políticos dos socialistas, alguns dirigentes locais sempre se opuseram às candidaturas independentes da legenda aqui no Estado, preferindo apoiar o nome apresentado pelo PSB. Ao longo dos anos, essas contradições foram aflorando, mostrando sua face mais nítida agora por ocasição da eleição municipal. De um lado, petistas autênticos, que advogam que os petistas que não estiveram engajados na candidatura do partido deveriam serem expulsos da legenda. De outro, socialistas que advogam que os petistas no governo devem entregar os seus cargos. Numa de suas primeiras declarações, o prefeito eleito, João Campos(PSB) já afirmou que não pretende convocar petistas para a gestão da máquina municipal. 

Em meio a esse imbróglio, cogitou-se de uma conversa entre o senador Humberto Costa(PT) e o governador Paulo Câmara(PSB), com o objetivo de dirimir essas arestas. Neste intervalo, o senador criticou o nível da campanha dos sociaistas no último pleito. Dirigentes nacionais da legenda também acreditam não haver mais clima para manter essa aliança, em razão do grau de animosidade entre ambas as legendas. O ex-governador Paulo Guerra ensinava que, em política, não existem as palavras "nunca" nem "jamais", o que sugere sempre a possibilidade de algum tipo de negociação conciliadora, com o arranjo de um bom argumento para jogar para a platéia. Mas, sinceramente, não acredito que o PT, espontaneamente, entregará seus cargos na adminstração pública estadual. Depois dos 50 e a leitura de alguns textos de Maquiavel, fica um pouco ingênuo acreditar que o sentar à mesa para discutir os cargos seja naquela perspectiva republicana de entregá-los por quebra de princípios ou decoro ou por não haver mais condições políticas de contribuir com a gestão.  

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

 


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Seriam os fundamentalistas islâmicos fascistas

 


Nem todas as forças autoritárias são fascistas, já advertia Trotsky. Países como Arábia Saudita podem combinar ultracapitalismo e autocracia, mas faltam-lhes o discurso protecionista típico e a capacidade de mobilizar organicamente as massas

SÉRIE: A QUESTÃO FASCISTA
Nesta série de artigos, os autores Noah Bassil, Karim Pourhamzavi e Gabriel Bayarri refletem sobre a extrema direita contemporânea. Eles questionam o conceito de fascismo e fazem uma análise a partir dos conceitos de cesarismo e bonapartismo para entender o fenômeno global.
Leia a primeirasegunda, terceira e quarta partes
Título original do texto a seguir: Os islamistas são fascistas?

A atual propagação global do populismo de extrema-direita lembram, com razão, muito da era do fascismo dos anos 1920 até meados dos anos 40. Uma das figuras recentes que conectou o atual populismo de extrema-direita com o fascismo foi Joe Biden durante seu discurso de candidatura presidencial em 21 de agosto de 2020. Como parte do debate, o islamismo também está recebendo nova atenção como uma forma de fascismo. A motivação por trás deste texto vem principalmente do trabalho de Stephen Schwartz em The Two Faces of Islam [1], onde Schwartz analisa o movimento Wahhabi na Arábia e, portanto, os movimentos jihadistas subsequentes que compartilham ideologia e táticas com os primeiros Wahhabis, como sendo um movimento fascista. O trabalho de Schwartz é escolhido aqui especificamente para avaliar sua análise sobre se o jihadismo, nas palavras de Schwartz, pode ser considerado uma “forma de fascismo”.

Quanto ao porquê do jihadismo ser uma forma de fascismo, Schwartz indica que este último introduziu pela primeira vez o islamismo em uma forma moderna de autoritarismo. Além disso, sobre as características violentas, exclusivas e puritanas do movimento Wahhabi, Schwartz as considera como outra característica desta ideologia fascista. Acrescentamos outras características para comparar os jihadistas e outras formas de islamismo, tais como a Irmandade Muçulmana e os islamistas xiitas do Irã, com o fascismo. Como os fascistas “ocidentais”, os islamistas são o produto de uma crise orgânica do capitalismo. Diferentes formas de islamismo surgiram da crise do início do século 20, da Primeira Guerra Mundial, da crise dos anos 70 e 80, da Guerra Fria e pós-Guerra Fria e, em particular, de 2000 em adiante. Isto nos leva a outra semelhança entre fascismo e islamismo: a elite capitalista prefere que ambos cumpram tarefas específicas como a opressão e a eliminação de forças de esquerda e revolucionárias. Apesar do uso do fascismo e do islamismo em tempos de crise orgânica, principalmente para manter o processo de acumulação de capital, a classe capitalista não favorece a ambas forças, nem aos seus métodos políticos, como aliados confiáveis e de longo prazo.      

