pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quarta-feira, 5 de março de 2014

A "fuga para adiante": E os EUA se auto-derrotaram na Ucrânia



04.03.2014

Os últimos dias viram impressionante aceleração nos desenvolvimentos, que criou situação totalmente nova. Em termos simples e claros, ocorreram os três seguintes importantes eventos:

1) Em Kiev, uma insurreição armada derrubou presidente eleito e substituiu-o por um regime revolucionário.

2) A Crimeia rompeu completamente com o resto da Ucrânia.

3) Uma insurreição contrarrevolucionária começou no leste da Ucrânia.

A situação no leste da Ucrânia é complexa, e não quero tratar disso nesse momento. Aqui, me proponho a re-fixar alguns fatos bem sabidos, organizá-los e fazer um exercício básico de "contrastar e comparar" os dois regimes/entidades bem claramente definidos que passaram a formar a Ucrânia: o regime revolucionário em Kiev (daqui em diante, a fórmula abreviada RRKiev); e o regime secessionista na Crimeia (daqui em diante, a fórmula abreviada RSCrimeia). 

Acho que esse exercício nos permitirá apreciar as decisões tomadas pelos diferentes governos, de apoiar um lado ou o outro, e nos fornecerá, espero, itens para discussão útil. Por fim, repito que só considerarei fatos bem sabidos e tentarei não fazer nenhuma afirmação excessivamente carregada de minhas opiniões pessoais, o que deixarei para a conclusão.

Comparemos, então o RRKiev e o RSCrimeia, por um conjunto básico de critérios.

1) Bases legais do regime:

RRKiev: chegou ao poder mediante derrubada violenta do último presidente legalmente eleito. Em seguida, um autodesignado grupo de ativistas políticos distribuiu entre eles os principais cargos do governo e foi à praça Maidan para obter a aprovação da multidão ali reunida. Alguns nomes parecem ter sido aprovados, outros foram vaiados, mas todos foram declarados aprovados. Não se sabe quantas pessoas havia naquele momento na praça Maidan, nem se alguém tem qualquer informação sobre quem estava ali.

RSCrimeia: chegou ao poder depois de declarar pacificamente que as autoridades locais assumiriam temporariamente todas as funções locais da autoridade federal que, naquele momento, já havia sido derrubada pelo RRKiev. Em algumas cidades, os ex-prefeitos nomeados pelo regime de Yanukovich foram substituídos por locais, também eleitos por aclamação de massas nas praças.

2) Legalidade das respectivas decisões:

RRKiev: Dado que o ex-presidente fugiu, mas nunca renunciou, nenhuma das decisões do RRKiev são legais, nem pela velha Constituição, nem pela nova.

RSCrimeia: O ato de assumir os poderes das autoridades federais foi ilegal; mas, considerando-se que a autoridade federal naquele momento já não existia, pode-se ver aí um caso de "força maior".
3) Apoio popular:

RRKiev: segundo muitos relatos, o RRKiev tem apoio da maioria no oeste da Ucrânia, na Ucrânia central, incluindo Kiev, e na Ucrânia norte-central; e tem apoio de uma minoria em algumas partes do leste da Ucrânia. Em outras palavras, e considerando a densidade populacional,[1] é altamente improvável que mais de 50% da população, nas áreas controladas pelo RRKiev, realmente apoie o regime.

RSCrimeia: Pela minha estimativa, a vasta maioria dos falantes de russo na Crimeia apoiam o RSCrimeia, algo da ordem de 95% ou mais; e acredito que considerável maioria dos tártaros também o apóiam. Mas, ainda que se assuma oposição de 100% dos tártaros e 15% de oposição entre falantes de russo e ucraniano, mesmo assim se tem nada menos que 75% de apoio ao RSCrimeia.

