pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A propaganda enganosa como estratégia dos "negócios do vento"

Le Monde: Eduardo Galeano, a voz da fraternidade


Despertar o espírito de libertação, contar pequenas histórias que ajudam a enxergar a grande, sensibilizar sobre as razões para chorar e as razões para rir de nossa realidade comum: esses foram os objetivos de Eduardo Galeano. Da evocação da cultura popular à celebração dos horizontes a expandir, o escritor uruguaio en
por Sébastien Lapaque



Em Montevidéu, capital da República Oriental do Uruguai, instalada na margem norte do Rio da Prata, Eduardo Galeano (1940-2015) tinha entre seus hábitos frequentar o Café Brasileiro, não distante da catedral onde fora batizado o misterioso Isidore Ducasse, autoproclamado conde de Lautréamont, em 16 de novembro de 1847. Nos primeiros anos do século XXI, tive frequentemente a oportunidade de seguir as pistas do autor dos Cantos de Maldoror no labirinto das ruas da cidade fundada em 1726 por colonos espanhóis receosos da cobiça dos portugueses, desejosos de estender sua colônia brasileira. Na época dessas deambulações austrais, eu pensava em Jules Laforgue e em Jules Supervielle, dois poetas de língua francesa também nascidos em Montevidéu. Com um exemplar do L’Homme de la Pampa1 enfiado no bolso, meus passos me levavam inevitavelmente para o Café Brasileiro, na Rua Ituzaingó, onde eu esperava entrever Eduardo Galeano, o homem que tinha publicado em 1971 Las venas abiertas de América Latina, um livro que, traduzido no mundo inteiro, se tornou o breviário da emancipação na América do Sul. As veias abertas2 é a história da pilhagem metódica do continente iniciada no fim do século XV e continuada sem interrupção desde então, apesar dos ciclos de colonizações e descolonizações.
No entanto, não foi graças a esse livro que eu descobri o escritor uruguaio, que não recebeu o Prêmio Nobel de Literatura por razões inexplicáveis – ou por razões muito claras, e sim com Futebol ao sol e à sombra, traduzido na França em 1998 e acompanhado de um ensaio do filósofo Jean-Claude Michéa, “Os intelectuais, o povo e a bola redonda”.3 Uma celebração lírica da arte de chutar para o gol, tecida com reflexões sobre os efeitos do tempo: “A história do futebol é uma triste viagem, do prazer ao dever. À medida que o esporte se transformou em indústria, ele baniu a beleza que nasce do prazer de jogar. Neste mundo de fim de século, o futebol profissional condena o que é inútil, e é inútil o que não é rentável”.
Numa tarde de fevereiro, muito clara e muito azul, enfim encontrei Eduardo Galeano em Montevidéu. Um amigo de Buenos Aires tinha me dado seu número de telefone. De cada lado do Rio da Prata, escritores, intelectuais e artistas davam a sensação de viver no seio de uma pequena república fraternal. De um amigo a outro, rapidamente se podia conhecer todos. “Venha amanhã às 15 horas”, tinha simplesmente me indicado o escritor. Eu havia preparado perguntas demais em minha caderneta, mas ele dedicou tempo de responder a todas. Essa gentileza é o Uruguai...
Por minha culpa, a conversa começou de forma desajeitada. Eu falava a Eduardo Galeano sobre Luiz Inácio Lula da Silva, Evo Morales, Hugo Chávez e José Mujica, então presidente da República do Uruguai, que encontrei dois dias antes em Garzón, uma pequena cidade da província de Maldonado. “Pepe” tinha me dado a mais viva impressão e eu tentava dizer algumas palavras a respeito dele para o autor de O livro dos abraços,4bela sequência de instantâneos fazendo o elogio do abrazo, “esse gesto amigável tão frequente na América Latina, que faz você abraçar qualquer pessoa que tenha prazer em encontrar ou tristeza de deixar, qualquer ser humano ao qual você deseje manifestar o impulso fraterno do seu coração”. O prazer, a tristeza, o impulso fraterno... Deveria ter me atido a essas pedras angulares da obra de Galeano. Ele tinha sido um grande jornalista e um imenso ensaísta político, autor de diversos textos teóricos e críticos. Mas no fim de sua vida seus combates passados não o interessavam tanto quanto antes. Demorei um pouco a perceber isso, emocionado demais por estar sentado diante de um dos principais atores das lutas pela dignidade dos povos da América Latina, apressado demais para evocar com ele seus engajamentos na época da ditadura militar no Uruguai (1973-1985), enquanto ele vivia na Espanha, depois de ter deixado a Argentina, onde tinha se exilado, e a qual também conheceria, em 1976, um golpe de Estado.
Sobre a mesa entre nós, estavam As veias abertas da América Latina e Futebol ao sol e à sombra. Eu podia sentir muito bem que ele estava irritado por lhe falarem somente desses dois livros. Teria eu esquecido que ele também havia escrito Dias e noites de amor e de guerra,5 Os nascimentosAs caras e as máscaras,O século do vento6 e De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso?7 Em cinco décadas de escrita, do início dos anos 1960 ao início dos anos 2010, Galeano publicou cerca de trinta obras em registros muito variados, com uma predileção pelas formas literárias que pudessem celebrar as felicidades frágeis: prosas poéticas, histórias curtas, estilhaços de memória, “palavras vagabundas”, fragmentos sem ordem e sem continuação. “Somos feitos de tempo. Somos suas vozes e seus pés. Os pés do tempo andam nos nossos passos. Cedo ou tarde, os ventos irão apagar os rastros. Todo mundo sabe disso. Travessa do nada, rastros de ninguém? As vozes do tempo contam a viagem.”8 Pela anedota, é divertido lembrar que o presidente venezuelano Hugo Chávez ofereceu As veias abertas a seu homólogo Barack Obama, em 18 de abril de 2009, na ocasião de um encontro das Américas em Trinidad e Tobago. Mas apenas pela anedota. Pois sempre chega o momento em que nos esquecemos da anedota para voltarmos à poesia: apenas ela autoriza a passagem da sombra à luz. Política e militante, podendo tratar de aspectos muito sombrios da realidade, a obra de Galeano sabe também, e principalmente, evocar a alegria radiosa dos povos da América.
Em Montevidéu, o escritor de olhar azul profundo me lembrou de que o real sobre o qual ele queria testemunhar livro após livro não tinha nada a ver com o real falsificado que agitava os mercados financeiros. “O caráter tão rico, tão contraditório e tão diverso da América Latina, esta terra desprezada, aparece nos aspectos não visíveis da realidade, longe do círculo no qual fechamos hoje a política e a economia. Mas esses aspectos invisíveis da experiência humana são a própria realidade... Quando empresto minha voz aos sem-voz, não me refugio fora do real. A realidade continua sendo minha fonte principal de inspiração, com suas alegrias e suas penas, suas tempestades e claridades. Conto pequenas histórias que têm como vocação ajudar a ver a Grande História. Como em um mosaico, quadrados coloridos colocados lado a lado acabam compondo um quadro da realidade. Eu vejo o Universo inteiro através das histórias minúsculas, como olhamos um quarto através do buraco da fechadura. É um jeito de revelar aos meus leitores a possibilidade de viver a plenos pulmões, com toda a energia possível. As razões de chorar são infinitas. Mas as de rir também existem. É importante guardar ao mesmo tempo a capacidade de celebrar a realidade e a coragem de denunciá-la.”
Essa arte inigualável de despertar o espírito de liberdade adormecido no coração dos homens se elucida principalmente em As palavras andantes, uma compilação de contos acompanhados de xilogravuras do artista brasileiro José Francisco Borges – pois Galeano, que fez sem cessar um trabalho de pedagogia para os humildes, gostava que seus livros fossem ilustrados com desenhos. As pequenas histórias do escritor dão conta de um mundo que ainda não saiu da inocência – daí sua fragilidade diante dos predadores de qualquer natureza. Nativo de um continente tecido de sonhos, fábulas e lendas, onde os homens, as mulheres e as crianças apreciam que lhes contem histórias em voz alta, o escritor atende às suas expectativas abrindo as janelas para um mundo interior no qual evoluem personagens fabulosos.
Ao lê-las, descobrimos a sobrevivência de uma autêntica cultura popular das terras do Sul, as quais o capitalismo sangrou depois de lhes ter aberto as veias. Lá, o bem e o mal, a lembrança e o esquecimento são coisas simples e claras; e os pobres vivem em um mundo bem mais verdadeiro que os ricos. Encontramos esse sentimento na literatura de cordel do Nordeste brasileiro, chamada assim por causa da corda na qual esses libretos de poesia popular ficam pendurados com pregadores de roupa, nas feiras. Adotando um estilo que restitui o charme da coisa falada, o escritor destacou uma cultura popular que a televisão não tinha conseguido esmagar, o que nos permite escutá-lo escrever. “A mulher habitada sabe quando e sabe o quê. Ela sabe quando graças àquilo que lhe dizem a lua e seu corpo. Ela sabe o que graças àquilo que lhe dizem os sonhos. Se ela sonha com tecido ou cerâmica, terá uma menina. Se ela sonha com metais, chapéus ou ovos, terá um menino.”
Galeano não considerava a palavra “utopia” um palavrão. Desse “não lugar” onde os homens inventam sem parar uma esperança comum de justiça, de amor e de paz, nós não devemos zombar, mas desejar sua chegada. Ele o lembra em As veias abertas: “Tudo nos é proibido, exceto cruzar os braços? A pobreza não está escrita nas estrelas, o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desígnio de Deus. Correm anos de revolução, tempos de redenção. As classes dominantes põem as barbas de molho e, ao mesmo tempo, anunciam o inferno para todos. Em certo sentido, a direita tem razão quando se identifica com a tranquilidade e a ordem. A ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem – a tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta”. Existe outro mundo escondido sob este mundo; a justiça é possível aqui e agora. Depois de deixar Galeano, esqueci a catástrofe ecológica e os interesses do tempo. Para me lembrar do escritor uruguaio – recordar –, repasso simplesmente de cor, releio Janela para a utopia:9 “Ela está no horizonte [...] Me aproximo dois passos, ela se distancia dois passos. Avanço dez passos e o horizonte foge dez passos mais longe. Posso continuar avançando, nunca irei alcançá-la. Para que serve a utopia? Ela serve para isto: caminhar”.10
Se Galeano nos tiver ensinado apenas isso, já será muito.

