quarta-feira, 17 de novembro de 2021
Da ponte pra cá: Gilvan Eleutério
Quando penso em Penápolis, primeiramente lembro da Vila Altimari, Planalto, Vila São João, Aparecida, Jardim Pevi, Mutirão, vilas no qual conheci muitas pessoas que realmente valeram a pena conhecer nessa breve existência. Frenquentei lugares que facilmente poderiam ser cenários de filmes e séries, pela carga cultural e emocional, como o clube Corinthians, Zoom Night Club, Bar do Jhow, Chaparral, River’s Bar, Bar do Nory, entre outros.
O cenário alternativo, underground, sempre foi muito forte, pois nas periferias sempre alguma coisa acontecia, sendo eventos, festa em bairros, festivais em praças, ou nas mesas de boteco, o cenário cultural sempre foi de resistência. Conheci muita gente, grupos de rap e bandas de rock que o mundo deveria conhecer, porém poucas sobreviveram devida à dura realidade de ter que pensar primeiramente no trabalho para ter comida no prato, e sempre deixar para depois os sonhos e aquilo que realmente te faz feliz.
No cenário atual a quebrada conta com muita gente boa, Big G com suas letras de rap contundente e rimas inteligentes, com o mestre Bylla nas ilustrações, Praga de Mãe no cenário punk, Q.O.E.S grupo de rap de respeito, Calibre100 Porte também pra fechar os monstros do cenário.O mundo devia conhecer não só eles, mas valorizar e procurar conhecer aqueles que fazem parte de uma cultura verdadeira e sincera, que mesmo nas adversidades conseguem produzir um conteúdo muito bom, longe dos padrões impostos por gravadoras e grande mídia.
Gilvan é um contista com sangue no olho, linguagem dura e dono de histórias passadas nas quebradas do interior. Alguma semelhança com a prosa de Charles Bukowski é mera semelhança de vivência, porque o contista de Piquete nunca leu o “velho safado”. Participou, no entanto, da antologia “Geração 2010: o sertão é o mundo” (Editora Reformatório, 2021). Para nossa série “Da ponte pra cá”, colaborou com outra história curta “O dragão trabalha, se São Jorge vacila”, que você lê no final deste texto.

Gilvan, o que você pensa quando pensa nos territórios em que foi criado no interiorzão de São Paulo?
Nascido em Piquete, pequena cidade localizada no vale do Paraíba no estado de São Paulo, depois da separação dos meus pais, fui para Penápolis, outra pequena cidade, localizada no noroeste paulista, cruzando literalmente o estado, morei lá por 30 anos, quebrada de respeito, região 018, onde sua realidade não era compatível com seu tamanho, pois lá aconteciam fatos dignos de uma metrópole. Na minha caminhada por lá, conheci pessoas, histórias, vivi situações e sobrevivi para contá-las. Participei de movimento estudantil, movimento punk, movimento hip-hop, trabalhei por exatamente 10 anos de vigilante, especialmente 8 anos na vida noturna.
Nesse caldeirão de emoções, com manifestações, tretas, romances, amigos presos e assassinados, sempre procurei observar na triste realidade algo a mais, olhar para cada acontecimento como uma história particular, singular e tentar passar para o papel os sentimentos que foram vividos nesses momentos.
São demais as quebradas dessa vida, já cantou o poeta. Para encerrar a prosa com o Gilvan Eleutério, lemos um conto do artista, nascido em Piquete, mas criado a vida toda nas vilas de Penápolis:
O dragão trabalha, se São Jorge vacila
_ Careca tem um cara cheirando no banheiro, porra, te pago pra que? Ficar xavecando a Lua?
Nossa! Mas já? A noite vai ser longa.
Não acredito que ele vai encher minha paciência logo agora.
_ Você vai cheirar? Então deixa eu ver essa carreira, vai.
O idiota ainda mostra. Uma carreira grande e gorda em cima da tampa do sanitário.
Fuuuuuuuuuuuuuhhhhhhhhh, um leve assopro resolve, que dó.
Abraço Luciana e sinto seu cheiro. Ela me dá um leve beijo, fico parado e aproveito o momento, logo volto a mim e percebo que alguém se aproxima, é o patrão. Fodeu, ele não gosta que me envolva com as meninas em hora de serviço, espanta os clientes.