4) Patrões estrangeiros:

RRKiev: seja qual foi o grau de apoio popular ao RRKiev na parte da Ucrânia que controla, não há nenhuma dúvida de que os seus líderes políticos foram nomeados, basicamente, pelos EUA (foi o que disse a sra. Nuland). Além disso, também sabemos que os EUA gastaram 5 bilhões de dólares para derrubar o governo de Yanukovich. Quanto às gangues armadas que gradualmente encheram a praça Maidan, há vários relatos de que se tratava de grupos especialmente treinados do chamado Setor Direita, treinados nos estados do Báltico, na Polônia e no Canadá. Em outras palavras, o RRKiev é, da cabeça aos pés, invenção do ocidente.

RSCrimeia: pode-se especular sobre o que teria acontecido, se os militares russos não interviessem na Crimeia; mas o fato é que, sim, intervieram. Há fortes evidências de que os 'misteriosos' homens armados que apareceram repentinamente na Crimeia sejam parte das Forças Especiais russas, Spetsnaz GRU,[2] provavelmente a 3ª Brigada Independente Spetsnaz, que tem base na cidade de Toliatti, possivelmente suplementada com elementos da 15ª brigada ou da 31ª divisão de pacificadores. Em outras palavras, o RSCrimeia é plenamente apoiado pela Rússia, a qual também prometeu apoio financeiro.

5) Ideologia:

RRKiev: ninguém nega que o Partido Liberdade e o Setor Direita são neonazistas e racistas. Os demais partidos que apoiam o RRKiev podem ser descritos como "nacionalistas", mas nacionalistas do tipo que não se incomodam de trabalhar de mãos dadas com neonazistas (ambos, Tiagnibok e Iarosh receberam posições de destaque no novo governo). 

Nessa campo, também chama a atenção que as primeiras duas leia (ilegalmente) implantadas pelo (ilegal) "Parlamento (Rada) revolucionário foram leis para reautorizar a propaganda do fascismo, uma; e para revogar o status do russo como idioma oficial (agora, o RRKiev já "revogou essa revogação"), a outra. Os comícios dos nacionalistas estão cheios de fotos de Stepan Bandera e de símbolos neonazistas, que os ditos "moderados" não removem. O objetivo desses é uma Ucrânia unitária, à imagem e semelhança do oeste da Ucrânia.

RSCrimeia: não tem qualquer ideologia clara, absolutamente nenhuma. Não é insensato supor que alguns de seus apoiadores sejam comunistas, mas de modo algum significam alguma maioria. É movimento claramente pró-Rússia, o que implica que podem ser rotulados simultaneamente de "capitalistas" (a Rússia é sociedade capitalista e, possivelmente, de "putinistas", embora isso não esteja, de modo algum, confirmado. O seu objetivo é uma Crimeia multiétnica, que viva como estado soberano numa confederação ucraniana.

6) Prognóstico:

RRKiev: muito depende da situação no leste da Ucrânia, onde parece estar ganhando poder e decisão uma insurreição contra o RRKiev, o que pode levar a uma verdadeira guerra civil. Mas mesmo assumindo que nada aconteça no leste, o próprio Iatseniuk já disse claramente que não há dinheiro algum, e que todo o seu governo é um "governo kamikaze". O RRKiev não tem exército, nem política, nem nada e ninguém para garantir a lei e a ordem. A Rússia interromperá o apoio financeiro ao RRKiev e só venderá gás russo ao preço 'sem desconto'. Nesse ponto, uma explosão social é simplesmente inevitável. Já há falta de bens de consumo por todos os lados e muitas empresas e lojas permanecem fechadas.

RSCrimeia: a RSCrimeia tem absoluto monopólio do poder na Crimeia; e, graças às muitas deserções que aconteceram nas últimas 24 horas, a RSCrimeia já tem exército, polícia própria, forças especiais próprias (Berkut) e já tem até seu próprio serviço de segurança (o Serviço de Segurança da Ucrânia na Crimeia mudou de lado). Não só a Rússia prometeu ajudar financeiramente a RSCrimeia, como, também a RSCrimeia tem fonte garantida de recursos graças ao aluguel, à Rússia, das bases da Frota do Mar Negro e graças, também, ao fluxo intenso de ricos turistas russos (cerca de 6 milhões deles, por ano). Hoje, na Crimeia, todas as lojas e restaurantes estão abertos, funcionando normalmente, e os negócios prosseguem como sempre, sem qualquer sinal de tensões sociais.