Sébastien Lapaque
*Sébastien Lapaque é escritor. Sua última obra é Théorie de Rio de Janeiro [Teoria do Rio de Janeiro], Actes Sud, Arles, 2014.


Ilustração: Daniel Kondo

1          Jules Supervielle, L’Homme de la Pampa [O homem dos pampas], Gallimard, Paris, 1923.
2          Eduardo Galeano, Les Veines ouvertes de l’Amérique latine. Une contre-histoire [As veias abertas da América Latina. Uma contra-história], Plon, Paris, 1981.
3          Eduardo Galeano, Le Football, ombre et lumière [Futebol ao sol e à sombra], Lux, Montreal, 2014 (1. ed.: 1998); Jean-Claude Michéa, Les Intellectuels, le peuple et le ballon rond[Os intelectuais, o povo e a bola redonda], Climats, Castelnau-le-Lez, 1998.
4          Eduardo Galeano, Le Livre des étreintes [O livro dos abraços], Lux, 2012.
5          Eduardo Galeano, Jours et nuits d’amour et de guerre [Dias e noites de amor e de guerra], Paris, Albin Michel, 1987.
6          Todos os três reunidos com o título Mémoire du feu [Memória do fogo], Lux, 2013.
7          Eduardo Galeano, Sens dessus dessous. L’école du monde à l’envers [De pernas pro ar – A escola do mundo ao avesso], Homnisphères, Paris, 2004. Ler também “De cima para baixo”, Le Monde Diplomatique, set. 2004.
8          Eduardo Galeano, Les Voix du temps [As vozes do tempo], Lux, 2011.
9          Eduardo Galeano e José Francisco Borges, Paroles vagabondes [As palavras andantes], Lux, 2010.
10       A frase é do diretor de cinema argentino Fernando Birri, mas foi tornada célebre por Galeano
04 de Julho de 2016
Palavras chave: Eduardo GaleanopolíticapoesialiteraturaUruguaiAmérica Latina

(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique Brasil)

Uma leitura da Carta ao Pai, de Kafka.