Entretanto, as semelhanças mencionadas não são suficientes para considerar o wahhabismo e o islamismo como fascistas. Como Trotsky havia lembrado a seus leitores, nem todas as formas de forças autoritárias e “contra-revolucionárias” são fascistas. [2] Todas as formas de fascismo compartilharam uma visão político-econômica específica que poderia ser resumida como protecionismo e a incorporação de alguns elementos do bem-estar social keynesiano. Os islamistas claramente não são protecionistas, nem gozam de uma ideologia político-econômica coerente. Como pode ser visto nos últimos trabalhos de Antonio Gramsci, quando ele mesmo estava em uma cela de prisão fascista, o fenômeno fascista era o produto de um movimento social orgânico. [3] Em tempos de crise e uma economia em declínio, as classes média e baixa marcharam atrás dos fascistas e apoiaram todas as formas de fascismo na Europa, incluindo a Grã-Bretanha nos anos 30. Também é verdade que os fascistas perdem rapidamente sua base social e seu apoio, especialmente quando chegam ao poder e estabelecem seu governo brutal. Mas isto não afeta o fato de que eles gozam de uma base social orgânica entre as massas, particularmente na ausência de uma alternativa revolucionária eficaz. Entretanto, os islamistas não demonstraram tais características. Quase todas as forças islâmicas que lutaram ao lado da hegemonia mundial contra rivais contra-hegemônicos nos séculos XX e XXI devem seu surgimento e capacitação ao patrocínio da inteligência e dos Estados, principalmente no Oriente Médio e na periferia mundial.

A última característica que distingue profundamente o islamismo do fascismo é a ausência de intelectuais orgânicos e de discurso intelectual. O fascismo é reforçado por intelectuais orgânicos que facilitam sua ideologia e a projetam entre as massas. Isto dificilmente existe entre os islamistas que confiam em sua interpretação restrita e leitura seletiva do Alcorão e de outros textos sagrados para construir sua ideologia. Pode ser uma elaboração teológica, mas dificilmente é um discurso intelectual moderno que esteja ligado às necessidades materiais de uma sociedade e de suas diferentes classes sociais. Os islamistas, por exemplo, tanto na Arábia Saudita quanto no Irã, podem adotar ideologias capitalistas como o neoliberalismo e aplicar uma versão extrema desta perspectiva econômico-política a suas sociedades, mas seria impreciso supor que o neoliberalismo é uma construção islâmica.

Portanto, qualquer analogia do wahhabismo com o fascismo, como pode ser encontrado na obra de Stephen Schwartz, requer a consideração de todas as características dessas ideologias extremas, e não apenas algumas delas. Isto é particularmente importante no momento atual, quando assistimos ao surgimento de várias formas de populismo extremo, enquanto as forças progressistas ainda não podem constituir um contra-bloco significativo. Embora os islamistas tenham características comuns com movimentos fascistas e populismo de direita, é importante entender também as diferenças. Consequentemente, Schwartz não está totalmente errado, mas o erro em sua análise é exatamente o que Trotsky adverte. Isto é, enquanto todos os fascistas são contra-revolucionários, nem todos os movimentos contra-revolucionários são fascistas.    


[1] Schwartz, S. (2003). The Two Faces of Islam: Saudi Fundamentalism and its Role in Terrorism. New York: Anchor Books, pp 115-117.

[2] Trotsky, L. (1969). Fascism: What it is and how to fight it. New York: Pioneer, p 5.

[3] Gramsci’s thoughts on fascism can be found in multiple and fragmented sources. However, his most significant elaboration on the concept can be found in his later works in the Prison Notebooks. See: Gramsci, A. (1971). Selection from the Prison Notebooks. Hoare, Q and Smith, G. N. (ed). London: Lawrence and Wishart; for Trotsky’s collection see: Ibid. 

[4] Worley, M. (2011). Why Fascism? Sir Oswald and the Conception for the British Union of Fascists. History. Vol. 96. No. 1, pp 68-83. 