Nossa, falo senhor o tempo inteiro, quando será que me chamarão de senhor? A última vez que me chamaram de senhor foi quando o sargento no quartel me colocou de guarda: “Parabéns, senhor, acaba de ganhar um final de semana no quartel !”. Gente fina, o sargento, ensinou-me muitas coisas.
_ Briga!!! Briga!!!
De repente ouço gritos, minha barriga gela, meu coração dispara, os olhos começam a ficar vermelhos… É agora, a adrenalina domina meu corpo, em instantes chego no balcão, a confusão está armada, são dois, respiro, consigo dominar um, o outro se afasta, levo o cliente pra fora, ele nada fala, segue em direção ao seu carro, abre a porta e mexe debaixo do banco, sem vacilar pego minha arma engatilho e espero. Minhas pernas tremem, a respiração incontrolável, quando ele se levanta vejo um objeto em sua mão, não consigo identificar. O cliente se aproxima… Mais um passo e revelo meu guardião.
_ Aí, irmão, perdeu, fica parado ai mesmo, larga isso e deita no chão.
Ele não obedece…
_Parado, porra, caralho, parado!
Parou, largou o objeto e deitou-se. Puta que o pariu, era um simulacro, uma arma finta, arma de brinquedo.
_ Seu merda, ia me matar com isso? _ Dou um tiro para o alto. _ Corre seu cuzão, entra no carro e vaza.
Em minutos ele não esta mais lá. Não foi dessa vez, agradeço a Deus e a São Jorge pela proteção, estou cansado, a adrenalina em excesso cansa, volto para dentro do estabelecimento e olho no relógio, são 5 horas, acabou.
Mais uma noite, mais alguns trocados. Logo terei minha carta de habilitação. Mil conto, puta que o pariu, caro pra caralho.
(Publicado origilmente no site da Revista Cult)
terça-feira, 16 de novembro de 2021
Editorial: "O que incomoda é pobre comendo bem, não passando fome"
domingo, 14 de novembro de 2021
Editorial: O clientelismo da democracia brasileira.
Louvável as atitudes dos ministros do Supremo Tribunal Federal em defesa da democracia brasileira. Este princípio tem sido a regra que orienta suas decisões mais recentes, constituindo-se numa espécie de balisamento jurídido embasado nos componentes que preservam, consolidam ou mesmo ampliam os regimes democráticos. Numa experiência democrática como a nossa, conhecida por suas fragilidades históricas, iniciativas desta natureza contribuem para significativos avanços neste campo, como o respeito às regras do jogo, assim como a inibição de práticas abusivas, como a disseminação de fake news.
Os ministros daquela Corte estão se amparando, jurídica e teoricamente, nos pressupostos dos regimes democráticos para tomarem as suas decisões. Alguém poderia dizer que não poderia ser diferente. De fato não, mas vocês entendem o que este editor está querendo dizer ao fazer tais afirmações. Com decisões desse caráter, os ministros da Corte estão contribuindo para ampliar a nossa democracia. E, parafraseando o sociólogo francês, Claude Leffort, "uma democracia que não se amplia tende a morrer de inanição." Carmén Lúcia, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Rosa Weber, Alexandre de Moraes, Luiz Roberto Barroso. Todos, sem exceção, seguem a mesma orientaçao. Rosa Weber, por exemplo, ao se colocar contra esse tal "orçamento secreto", afirma que ele constitue-se, em última análise, num procedimento incongruente com um regime democrático.
O cientista político Fernando Schüler, professor do INSPER, observa, em seu artigo semanal, que o filósofo político Norberto Bobbio dizia que a transparência era uma promessa não cumprida pela democracia. No caso brasileiro em específico, creio que tal promessa jamais será saudada, pelas razões já expostas por estudiosos do assunto, como Raimundo Faoro, Victor Nunes Leal, Sérgio Buarque de Holanda. É o jeitinho, é o favor, é clientelismo, é o tapinha nas costas, é a ausência de fronteiras entre o público e o privado. Nossa experiência democrática tem um comprometimento estrutural. Todo tipo de malabarismo e falcatruas são cometidas com as transações públicas que devem ser - ou deveriam ser - do conhecimento do público. Vocês bem podem imaginar, então, a rede de cooptação política, do nível federal ao municipal, inerentes a esses tais orçamentos secretos, onde a sociedade não tem acesso aos quinhões destinados aos deputados, assim como eles serão negociados com os prefeitos e vereadores dos municípios.
