pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 19 de setembro de 2021

Revisão arqueológica da Floresta Amazônica

Edição do mês

Revisão arqueológica da Floresta Amazônica
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(Ilustração: Reprodução/J. C. Mikan)

 

 

Pesquisas comandadas pelo arqueólogo Eduardo Góes Neves na Amazônia desafiam noções que se consideravam estabelecidas, como a de que a floresta abriga uma natureza intocada. Neves, que é professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), vem divulgando parte de suas conclusões em estudos publicados em revistas brasileiras e estrangeiras e continua se dedicando a ampliá-las.

Segundo tais pesquisas arqueológicas, os sistemas agroflorestais amazônicos consistiam de uma combinação de plantas cultivadas na praça central dos povoados – como milho, leguminosas e frutas – com manejo de árvores ricas em alimento, como castanhas, açaí e tucumã. Neves e os parceiros de seus estudos (entre eles pesquisadores de três universidades estadunidenses e uma universidade holandesa) afirmam que no período pré-colombiano existiu na Amazônia uma rede de estradas que conectava aldeias e culturas. Segundo eles, a Amazônia é um centro de domesticação de espécies de plantas: quando os europeus chegaram à floresta, ao menos 83 espécies nativas já haviam sido domesticadas, num processo que começou há 12 mil anos.

A seguir, Neves fala de suas pesquisas e de como muitas das ideias consagradas sobre a Amazônia têm viés colonialista e racista.

A compreensão da floresta tropical amazônica como um fenômeno histórico multinatural tem ganhado força e alinhado reflexões entre antropólogos e arqueólogos quanto às formas de interação entre humanos e não humanos, perpetuadas pelas populações amazônicas ao longo de milênios. De que modo o registro arqueológico e dados etnográficos permitem novos entendimentos das práticas culturais relacionadas a manejo e cultivo de plantas no ambiente amazônico?

Há mais de 30 anos a antropologia tem proposto, por meio da ecologia histórica, que existe uma contribuição importante das práticas de manejo indígenas na constituição atual de florestas na Amazônia. Nessa perspectiva, matas de bambu, castanhais, babaçuais e outras formações resultaram, por exemplo, do uso do fogo e do cultivo e replante de mudas em áreas específicas ou ao longo das trilhas. Tais práticas, aliadas às de abertura de roças e áreas para as aldeias de diferentes tamanhos, quando repetidas ao longo de 12 mil anos, teriam resultado em transformações significativas das florestas, a ponto de ser possível afirmar que as populações indígenas tiveram contribuição fundamental na constituição desses ambientes. Também foi ficando clara a autoria indígena na formação das “terras pretas de índio” – solos muito férteis e produtivos que começaram a se disseminar cerca de 2500 anos atrás. Por outro lado, em desenvolvimentos paralelos, os pensadores indígenas e a antropologia nos mostram como, para as populações indígenas, não existem barreiras claras entre os mundos “da natureza” e da “cultura” e que, de fato, tal separação foi naturalizada pela tradição intelectual da qual somos tributários. A lição que a arqueologia nos ensina é que a distinção entre o que é selvagem ou domesticado resulta mais de categorias analíticas exóticas do que propriamente de formas de conhecimento e classificação locais. A crítica a essa divisão arbitrária pode resultar em uma contribuição teórica importante.

Nos últimos anos, um dos efeitos impulsionados por pesquisas interdisciplinares sobre a Amazônia foi a guinada de uma perspectiva fortemente marcada pelo determinismo ambiental para interpretações que consideram a floresta como um artefato cultural de agenciamento humano passado, produto de uma associação de longa duração entre espécies de plantas, humanos e animais. Como a pesquisa arqueológica realizada na Amazônia tem contribuído para reiterar essas hipóteses?

A arqueologia tem nos mostrado que, na Amazônia, o passado não é mais como era antigamente. Superamos, nas últimas décadas, uma perspectiva baseada no determinismo ambiental, que enxergava a região como uma área periférica e até inóspita na história profunda da América do Sul. O estudo da emergência ou não de formas políticas, como o Estado, na Amazônia antiga reflete essa mudança. Sabemos hoje que o Estado não se estabeleceu na Amazônia, mas que, ao mesmo tempo, havia locais com adensamento e redundância nas ocupações, em um padrão que poderíamos chamar de urbano; que o início da história de domesticação de plantas remonta a mais de 9 mil anos, mas que plantas não domesticadas são até hoje fundamentais para as práticas agroecológicas locais. Em suma, a arqueologia nos mostra que não houve limitações ambientais nem intelectuais no curso de uma histórica rica e dinâmica na Amazônia, mas que perspectivas baseadas em outras experiências históricas – de fato, mais políticas que históricas – não funcionam para explicar essa história. A arqueologia da Amazônia contraria sempre o senso comum – e por isso é tão interessante.

No entanto, ao considerar uma boa parte da Floresta Amazônica como um conjunto de paisagens antrópicas, não estaríamos, de algum modo, dando primazia ao agenciamento humano na constituição do meio ambiente amazônico? O termo paisagens multinaturais (Glenn Shepard) não seria mais abrangente e inclusivo nesse sentido?

Creio que sim. A ideia de paisagens multinaturais é muito mais generosa, inclusiva e também precisa, pois faz justiça às diferentes forças que atuam na constituição dessas histórias. Por trás disso, há uma questão importante, que é o controle. Somos herdeiros de uma tradição intelectual que confia no uso das técnicas como meios de intervenção e controle da natureza. Nessa tradição, técnicas são neutras e funcionam como intermediadores com o objetivo de maximizar o retorno por gasto de energia e evitar riscos. Uma manifestação radical desse princípio seria, por exemplo, uma grande fazenda de monocultura. Sabemos, no entanto, que tecnologias são sistemas de conhecimento e que, portanto, não podem ser neutros e tampouco pensados fora dos contextos políticos nos quais são engendrados. Talvez seja por isso que parte de setores representativos do agronegócio apoie projetos políticos totalitários: ambos os sistemas estão fundados na ideia de controle absoluto, seja de grãos, de corpos ou de ideias. A ideia de paisagens multinaturais oferece algo oposto à noção de controle: práticas abertas ao acaso, à experimentação desinteressada e estética, e, sobretudo, alheias a princípios de acumulação. Na Amazônia, a arqueologia nos mostra que essas práticas mais relaxadas e abertas se constituíram e se aprimoraram ao longo de milênios, a ponto de contribuírem para gerar a grande agrobiodiversidade da região. São práticas estabelecidas e testadas em escalas de tempo profundas. Pensando nessas escalas – que são o parâmetro para a arqueologia –, quem nos garante que o agronegócio monocultor, com seu altíssimo custo energético e impacto ambiental, continuará a funcionar em cem anos?