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Largando o pai, de quem se queixa, a quem recrimina, Kafka teria de confrontar-se, sozinho e sem álibis
por Filipe Pereirinha
Aparentemente, a Carta ao pai parece desmentir a afirmação lacaniana de que “uma carta chega sempre ao seu destino”, uma vez que ela não chegou efetivamente a ser enviada e, como tal, o pai também não pôde recebê-la de fato.
No essencial, essa carta é uma longa e detalhada resposta a uma pergunta que o pai, certo dia, lhe teria feito. Kafka inicia a carta retomando a questão atribuída ao pai: “perguntaste-me, há pouco tempo, por que razão afirmo ter medo de ti”. Está assim dado o mote: como se este “medo” fosse a causa e o centro (móvel) que atrai e em torno do qual vai girando a argumentação de Kafka.
É ele mesmo quem o afirma desde o princípio: a resposta que não foi capaz de dar no momento certo, não sabendo na altura o que dizer – justamente por causa do medo que sentia em relação ao pai – aparece agora sob a forma escrita. A escrita mostra assim aquilo que não foi possível dizer de viva voz. O impossível de dizer transmuda-se em causa de desejo: o desejo de responder por escrito à pergunta do pai.
Neste aspecto, a escrita constitui uma outra resposta ao Veredicto paterno, isto é, à condenação proferida por este no conto homônimo em relação ao filho: “condeno-te a morrer afogado!” Em vez de correr loucamente em direção à água, isto é, ao suicídio, tal como acontece com o protagonista desse conto, que corre como se fosse movido unicamente pela força desta frase imperativa e condenatória do pai, Kafka experimenta aqui uma outra solução: a escrita como resposta não suicida.
Por mais que a Carta ao pai seja longa e difícil de resumir, é possível, em meu entender, destacar nela pelo menos duas grandes vertentes, separadas e unidas ao mesmo tempo por um eixo comum. Na sua maior parte, ela é composta por uma série de recriminações que Kafka dirige ao pai, como se este fosse o grande culpado dos seus problemas, em particular os que dizem respeito ao relacionamento com os outros, nomeadamente com as mulheres da sua vida, bem como da imagem de si próprio, do seu corpo ou até mesmo da relação, cada vez menos pacífica, com a escrita, como é de resto evidente numa das últimas notas dos Diários, escrita em 1923: “Sempre com mais medo de escrever. É incompreensível”.  Mesmo se Kafka modera por vezes a crítica ao pai, reconhecendo que talvez ele não seja o único culpado e que uma parte da culpa resida em si mesmo, o tom recriminatório é o que domina substancialmente em grande parte do texto nesta primeira vertente. De tal forma que aquilo que sobressai é a ideia de que o pai funciona, para Kafka, essencialmente como um sintoma; como algo, digamos, que faz sintoma, que não o deixa dormir nem, quando acorda, viver em paz.
Dizer que o pai é um sintoma pode significar pelo menos duas coisas diferentes: ou que o sintoma é ainda, em última análise, um dos nomes do pai ou, pelo contrário, que o pai é somente um dos nomes do sintoma. Ou seja: o pai é apenas um caso particular de uma função mais geral. O que pode enganar é aquilo que vemos – ou lemos – em primeiro lugar é o que, porventura, é secundário.
Porém, há uma dobra, uma viragem no texto que é preciso ter em conta. É já quase no fim daCarta ao pai. Como se recebesse do Outro a sua própria mensagem de forma invertida, como diria Lacan, Kafka escreve o seguinte: “Ao teres uma panorâmica geral da justificação do medo que tenho de ti, podias responder o seguinte”. Aquilo que se segue é uma objeção, ponto por ponto, ao raciocínio que Kafka expusera em detalhe ao longo da carta. Uma objeção que desemboca no seguinte: “A isso respondo que, antes de mais toda esta resposta […] não parte de ti mas de mim”.
Na verdade, este pai, a quem o autor endereça as suas recriminações, a quem dá a oportunidade de objetar, a quem responde de novo, não será finalmente um sintoma, êxtimo, de si mesmo, isto é, algo que é a sua coisa mais familiar (íntima) e estranha ao mesmo tempo? Talvez por isso a carta – que foi escrita e reescrita – não tenha sido nunca enviada, uma vez que o remetente coincidia, afinal, com o seu destinatário. O pai é um outro nome do sintoma-Kafka.
Há um sonho de Kafka, aliás, dos muitos que ele anotou nos seus Diários, que pode eventualmente ajudar-nos a precisar ainda melhor o que está em causa. “Sonhei há pouco tempo: vivíamos no Graben, perto do Café Continental. Um regimento virou da Herrengasse a caminho da estação. O meu pai: ‘Eis uma coisa para se contemplar, enquanto se pode’; e arroja-se para o peitoril […] e com os braços abertos estendeu-se lá fora na borda larga mas muito inclinada da janela. Eu agarrei-o por duas casas por onde passa o cinto do roupão. Cheio de maldade, ele ainda se debruça mais, eu faço toda a força para o agarrar. Penso em como seria bom se conseguisse amarrar os pés com cordas que se segurassem a qualquer coisa para que o meu pai não me pudesse arrastar. Mas para fazer isso eu teria de largar o meu pai, pelo menos durante uns instantes, e isso é impossível. O sono – o meu sono em especial – não consegue suportar toda esta tensão e eu acordo.”
Falando à maneira de Hamlet, poderíamos formular o impasse kafkiano com que este sonho nos confronta do seguinte modo: largar ou não largar o pai? Ou ainda: ser ou não ser… largado? O fato de o sonho desembocar numa tensão insuportável, que faz acordar o sonhador, parece constituir a prova de que ele se aproxima de algo real, no sentido lacaniano do termo, isto é, impossível (e o termo é de Kafka), como se o desejo de largar o pai, deixando-o à sua sorte, ficasse impossivelmente preso num outro desejo: o de não o largar. Mas por quê? O que leva Kafka a queixar-se tanto do pai, como testemunha em particular a carta que lhe é dirigida, e, ao mesmo tempo, considerar que seria impossível largá-lo? Dizendo de outro modo: o que leva Kafka a guardar para si a carta que deveria ter sido enviada ao pai, ou seja, a não largar da mão essa carta(da)?
Num texto escrito a 18 de dezembro de 1910, Kafka procurou esclarecer a difícil relação que mantinha com as cartas, tanto as que enviava quanto as que recebia, nos seguintes termos: “se não fosse absolutamente certo que a razão por que deixo cartas […] sem as abrir durante um tempo é apenas fraqueza e covardia, que hesitaria tanto em abrir uma carta como hesitaria em abrir a porta de um quarto onde um homem estivesse, talvez já impaciente à minha espera, poderia explicar-se muito melhor que era por profundidade que deixava ficar as cartas. Ou seja, supondo que sou um homem profundo, tenho então de tentar estender o mais possível tudo o que se relacione com a carta, portanto, tenho de a abrir devagar, lê-la devagar e várias vezes, pensar durante muito tempo, fazer uma cópia a limpo depois de muitos rascunhos, e finalmente hesitar ainda em pô-la no correio. Tudo isto posso eu fazer, só que receber de repente uma carta não se pode evitar. Ora é precisamente isto que eu atraso com um artifício, não a abro durante muito tempo, ela está em cima da mesa, à minha frente, oferece-se a mim continuamente, recebo-a continuamente, mas não a aceito”.
Não só estamos perante uma antecipação do que vai acontecer mais tarde relativamente à carta (não enviada) ao pai – talvez porque o próprio remetente, Kafka, não a queria receber, sabendo que era ele o seu verdadeiro destinatário, “o homem impaciente atrás da porta” –, como, ao mesmo tempo, perante uma espécie de “instinto de defesa”, como Kafka dirá a 31 de janeiro de 1922, numa passagem dos Diários: “[…] há em mim um instinto de defesa que não permite que eu tenha o mais pequeno grau de bem-estar duradouro e despedaça irremediavelmente a cama de casal, por exemplo, mesmo antes de ela estar pronta”. Instinto de defesa em relação a quê? O que ficaria desnudado ou se revelaria finalmente se, porventura, o filho tivesse largado o pai, ao contrário do que acontece no sonho?
Largando o pai, de quem se queixa, a quem recrimina, Kafka teria de confrontar-se, sozinho esem álibis, não apenas com sua própria morte, mas, antes disso, às suas dificuldades mais básicas ao nível do real do gozo, não só o gozo próprio, de um corpo que se rebela, mas também do difícil, se não mesmo impossível, relacionamento com o Outro sexo. Como escrevia Kafka em 1916, no dia 6 de julho: “Impossível viver com F. Intolerável viver com alguém. Não lamento isto; lamento a minha impossibilidade de viver sozinho”. Ou, em 10 de abril de 1922: “Quando era rapaz eu desconhecia e não estava interessado em assuntos sexuais (e assim teria ficado durante muito tempo se eles não tivessem sido lançados sobre mim) tal como hoje estou, digamos, desinteressado pela teoria da relatividade”.
A relação ambivalente de Kafka com o pai está bem manifesta na seguinte passagem: “A escrever cartas no quarto dos meus pais – as formas que o meu declínio assume são inconcebíveis! Este pensamento ultimamente, que em criança fui derrotado pelo meu pai e que por ambição nunca fui capaz de sair do campo de batalha durante todos estes anos apesar das contínuas derrotas que sofro…”.
Por que não abandona ele o campo de batalha? Não se dará o caso de estar não apenas vencido (continuamente), mas já morto e não o saber? Eis o que parece confirmar o próprio Kafka, como se tivesse atravessado a sua fantasia fundamental, a 23 de janeiro de 1922: “A minha vida é o hesitar antes do nascimento”. Tal como as personagens dos seus romances estão condenadas, por exemplo, a errar em vão, a transformar-se em estranhos insetos ou a morrer como cães, o próprio Kafka parece condenado a não ter nascido. Não se trata apenas de ocupar o lugar do morto ou dos mortos, mas, mais do que isso, de aproximar-se de uma zona onde, como diz Édipo em Colono, seria preferível não ter nascido. E, nesse caso, toda a obra é vã, como nos lembra o testamento de Kafka para que a mesma fosse destruída.
Em jeito de balanço de uma vida, em 17 de janeiro de 1922, ele escrevia o seguinte: “Um momento de pensamento: resigna-te (aprende, quarentão) a ficar contente no momento (sim, já foste capaz de o fazer). Sim, no momento, o terrível momento, não é terrível, o medo que tens do futuro é que o faz assim. E também, olha para trás, para ele. Que fizeste como dom do teu sexo? É um fracasso, no fim é tudo o que vão dizer. Mas poderia ter sido facilmente um sucesso. Uma ninharia, de fato tão pequena que não se via, decidiu entre o fracasso e o sucesso. Por que estás surpreendido? Foi assim nas grandes batalhas da história do mundo. Ninharias decidem sobre ninharias”.
Estaria, pela minha parte, tentado a dizer, em jeito de conclusão, que o real é isso: ninharias decidindo ninharias. Ninharias sem lei. Acasos que fazem série, que nos tramam. E é por isso, talvez, que, em certa medida, somos todos kafkianosTodos tramados, embora cada qual à sua maneira, pelos acasos de um real sem lei.
E não será, finalmente, porque se defendem dessa ausência de lei (desse nonsense do real) que muitas personagens kafkianas, incluindo o próprio Kafka, não param de se torturar a si mesmas ou de gravar na própria carne, como acontece por exemplo na Colônia penal, uma lei insensata e que parece ter sido feita à medida de cada um?
Deste ponto de vista, não se trata de compreender a verdade de Kafka, muito menos da obra, por meio da sua relação problemática com o pai, mesmo se podemos facilmente cair na armadilha, mas antes ver nesta relação o nome e o modo de uma “defesa contra o real sem lei e sem sentido”. Um real de que as maiores criações de Kafka se aproximaram de tal modo que, para nós, elas se tornaram no seu nome próprio: o nome próprio de um certo real. É por isso que, muitas vezes, quando nos falta um nome ajustado para aquilo que queremos nomear, mas que não conseguimos, nos ocorre dizer: kafkiano.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O xadrez político das eleições municipais do Recife, em 2016: A eterna polêmica das pesquisas de intenção de votos.