Agora, consolidemos tudo isso:

- Os EUA e a União Europeia apostaram todo o próprio peso e toda a sua credibilidade política num regime que:

1) É ilegal e chegou ao poder mediante violência.
2) Não tem qualquer direito para 'aprovar' lei alguma.
3) Cujo apoio popular é, na melhor das hipóteses, muito duvidoso. 
4) Que é, da cabeça aos pés, invenção do ocidente.
5) Cuja ideologia é basicamente neonazista e/ou nacionalista fanática.
6) O qual, aconteça o que acontecer, está condenado ao desastre.

- A Rússia apostou todo o próprio peso e toda sua credibilidade política num regime que:

1) Tem instrumentos para demonstrar a própria legalidade, pelo menos no território que controla.
2) Que foi forçado a temporariamente extrapolar os próprios direitos legais.
3) Que claramente conta com pleno apoio da maioria da população.
4) Que pode contar, integralmente, com o poder bélico russo para sua proteção.
5) Cuja ideologia é social/liberal e pluralista.
6) Que tem todos os meios necessários para ser bem-sucedido.

Pelo acima exposto, entendo que é inegável que o ocidente não está apenas apoiando o lado errado; a decisão do ocidente é não só absolutamente imoral: também é espantosamente estreita, de visão curta e deformada. 

O que temos aí, na atitude do ocidente é caso claro do que se conhece como "fuga para adiante": alguém faz algo clara e obviamente mal feito; na sequência, assustado ante o que fez, com medo das consequências, em vez de parar e retroceder, decide acelerar e continuar adiante, com ainda mais velocidade. 

Diferente disso, a decisão dos russos não é só moralmente correta: ela é também pragmaticamente correta. Mas, aí, há mais do que simples pragmatismo.
Já escrevi há alguns dias[3] que, para os EUA, destroçar a Ucrânia é um meio de não entregá-la à Rússia. É lógica parecida com a da Guerra Fria, jogo de soma zero e um modo de obrigar a Rússia a pagar por manter-se independente do Império Anglo-sionista. Além disso, é crise claramente 'opcional' para os EUA, conflito que realmente não tem qualquer impacto na segurança nacional dos EUA. Para a Rússia isso é bem diferente.

Para a Rússia, o conflito na Ucrânia tornou-se questão existencial. Durante 20 anos a Rússia lidou com regimes ucranianos corruptos, oligárquicos, pró-ocidente e anti-Rússia, que chantagearam a Rússia e a Europa nos negócios dos gasodutos e que imprimiam selos com a efígie de Stepan Bandera (que Yushchenko tornou "herói da Ucrânia"). Mesmo quando a Ucrânia enviou neonazistas para apoia Rússia nada fez além denunciar os golpes (nenhum ocidente 'democrático' deu-lhe ouvidos). Mas, quando ficou claro que milhões de russos e de ucranianos falantes de russo estavam sendo ameaçados por neonazistas, e que, se não houvesse reação, seria inevitável um banho de sangue no leste da Ucrânia, a Rússia decidiu agir: não só para proteger seus cidadãos, ameaçados noutro país; também para se autoproteger.

Há outro fenômeno também em andamento. Diferentes dos EUA e da Europa, os russos tem memória muito mais longa. Enquanto no ocidente ninguém sequer se dá ao trabalho de lembrar-se disso, os russos nunca esquecem a promessa feita a Gorbachev, de que a OTAN não se moveria para o leste; os russos lembram-se dos EUA bombardeando e invadindo a Bósnia e o Kosovo; os russos lembram que o ocidente apoiou dos wahabistas chechenos e oligarcas judeus como Berezovsky; que o ocidente deu integral apoio ao ataque de Saakashvili contra as tropas de paz russas e o povo da Ossetia Sul; lembram-se da instalação de mísseis cercando a Rússia; lembram a guerra contra a Líbia; nunca esquecem o massacre da Síria, patrocinado por EUA e União Europeia. E, como um comentarista disse ontem: "dessa vez não se trata de sírios nem de ucranianos. Agora é conosco, trata-se de nós. Nós somos os próximos, na fila." 