Certa idealização da Floresta Tropical Amazônica como mata intocada e inabitada ainda está muito presente nas campanhas e políticas de preservação ambiental, no Brasil e no mundo. De que modo uma compreensão maior das práticas de familiarização entre seres humanos e não humanos, próprias às culturas ameríndias, poderia impulsionar a criação de políticas ambientais mais inclusivas em relação aos processos simultâneos de constituição da paisagem florestal e das sociedades indígenas amazônicas?

Essa idealização, como toda visão desse tipo, ilustra as expectativas e ansiedades construídas de fora. É também a manifestação de relações colonialistas e racistas que se constroem em múltiplas escalas. Políticas públicas para a Amazônia foram sempre pensadas com o objetivo de maximizar a extração de recursos locais, seja a mão de obra escrava indígena ou as “drogas do sertão”, borracha, madeira, minérios e, agora, energia, com a construção de grandes usinas hidroelétricas. Os princípios que baseiam essas políticas públicas vêm da noção de que a natureza é algo que está em uma dimensão externa e, portanto, pronta para ser apropriada, repartida e vendida. Os povos indígenas e a arqueologia nos ensinam que não existe partição radical entre os domínios da Natureza e da Cultura. Essa separação já contribuiu para avanços notáveis, mas nos coloca agora diante de um dilema representado pela profunda crise socioambiental que o mundo enfrenta. Somos testemunhas dessas mudanças e, o que é mais assustador, temos consciência dos efeitos de nossas práticas. Parte das soluções para esses problemas complexos deve passar por uma conexão respeitosa e humilde com formas de conhecimento como as dos povos indígenas.

Sandra Pandeló é graduada em Filosofia pela USP e integrante da equipe do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos (Arqueotrop) do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

sábado, 18 de setembro de 2021

Editorial: As mãos ( e os sentimentos) de Paulo Freire



Paulo Freire é um educador pernambucano, natural do país de Casa Amarela, como costumava se referir àquele bairro o padre Reginaldo Veloso, eterno pároco do Morro da Conceição. Suas atividades profissionais começaram no SESC daquele bairro do Recife. Escrevemos vários textos sobre Paulo Freire, mas confessamos que, ao lê-los, hoje, não mais nos sentimos à vontade em republicá-los, por inúmeras razões. Ora porque eles já não traduzem a atualidade do pensamento do educador pernambucano, ora porque, como tudo que escrevemos, estão impregnados de impressões pessoais, como as nossas reações à leitura dos seus livros mais importantes, como Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Autonomia. Ainda chegamos a acompanhar duas conferências públicas do pensador Paulo Freire. Uma delas no Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco. Outra, por ocasião da cerimônia de encerramento do curso de alfabetização de adultos, realizada na Usina Catende, na zona da Mata Sul de Pernambuco, que utilizou seu método para alfabetizar centenas de operários daquela massa falida.   

Como circulamos muito pelo bairro de Casa Amarela, as lembranças são inevitáveis. Outro dia, através das redes sociais, ficamos sabendo que a casa onde o educador residiu em Jaboatão dos Guararapes seria transformada num centro cultural. Até bem pouco tempo, estava abandonada pelo poder público, numa atitude de profundo desrespeito à memória do grande educador pernambucano. Não sabemos qual foi o destino dado à sua residência de Casa Amarela. Um dos aspectos que mais nos instigam em Paulo Freire é o seu papel de agitador cultural no Movimento de Cultura Popular, criado pelo então prefeito Miguel Arraes de Alencar, pelos idos da década de 60, quando era prefeito do Recife. Não raro, relemos o Memorial do MCP apenas para recordar "daqueles tempos". Havia até um livro sobre "educação de adultos", elaborado por duas professores militantes do MCP. Por alguma razão, Paulo não gostava do livro, embora ele tenha sido elaborado fidedignamente consoante os ensinamentos do mestre.

Eis que encontro a assinatura de Paulo Freire na histórica reunião do Colégio Sion, em 10 de fevereiro de 1980, quando o Partido dos Trabalhadores foi fundado. Quando assumiu a prefeitura de São Paulo, ainda filiada ao PT, Luíza Erundina entregou a Paulo Freire a secretaria de educação do município. Há muitas estórias sobre a gestão de Paulo Freire naquela pasta. Numa delas, conta-se que ele, mesmo na condição de gestor das políticas públicas de educação do município, aquiesceu quando uma professora do município afirmou que não seguiria as suas orientações, numa demonstração inequívoca de suas convicções democráticas.  

Nessas estórias, há sempre um toque de bom humor, mas se diz bastante sobre sua personalidade e sensibilidade humanitária, o que o tornaria um dos mais respeitados pensadores do campo da pedagogia. Aliás, essas experiências pessoais foram fundamentais para estruturar suas reflexões sobre o ato de educar. A questão do diálogo, por exemplo, tão presente em seus ensaios, foi o resultado, segundo ele afirmou, de uma longa conversa mantida com um operário - noite a dentro - quando ainda residia em Jaboatão dos Guararapes. Ali ele entendeu que, para o processo de educação concretizar-se, seria necessário um diálogo que permitisse entrar no universo do educando. Do contrário, o ato de educar não se realiza.  

Contava Paulo Freire, por ocasião do encerramento do curso da Usina Catende, que enfrentou duas situações aparentemente constrangedoras, quando esteve no Chile e na África. No Chile parece não haver problemas numa circunstância de dois homens se darem as mãos. Na África, durante um passeio pelo campus de uma universidade, depois de uma conferência, viu-se diante de um embaraço. Um professor segurou as suas mãos enquanto ambos passeavam e conversavam descontraidamente. "Pedi a Deus para que alguém de Casa Amarela não nos visse naquela situação". Na primeira oportunidade, colocou as mãos no bolso, de onde não mais as tirou.

Eis que, antes de voltar ao Brasil, Paulo adoece, possivelmente vitimado por alguma dessas doenças tropicais. Humanamente muito bem tratado pelos médicos e enfermeiras africanos, que não se cansavam de pegar em suas mãos, acariciá-las e desejar-lhes melhoras, relembra. Depois desse episódio, observa em suas reflexões, concluiu que deveria haver alguma coisa de muito errado numa sociedade onde as pessoas se recusavam a receber uma manifestação de carinho - motivada por preconceito - traduzida num caloroso aperto de mão, num abraço fraterno ou, brasileirissimamente, num tapinha nas costas.

A homenagem do blog ao patrono da educação brasileira pela passagem do seu centenário. Paulo é daquela geração de 60, que poderia ter transformado o destino deste país e, quem sabe, até mesmo do continente latino-americano, pois suas reflexões teóricas se inserem numa perspectiva continental. Nossa elite torpe, consorciada com a banca internacional, impediu que contingentes expressivos da sociedade brasileira exercessem sua cidadania plena, posto que iletrados. O Brasil ainda ostenta um dos maiores índices de analfabetismo do mundo, número que poderia ser sensivelmente reduzidos, caso as reformas de base fossem viabilizadas. Previa-se um amplo programa de alfabetização de adultos, aplicando-se o método de Paulo Freire.  

sábado, 11 de setembro de 2021

Charge! Duke via O Dia

 


Editorial: Afinal, como anda a saúde de nossa democracia?