(Publicado originalmente no site Outras Palavras)

Drummond: Mito de começo, mito de origem

 Este texto foi apresentado na abertura da décima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2012, que homenageou Carlos Drummond de Andrade.

 

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O século XX é o irmão mais velho do poeta Carlos Drummond de Andrade, que nasce em Itabira do Mato Dentro no ano de 1902.

Em companhia do irmão mais velho, o menino Carlos vê o sulco de prata do cometa Halley a cortar em 1910 os céus de Itabira. Sabe da Grande Guerra de 1914–1918 pelos jornais da província e, entre germanófilo e descrente, vai trocando as calças curtas pelas compridas. Na década de 1920, já em Belo Horizonte, o rapaz vive a molecagem e a orgia das vanguardas internacionais. A “pedra no meio do caminho”, que publica, será divisora de águas, como uma tela de Pablo Picasso. Prepara-se para a vida pública. Forma-se em Farmácia, faz jornalismo e flerta com a política estadual. Dá certo o namoro com a política e, funcionário público federal na capital da República, descobre-se um poeta preocupado com o Homem, ser rebelde e precário, e com as grandes causas humanistas. Politiza-se à esquerda durante a Segunda Guerra Mundial. Luta com palavras e com outras armas contra a ditadura Vargas, o Eixo e a intolerância nazifascista. Com o russo entra em Berlim. Com o homem do povo Charlie Chaplin promete destruir o mundo capitalista e com o poeta francês Paul Éluard grafita a palavra Liberdade em todos os muros da cidade. A Segunda Guerra Mundial chega ao fim, cai o Estado Novo. Na busca de coerência entre arte e política, o poeta se filia ao Partido Comunista Brasileiro. Abandona as hostes getulistas, vivendo apenas da sua produção escrita. Ainda juntos — irmão mais velho e irmão mais novo — chegam à idade madura. O poema Versos à boca da noite constata: “Rugas, dentes, calva…”.

Já cinquentões, Século & Poeta entram pelos anos 1960. Veem crescer os jovens rebeldes nascidos na metade do século — os filhos de Hiroshima, como se disse na Europa, ou a multidão de universitários pertencentes ao war baby boom, como os americanos denominaram o fenômeno de maneira pragmática. São filhos de pais traumatizados pela chacina da guerra, do campo de concentração e da bomba atômica. Ao mesmo tempo, são jovens com o alto nível de escolaridade proporcionado pelas sociedades do chamado “Primeiro Mundo”. Vivem as riquezas ditas inesgotáveis do após-guerra e o clima da guerra fria.

Os novos universitários são cabeludos e radicais. Embalados pelas drogas e ao som do rock & roll, abrem as portas da percepção e declaram que os velhos — o século XX e os nascidos com ele — estão vendidos ao Sistema. Já não prometem destruir o mundo capitalista, começam a apedrejá-lo com os paralelepípedos das ruas de Paris. Se Século & Sistema aceitam de início a luta armada juvenil, amoldando-se aparentemente ao seu gosto anárquico e terrorista, é para logo retomarem o controle da situação. Nas últimas décadas de vida do poeta, Século & Sistema tornam-se repressivos, tradicionalistas e conservadores. Voltam os olhos para os regimes totalitários que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, para as formas autoritárias de controle da população civil e para a despreocupação da belle époque, fazendo o elogio da sociedade de consumo. O poeta maduro acompanhou o movimento geral do irmão mais velho, o Século XX, e passou a se deleitar com a lembrança da infância feliz em Itabira, ao mesmo tempo em que, no fio de alta-tensão da poesia, vivia os valores rurais e patriarcais, inscritos na “tábua da lei mineira de família”. Irmão mais velho e irmão mais novo sobrevivem no futuro do passado. Como diz Drummond em Menino antigo (1973): “Não sai para rever, sai para ver/ o tempo futuro”. E na coleção de poemas Esquecer para lembrar (1979), confessa: “Com volúpia voltei a ser menino.”