Ainda bem que o colegiado do STF formou maioria em relação a este assunto,seguindo o voto da ministra Rosa Weber. Pena que os esperneios do Poder Legislativo não traduzam uma preocupação com a independência dos três poderes - concebidos no sistema de freios,pesos e contrapesos tão salutares à democracia -mas, sobretudo, pelo fato de a liminar ter estancado a farra com o dinheiro público, que pesa diretamente sobre os alicerces de uma democracia.
sábado, 13 de novembro de 2021
Editorial: O blefe de Dória
Pela clivagem deste editor - certamente aliada à nossa condição de eleitor - dos atuais pretendentes a ocupar a cadeira do Palácio do Planalto, alguns desses nomes não deveriam ser reconduzidos ao cargo e outros tantos sequer deveriam tentá-lo, pelas suas condutas como homens públicos ou na iniciativa privada. Não vamos aqui entrar nos pormenores, para não ferir as susceptibilidades desses atores políticos ou, pior, atrair a ira dos seus seguidores, tornando-se alvo dos inevitáveis ataques vis, através de expedientes conhecidos. Fica a critérios dos leitores e leitoras que nos acompanham por qui, através de um exercicio de intuição ou mesmo baseados no que escrevemos pelo blog, tentar estabelecer essa nossa possível clivagem.
Asseguro que seria muito importante que a maioria de nossos eleitores estabelecessem esses mesmos critérios. Muitas tragédias poderiam ser evitadas na condição dos negócios de Estado. Mas, voltemos ao cotidiano dos nossos comentários políticos, desta vez para tratar das prévias do PSDB, marcadas por alguns lances curiosos - como as filiações irregulares, já devidamente anuladas pela Executiva Nacional da legenda - e, agora, os chamados blefes, possivelmente em razão da suas proximidade da votação, prevista para o dia 21.
As prévias tucanas, quando foram anunciadas, geraram muitas expectativas junto ao eleitorado, seja este eleitorado tucano raiz ou não. Seria um momento para conhecermos as propostas dos candidatos a candidato do partido à Presidência da República, nas eleições de 2022. Infelizmente, nenhum entre eles apresentou, a rigor, uma proposta para o país, restringindo-se às suas experiências nos Estados ou capital que administram, conforme o caso, João Dória(PSDB-SP)), Eduardo Leite(PSDB-RS), Arthur Virgílio(PSDB-AM). O senador Tasso Jereissati(PSDB-CE) desistiu de disputar as prévias, engrossando as fileiras dos apoiadores do governador gaúcho.
Ao longo do processo, escaramuças trocadas entre os candidatos ganharam a cena e, hoje, não se fala noutra coisa senão sobre os números apresentados pelos candidatos em relação à votação. Eduardo Leite assegura que sairá vitorioso das prévias, enquanto o governador de São Paulo, João Dória - que atravessa mais uma fase de adequação de discurso - assegura que terá 75% dos convencionais. Assim como Eduardo Leite (PSDB-RS), endossamos a tese de que se trata de um blefe.
O engomadinho é, rigorosamente, um "produto" de marketing. O ex-governador Geraldo Alckmin já afirmou que essa sua mania de misturar negócios privados com coisa pública não é muito salutar. E ele tem toda a razão quando fala sobre este assunto. Já foi um aliado dele no passado e, hoje, é um desafeto. Aliás, Dória tem a mania de abandonar ex-companheiros de viagem. Se o indivíduo cai em desgraça, ele o abandona na hora, sem qualquer constrangimento. Essa parece ser uma das espertises de sua práxis corportativa, que ele trouxe para a sua vida pública. Como disse antes, consoante as conveniências, já anda moldando milimetricamente o seu discurso, de acordo com uma revista de circulação nacional. Depois de um encontro com empresários, teria parado de atacar o presidente Jair Bolsonaro(PL), de quem já foi um aliado no passado. Eduardo Leite afirmou que faria uma manobra mirabolante caso se confirme as previsões do governador paulista. Não será preciso.