Em 2013, as instituições que acompanham a saúde das democracias pelo mundo, estavam nos aprovando com louvor. Numa escala que ia de 1 a 7, pontuávamos com a nota 2, ou seja, em tese, estávamos consolidando a nossa experiência democrática, uma vez que nos aproximávamos de atingir a nota máxima: 1. Por esse critério, quanto mais próximo da nota 7, menos democracia. Quanto mais próximo de 1, significa que os regimes democráticos corrigem falhas e se aproximam do ideal. Os diletos leitores e leitoras que nos acompanham por aqui sabem que a saúde da nossa democracia sempre inspirou os cuidados desse humilde cientista político. Recomendo os exercícios físicos regulares, observo como estão suas taxas, afiro sua pressão e, principalmente, observo suas reações às patologias políticas graves, como o fascismo, que poderiam levá-la a óbito. Até mais recentemente, aí entre os dias 06 e 08 deste mês, ela foi socorrida na UTI, com febre acima dos 40 graus. Por muito pouco não entrou em processo de convulsão, graças às medicações e medidas adotadas por um certo doutor Fux, que agiu rápido, impedindo o pior.   

Desconfio, igualmente - mesmo com todo o respeito às pesquisas científicas - dos rankings realizados por determinados institutos acerca da saúde dos regimes democráticos ao redor do mundo. Talvez haja, aqui, não um problema com essas organizações, mas algo concernente às metodologias utilizadas na realização dessas pesquisas, talvez alguma variável que deixou de ser considerada. Na primeira década deste século, nosso ranking em termos de saúde democrática - atestado por esses organismos internacionais - era dos melhores, conforme observamos acima. Como, em apenas 03 anos depois, começamos a conviver com frequentes tentativas de minar essa experiência? Talvez tenhamos dormindo o sono político que produziu o monstro. 

Harmonia e independência dos três poderes; eleições limpas e regulares; Estado Democrático de Direito Pleno; Exercício do direito de manifestações e liberdade de expressão; Respeito e ampliação dos direitos de minorias - como comunidades quilombolas e indígenas - políticas públicas de gênero e empoderamento dos segmentos LGBTQI+; políticas públicas de distribuição de renda e oportunização de formação escolar em todos os níveis. Neste último quesito, por exemplo - que pode ser inserido num contexto de democracia econômica ou substantiva - tivemos um salto enorme, pois se criou o maior programa de acesso ao ensino superior de jovens negros, empobrecidos, moradores de periferia ou cidades do interior - regiões geográficas majoritariamente ocupadas pelos mais pobres, numa saudosa reflexão a partir do grande geógrafo Milton Santos.  

O programa de cotas e a ampliação e interiorização da rede física de IFES e Institutos Federais constituiu-se numa verdadeira revolução no que concerne à ampliação das oportunidade educacionais no país, responsável pela única melhoria dos indicadores da raça negra nesses 521 anos. Diferentemente da Folha de São Paulo, reconhecemos aqui os méritos e créditos aos governos da coalizão petista. Pouco tempo depois, todo esse edifício começou a desmoronar, como se as estruturas não estivessem tão firmes assim como se supunha. É curioso esse aspecto. A pergunta que se faz aos democratas convictos é: onde erramos? É verdade que fomos atingidos pelo tsunami de uma onda conservadora em escala global, capitaneada pelos interesses acumulativos do capital, que já não se coadunava com as práticas democráticas mais efetivas. 

Nenhum candidato poderia colocar no seu programa de governo ou defender em praça pública o desmonte das políticas ambientais ou a subtração acintosa dos direitos trabalhistas, conquistados a duras penas, ao longo de décadas de luta da classe trabalhadora. Impensável, igualmente, propor voltar ao tempo das fogueiras, onde livros seriam queimados, como ocorreu nos arroubos golpistas da vizinha Bolívia, onde a biblioteca de um ex-presidente foi destruída. Certa vez, numa rara entrevista, o escritor pernambucano Sidney Rocha,  perguntou a Ray Bradbury que livro ele colocaria na fogueira. Ele respondeu: Nenhum.  

Então, seria fundamental para esses atores políticos de intenções duvidosas o controle do Aparelho de Estado e o seu fortalecimento, em alguns casos criando zonas de conflito com os poderes Legislativo e judiciário. Trata-se de uma agenda nefasta, exequível apenas em condições bastante peculiares. A Constituição dos Trabalhadores, a CLT, esta já foi duramente atingida. A investida mais recente se dá em relação à Carta Magna do país, a Constituição Federal, promulgada em 1988. Como cidadão de convicções democráticas, muito satisfeito aqui com a ausência de intimidação dos poderes constituídos, assim como em relação às medidas profiláticas que estão sendo adotadas no sentido de impedir sua violação. 

Num momento como este, precisamos de homens público de estatura e conscientes de suas responsabilidades cívicas, conforme é o caso dos Ministros do Supremo Tribunal Federal - que fecharam questão em defesa da independência dos poderes da República e da da Constituição Federal. Louvável as ações do ministro Alexandre de Moraes - que não se intimidou com as ameaças e continuou agindo firme, coibindo práticas e manifestações de corte antidemocráticas. O ministro Luís Roberto Barroso, que preside o TSE, foi igualmente contundente na defesa do órgão e das eleições livres e soberanas. Num discurso incisivo, pontuando ponto por ponto, desmontou as especulações infundadas sobre a lisura das eleições realizadas através do processo de urnas eletrônicas. Como diria uma grande professora de língua portuguesa, Barroso usou e abusou dos verbos, adjetivos, substantivos, predicados e sujeitos.( e sem esquecer das vírgulas). Proferiu um discurso que encerrou o assunto. Necessário para o bem de nossas instituições democráticas. 

Nas páginas amarelas da revista Veja desta semana, uma entrevista com o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19, o senador amazonense Omar Aziz(PSD-AM). Omar realiza um trabalho digno de nossa admiração, orientado por princípios republicanos, comedido e pautado pelo respeito às vítimas e familiares daqueles que perderam a vida pela pandemia. Sua sede de justiça se assenta nesses pilares. Como convém, não adiante suas conclusões, mas dá uma pista dos graves delitos cometidos por agentes públicos e privados no tocante a esta questão. Um deles foi a tentativa de mudar a bula da hidroxicloroquina para tratar doentes da Covid-19.    