Até a década de 1950, o século XX tinha nascido para as grandes revoluções sociais pregadas pelo determinismo histórico inventado pelo século XIX. A estrutura socioeconômica da sociedade nossa contemporânea era idêntica à de um edifício frágil e carcomido, que tinha de ser demolido. No seu lugar, seria levantado o edifício justo e igualitário das utopias socialistas. Esse sentimento leva o poeta a predizer: “— Que século, meu Deus! diziam os ratos./ E começavam a roer o edifício.” De 1970 para cá, estamos compreendendo que o século XX sobrevive sob o signo de Marcel Proust e de À la recherche du temps perdu. Em busca do tempo perdido, acabam todos por passar pela experiência da madeleine e dos avós. Século das biografias e das autobiografias, século dos diários íntimos e das correspondências, século dos romances e poemas que são alimentados pela memória do artista. E tudo porque Freud descobriu, no apagar das luzes do século XIX, o inconsciente e a sexualidade infantil.

À medida que Carlos Drummond se aprofunda no inconsciente e na infância, restringe-se sua preocupação com a sociedade universal. Primeiro, restringe-se ao grupo nacional a que pertence e, em seguida, à célula familiar que se responsabiliza por ele. A crise do liberalismo dos anos 1930, gerada pelos regimes revolucionários tanto da esquerda quanto da direita, cuja redenção estaria na sociedade justa do futuro, acaba por encontrar a solução prática quando o cidadão descobre a sua comunidade e abandona as utopias universais, autodefinindo-se neoliberal. Ao final do século XX e no início do milênio, a comunidade é o melhor antídoto contra qualquer pensamento, qualquer ação revolucionária universal. Cultivamos o nosso jardim e redescobrimos o bom senso de Voltaire. A crise do liberalismo, enquanto sistema sociopolítico universal, não termina pelas utopias de esquerda ou de direita, mas pela… redescoberta do liberalismo.

Enquanto jovens, Século & Poeta gastam energia na rotina das boas ações sociais e do inconformismo político. Profissionais, racionalizam a integração ao Sistema como inevitável. E maduros, descobrem que eles e todos nós já estávamos no inconsciente e na família. E saímos em busca de nós mesmos. Mais sabidos e mais racionais, empilhamos livros, conhecimento, teorias, e deixamos a ação revolucionária transformadora do planeta para a geração seguinte. Ultimamente, com a ajuda do poeta Mallarmé, andamos redescobrindo que a carne, depois de lidos todos os livros, fica triste. “La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres”. E tome discussão sobre o prazer.

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O sucesso de público de Drummond, a validade do seu texto em termos estéticos, históricos e sociológicos, a unanimidade em torno da escolha da sua obra poética como a mais significativa do Modernismo brasileiro, tudo isso advém do fato de que a sua poesia dramatiza de forma complexa e original a oposição e a contradição entre Marx e Proust, entre a revolução político-social, instauradora de uma Nova Ordem Universal, e o gosto pelos valores tradicionais do clã familiar dos Andrades, seus valores socioeconômicos e culturais.

Ao fazer essa constatação, evitamos ver o conjunto dos poemas e livros de Drummond como articulados pela sucessão cronológica das publicações, ou como explicados pelo amadurecimento gradual do poeta. Preferimos, portanto, julgar o conjunto da obra como organizado por essas duas linhas de força paralelas e contraditórias. Ao ler os livros reunidos, temos, de um lado, textos poéticos que descrevem longa e minuciosamente o processo de decadência por que passa a oligarquia rural mineira nos seus constantes embates com a urbanização e a industrialização do Brasil e, do outro lado, poemas que traduzem a esperança em uma frutífera radicalização político-social, oriunda do otimismo gerado pelo movimento tenentista de 1930, otimismo este crítico da oligarquia rural onde, paradoxalmente, se situa o clã dos Andrades. Essas duas linhas de força se afirmam ou se negam, combinam-se, enroscam-se, enlaçam-se, caminham lado a lado, ocasionando a principal tensão dramática da poesia de Drummond.

De maneira nem sempre muito explícita, Drummond institui dois mitos como portadores das duas opções poéticas: o mito de começo e o mito de origem.