Alguém escreveu, nos Comentários abaixo, que dei importância demasiada à decisão unânime na Duma e no Conselho da Federação Russa, de autorizar o uso da força, porque esses órgãos são controlados pelo Kremlin e apenas sacramentam tudo que Putin diga.

Primeiro, embora haja alguma verdade aí, não é absoluta e completa verdade. E esse tipo de argumento ignora, ou passa sem ver, a força da insatisfação crescente, até da ira, com que aqueles políticos reagiram, mais como resposta ao Kremlin, do que como se tivessem recebido ordens. Portanto, quando escrevi que "a Rússia está pronta para a guerra",[4] eu não exagerei.

É verdade que, no grande público, ninguém acredita que haverá guerra: a maioria dos russos acha que Obama, Merkel & Co. correrão espavoridos, no instante em que Putin mostrar-lhe os dentes. Mas não é essa a opinião, nem do Kremlin nem do Alto Governo russo. Esse pessoal SABE que muitas guerras podem começar pelas razões erradas, que o uso da força é sempre perigoso, que antes de usar força militar é indispensável pesar cada uma e todas as possíveis consequências, que todos os efeitos têm de ser cuidadosamente calculados e avaliados.

Eles sabem também que Obama é o pior e mais incompetente presidente da história dos EUA, e que eles não podem, em momento algum, pressupor que ele fará a coisa racional, pragmática, mesmo que só no interesse dele e dos EUA.

Não tenho dúvida alguma de que, quando os militares russos tomaram a decisão de dizer a Putin "podemos fazer", eles já tinham analisado detidamente até a improvável possibilidade de uma resposta militar dos EUA/OTAN, fosse para proteger o regime em Kiev, ou mesmo na Crimeia (onde, no passado, uma coalizão internacional liderada por potências Anglo já atacou a Rússia). 

Os russos não fazem coisas como mandar seus Marines para Beirute ou para a Somália. Se usam força militar comprometem-se com o que fazem. Nesse caso, é óbvio que entenderam que não tinham outra escolha além de traçar linha muito grossa e clara na areia, para impedir qualquer tipo de agressão norte-americana 'por procuração'.

Obama e os neocons:

Vários e-mails sugeriam que os neocons impuseram essa situação a Obama, que não precisa de nada disso. Não discordo completamente dessa versão. Todos sabemos que os Republicanos negociaram com os iranianos pelas costas de Carter; todos sabemos que os Republicanos muito se orgulham de sua tradição de não dar importância a legalidades. E, de fato, o próprio governo de Obama está cheio de neoconservadores. 

Mas nada disso pode servir como desculpa.

Ainda que Obama se tivesse deixado prender, refém de uma operação comandada pelas costas dele, nem por isso tinha de agir como perfeito covarde e apoiar a operação, quando afinal apareceu à vista de todos. Sim, sei que Kennedy foi assassinado porque, dentre outras coisas, não apoiou a ação da Baía dos Porcos. E daí?! Isso só comprova o meu ponto: Kennedy não era covarde sem espinha dorsal; e isso, precisamente, é o que Obama é. Como também são a Merkel, Hollande e o resto da União Europeia.

E assim vemos os tais 1%, sempre ativos: reuniões de emergência no quartel-general da OTAN, condenações à Rússia no G7, Kerry a fazer mais ameaças por televisão e Powers, na ONU. Todos eles estão em surto de fuga para adiante. Têm esperanças de que, quanto mais palavras disserem, quanto mais altos e grandiloquentes as 'declarações' que façam, melhor, até que alguma coisa se altere em campo. Nada se alterará. Esses rituais supersticiosos, esse pensamento mágico, não funciona na vida real. 