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

O pulo de Anna Kariênina

Juliana Cunha

O pulo de Anna Kariênina
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“Anna Kariênina” coloca uma importante contribuição ao debate contemporâneo sobre gênero ao acertar um ponto nevrálgico (Foto: Reprodução)

 

 

Em A morte de Ivan Ilitch, Tolstói cria um protagonista que se regozija em ser agradável com gente que ele sabe muito bem que poderia esmagar. Juiz de instrução, um de seus grandes prazeres é receber uma pessoa em seu escritório e atendê-la com extrema cortesia, ciente, no entanto, de que essa polidez é inteiramente opcional. Se tivesse vontade, poderia usar sua posição para humilhar o requerente.

Publicada em 1886, a novela repete uma ideia latente em Anna Kariênina: a de que a falta de horizontalidade entre as pessoas torna a condescendência dos de cima um mero espetáculo de decência — um outro jeito de fruir a hierarquia. Assim como Ivan Ilitch tira seu gozo de uma humilhação que não cometeu, Anna se ressente de uma humilhação ainda não sofrida, e sofre por um amor que ainda não perdeu.

Após abandonar o marido pelo amante, a heroína de Tolstói é tomada por um senso de humilhação oriundo do fato de que o amante pode tudo em relação a ela. Para Anna, a consciência desse poder é degradante em si mesma, ainda que ele opte por não exercê-lo. Essa é uma ideia que lhe ocorre no momento exato em que se entrega ao adultério pela primeira vez, quando lhe diz: “Está tudo acabado. Não tenho nada além de você”. Escritos com uma década de intervalo, Anna Kariênina e Ivan Ilitch se encontram em lados opostos da mesa, mas chegam à mesma conclusão: a de que a consciência do poder seria mais do que o suficiente, relegando sua prática ao segundo plano.

A boa notícia que nos traz de volta a Tolstói é a nova edição de Anna Kariênina, traduzida do russo por Irineu Franco Perpétuo e publicada pela Editora 34. O livro vem acompanhado de um posfácio do tradutor e de uma resenha de Thomas Mann inédita em português. Antes do trabalho de Perpétuo, a obra já havia sido traduzida do russo por Rubens Figueiredo, que assina a versão publicada pela Cosac & Naify em 2013 (no catálogo da Companhia das Letras desde 2017). Se até a década de 1990 esses livros geralmente chegavam ao Brasil em retraduções do francês, agora temos o luxo de cotejar diferentes versões diretas.

Concluída em 1877, quando o autor tinha 49 anos, Anna Kariênina é a segunda grande obra de Tolstói e dá seguimento ao projeto iniciado por Guerra e Paz. Ambientado na rebarba das reformas liberais implementadas pelo imperador Alexandre II, o enredo se passa meio século após os acontecimentos de Guerra e Paz. Enquanto seu predecessor narra a Invasão Francesa da Rússia e o impacto da Era Napoleônica sobre a sociedade czarista, Anna Kariênina retrata a perda de importância da aristocracia diante de mudanças que, na visão do autor, descaracterizam a cultura nacional em nome de um progresso vazio e importado. Se Guerra e Paz mostra uma Rússia que, aos trancos e barrancos, reconquista seu território e sela seu destino enquanto nação, em Anna Kariênina o prognóstico parece cinzento.

O enredo é centrado em uma personagem magnética, que atrai não só o leitor como a todos os personagens. Casada com um burocrata do alto escalão do império czarista e mãe de um menino de oito anos, Anna é uma das mulheres mais respeitadas da sociedade de São Petersburgo. Isso até se apaixonar pelo genérico conde Vrónski. O que poderia ser uma discreta pulada de cerca — coisa que na aristocracia francesa e mesmo na tradicional sociedade russa não seria necessariamente o fim do mundo — se transforma no desejo de ter uma vida completamente nova: algo que não constava no rol de opções da personagem.

Embora existisse divórcio na Rússia Imperial, na prática sua obtenção dependia do favor do marido, e colocava a mulher divorciada em um patamar social inferior, ainda que aceito em círculos menos exigentes. Anna, no entanto, jamais chega a se divorciar: ela simplesmente abandona o marido em nome do amante, colocando-se em uma posição de persona non grata mesmo aos olhos dos membros mais liberais e menos ilibados da aristocracia russa. Excluída da convivência com outras mulheres de sua classe, a protagonista tenta se recriar como escritora, dama de salão aos moldes de uma Madame de Staël, professora dos filhos dos criados e benfeitora da educação feminina. Essas ambições são cortadas no caule pelo amante, que acaba mostrando que tinha expectativas bem diferentes para a vida a dois. Há ciúmes, orgulho, conversas desencontradas e paranoia de ópio. O baque da perda do filho e da reputação é duro, mas não o bastante para esmagá-la. Anna é derrotada pela ideia de que o mínimo de dignidade que conseguiu forjar em sua posição dependia de sentimentos tão fugidios e abstratos quanto o amor de um homem e seu respeito por ela. A ruptura do casamento acaba tornando-a dependente do amante em todos os aspectos: social, financeiro, emocional. É assim que a mulher mais bonita e inteligente de seu tempo abre mão da relativa salvaguarda oferecida pela maternidade e pelo casamento para tentar a sorte em veredas que pouco a pouco se revelam impossíveis.

Artista que viria a escrever contra a arte, veterano de guerra pacifista, pai de 13 filhos apavorado com o sexo, homem de fé excomungado pela igreja, poliglota viajado e xenófobo, Tolstói nasceu e viveu no mesmo pedaço de chão, nunca passou um perrengue financeiro considerável e teve que inventar suas próprias crises. Era um sujeito que sentia culpa por escrever bem e por claramente gostar do que fazia, e achava que a diversão só se justificava se pudesse educar seus leitores sentimental e socialmente. “Nosso ofício é horrível. Escrever corrompe a alma”, dizia esse pobre gênio abastado.

Em sua obra, a rachadura entre intenção e gesto que aparece em tantos autores está mais para um dano estrutural. Ele não faz o que anuncia, não faz o que queria fazer. No projeto do escritor, Anna Kariênina seria uma advertência ao adultério, uma versão russa e moralizante de Madame Bovary, publicado duas décadas antes. O resultado, no entanto, é bem mais dúbio. O verdadeiro “trair ou não trair” não é o de Capitu contra Bentinho, mas o de Tolstói contra a sua Kariênina.

Essa distância entre a intenção autoral e a ambiguidade incontornável de sua ficção é exposta pelo clássico ensaio no qual o filósofo Isaiah Berlin divide escritores e pensadores ocidentais entre “ouriços” e “raposas”, chegando à conclusão de que Tolstói seria o único a escapar a essa definição por ser contraditório demais — uma espécie de raposa que quer ser ouriço. Nesse ensaio, Berlin retoma o aforismo do poeta grego Arquíloco: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante”. Para ele, ouriços seriam os escritores cuja obra possui uma ideia central da qual tudo deriva, que oferecem uma grande chave explicativa supostamente capaz de abrir todas as portas. Já o pensamento da raposa seria movido por interesses e ideias múltiplas, bem mais desagregador e interessante, porém bem menos eficaz que o do ouriço quando o objetivo é mudar o mundo. O drama de Tolstói seria tentar encaixar sua natureza de raposa em ambições que só caberiam a um ouriço.