sexta-feira, 12 de novembro de 2021
Editorial: O banho de Lula na Vox Populi
Para evitar comprometimentos, melhor seria afirmar que "Tudo pode acontecer, inclusive nada', até porque, as eleições presidenciais ainda estão muito distante. Alguns cenários poderão mudar até lá. Nem mesmo o surgimento de um "azarão' seria de todo improvável. Mas, pelo andar da carruagem política, a cada nova pesquisa se consolida a liderança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT-SP) na corrida presidencial de 2022. O petista continua firme, costurando alianças, conversando com amplos setores da sociedade civil e até incursionando pela Europa, onde iniciou um périplo mais recentemente, com o propósito de reestabelecer o diálogo com líderes da esquerda.
Esta última pesquisa da Vox Populi, inclusive, já traçou uma simulação sem a presença do presidente Jair Bolsonaro(PL), que, como disse num outro editorial, não enfrenta um bom momento ou, para usar uma linguagem militar, não encontra-se em céu de brigadeiro. Como pesquisa é uma "fotografia" - que retrata uma realidade momentânea - nada nos assegura que este quadro possa ser mantido até as urnas, em outubro de 2022. Por enquanto, o petista corre solto, com possibilidades reais de liquidar a fatura ainda no primeiro turno, a julgar pela sua performance nos levantamentos de intenção de voto. Pela Vox Populi,de 11\11, ele crava 44%, enquanto Jair Bolsonaro aparece com 21%. Com o nome de Jair Bolsonaro de fora, ele amplia a vantagem sobre o pelotão da terceira via, que ainda continua uma massa disforme. Lula 45%, Moro 8% e Ciro Gomes 6%. A terceira via continua, ainda, uma grande incógnita. Tem eleitores, mas eles estão órfãos de candidatos.
Num exercício bastante interessante, uma revista de circulação nacional publicou um artigo, onde o articulista listava uma série de motivos para não crer da consolidação dessa terceira via. Cuidadosamente, estou me debruçando sobre tais argumentos para discuti-los aqui com vocês. Nos meus bons tempos de estudante, li bastante sobre a polarização política que ocorria nos estados de Pernambuco e Rio Grande do Sul. São dois estados emblemáticos para se entender a polarização política no pais.
Incrível como, até o momento, no contexto da eleição presidencial de 2022, ainda não surgiu um nome para desmanchar esse binômio, embora haja espaço, pois há uma insatisfação de um percentual expressivo de eleitores. Tenho inúmeras razões para acreditar que Sérgio Moro não conseguirá esta proesa, apesar do seu bom start de largada, que gira entre 8% e 10%,dependendo do instituto. Embora tenha recebido uma boa assessoria para a elaboração de seu discurso de estréia - falou-se, imaginem! até mesmo numa força tarefa para enfrentar problema da fome ou da probreza, onde servidores seriam convocados para participar do projeto - a sua plataforma é eminentemente voltada para o combate à corrupção. E, já que ele pretende convocar especialistas para tratar do assunto da fome no país, este editor sugere o nome do grande sociólogo Jessé de Sousa, que prestou grandes serviços ao país na presidência do IPEA. Claro que há aqui uma ironia.
Um resistente nos Estados Unidos
João Camillo Penna
Grafite retratando Michel Foucault (Reprodução/ Organ Museum)
A presença de Michel Foucault nos Estados Unidos é significativa. Ela é sensível das formas mais diversas: em órgãos específicos de difusão da pesquisa acadêmica na crítica literária, em revistas como Social Text (primeiro número: inverno de 1979, gerida principalmente por Fredric Jameson, de abordagem marxista), Representations (primeiro número: fevereiro de 1983, órgão do Novo Historicismo) ou Cultural Critique (primeiro número: 1985), mas também na antropologia (Paul Rabinow, por exemplo), na história da ciência e da tecnologia (Donna Haraway) ou ainda em campos da política, como o movimento carcerário ou antipsiquiátrico, para mencionar só algumas áreas. É preciso, no entanto, cautela ao falar de Foucault nos Estados Unidos. Cinco razões principais para isso.