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José Luiz Gomes


Diz um adágio popular que macaco velho não põe a mão em cumbuca, sob pena de não se saber o que se encontra ali dentro. Essa talvez seja a razão que levou um dos mais experientes profissionais de pesquisas eleitorais do Estado ter se recusado a fazer qualquer prognóstico sobre o possível resultado das próximas eleições municipais do Recife. Na realidade, citando um poeta, este cientista político tascou uma citação eivada de grandes interrogações: nas eleições municipais do Recife, este ano, tudo seria possível ocorrer, inclusive nada. Certamente, qualquer que seja o resultado das eleições do Recife, ele não arriscará - nenhum pouco - a sua reputação. Esta frase foi dita logo depois do primeiro levantamento de intenção de votos das próximas eleições municipais de 2016,realizado aqui na província, pelo Instituto Ipespe. Naquele momento, de fato, o quadro estava bastante "embaralhado", mas, creio que, mesmo hoje, com os "contornos" um pouco mais definidos, mesmo assim, ele possivelmente manteria a mesma posição. 

Em tempos não muito remotos, criou-se aqui no Estado, uma espécie de "conluio" perverso, envolvendo poder público, iniciativa privado, veículos da mídia e institutos de pesquisa, com o propósito de alavancarem alguns candidatos ou mesmo elevarem os índices de aprovação de governantes de turno, mascarando a realidade. Bastou a morte de um desses governadores ocorrer e a realidade bateu à nossa porta, com inúmeras denúncias de malversação de recursos públicos, déficit nas contas públicas e indicadores bem aquém daqueles exaustivamente apresentados à população. É curioso como uma das últimas pesquisas apresentadas por um desses institutos vem sendo comemoradas pelo establishment que dá sustentação a uma dessas postulações. Até então, ali, como disse em outro artigo, já havia acendido uma luz "amarela", em rezão de uma performance um pouco aquém do esperado do candidato. 