Essa não foi a primeira vez que Tolstói tentou produzir seu próprio Madame Bovary. Antes de Anna, houve Mária, narradora-protagonista de A felicidade conjugal. Publicado em 1859, no calor da recepção de Flaubert, o livro narra a história de uma órfã que se apaixona pelo único homem de sua classe social com quem teve contato. O alvo do amor de Mária é Sierguiéi Mikháilitch: um homem de 36 anos que acaba sendo uma espécie de rascunho do Lióvin, de Anna Kariênina. É um bom aristocrata do campo. Reto, simples, trabalhador, simpático aos mujiques e refratário a bailes e salões: exatamente como o autor achava que a elite russa deveria ser. Amigo do pai de Mária, ele assume os negócios da família em benefício da órfã, motivo pelo qual faz visitas periódicas à sua casa isolada. Aos 17 anos, a menina se apaixona e Sierguiéi diz o óbvio: “muito nova. Em seis meses, vai cansar de mim”. Mária insiste e os dois se casam. Há um período idílico — a felicidade conjugal —, logo interrompido por uma viagem do casal a Moscou, onde ela conhece seu primeiro baile, recebe a primeira corte de um príncipe e é tragada, durante dois anos, por uma vida perdulária de jantares e salões.

Essa primeira Bovary de Tolstói não dá um só beijo na boca. Uma noite, escuta dois homens da sociedade comparando-a de um jeito vulgar à mais nova beldade e volta para casa horrorizada. Sierguiéi, no entanto, é incontornável: aceita a mulher de volta somente para uma relação de cortesia e cuidado com os filhos. Felicidade conjugal, nunca mais. Tolstói rapidamente renegou esse livro. Talvez o problema essencial é que seja fácil demais perdoar uma narradora visivelmente arrependida de seus erros de adolescência. Embora tenha momentos interessantes de indignação, Mária se considera inteiramente responsável pela perda do amor do marido, e a frustração final do leitor é com a limitação da possibilidade de perdão. É com o marido.

Em Anna Kariênina, os entraves à mensagem são removidos. Anna não tem 17 anos, tem quase trinta. Não é ingênua, mas escolada na vida social. Casou-se muito cedo, mas não com o primeiro que apareceu. Seu marido, Karenin, é muito mais flexível do que Sierguiéi: perdoa, concede, na prática até autoriza uma discreta pulada de cerca. Por um breve momento, oferece mesmo o divórcio. Mas Anna não quer um caso, um adultério elegante, um puxadinho, um gesto de condescendência. “De que ela é culpada? Ela quer viver”, diz o narrador.

Antes de tomar sua decisão final, Tolstói pensou em intitular a história de “Dois casamentos”. O contraste mais evidente é entre o imbróglio trágico dos Karenins e o idílio matrimonial de Lióvin e Kitty, casal declaradamente baseado em Tolstói e sua esposa, Sofia. O romance, no entanto, já começa com uma outra comparação: aquela estabelecida entre Anna e seu irmão, o adorável e egocêntrico Stepan Arcadievitch. O primeiro deslize da personagem é cometido justamente em nome desse irmão: quando ela deixa o filho sozinho em São Petersburgo pela primeira vez e vai à luxuriosa Moscou para interceder em favor de Stiva, cuja mais recente pulada de cerca acaba de ser descoberta. Preguiçoso, gastão, endividado e egoísta até não poder mais, Stiva impõe à mulher a humilhação da traição sistemática e mal disfarçada, da falta de dinheiro e, por fim, do exílio dependente na casa do cunhado. Faz tudo isso não apenas sem consequências, como sem ouvir sequer uma reprovação. Enquanto a protagonista se casa sem amor com um homem vinte anos mais velho, sua cunhada tem uma união por amor com um homem da sua idade, e termina sendo tratada como uma mala velha aos 34 anos e seis filhos. A função narrativa de Dolly e Stiva é demonstrar a desigualdade entre os gêneros no matrimônio e evitar a impressão de que bastaria uma esposa honrada para garantir a felicidade conjugal.

Mas Anna não é uma vítima indefesa. Ao contrário de Emma Bovary, ela possui uma margem de ação relativamente ampla. É uma aristocrata da mais alta classe, não uma burguesa interiorana que endividou a família para dar um chicote de presente ao amante. Emma é a leitora típica das camadas médias que se deixa enganar por enredos sentimentais. Anna é a melhor das leitoras, inclusive escreve livros infantis. Perto de sua morte, o plano era publicar um livro. Emma nunca foi verdadeiramente amada e seus homens estavam longe de almejar grandes gestos: ninguém quer fugir com ela, ninguém lhe dá uma opção. Já Vrónski e Karenin têm seus limites, mas não chegam a ser rebaixados.

O romance salienta reiteradas vezes a influência do meio e a corruptibilidade do melhor dos seres humanos. Anna começa a história como uma das mulheres mais íntegras da sociedade de São Petersburgo: basta um baile, um descuido, para isso começar a ruir. A ideia do baile, da vida citadina, do ócio, do cosmopolitismo e da extravagância como portas de entrada para drogas mais pesadas é uma constante no século 19. Em Tolstói, esses elementos criam o ambiente para que o sujeito se entregue aos maus instintos e cale a voz da consciência. Para o autor, o ser humano não nasce mau, mas precisa de uma estrutura que o ajude a manter sob controle certas inclinações. Essa estrutura seria oferecida pela religião, pela família, pelo trabalho, pela tradição e, sobretudo, pela cultura. É por isso que, ao ser acusado de gostar dos camponeses, Lióvin explica que camponeses há muitos e de todos os tipos. Em seu entendimento, os mujiques não seriam melhores do que os aristocratas como indivíduos: a questão é que, enquanto grupo, sua cultura seria mais saudável.