Primeira, a profunda inadequação da noção de “influência”, cuja fraqueza epistemológica é tema interno à própria obra de Foucault, que via a leitura causal dos fenômenos de semelhança e repetição como um suporte mágico inadequado. Assim, não se pode falar de “influência” da História da loucura sobre o movimento antipsiquiátrico nos Estados Unidos e na Inglaterra, já que um é em larga medida contemporâneo do outro – embora seja verdade que há muito de Foucault em A manufatura da loucura de Thomas Szasz (1970). Além disso, a relação entre Foucault e seus leitores americanos não é sempre amistosa, sendo freqüentemente marcada por uma ambigüidade crítica rigorosa, que precisa arrancar a Foucault um campo aberto por sua reflexão (caso de algumas apropriações como a dos Estudos de gênero ou a dos Estudos subalternos).
Segunda, não é evidente que as apropriações de Foucault nos Estados Unidos sejam homogêneas ao sentido original de seus projetos na França, embora a hipótese da existência de dois Foucaults, um Foucault americano e outro francês, como escreveu Vincent Descombes, seja algo excessiva. É inegável, portanto, que a inserção de Foucault no que se convencionou chamar “ontologias do múltiplo” (com Deleuze, Derrida, Lyotard…), i.e., a tradução filosófica francesa da política de maio de 1968, tem pouco a ver com o debate multiculturalista e a discussão sobre políticas identitárias americanas, momento mais fecundo da recepção foucaultiana nos Estados Unidos, nos anos oitenta. Embora não seja menos verdade que a crítica da subordinação do pensamento ao sujeito e ao Um, e uma idêntica afirmação da multiplicidade, lida em termos culturais ou identitários nos Estados Unidos, perpasse tanto uma quanto a outra.
Terceira, a articulação do debate foucaultiano nos Estados Unidos se dá no contexto da grande importação do pensamento francês nesse país, em que Foucault está longe de ser um caso isolado, sendo lido em conjunto com Derrida, Deleuze, Bourdieu, os historiadores das mentalidades, ou, um pouco antes, com Althusser, Lacan e Barthes, pensadores bastante heterogêneos entre si.
Quarta, a academia americana dialoga com aspectos distintos da obra foucaultiana, ela própria marcada por cortes profundos. É o caso das discussões no campo da filosofia e das ciências sociais sobre as ciências humanas ou da “virada interpretativa” (lingüística ou culturalista), marcada por uma crítica hermenêutica ao positivismo científico. É algo como o conceito de epistéme que será retomado, podendo ser “culturalizado” ou não, para querer dizer algo como uma “rede de significações tecida” pelo ser humano, conforme a definição de cultura formulada por Clifford Geertz (citando Max Weber), enquanto as apropriações mais recentes (Estudos pós-coloniais, Estudos de gênero, Queer Theory) se fixarão, como veremos, na História da sexualidade ou em Vigiar e punir.
Acresce-se a isso, finalmente, que o “último” Foucault será marcado por suas freqüentes visitas aos Estados Unidos, como professor convidado e conferencista. A partir delas ele se interessará por um novo tipo de luta social, por modo de resistência e por novas formas comunitárias, que lhe vieram em particular da experiência da cultura gay em San Francisco. Além disso, o fato inédito de que a apresentação sistemática de algumas de suas últimas colocações não só aparecerá antes nos Estados Unidos do que na França, como será incluída no interior de uma poderosa reflexão e tradução americana de sua obra, o livro de Paul Rabinow e Hubert Dreyfus (ambos professores na Universidade da Califórnia, em Berkeley), Michel Foucault, uma trajetória filosófica (de 1982 e 1983).