É preciso, portanto, tomar alguns cuidados com essas pesquisas, sobretudo em se sabendo o jogo de interesses de quem está por trás desse ou daquele instituto. A tríade poder público, mídia e institutos, que, num passado recente foi capaz de produzir alguns "estragos", não pode ser desprezada, sobretudo nesses momentos de nuvens cinzentas na política, onde alguns atores políticos já carregam o estigma de serem eliminados ou definitivamente afastados da vida pública, conforme é o caso do que se pretende com partidos como o PT. Recife é uma das praças onde as forças de esquerda apostam as suas fichas numa eventual vitória de nomes identificados com a reconstrução da cidadania, cotidianamente negada pelo atual governo. Como já afirmamos em outros momentos, sobretudo nesses tempos bicudos, nenhuma oportunidade política pode ser perdida. Essas eleições municipais seriam uma excelente oportunidade de recompor as forças e as estratégias de luta para enfrentar o que virá por aí, num gradativo processo de "endurecimento" do regime, com prejuízos evidentes para os avanços políticos e sociais conquistados a partir da Constituição de 1988. 

Antes que nos condenem, gostaria de informar que reputo o IPESPE como um instituto de pesquisa sério. Não seria tão enfático em relação a alguns outros institutos que atuam aqui no Estado, sobretudo porque se prestam ao serviço de "instrumento" dos interesses dos seus donos, que também são acionistas de jornais, com forte influência no poder público, tanto em sua esfera municipal quanto estadual. O IPESPE, ao contrário, foi criado para ser, de fato, um instituto de pesquisa, de certa forma para suprir a carência de institutos dessa natureza aqui em Pernambuco. Foi um dos primeiros a atuar com este objetivo aqui no Estado, talvez o primeiro. A rigor, não seria o momento de os institutos arriscarem sua "credibilidade" a esta altura do "campeonato", há duas semanas das eleições. Trata-se de um outro dado com qual devemos trabalhar. A essa altura do campeonato, arriscar a reputação do instituto com pesquisas "arranjadas ou tendenciosas" não seria de bom alvitre. O "custo" a ser pago por esses órgãos seria demasiado grande. Essas práticas são comuns com uma antecedência razoável da realização das eleições. Esse dado não pode ser desconsiderado.

Nossos questionamentos deste artigo, portanto, não se referem às pesquisas realizadas pelo Instituto IPESPE, mas a uma outra pesquisa, de um outro instituto, recentemente publicada, onde o prefeito Geraldo Júlio(PSB) abre uma diferença de 10% sobre o candidato do PT, João Paulo, com quem vinha empatado tecnicamente, com dados aferidos pelo Ibope, pela Datafolha e pelo próprio IPESPE, que, como disse, considerou o jogo "indefinido". Há quem informe que esse possível "avanço" da candidatura de Geraldo Júlio(PSB) poderia ser o resultado de seu tempo maior de TV, em contraponto a um guia muito criticado do candidato petista. Não se trata de uma hipótese improvável, muito menos ainda depois dos erros de avaliação dos petistas sobre o poder da TV nos "linchamentos de imagem", em relação ao próprio PT e aos seus líderes. 

Um outro dado que deve ser aqui considerado diz respeito à sintonia do "calendário dos conspiradores", em ações muito bem coordenadas, sempre com o propósito de "limpar o terreno" ou "minar as resistências" das forças do campo progressista, com o propósito de navegarem em céu de brigadeiro em sua sanha de executaram as manobras mais hediondas contra o povo e a soberania nacional. Neste clima de instabilidade política e insegurança jurídica em que o país foi jogado, chegamos a um estágio do "vale tudo" neste jogo de interesses pesados. Observem que essa última pesquisa saiu praticamente no mesmo momento em eram apresentados aqueles "fajutos" Power Point, pedindo a condenação de Lula sem que nenhuma prova insofismável contra ele fosse apresentada. Uma verdadeira aberração jurídica, que deve passar incólume por outras instâncias do nosso poder judiciário, cujos alicerces republicanos parecem ruir.

No contexto desse "calendário dos conspiradores", o que nos aguardam até o próximo dia 02 de outubro? Decretar a prisão de Lula é alguma coisa mais complexa, mas não duvidaria nenhum pouco que, se entre eles, esse momento já estivesse bem amadurecido, não seria surpresa que tal prisão fosse programada para o dia 30 setembro, aquela sexta-feira fatídica que antecede ao pleito, com direito às capas das revistas semanais  e edições especiais do JN, com os costumeiros "vazamentos" de véspera. Embora as nossas considerações dos artigos anteriores continuem válidas, quando se toma como referência a reconstrução da cidadania e como as forças políticas do campo progressista poderiam se engajar nesse "projeto" já a partir dessas eleições, é inegável, por outro lado, os efeitos do massacre midiático promovido pelo campo "conspirador" no sentido de fragilizar esta luta. E Isso torna o "embate" político bastante desigual. 

Contratar um nova pesquisa, promovida por um outro instituto, como sugere o candidato João Paulo(PT), também não sei se seria este o caso. A começar pelo fato de que oneraria bastante um financiamento de campanha já fragilizado. Por outro lado, se os dados apresentados "desmentissem" aquele instituto, ainda assim, seria necessário que essa informação fosse muito bem trabalhada junto à opinião pública recifense, com uma estratégia muito bem estudada, considerando-se a exiguidade do pleito, previsto para menos de duas semanas. O dado alentador é que há uma possibilidade concreta dessas eleições irem para um segundo-turno, quando se trata de uma nova eleição, facultando às forças progressistas se preparem melhor para o próximo round.  
  

domingo, 18 de setembro de 2016

Michel Zaidan Filho: O suspiro da criatura oprimida


 



A modernidade não tratou com benevolência as religiões. Sigmund Freud se referiu a elas como uma espécie de neurose, fuga ou escape diante da dura realidade de cada um. E chegou a prevê sua extinção, com o avanço da ciência e do pensamento esclarecido. Marx foi mais longe, chamou-as de “ópio do povo”, recriminando as classes que precisavam se apegar a uma ilusão para viver. Os autores contemporâneos – adotando uma postura agnóstica e pragmática – predispuseram-se a aceitar o fenômeno religioso como um fato sociológico, funcional para a sobrevivência da humanidade.

Mas, para mim, o pensador que soube exprimir como ninguém a essência do fenômeno religioso foi o alemão Ludwig Feuerbach, em sua obra “A Essência do Cristianismo”, publicada no Brasil com o prefácio de Rubem Alves. Segundo Feuerbach, podemos ler e traduzir o fenômeno religioso como uma alegoria do sofrimento humano na terra e sua busca de redenção. Daí a busca de um Deus, um céu, uma família, um mundo melhor, muito melhor do que o que vivemos. Diz o filósofo alemão, somos religiosos porque não nos conformamos com a miserável e infeliz vida mundana que levamos. Porque queremos uma vida melhor do que essa, para viver. As imagens do nosso mundo religioso querem dizer que é este (o mundo da religião) o mundo que queremos e não o que vivemos.