Agora, há duas possibilidades: ou começa uma guerra civil no leste da Ucrânia, ou o RRKiev entra simplesmente em colapso e desaparece no ar (possibilidade muito real). Afinal, o que pode fazer sem dinheiro e sem recursos básicos? Cantar o hino da Ucrânia e culpar Moscou por tudo? Não parece ser bom projeto ou programa.

Por mais que a imprensa-empresa sionista ocidental dedique-se a esconder esse fato, ninguém - quero dizer NINGUÉM, mesmo - no novo regime tem qualquer ideia sobre o que fazer para enfrentar os problemas atuais. Até agora, o melhor que conseguiram foi nomear um oligarca multibilionário para governar o leste e o sudeste da Ucrânia. Vejam, por exemplo, essa manchete do Kyiv Post:[5] 

"Oligarcas avançam para salvar a soberania da Ucrânia"

Seria hilário, não fosse tão trágico: o regime revolucionário que se diz "anticorrupção", nomeou oligarcas para salvarem a Ucrânia. Quando vi essa manchete senti, realmente, que estamos entrando em território "Além da Imaginação", lugar qualquer onde podem acontecer as coisas mais ridículas, mais loucas. Disso se fazem bons filmes, mas, em política, é receita de desastre. 

Claro que os tais oligarcas têm mais dinheiro que o RRKiev, mas fizeram o dinheiro deles roubando a Ucrânia, até deixá-la como está. E se alguém aí pensa que os russos negociarão com esses dois bandidos, estão sonhando.
Como escrevi em novembro, as portas do inferno estão-se abrindo para a Ucrânia.[6] O mais impressionante é que toda a classe governante do ocidente inteiro não só parece decidida a empurrar a Ucrânia lá para dentro, como, também, já corre o risco de entrar junto.

Juro pela minha alma: não consigo imaginar política mais autodestrutiva, perigosa, imoral e estúpida. 

[assina] The Saker 


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[1] Mapa populacional emhttp://ukrexport.gov.ua/i/imgsupload/image/population_density.gif 
[2] Sobre essas forças especiais, que já tinham 20 anos de existência, quando a KGB foi criada, ver http://en.wikipedia.org/wiki/Spetsnaz_GRU 
[3] 21/2/2014, "Geopolítica do conflito ucraniano: de volta ao básico", The Vineyard of the Saker, traduzido emhttp://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/02/geopolitica-do-conflito-ucraniano-de.html 
[4] 1/2/2014, "Obama piorou muito a situação na Ucrânia. Agora, a Rússia está pronta para ir à guerra", The Vineyard of the Saker, traduzido em http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/03/obama-piorou-muito-situacao-na-ucrania.html .
[5] http://www.kyivpost.com/content/business/oligarchs-step-in-to-save-ukraines-sovereignty-338116.html 
[6] 2/12/2014, "Ucrânia 'colorida': abrem-se as portas do inferno", The Vineyard of the Saker, traduzido emhttp://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/12/ucrania-colorida-abrem-se-as-portas-do.html 

Leblon, FHC e o conformismo inconformado

LEBLON, FHC E O
CONFORMISTA INCONFORMADO

O surgimento do PT e a vitória de um operário em 2002 e 2006, que fez a sucessora em 2010, causaram um ruído insuportável no escopo biográfico e político de FHC.




Conversa Afiada reproduz editorial de Saul Leblon, extraído da Carta Maior:

O CONFORMISTA INCONFORMADO



O surgimento do PT e a vitória de um operário em 2002 e 2006, que fez a sucessora em 2010, causaram um ruído insuportável no escopo biográfico e político de FHC

por: Saul Leblon 

Resgatar  o legado de Fernando Henrique Cardoso é tido como o  grande trunfo da campanha conservadora em 2014.

O escrutínio eleitoral desse patrimônio, como se sabe, não contabiliza  um saldo favorável.

‘Por acanhamento do próprio tucanato’ –alega o PSDB, que agora estaria disposto a redimir a herança de seu maior quadro.