Por mito de começo entende-se o desejo de Drummond em inaugurar, por conta própria, uma nova sociedade em que pode negar totalmente os valores do passado rural e do clã. Rompe os laços de família, para poder afirmar com convicção e radicalismo os valores de individualismo e de rebeldia que julga justos para o estabelecimento de uma futura sociedade sem classes. Tal mito é representado, desde o século XVIII e na primeira poesia de Drummond, pela história de Robinson Crusoé, “comprida história que não acaba mais”, como está escrito no poema Infância, de 1930. Retirado da cultura europeia por causa de desastre marítimo, Robinson arriba sozinho a uma ilha deserta, onde tem de refazer todos os passos culturais do homem. Da solidão passa à descoberta do outro, Sexta-Feira, e se empolga com o retorno à vida social. O mito de começo é um mito de rebeldia, onde trabalho e heroísmo individual se casam. No caso da poesia de Drummond, é mito de negação do Pai como transmissor da cultura, e da Família como determinante da situação socioeconômica do indivíduo na sociedade. O passado não conta, só o presente. O mundo está para ser inventado pelo homem, desde que as mãos da solidariedade sejam dadas. Nos anos de A rosa do povo, Albert Camus torna paradoxal e engajado o cogito cartesiano: “Je me révolte, donc nous sommes”. A conscientização revolucionária da multidão tem a ver com o aprimoramento político do indivíduo enquanto rebelde.

Por mito de origem entende-se a vontade de o poeta Drummond inscrever seu projeto de vida numa ordem sociocultural mineira, em que os valores fortes da individualidade e da rebeldia perdem a razão de ser, já que são meros indícios de insubordinação passageira. Só são válidos e eternos os valores superiores do passado e da tradição. O poeta tira do rosto a máscara de Robinson Crusoé e descobre que, em si, nada vale: ele só é alguma coisa quando se identifica ao clã dos Andrades e é legitimado por ele. A ação do poeta na Terra não é uma aventura robinsoniana. A curta aventura humana no planeta é uma aproximação infinita da sabedoria dos antigos por uma nova geração, sempre menos preparada. Retorna o Filho à casa do Pai, para que, depois da insubordinação juvenil, possa assumir o seu lugar na família; volta ao lar para que seja o futuro Patriarca. Tal forma de exigência social está autenticada pela fé religiosa do grupo social — o catolicismo. A transmissão dos bens culturais se dá pela herança, assim como a transmissão dos bens econômicos. Ao se inserir na família mineira cristã e patriarcal, o poeta transcende sua vida e seu tempo, revelando seu eu autêntico na eternidade. O eu autêntico não é produto da alteridade rebelde e heroica, mas é a reprodução do mesmo, que se perpetua pela cadeia do sangue. Diz o poema Raiz: “Os pais primos-irmãos/ avós dando-se as mãos/ os mesmos bisavós/ os mesmos trisavôs/ os mesmos tetravós/ a mesma voz/ o mesmo instinto, o mesmo/ fero exigente amor/ crucificante/ crucificado”.

Rebeldia, insubordinação e aventura revolucionária, de um lado; arrependimento, reconhecimento tardio e obediência aos valores familiares, do outro.

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Já em poema que leva o sugestivo título de Infância, publicado em 1930, a não identificação com o Pai (e com a Família) vem associada com a leitura da história de Robinson Crusoé: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./ Minha mãe ficava sentada cosendo./ Meu irmão pequeno dormia./ Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé,/ comprida história que não acaba mais”.

Próximo dos seus, mas sozinho, o menino, com o livro nas mãos, começa a viver como se estivesse numa ilha banhada de mangueiras por todos os lados. Isola-se a criança quando o pai parte para o campo, a mãe se entrega à costura e o irmão mais novo ao sono. Nessa área de autoexclusão, a criança compensa a falta de companhia familiar, vivendo em aberto a aventura do livro. O menino vive como se fosse o próprio Robinson e, ao identificar-se a ele, admite como regra de vida a moral do "tudo é permitido" dostoievskiano. Quando a criança joga o livro para o lado, dá-se a Iniciação amorosa: “A rede entre duas mangueiras/ balançava no mundo profundo […].// E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira.// Um dia ela veio para a rede,/ se enroscou nos meus braços,/ me deu um abraço/ me deu as maminhas/ que eram só minhas […]./ Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde”.

Longe da vida em família, no espaço de mangueiras, “espaço verde” (diz o poema), se situa a área do individualismo e da liberação e, também, da aventura sexual. Julgando-se um novo Robinson, o menino pratica ações transgressoras sem que sobre ele recaia julgamento moral ou social. Tudo o que é proibido na área familiar pode ser desejado e obtido na área de exclusão: a lavadeira “me deu as maminhas/ que eram só minhas”. O texto poético que fala de Robinson é também o texto que canaliza o discurso sexual transgressor.