Muitas críticas advieram a essa formulação feuerbachiana. Sobretudo, porque ela tratava as religiões históricas como formas de alienação e convite ao conformismo social e político, ao transferir para uma esfera transcendental as utopias de uma vida melhor nesse mundo imperfeito e lacunoso. Seu principal discípulo Karl Marx, radicalizou a crítica, propondo o fim do Estado, o fim da política e das religiões, como forma de emancipação humana, ao dizer que os homens interpretaram o mundo de diversas maneiras, mas urgia transformá-lo.

A pós-modernidade, com sua descrença na razão, foi mais generosa com as religiões. Houve uma espécie de reencantamento da mundo e da sociedade. E uma desesperança nas utopias profanas que prometiam o milênio na terra. E é preciso dizer que vários religiosos e crentes passaram a tomar parte nos esforços para a construção de um mundo mais humano e justo. Fiz parte, na condição de ateu e socialista, desses movimentos, entendendo que era um amplo convite “aos homens de boa vontade” para mudar o mundo e fazê-lo melhor, sem distinção de credo, ideologia, raça, gênero ou orientação sexual. Não me arrependo. Encontrei valorosos amigos e camaradas.

Mas, hoje, tenho de constatar com tristeza e desolação que a religião vem sendo usada, sem o menor escrúpulo, por pessoas cujo o único interesse é de natureza eleitoral ou eleitoreira. Gente que se vale da sua condição de ministro religioso ou missionário ou crente nas escrituras sagradas, para arrancar voto dos ingênuos, incautos , pessoas crédulas, de boa-fé. Neste caso, não há como se enganar: se trata de meros mistificadores, pescadores de águas turvas, mercadejadores da fé, em busca de cargos, mandatos, tráfego de influência etc.

Em relação a esses últimos, não há como se iludir ou ter condescendência. Trata-se de lobos em pele de cordeiro, cujo o único objetivo é engazopar os ingênuos, propondo a salvação da alma em troca do voto e de ajuda material para suas igrejas ou obras “missionárias”. É um nova cruzada bíblica, animada dos piores propósitos: atentarem contra a precária laicidade do Estado brasileiro e colocarem em risco os direitos das minorias. Fariseus e sepulcros caiados, como disse a pregação do messias.


Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE. 

sábado, 17 de setembro de 2016

Paulo Sérgio Pinheiro: Espetáculo "grotesco" a denúncia do Ministério Público contra Lula

O cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, que foi secretário de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso e membro da Comissão Nacional da Verdade, expressou sua indignação pelas redes sociais com o que chamou de espetáculo “grotesco” protagonizado pelos promotores da Operação Lava Jato, em especial por Deltan Dallagnol, que na última quarta-feira (14), apresentaram – com transmissão ao vivo pela grande mídia – denúncia contra o ex-presidente Lula.
Lula foi acusando de diversos crimes, sem que qualquer prova fosse apresentada. Os procuradores apenas fizeram um jogo de ilações, usando slides de Power Point pretensamente justificados por uma retórica rebuscada e falsamente seguindo a lógica do combate à corrupção. Paulo Sérgio disse se tratar de um “show pirotécnico”, calcado em “termos vulgares”, “muito longe do rigor legal”. Afirmou ser “constrangedor” ver Dallagnol “assumindo o papel de consciência máxima da nação”.
“O prêmio ‘Andréi Vyshinsky’ de Procurador do Ano 2016 vai para o Dallagnol, que teve seu dia de Andréi Vyshinsky, o procurador dos processos do terror stalinista, quando a mera acusação já era a condenação. A ‘mise-en-scène’ televisa do Dallagnol contra o ex-presidente Lula foi digna dos grandes momentos dos processos dos tempos do terror em Moscou”, escreveu Paulo Sérgio em sua página no Facebook.
A comparação faz todo o sentido. Vyshinsky presidiu os piores julgamentos dos expurgos, despachando suas vítimas com a ordem “fuzilem os cachorros loucos!”. Era um dos um dos homens fortes de Stalin e tinha um comportamento particularmente espetaculoso: falava impropérios não só contra os réus, mas contra o que julgava que eles representavam.
Em outro texto, Pinheiro fez críticas ferrenhas ao conteúdo de cunho fundamentalista da denúncia. “Dallagnol se enganou de audiência, achou que estava num templo evangélico fundamentalista, onde ele costuma pregar e preparou um show de acusação digno de ‘repúblicas bananeras’ ou dos processos estalinistas”, pontuou Pinheiro, que é professor da Brown University, nos Estados Unidos, e integrou por oito anos a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
O promotor tem o hábito de pregar em igrejas evangélicas e detalhar o seu trabalho de “combate à corrupção”. Ultimamente, tem se empenhado em divulgar as “10 medidas contra a corrupção”, proposta idealizada por ele juntamente com outros procuradores da Lava Jato. As propostas já receberam críticas de vários operadores do Direito, por ferirem princípios constitucionais ao reduzirem drasticamente o direito de defesa do réu e ao fragilizar o princípio da presunção de inocência.
Segundo o ex-secretário de Direitos Humanos de FHC, Dallagnol “aproveitou os cinco minutos de fama na tevê para descarregar sua aversão ao presidente Lula”. Na opinião de Pinheiro, a postura do procurador “fez até os comentadores de direita protestarem” contra o show midiático. “Foi ótimo para deixar claro que não há provas para processar o presidente Lula pelas acusações e baixezas que [Dallagnol] utilizou”, escreveu, também em seu perfil no Facebook.

Carta Capital revela o roteiro do acordo que enterraria a Lava Jato: Anistia e dinheiro em troca de silêncio