O caminho a tomar deve ser, portanto, outro: há um gesto foucaultiano claramente reconhecível em suas apropriações americanas. Esse gesto tem dois lados: o seu construtivismo radical e um estilo de ativismo que chamarei, precariamente, de nietzschiano. A marca foucaultiana aparecerá de forma nítida no mercado editorial americano sob o traço reconhecível em títulos contendo as palavras mágicas: a invenção de, a construção de, o nascimento de…
Mas como entender o construtivismo de Foucault? Ele é claramente definido na Arqueologia do saber: substituir uma interrogação sobre o conteúdo secreto da loucura pelo mapeamento da constituição da doença mental por meio do conjunto de enunciados que a nomeiam, recortam, explicam, julgam e, finalmente falam pela loucura (“articulando, em seu nome, discursos que deviam passar por seus”). Substituir a discussão sobre as coisas (sobre a referência) pela discussão sobre a formação de objetos no interior do discurso, o conjunto de regras que permite que a criminalidade, por exemplo, possa ter-se tornado objeto de parecer médico, ou que a loucura possa tornar-se objeto de parecer psiquiátrico.
É precisamente a noção foucaultiana de “discurso” que interessará, por exemplo, a Edward Said, em O Orientalismo (1978), livro que funda sozinho o campo inteiro dos Estudos coloniais e pós-coloniais na Academia Norte-americana. “Orientalismo”, explica Said, nas páginas iniciais de seu livro, é a “enorme e sistemática disciplina por meio da qual a cultura européia conseguiu administrar – e até produzir – politicamente, sociologicamente, militarmente, ideologicamente, cientificamente e imaginariamente, o Oriente, durante o período pós-iluminista”.
Reconhecemos os termos das análises clássicas do Foucault de Vigiar e punir: a disciplina, em seu duplo sentido de saber/poder, que constitui, fabrica, ou produz o objeto Oriente, para dominá-lo ou controlá-lo. Eis o gesto foucaultiano, na verdade uma tradução do tema transcendental (kantiano): estudar a constituição do Oriente enquanto objeto discursivo, que não pode ser confundido com a cultura própria dos países do Oriente Médio, consiste em examinar as condições de seu aparecimento como construção ocidental enquanto objeto a ser dominado e outro simétrico inverso do Ocidente.
Mas é sobretudo enquanto produtor de subjetividades que o disciplinamento do binômio saber/poder contribuirá ao debate identitário americano. São os temas propostos em Vigiar e punir e A vontade de saber, respectivamente, do “exame” (criminológico ou psiquiátrico) e da “confissão”, por um lado, que vão colocar o problema da enunciação em primeiro plano. Foucault explica que a criação mais fecunda do sistema penitenciário não é a “detenção privativa da liberdade”, mas a criação do personagem do delinqüente que suplementa a prisão e duplica o delito.
Em A vontade de saber, por outro lado, delineia-se a polêmica proposição sobre a construção da sexualidade como categoria científica-política-social, produzindo-a (a matriz é sempre a da fabricação industrial) a partir das proibições e regulamentações de comportamentos que eram suspeitos de reprimi-la. A “tecnologia” ou o “dispositivo” sexual consiste no conjunto de técnicas concebidas com o intuito de maximizar a vida no bojo de um novo poder no século 19, o biopoder, constituindo quatro objetos e suas respectivas ciências: a sexualidade infantil (a pedagogia), a sexualidade feminina (como especialização da medicina), o controle da procriação (a demografia) e a perversão (como campo da psiquiatria).
Embora a palavra “identidade” não apareça nestes textos de Foucault, é a tradução dos personagens por identidades que se mostrará extremamente profícua para o debate americano. A objetivação/subjetivação da mulher como ser sexuado, por exemplo, é sua identidade constituída pelo saber/poder, forma aprisionada e limitada, determinada por aparelhos complexos de controle. Ao mesmo tempo é a forma possível com a qual pode contar qualquer movimento identitário de mulheres que pretenda se libertar dessa forma aprisionada.
Double-bind terrível e inescapável com o qual os Estudos de gênero deverão se confrontar (Teresa de Lauretis, por exemplo), que oporá um construtivismo radical (a identidade genérica é fabricada enquanto “personagem” do biopoder e é incapaz de dizer qualquer coisa de interessante sobre a mulher) a uma necessidade de recorrer, nem que seja estrategicamente, a uma quase-essência feminina como espaço comunitário político afirmativo e liberalizante da mulher, abrindo a possibilidade de constituição de um sujeito-mulher. Aqui, se juntam possivelmente as preocupações em torno do problema das “técnicas de si”, da transformação de si mesmo em sujeito, do último Foucault.