O primeiro contato entre Anna e Vrónski é seguido justamente da morte de um mujique: um vigia da estação que, sem perceber o recuo do trem, foi atropelado. Na interpretação do crítico Richard Gustafson, o atropelamento do vigia antecipa o dilaceramento da consciência do futuro casal, que cala seu grilo falante interno para ceder à paixão. Embora isso pareça se aplicar a Anna, a verdade é que Vrónski nem tinha uma consciência moral para calar. Os únicos freios às suas vontades individuais parecem ser os valores aristocráticos clássicos, como a coragem e a generosidade, além de um conjunto nebuloso de idiossincrasias. A ideia de uma moral verdadeira só parece iluminar os pensamentos do amante na passagem da doença de Anna, quando ele percebe sua baixeza em contraste com a grandeza do marido humilhado e da esposa momentaneamente arrependida. Diante desse choque em sua autoimagem, a reação de Vrónski é recorrer ao clichê da tentativa de suicídio: um gesto bastante diferente do de Anna não só pelo fracasso da empreitada como pela motivação antiquada e sentimental. Esse antagonismo entre os dois surge até no método de suicídio: ele com uma arma, símbolo da nobreza guerreira, ela nos trilhos do trem, atravancando um símbolo do progresso nacional. Enquanto o tiro de Vrónski é um retorno ao passado, o pulo de Anna é um reconhecimento da impossibilidade de futuro.

O problema de Anna Kariênina não é um homem, é a Rússia. Na obra-prima de Tolstói, sua heroína testa caminhos que já poderiam ser viáveis para mulheres de outros contextos e percebe que, no caso dela, as rotas continuam fechadas. Contemporâneo ao debate da educação e da emancipação feminina na Rússia, Tolstói tem opiniões singulares e contraditórias sobre o tema, sendo impossível classificá-lo como “progressista” ou “reacionário”. Já o livro parece fazer um aceno dúbio, porém empático à causa feminina. O romance é entrecortado por conversas — sempre interrompidas — acerca da educação feminina, do direito de ocupar cargos públicos e da desigualdade entre os gêneros dentro do casamento. A mais eloquente delas ocorre em um jantar na casa do irmão da protagonista, quando um personagem secundário chamado Piestsov faz uma defesa apaixonada da equidade de gênero, para a galhofa geral da mesa. Os outros convidados tratam a matéria como mais um assunto para ter após o jantar e imediatamente trocar de conversa caso alguém pareça desconfortável. No fim, o tema é encerrado sob piadas de que uma mulher em busca do fardo de um cargo público seria uma coisa tão absurda quanto um homem reclamando o direito de ser ama de leite.

Essas discussões correm em paralelo à ação errática da protagonista, que busca inutilmente novos papéis para si. Anna parece abrir frentes em basicamente todas as ocupações nas quais uma mulher poderia ter chances: como escritora, ao tentar publicar um livro infantil; como professora, ao educar os filhos dos criados; como filantropa, ao acolher a filha de um criado alcoólatra e educá-la; como dama de salão, ao organizar uma sociabilidade em torno de sua casa. Com insistência pouco sistemática, a personagem vai forçando os limites sociais com o único objetivo de não andar para trás. Ousada, sua estratégia jamais permite recuos. A cada porta fechada, Anna dobra a aposta.

Em um país onde as mulheres não tinham existência jurídica fora do matrimônio e nem sequer possuíam documentos como um passaporte, é redundante dizer que elas eram dependentes. Mas isso não significa que não haja graus de dependência, e que Anna Kariênina não tenha se colocado no pior de todos. Dentro do casamento, a mulher contava com laços de obrigação familiar, social, religiosa e marital que a ligavam ao marido. O marido podia muito, mas não podia tudo. Já como amante, o único laço existente era o do amor. A mulher era destituída de suas posses e de suas proteções sociais mínimas. No casamento, o marido que não ama é instado a cumprir um protocolo mínimo em relação à mulher, e a posição de não ser amada não é necessariamente uma falta. Já uma amante que deixou de ser amada é simplesmente descartada ou — o que parece ainda pior na perspectiva de Anna —, mantida por mera condescendência do ex-amante.

Após uma saga heroica e infrutífera, Anna Kariênina é esmagada pela consciência dessa dependência. Ao imaginar que Vrónski estaria interessado em outras mulheres, a personagem começa a pensar reiteradamente na humilhação material de sua condição. Esses pensamentos se aceleram após uma briga do casal e antecedem sua decisão pelo suicídio. “Não conseguia entender como pudera se rebaixar ao ponto de passar mais um dia inteiro com ele, na casa dele”, pensa Anna em meio à crise final. “Esses cavalos, essa caleche — como tenho nojo de mim mesma nessa caleche —, é tudo dele”, reflete em agonia. Antevendo o desespero de ser uma amante não amada, ela projeta em Vrónski frases que ele nem sequer disse, mas que “obviamente desejava dizer, e podia dizer”. Eram palavras como “não vou retê-la (…), pode ir para onde quiser. (…) Se precisar de dinheiro, eu dou. De quantos rublos precisa?”. “As palavras mais cruéis que um homem rude poderia dizer ele lhe dissera em sua imaginação, e ela não o perdoava, como se ele de fato as tivesse dito”, afirma o narrador. O problema objetivo parece ser o poder, e não o fazer. Uma pessoa que pode ser humilhada em larga medida já está sendo humilhada.

A bordo da carruagem que a levaria à estação de trem do seu suicídio, a personagem se pergunta para que tanto desespero, se por acaso não poderia viver sem o amante. Sem responder a si mesma como o faria, ela começa a ler placas de escritórios de profissionais liberais. “‘Eu suplico o seu perdão. Eu me submeti a ele. Reconheci que a culpa é minha. Para quê? Por acaso não posso viver sem ele?’ E, sem responder à pergunta sobre como viveria sem Vrónski, Anna pôs-se a ler os letreiros. ‘Escritório e armazém. Dentista. Sim, vou contar tudo a Dolly. Ela não gosta de Vrónski. Será vergonhoso, doloroso, mas contarei tudo. Ela gosta de mim e vou seguir os seus conselhos. Não vou submeter-me a ele; não permitirei que ele me dê lições’”, pensa a heroína.

Em outros países, em outras classes sociais, o trabalho seria uma opção digna para Anna. Foi nesse trabalho que mademoiselle Varienka forjou uma posição aceitável para si. Foi esse trabalho fora da família que a própria Kitty chegou a considerar antes do noivado com Lióvin. Sem essas opções, Anna busca o que podia chegar mais perto de uma atividade profissional: a escrita. Além das guerras, das contingências e da pobreza, as atividades que incorporariam valores e habilidades do cuidado e da maternidade seriam a grande porta de entrada feminina para o mundo do trabalho. Professora, benfeitora, escritora de livros infantis. Os planos da personagem vão justamente por esse caminho.

Em A ascensão do romance, Ian Watt revela que, na Inglaterra, as mulheres não apenas consistiam no grosso do público leitor como também escreveram a maior parte dos romances publicados ao longo do século 18. Embora as obras de maior sucesso tenham sido assinadas por homens, o time de escritores que abastecia a insaciabilidade do leitorado da época era majoritariamente feminino. Parte dessas mulheres escrevia por prazer, mas basicamente todas escreviam também por dinheiro. Ainda que não fosse um bico viável para um número substancial de mulheres, escrever era uma forma de costurar para fora, abrindo uma brecha de independência para uma nata de privilegiadas das quais Jane Austen seria o exemplo mais consagrado.