Mat. Capa 5 Karina Freitas novembro.20

 

Se os poemas que seguem a estrutura provinciana que estamos revelando se orquestram em clave individual, diferentes são os poemas onde a rebeldia robinsoniana quer afirmar-se num centro urbano, cosmopolita, muito longe de Itabira. Ao se alongar para a capital da República, onde Getúlio Vargas usurpa o poder, e ao se propagar pelo mundo conturbado pela Segunda Guerra Mundial, a revolta que se dava contra a família visa a uma práxis política imediata e revolucionária que questiona não só a oligarquia rural como toda a organização socioeconômica e política do Ocidente. A rebeldia solitária quer transformar-se em práxis marxista. Diz o poema Nosso tempo: “O poeta/ declina de toda responsabilidade/ na marcha do mundo capitalista/ e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas/ promete ajudar/ a destruí-lo/ como uma pedreira, uma floresta,/ um verme”.

Chega o momento em que Drummond quer manter o almejado diálogo com o operário, atravessando — como prega Marx no Manifesto comunista — as barreiras de classe: “[…] hoje uma parte da burguesia passa-se para o lado do proletariado, principalmente o setor dos ideólogos burgueses que chegaram a compreender teoricamente o movimento histórico em seu conjunto”. Leiamos trechos do poema O operário no mar:

Na rua passa um operário. […] Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. […] Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

Poema das perguntas e da insegurança, do compromisso e da dúvida ideológica, da compreensão da marcha da história e das fraquezas do indivíduo frente a ela, O operário no mar é também onde se percebe nítida a negação de uma esquerda festiva em Drummond. Se houver compromisso do poeta com o operário, não haverá paternalismo. Para o intelectual pequeno-burguês é fácil dar o operário como irmão nas suas investidas literárias, mas não o é no seu dia a dia profissional e político. Entre o Operário e o Poeta, ergue-se a muralha da classe e da desconfiança mútua.

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Não se pense que o mito de origem venha depois, ou antes, do mito de começo numa ordem evolutiva ou histórica. No discurso poético de Drummond, os dois mitos coexistem e são responsáveis pela alta tensão dramática que salta de seus poemas, de seus livros. Se fosse preciso definir a integração dos dois mitos no todo do discurso poético drummondiano, teríamos de falar de recalque. Quando o mito de começo é recalcado, é porque brotam na superfície do poema os elementos do mito de origem — e vice-versa.

Assim é que o reconhecimento pelo poeta dos valores do clã dos Andrades é anunciado como “viagem de regresso”. Viagem de regresso ao “país dos Andrades”, com o fim de conhecer as figuras familiares que abandonam o menino entre mangueiras e são abandonadas por ele a partir do momento em que passa a viver na revolucionária ilha robinsoniana. Manifesta-se pleno o desejo de conhecimento do mecanismo social, da identidade única que organiza o relacionamento entre todos os membros do clã: “Que há no Andrade/ diferente dos demais?/ Que de ferro sem ser laje?/ braúna sem ser árvore?”.

Em viagem de regresso à área familiar, o Poeta reencontra os valores silenciosos do seu clã, da sua família nuclear e, pouco a pouco, compreende sua discreta e tirânica razão de ser, isto é, seu poder de funcionamento alheio à vontade e aos anseios mais fortes do menino solitário e do homem precário e rebelde que se politizou à esquerda.

Foi preciso que o menino Drummond perdesse primeiro os familiares, foi preciso que o poeta maduro construísse um mundo utópico alheio a ele, para que depois, ao final da vida, os recuperasse pela palavra poética na série de livros intitulada Boitempo. Leiamos o poema Comunhão. De início o Filho se situa fora da roda do clã, em atitude de distanciamento e de contemplação. As figuras da roda — descobre ele quando vê a cena do centro — não têm faces e só são reconhecíveis pelo que dizem em silêncio. No momento em que o excluído entra na roda da família, abandonando a sua posição de espectador, ilumina-se toda a cena, todas as faces anônimas se acendem. O Filho assume a família no momento em que aceita sentar no lugar vazio que estava à sua espera, previsto e designado para ele pelos antigos: “Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,/ eu no centro./ Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis/ pela expressão corporal e pelo que diziam/ no silêncio de suas roupas além da moda/ e de tecidos […] / Notei um lugar vazio na roda./ Lentamente fui ocupá-lo./ Surgiram todos os rostos, iluminados.”