17 de setembro de 2016 às 11h27

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Da Redação
Na edição da revista CartaCapital que está nas bancas o repórter André Barrocal descreve o roteiro de um acordão que pode, se não enterrar, pelo menos limitar o alcance da Operação Lava Jato, preservando personagens importantes da política brasileira — Michel Temer, José Serra, Aécio Neves, Renan Calheiros, José Sarney e muitos outros.
O roteiro se encaixa na conversa gravada clandestinamente pelo ex-presidente da Transpetro, Sergio Machado, com o hoje presidente do PMDB, Romero Jucá.
Aqui, é importante relembrar:
MACHADO – Acontece o seguinte, objetivamente falando, com o negócio que o Supremo fez [autorizou prisões logo após decisões de segunda instância], vai todo mundo delatar.
JUCÁ – Exatamente, e vai sobrar muito. O Marcelo e a Odebrecht vão fazer.
MACHADO – Odebrecht vai fazer.
JUCÁ – Seletiva, mas vai fazer.
MACHADO – Queiroz [Galvão] não sei se vai fazer ou não. A Camargo [Corrêa] vai fazer ou não. Eu estou muito preocupado porque eu acho que… O Janot [procurador-geral da República] está a fim de pegar vocês. E acha que eu sou o caminho.
[…]
JUCÁ – Você tem que ver com seu advogado como é que a gente pode ajudar. […] Tem que ser política, advogado não encontra [inaudível]. Se é político, como é a política? Tem que resolver essa porra… Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria.
[…]
MACHADO – Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel [Temer].
JUCÁ – Só o Renan [Calheiros] que está contra essa porra. ‘Porque não gosta do Michel, porque o Michel é Eduardo Cunha’. Gente, esquece o Eduardo Cunha, o Eduardo Cunha está morto, porra.
MACHADO – É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional.
JUCÁ – Com o Supremo, com tudo.
MACHADO – Com tudo, aí parava tudo.
JUCÁ – É. Delimitava onde está, pronto.
[…]
MACHADO – O Renan [Calheiros] é totalmente ‘voador’. Ele ainda não compreendeu que a saída dele é o Michel e o Eduardo. Na hora que cassar o Eduardo, que ele tem ódio, o próximo alvo, principal, é ele. Então quanto mais vida, sobrevida, tiver o Eduardo, melhor pra ele. Ele não compreendeu isso não.
JUCÁ – Tem que ser um boi de piranha, pegar um cara, e a gente passar e resolver, chegar do outro lado da margem.
O boi de piranha para “chegar do outro lado da margem” pode ter sido Eduardo Cunha. O ex-presidente da Câmara, depois de cassado, não voltou a falar em fazer delação premiada.
Estaria à espera dos desdobramentos das ações contra ele, a mulher e a filha? Ou, quem sabe, do “acordão” mencionado por Romero Jucá na gravação?
De acordo com Barrocal, o acerto se daria em duas frentes: na Câmara, o deputado Hildo Rocha (PMDB-MA), aliado de José Sarney, costura uma anistia para os casos de recebimento de contribuições no caixa 2; no BNDES, haveria alívio financeiro às empreiteiras, de forma a modularas delações de seus executivos.
Um dos maiores beneficiários do acerto seria o atual ministro das Relações Exteriores, José Serra, que na delação premiada de Marcelo Odebrecht pode ser acusado de receber R$ 23 milhões em contribuições na campanha de 2010 — parte no Brasil, parte em contas no Exterior.
Também tem interesse em “chegar à outra margem” o senador Aécio Neves, sob investigação por causa do esquema de propinas em Furnas e suspeito de interferir nas investigações do mensalão petista com o objetivo de poupar aliados.
Aécio pode ser delatado por executivos da OAS por receber, através de Oswaldo Borges da Costa Filho, propina de 3% na parte da Cidade Administrativa que coube à empreiteira construir.
Curiosamente, a delação de Léo Pinheiro, da OAS, está travada. Ele faria denúncias contra o ex-presidente Lula, Aécio Neves e José Serra.
acordão em Brasília beneficiaria especialmente o PMDB: executivos da Odebrechet podem delatar repasse de R$ 10 milhões a pedido de Michel Temer na campanha de 2014. Uma acusação formal contra ele pode por abaixo todo o governo golpista.
Ao menos uma denúncia de acordão já foi feita por um ex-integrante do governo Temer, Fábio Medina Osório, defenestrado da Advocacia Geral da União (AGU).
Quando ainda estava sendo fritado por boatos sobre sua demissão, ele resumiu: “É uma série de ataques que estamos sofrendo. Coincidentemente, logo agora, após havermos ajuizado ações bilionárias contra uma série de empreiteiras, no montante de R$ 12 bilhões para recuperar ativos dos cofres públicos. E no momento em que estamos reforçando a equipe da AGU para combater a corrupção, na Operação Lava Jato”.
Não é de estranhar, neste contexto, o discurso feito pelo ministro do STF Dias Toffoli — que é muito próximo de Gilmar Mendes, devedor do grão tucanato — num evento em Belo Horizonte.
Depois da denúncia do MPF contra Lula, Toffoli disparou em direção à Lava Jato:
“Megaoperações levam ao totalitarismo do Poder Judiciário”, diz Dias Toffoli
16 de setembro de 2016, 21h27
Reprodução parcial
O Judiciário exerce hoje o poder moderador das crises brasileiras que, antigamente, cabia às Forças Armadas, afirmou o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli nesta sexta-feira (16/9). No entanto, ele advertiu que os magistrados não podem extrapolar suas funções, sob risco de acabarem no ostracismo, como aconteceu com os militares após a ditadura.
“O Judiciário não pode exagerar no seu ativismo, senão vai ter o mesmo desgaste dos militares. Se criminalizarem a política, passarem a achar que o sistema judicial vai moralizar a sociedade brasileira, batendo palmas para doidos dançarem, vamos cometer o mesmo erro que os militares cometeram em 1964 ao assumir o poder”, alertou o ministro no último dia do XX Congresso Internacional de Direito Tributário, ocorrido em Belo Horizonte. O evento foi organizado pela Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt).
Além disso, Dias Toffoli criticou a espetacularização das megaoperações investigativas, como a “lava jato”. “Se quisermos ser os protagonistas da sociedade, temos que refletir se desejamos fazer operações que têm 150 mandados de busca e apreensão em único dia, que têm sentenças aditivas. Isso leva a um totalitarismo do Judiciário. Isso é democracia? Isso é Estado Democrático de Direito?”, questionou.

(Publicado originalmente no site Viomundo)

Charge!Aroeira via Facebook

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Falta uma palavra no Power Point de Dakkagnol