O truque só poderia ser replicado em países com um bom volume de leitores, o que claramente não era o caso de uma Rússia analfabeta. Talvez a ambição literária de Anna fosse um mero capricho, mas quando computamos as conversas sobre educação e emancipação feminina, o detalhe do livro infantil e a humilhação em torno da dependência, é menos absurdo pensar que a personagem estivesse buscando uma alternativa a essa posição, ainda que nenhuma delas parecesse possível em seu país, em sua classe.

Existe uma tensão intrínseca à leitura de obras distantes de nós no tempo e no espaço: a tensão de que é preciso evitar anacronismos grosseiros e respeitar o texto o suficiente para que ele continue sendo ele mesmo, não uma mera projeção da sensibilidade do leitor com um fundo de época. Ao mesmo tempo, é preciso abrir uma brecha que permita que a leitura renove o texto: que ele continue relevante, continue gerando novos significados, que seja apropriado pelos novos leitores. Especialmente no caso do romance, é preciso não transformá-lo em um mero documento, nem transformar a leitura em uma observação imparcial de hábitos e costumes exóticos. Ler romances implica um envolvimento que não permite um respeito exagerado, porque colocar-se no lugar do outro exige certa intromissão.

Seria doido classificar Anna Kariênina como um romance feminista — como uma defesa do ingresso da mulher aristocrata russa no mercado de trabalho em pleno 1877, quando nem as francesas de classe média trabalhavam e nenhuma europeia tinha direito ao voto. Mas se tomarmos como base a definição de “clássico” defendida por Italo Calvino — a de que clássicos são aqueles livros que ainda não terminaram o que tinham para dizer — a obra-prima de Tolstói é uma importante contribuição ao debate contemporâneo sobre gênero ao acertar um ponto nevrálgico: o de como a mera consciência do poder altera e distorce as relações humanas, criando indulgências e torturas psicológicas.

A educação feminina está na própria matriz dos conflitos entre Anna e Vrónski. Há ciúmes, medo do descarte, humilhação e ressentimento pela perda do filho e do nome, mas antes de tudo, há o desdém de Vrónski em uma conversa casual sobre os liceus femininos. “Ficou muito tempo sem conseguir crer que a desavença tivesse começado com uma conversa tão inofensiva e distante do coração de ambos. E, de fato, tinha sido assim. Tudo se iniciara porque ele se rira dos colégios femininos, considerando-os desnecessários, enquanto ela os defendera. Ele se referira desrespeitosamente à educação feminina em geral, dizendo que Hannah, a inglesa protegida de Anna, não tinha necessidade nenhuma de saber física. Isso irritou Anna. Ela via ali uma alusão de desprezo à sua ocupação”, diz o narrador.

Se em outras passagens o amante parecia orgulhoso dos conhecimentos de Anna sobre arquitetura, ciências e sobre todos os assuntos do dia, no fim fica claro que, no seu entendimento, esses conhecimentos deveriam se limitar ao entretenimento das visitas. Desde que a gravidez de Anna muda tudo no relacionamento, o plano de Vrónski é conseguir o divórcio, casar-se com ela e resolver a situação legal de sua filha. É trazer Anna de volta a um lar menos digno do que o de Karenin, mas ainda assim um lar, seu lar. O pulo de Anna na frente do trem é uma recusa radical a esse retorno.

Juliana Cunha é Professora da Escola de Relações Internacionais da FGV e doutoranda do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Charge! Duke via O Tempo

 


Editorial: Nossas instituições democráticas, no discurso de Fux, não admitirão retrocessos autoritários.


Creio que, em nossa História, nunca um 08 de setembro foi mais importante do que o dia 07, feriado dedicada à Independência do Brasil. Mas, nesses tempos bicudos que enfrentamos, foi isto mesmo o que ocorreu. Ontem, em editorial aqui publicado, comentamos - ainda que anpassant - sobre os preparativos dos protestos que estavam previstos para ocorrer em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Recife e outras praças do país,  durante o dia 07, organizados por grupos de apoio ao presidente Jair Bolsonaro(Sem Partido). Pelo o andar da carruagem política - e pelo clima de animosidades e polarizações gerados ao longo dos últimos anos - era de se supor que os protestos em apoio ao presidente pudessem adquirir uma enorme magnitude, como, de fato, se verificou. A capital federal havia esgotado a sua capacidade de leitos em sua rede de hotéis e haviam filas de caminhões estacionados nos arredores de Brasília, prontos para entrarem na cidade.

Como enfatizamos por aqui, em inúmeras oportunidades, nosso tecido democrático, por razões históricas, não é dos mais resistentes e temos sérias dúvidas sobre se ele suportará o repuxo. Nossa experiência democrática, ao longo de décadas, convive constantemente com solavancos autoritários, assim como um carro em estrada esburacada, o que exige um piloto do Executivo movido por propósitos republicanos, provido de espírito público e bastante consciente de suas responsabilidades constitucionais. 

O dia 08, portanto, será de fundamental importância para o observarmos o cenário político criado pelas mobilizações de rua e, mais importante, avaliar a solidez de nossas edificações democráticas. Consideramos imprudente que a oposição ao Governo Bolsonaro tenha organizados protestos de rua para o mesmo dia, ampliando esses focos de atritos, mas, felizmente, não ocorreram confrontos. Trata-se de um procedimento perigoso, uma vez que as rédeas democráticas estão sendo afrouxadas há algum tempo no país. Em escala global, o mercado vem mitigando os regimes democráticos, em razão de sua perversa e insana lógica acumulativa, que já não se coaduna com as regras que regem uma democracia. 

O retrocesso político que enfrentamos nos últimos anos foi dos mais significativos, embora praticado sutilmente, avançando devagarinho, casa por casa. Nossas instituições democráticas foram muito complacentes com os constantes assédios e, quando resolveu reagir, foi num momento em que a capilaridades dos inimigos da sociedade livre - parafraseando Karl Popper - já haviam ganho força e musculatura, com uma narrativa discursiva construída com o propósito de enganar os "incautos", ou seja, o de que quem não deseja a democracia somos nós e não eles. Uma narrativa discursiva bastante identificada com uma "perversão ou doença política", que nunca foi completamente extirpada do mundo civilizado. Está sempre ali, esperando um momento certo ou uma circunstância política propícia para germinar. O que não faltam são jardineiros diligentes para adubar essa erva daninha.