Um problema análogo coloca-se para os Estudos gays e lésbicos, que se reagruparão em seguida como Queer Theory. Enquanto antes do século 19, no direito canônico e civil, a sodomia era vista simplesmente como um ato proibido, a partir do século 19 – Foucault nos oferece a data de 1870 –, o homossexual torna-se um personagem, compreendido como um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida, uma morfologia, uma anatomia e uma fisiologia. A definição destas “sexualidades periféricas” no contexto da “implantação perversa” e da especificação dos indivíduos é a mesma da constituição de sexualidades ditas normais. Daí, o grande interesse dos Estudos de gênero (ou da Queer Theory) também pelas formas da masculinidade ou pela heterossexualidade vista como comportamento compulsório.
Dizer que a sexualidade é um efeito discursivo artificial (não-natural), um instrumento político-social e não uma positividade, uma realidade psicológica ou física não implica de maneira nenhuma dizer que ela seja pura e simplesmente discursiva, mas sim propor polemicamente um salutar antídoto a qualquer tentativa de fundamentar uma “teoria da sexualidade”. Novo double-bind identitário, mas cuja solução corajosa e arriscada poderia ser formulada da seguinte maneira: já que a sexualidade é pura fabricação do biopoder, por que não reinventar um modo corporal e de prazer que não seja o sexual, uma forma de experimentação coletiva e pessoal, que propusesse uma maneira nova e até agora desconhecida de relação com o corpo? David Halperin caminharia nesse sentido. É o tipo de ativismo nietzschiano de que falei no início.
JOÃO CAMILLO PENNA é professor no Departamento de Ciência da Literatura, na UFRJ. Publicou, dentre outros, “Este corpo, esta dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispano-americano” in Seligmann-Silva, Márcio (Org.). História-Memória-Literatura. O testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Editora Unicamp, 2003, e organizou, com Virgínia Figueiredo, A imitação dos modernos, de Philippe Lacoue-Labarthe. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
quinta-feira, 11 de novembro de 2021
Tijolinho: O destino de Anderson Ferreira
Quando foi anunciado que o presidente da República, Jair Bolsonaro(PL) iria filiar-se ao Partido Liberal, uma das razões apresentadas seria as facilidades que este partido teria no sentido dirimir questões estaduais que se apresentassem contraditórias ao projeto de reeleição do presidente. A situação do PP, por exemplo, seria bem mais complexa, uma vez que integrantes da legenda já teriam aventado, inclusive, engrossar as fileiras de apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT-SP). Tudo é possível neste nosso universo partidário, conforme já invocamos por aqui em mais de uma ocasião.
Estamos aqui tratando dos arranjos aliancistas estaduais que, não necessariamente, coincidem com os arranjos nacionais. Aqui em Pernambuco, por exemplo, as negociações deste partido caminhava para a formação de uma coalizão de forças que apoiariam o nome de Raquel Lyra(PSDB) para o Governo do Estado. Por enquanto Jair Bolsonaro(PL) não tem um palanque definido aqui no Estado. Esta coalizão de forças é formada pelo PL, pelo PSL, Cidadania e PSDB.
Ainda ontem, tivemos a primeira baixa. A Deputada Estadual Priscila Krause deixou o União Brasil e já recebeu convite para filiar-se ao Cidadania. Será vice na chapa encabeçada por Raquel Lyra(PSDB-PE), quando o seu antigo partido deve encampar a candidatura própria do prefeito de Petrolina, Miguel Coelho(União Brasil-PE). Agora é a vez do prefeito de Jaboatão dos Guararapes, Anderson Ferreira, afivelar as malas para tomar novos rumos partidários. Pelo andar da carruagem política, o presidente nacional da legenda, Valdemar Costa Neto, deseja que o partido, nos Estados, sigam a orientação nacional, o que significa compor o conjunjo de forças que somariam esforços para apoiar o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro. Por enquanto, nenhuma pista sobre o destino do voo, mas deve ser complicado para o prefeito, que já teria milhas acumuladas naquela legenda.