Ao se identificar aos familiares mortos, o poeta esboça um primeiro passo em busca da origem e de seus valores sociais e econômicos. A figura do Pai, de longe e em aparente descaso pelo Filho, arma o palco da origem. Nele, o Poeta, como novo filho pródigo, representa a volta ao lar, desmistificando a artificialidade de sua palavra de começo. Representativos da dramaticidade do conflito entre indivíduo e família, entre começo e origem, são alguns versos de Como um presente, poema escrito para comemorar o aniversário do pai já morto: “A identidade do sangue age como cadeia,/ fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,/ onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar./ Por que ficar neste município, neste sobrenome?/ Taras, doenças, dívidas: mal se respira no sótão./ Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra, […]/e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade”.

O poeta teria querido apagar da memória todo traço de hereditariedade e o peso da responsabilidade para com os antigos; teria querido circunscrever só para ele a existência dentro de uma redoma neutra, pouco exigente e inaugural, semelhante a uma tábula rasa. Restaria, pois, ao poeta pôr em prática um absurdo paradoxo: “inaugurar novos antepassados em uma nova cidade”. Mas sob o signo de Proust e do tempo perdido, são os antepassados que, ao ditar autoritariamente nossos passos e nossas normas de comportamento, nos inauguram, determinando-nos social e economicamente.

Contra o paradoxo da rebeldia contra os antigos se insurge, à maneira de vacina instilada gota a gota, a ciência do sangue que, como diz o poema Escritório, é “soprada por avós tetravós milavós”. E é através do lento aprendizado da ciência do sangue que se recebem os bens de família, bens simbólicos que, em última e derradeira instância, determinam a posição sociopolítica e econômica do Poeta. Seu lugar no clã dos Andrades, o lugar do clã na comunidade, na Nação. Inexoravelmente, tradição e conservadorismo invadem as páginas do tardio Proust mineiro, confundindo-se nos poemas o patriarcalismo na família e o mandonismo na vida política local. Patriarca e coronel ressurgem das cinzas pela força da palavra poética: o futuro do passado.

***

Como estamos vendo, existem pelo menos dois Drummonds na sua poesia. O primeiro compreendeu de maneira inigualável “o tempo presente, os homens presentes”. Teria se assustado com o trabalho sangrento que o bisturi poético faz nas chagas sociais do nosso tempo? Escreve em Claro enigma, livro publicado em 1951: “Escurece, e não me seduz/ tatear sequer uma lâmpada. /Pois que aprouve ao dia findar,/ aceito a noite.”

Na década de 1950, Drummond passa o bastão de revezamento da crítica social para o jovem João Cabral de Melo Neto. Este, ao abandonar a estética mallarmaica então em vigor, busca uma poesia de maior eficácia política. Receoso do compromisso ético e ideológico que o sujeito do poema pode manter com o assunto tratado, João Cabral resolve retirar do discurso poético todo resquício de subjetividade, como se dá no poema dramático Morte e vida severina (1956). Como bom fenomenólogo que é, haja vista a discussão sobre teoria poética que está na plaquete Psicologia da composição (1947), Cabral mostra a miséria nordestina tal como ela é, e não tal como o diplomata ou o Poeta a vê.

Por outro lado, Cabral evitou o perigo que Drummond, o segundo Drummond, assumiu autobiograficamente: conhecer em profundidade todos os valores que determinaram o homem-poeta no processo de sua realização econômica, social e política. E esses valores — espero que tenha ficado claro — são os valores do velho latifúndio mineiro. Ao assumir o discurso do Pai, do Patriarca, Drummond foi-se esquecendo de continuar a esquadrinhar com os olhos o caminho de luz que os faróis do carro poético abriam à sua frente, como o tinha feito em Sentimento do mundo (1940). Passou a ficar embevecido com a paisagem antiga que lhe enviava o espelho retrovisor. Instalado de novo — e poeticamente — no antigo Sobrado mineiro, descobre-o muito acima dos mortais. Entre o Sobrado e a Rua, uma escada reveladora:

É teatral a escada de dois lances
entre a rua e os Andrades.
Armada para a ópera? ou ponte
para marcar isolamento?


(Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)