É preciso ficarmos muito atento aos danos provocados por essas narrativas, construídas para dar suporte a um projeto político bem específico, que as utilizam com método, propósitos bem definidos, provocando danos irreparáveis aos atingidos. Pelas redes sociais, é comum observarmos a veiculação de vídeos com a agressividades e ameaças ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, que se tornou uma espécie de guardião de nossas instituições democráticas. Isso é inadmissível, intolerável dentro do escopo de um jogo jogado  dentro das quatro linhas das regras constitucionais. Louvável a fala do senhor ministro Luiz Fux, Presidente do STF, ao repelir, veementemente e de forma republicana, as agressões àquela Corte Suprema.   

domingo, 5 de setembro de 2021

Charge! Duke via O Tempo


 


Editorial: Um sisudo Paulo Câmara recebe o presidente Jair Bolsonaro.

Com o tempo, a gente acaba aprendendo a conviver com as circunstâncias de viver num Estado onde as oligarquias políticas não são afeitas às críticas, embora se apresentem como defensoras da liberdade de expressão, o que significa, necessariamente, a produção de dissensos - em tese algo permitido apenas nos regimes democráticos - daí a necessidade de sua defesa ferrenha. Mas, como vaticinava o filósofo alemão Friedrich Nietziche, "toda palavra é uma farsa e todo discurso é uma fraude." Infelizmente, porém, nosso processo de colonização produziu oligarquias infensas à convivência democrática, incapazes de conviver com as críticas ou resolvê-las através da dialética, do argumento e não da força, da perseguição. 

Alguns analistas sociais advogam, inclusive, que o filósofo francês, Michel Foucault, deu a devida importância a esta observação de Nietziche, em momentos específicos de sua excepcional produção teórica. Seu biógrafo, Didier Eribon, concordaria com esta premissa.  Num período mais ativo do blog, ficamos surpresos com a sanha engendrada contra este blogueiro, pelo simples fato de emitirmos nossas opiniões sobre a cena política local e nacional, sempre pautado pela defesa de princípios republicanos, defendendo ardorosamente os esteios ou pilotis do edifício de nossas instituições democráticas, mesmo conhecendo suas fragilidades históricas. 

Ao longo desses anos, longe desses expedientes terem sido superados. Seria mais conveniente entendermos pelo seu agravamento, posto que, hoje, basta defender a engenharia institucional da nossa democracia para tornar-se vítima das hordas digitais que espalham fake news com o propósito de promover assassinatos de imagem dos seus adversários políticos. Não precisa nem se contrapor frontalmente a essa gente, mas, simplesmente, defender a democracia dos seus algozes. Ser um democrata é o quanto basta para incomodar quem tem pendores autoritários. E olha que eles estão assanhados, em razão da proximidade do dia 07 de setembro, onde estão prometendo uma grande mobilização em Brasília. Esta semana não haverá sessão da CPI da Covid-19 e a rede hoteleira está com lotação esgotada na capital federal.    

As páginas amarelas da revista Veja desta semana traz uma entrevista com o governador Paulo Câmara(PSB-PE), onde ele analisa o cenário político do país, demonstrando uma profunda identidade com o projeto da candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT-SP), nas eleições presidenciais de 2022. Admite o equívoco pelo fato de o PSB ter apoiado o impeachment da presidente Dilma Rousseff(PT-MG), em 2016, admitindo que o país desceu a ladeira do retrocesso político desde então. Tudo isso nós já sabíamos, mas não deixa de ser relevante o fato de que um Governador de Estado e vice-presidente nacional da legenda socialista tenha chegado a esta mesma conclusão - de alguma forma concordando com este blogueiro - no sentido de que o precedente do golpe institucional trouxe prejuízos incomensuráveis à nossa saúde democrática.  

Li a entrevista com o propósito de talvez encontrar algumas pistas para entender melhor o processo de "fadiga de material" provocado pelos 16 anos de exercício do poder pelos socialistas no Palácio do Campo das Princesas. Esta constatação não se resume apenas aos atores políticos da oposição, mas até mesmo entre atores políticos identificados historicamente com o mainstream, como é o caso de um empresário conhecido, que se pronunciou sobre o assunto até recentemente. Possivelmente, este fardo pesado estaria respingando no padrão de relação entre o atual governador, Paulo Câmara(PSB-PE), e o Secretário de Desenvolvimento Econômico, Geraldo Júlio(PSB-PE), supostamente ungido como candidato ao Governo do Estado nas eleições de 2022. Hoje, a relação entre ambos não seria das melhores, conforme a imprensa tem noticiado. 

Ambos possuem uma trajetória política bastante parecida, ou seja, são quadros técnicos que assumiram status político depois de ungidos pelo ex-governador Eduardo Campos, por serem de sua absoluta confiança. Confiança que, aliás,  possivelmente, não seria absoluta no staff político que o acompanhava. A afinidade entre ambos já foi absoluta, principalmente em razão da necessidade de se ajudarem mutualmente para enfrentar a orfandade política deixado pelo ex-governador. Durante a entrevista, o governador Paulo Câmara(PSB-PE) é incisivo em suas críticas ao Governo do presidente Jair Bolsonaro(Sem Partido), apontando ser a sua retirada do poder o principal objetivo da oposição nas eleições presidenciais de 2022.

E, por falar no presidente Jair Bolsonaro, ontem ele desembarcou aqui o Recife, onde cumpriu agenda política e administrativa. Ambos estiveram juntos, numa cerimônia oficial, por ocasião da transferência de comando do IV Exército, no bairro do Curado, onde  os cumprimentos se limitaram às meras formalidades. Para este humilde observador da cena política, duas questões precisam ser melhor entendidas no que concerne à visita do presidente Bolsonaro ao Estado de Pernambuco: A  razão pela qual Santa Cruz do Capibaribe tornou-se uma cidade bolsonarista raiz - emprestando seu apoio ao presidente nos dois turnos das últimas eleições presidenciais passadas - e; a segunda questão diz respeito à montagem do seu palanque aqui no Estado. 

Um homem do povo - sem o amparo das pesquisas, mas guiado apenas pela intuição - observou para este blogueiro que Santa Cruz do Capibaribe é uma cidade onde existe uma expressiva concentração de comerciantes de outros Estados da Federação, inclusive de São Paulo, que podem exercer um poder indutor no componente  do voto naquela cidade. Fica aqui a dica para os pesquisadores incluírem essa variável nos seus levantamentos.  

Sobre o palanque, o próprio presidente deu algumas pistas a este respeito, ao convidar seu amigo e ministro do turismo, Gilson Machado, para acompanhá-lo na garupa da moto, o que ele já havia admitido tratar-se de uma honraria. Como o martelo ainda não foi batido sobre este assunto, o pré-candidato que mais se aproxima deste projeto, a princípio, é o prefeito de Jaboatão dos Guararapes, Anderson Ferreira(PSC), que o recepcionou no Aeroporto dos Guararapes. A família Ferreira mantém os canais bastante azeitados com o Governo Federal e a identidade ideológica de ser um grupo político que tem berço nas igrejas evangélicas, um dos núcleos duros do bolsonarismo.