6 de setembro de 2016


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Munidos de um power point colegial, os promotores da Lava-Jato tentam impedir que as urnas de 2018 submetam o nome de Lula ao escrutínio popular (Foto: Ricardo Stuckert)
por Joaquim Palhares, na Carta Maior
O conflito com as ruas e com as urnas está inscrito na natureza constitutiva do golpe em curso no Brasil, cuja fidelidade pertence aos detentores da riqueza, não ao país, tampouco a sua gente.
A agenda de expropriação de direitos e alienação de patrimônio público que define essa endogamia não pode ser submetida às urnas  --nas quais já foi derrotada em quatro eleições presidenciais sucessivas. Menos ainda à convivência política com aquele que personifica esse antagonismo na alma e no coração do povo brasileiro: Luiz Inácio Lula da Silva, uma liderança de carne e osso, com os limites da carne e do osso, mas ainda assim a maior liderança popular da nossa história, porque levou mais longe o compromisso com a igualdade social.
Pepe Mujica, em uma de suas viagens ao Brasil, carimbou no golpismo, então ascendente, uma advertência lapidar: ‘Devemos desconfiar sempre dos que pretendem corrigir o voto popular'.
Munidos de um power point colegial, e de uma retórica de macarthismo imberbe, os proficientes promotores da Lava Jato se avocaram nesta quarta-feira, mais uma vez, o papel execrado por Mujica.
Na condição caricata, acentuada pela retórica de polícia política, lançaram-se ao  derradeiro esforço de entregar a encomenda contratada desde o início à Operação Lava Jato: impedir que a urna eletrônica de 2018 submeta mais uma vez o nome de Lula ao escrutínio popular.
A derrubada da Presidenta Dilma foi o degrau anterior dessa buliçosa empreitada, que está condenada a ir além de todos os limites constitucionais
Por uma razão bastante forte: o projeto golpista não é incompatível apenas com uma disputa em terreno limpo contra Lula e contra o que ele representa.
Ele é alérgico ao contato direto com o povo e com a soberania, pelo simples fato de que nasceu para ir contra a vontade do povo brasileiro.
O passo seguinte dessa escalada –não é temerário prever--  conduzirá ao enjaulamento do processo político, trazendo para o quórum seguro de uma escória parlamentar, a eleição do sucessor de Temer, pelo voto indireto, protegido do veredito da sociedade e blindado contra o clamor da rua.
Delações coagidas e culpas presumidas, amarrotadas em um power point infantilizado, avultam dos labirintos jurídicos da Lava Jato, onde o desejável combate à corrupção foi abastardado em alavanca partidária de execração política para o banir lideranças e forças populares incompatíveis com o Brasil das elites.
A destruição da  maior liderança popular da história brasileira é um imperativo da empreitada grosseiramente previsível.
Para cumpri-la empunha-se a lei do vale tudo.
O senhor Dallagnol condensou essa determinação omnívora --peculiar ao código de uma comunidade legal que defende ‘provas’ obtidas por meios ilegais-- em uma sentença que permite interpretar como:  'Não temos prova, temos a convicção'.
Qual ?
A de que Lula era o cérebro, o ‘comandante máximo’, o general de todo o suposto esquema  de corrupção na Petrobras --que começou antes de seu governo, mas isso não vem ao caso, nem cabe nos esquematismos de um power point colegial.
Vem ao caso, porém, na defesa do Estado de Direito.
Quando o Ministério Público se propõe acusar tão gravemente  um ex-presidente da República de ser  o “chefe máximo da corrupção no país” e o faz na fase inaugural da persecução criminal, que na verdade não investigou e muito menos denunciou tal conduta criminalmente condenável, portanto, sem possuir provas ou indícios, o Estado de Direito grita.
E deveria ser ouvido.
Ao senhor Dallagnol cumpriria uma voz da Suprema Corte advertir que 'convicção' para condenar quem forma é o juiz. Tão somente o juiz.
Pelo menos no Estado de Direito em vigor no país é assim.
Não o era na OBAN, durante a ditadura. Não. Ali, nas salas de tortura, um delegado, Sergio Paranhos Fleury, formava suas convicções. E as executava, como sentenças inapeláveis, com as próprias mãos.
Hoje a imprensa coorporativa também possui convicções e as executa, com suas próprias manchetes.
O senhor Dallagnol não é juiz; Sérgio Moro não é Sergio Fleury; a República de Curitiba não é a OBAN.
Mas arvora-se,  neste caso, o direito de condenar, repita-se, um ex-presidente da República como 'general supremo' de um esquema de corrupção, no qual teria auferido propinas no valor de R$ 3,7 milhões.
Apenas um dos supostos subalternos seus  --pois todos o seriam na fábula macartista dos promotores de power point— como lembra a jornalista Helena Chagas, citando Pedro Barusco, pagou só de multas à Lava Jato, cerca de U$S 100 milhões de dólares.
Que ‘general’ é esse, cujo soldo é cem vezes inferior ao de um soldado?
Seria apenas ridículo, se não fosse um atentado à democracia.
A precariedade evidenciada no amadorismo de um power point é tamanha que o juiz Moro, em nome da sua reputação, terá dificuldade em aceitar a denúncia ancorada em retórica adjetiva, a dissimular a inexistência de provas efetivas, principalmente porque esse fato não faz parte das investigações e da denúncia.
Mas Moro o fará, pela simples razão de que para isso se constituiu a Lava Jato. Ademais, aceitação não é condenação.
A falta de provas de que o ex-Presidente seria o “general da corrupção”, todavia, deveria constranger um guardião do Estado de Direito.
Ela avulta não apenas da convicção de Dallagnol. Mas sobretudo, do fato de não se ter requerido a prisão de Lula.
Não faz sentido o Ministério Público Federal não pedir a prisão de um réu tipificado como comandante máximo do exército de corruptos da nação. Não o fez porque não tem provas e nem indícios, evidentemente porque essa parte da descabida acusação sequer faz parte das investigações e da denúncia oferecida.
Além disso, parte das acusações que foram apresentadas no dia de ontem estão na competência da Suprema Corte.
Se o nome disso tudo não é golpe será preciso inventar um outro mais forte para designá-lo.
Quem sabe: GOLPE !
O conjunto acentua as tintas da crise estrutural vivida pela sociedade brasileira em que ao esgotamento do modelo econômico se junta a falência de seu sistema político que contaminou a isenção do judiciário, arrebatado agora por centuriões que se avocam a tarefa de ‘corrigir o voto popular’.
Nenhum simplismo de power point resolverá essa encruzilhada, diante da qual se joga o destino brasileiro no século XXI.
A crise em curso  requer  uma repactuação democrática da sociedade e do seu o desenvolvimento, razão pela qual não encontra remédio no passado -- e tampouco no anacronismo violento de um  presente espremido na   restauração neoliberal que se pretende impor à  nação.
Para impedir que o Brasil escorra no ralo conservador é inadiável acelerar a construção de uma frente ampla, assentada em forças populares e democráticas, que se ofereça às ruas e às urnas como uma alternativa crível ao ajuste baseado na liquefação da renda assalariada, na sonegação do futuro à juventude, no atropelo da Constituição e do  Estado de Direito
É o que já previa nos albores do golpe a professora Maria da Conceição Tavares, em entrevista premonitória à Carta Maior, que convidamos à leitura atenta nesta edição ('Com Cunha ou sem Cunha, com eles o Brasil vai para o ralo').
Com ela, Carta Maior reafirma seu compromisso de se constituir na caixa de ressonância da recusa à naturalização do golpe e do arrocho ecoados pelo aparato midiático dominante.
Para exercer esse papel, a mídia independente só conta hoje com um aliado: seus leitores e leitoras.
Exortamos os democratas e progressistas a se tornarem parceiros dessa trincheira, através da qual é possível acrescentar a palavra que falta no power point do senhor Dallagnol: farsa !
(Publicado originalmente no portal Carta Maior)