Nas derrotas presidenciais de 2002, 2006 e 2010 a coalizão conservadora preferiu, ao contrário,  guardar essa carta  na manga do esquecimento.

Havia respaldo nas estatísticas sociais e econômicas, bem como nas enquetes de prestígio popular, à conveniência da decisão.

Talvez tenha chegado a hora de voltar a Fernando Henrique Cardoso, de fato,  não propriamente pelo seu legado presidencial.

Mas pela atualidade que a tensão da história latino-americana  –e brasileira, claro—veio adicionar à coerência do seu percurso intelectual, da sociologia à Presidência da República.

O próprio tucano ensaia esse aggiornamento das linhas estratégicas do projeto conservador, do qual ele se tornou uma referência.

Em artigo recente (‘Diplomacia inerte’), FHC faz a atualização do quadro analítico que desenvolveu como sociólogo, depois adotou como presidente, para responder aos desafios do desenvolvimento na periferia do capitalismo.

“(…) houve um erro estratégico desde o governo Lula na avaliação das forças que predominariam no mundo e da posição do Brasil na ordem internacional”, diz o ex-presidente.

O cabo eleitoral número um do PSDB reafirma o fatalismo implícito no festejado texto de 1967, ‘Dependência e desenvolvimento na América Latina’, escrito com Enzo Falletto, no Chile, quatro anos depois do golpe no Brasil, e publicado em 1973, ano da queda de Allende.

Os dois acontecimentos trágicos pareciam dar razão à analise sociológica sobre a inviabilidade de um modelo de desenvolvimento soberano na região.

O artigo do último domingo reitera essa inexorabilidade diante do que aponta como sendo  ‘as forças que predominariam no mundo’ na última década.

“Nossa diplomacia guiou-se pela convicção de que um novo mundo estava nascendo e levou o presidente (NR Lula), em sua natural busca de protagonismo, a ser o arauto dos novos tempos. Não me refiro ao que eu gostaria que ocorresse, mas às tendências que objetivamente se foram configurando (…)  A convicção implícita era a de que pós-Muro de Berlim, depois de breve período de quase hegemonia dos Estados Unidos, (dos) equívocos da política externa daquele país…assistiríamos a uma correção de rumos. (essa visão)  encontra eco nos sentimentos de boa parte dos brasileiros, inclusive de quem escreve este artigo. Sempre sonhamos com um mundo multipolar (…)  Nisso é que o governo Lula calculou mal.(…)  o Brasil faz reuniões com países árabes (…) abre embaixadas nas mais remotas ilhas,(enquanto) a Petrobras é expropriada pela Bolívia, interfere contra o sentimento popular em Honduras, além de calar diante de manifestações antidemocráticas quando elas ocorrem nos países de influência ‘bolivariana’. Noutros termos: escolhemos parceiros errados, embora, em si mesma a relação Sul/Sul seja desejável, e menosprezamos os atores que estão saindo da crise como principais condutores da agenda global (…)”

Desguarnecido dos préstimos da toga colérica, que de herói da ética se confessou um delinquente jurídico ao manipular  a dosimetria na AP 470,  o conservadorismo renova  assim o martelete do suposto anacronismo geopolítico dos projetos progressistas.

A dependência é estrutural, dizia FH em 1967; a dependência é virtuosa, adicionaria FH presidente; a dependência é inexorável e o Brasil do PT perdeu seu tempo ao afrontá-la, diz o redimido patrono do PSDB.

O ponto de partida repisado no artigo de domingo encontrou suas bases empíricas em um texto que antecede o  livro de 1967 da dupla FHC/Faletto.

Em 1964, dois meses antes do golpe de Estado,  seria publicada uma pesquisa premonitória, ‘Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico’, coordenada pelo então sociólogo da USP.

Nela,  Fernando Henrique encontraria o fundamento da futura  visão sobre a dependência.

A pesquisa  desnuda o  equivoco de boa parte da esquerda, então, que via na burguesia nacional um aliado dos trabalhadores do campo e da cidade na luta pelo desenvolvimento industrial, contra o imperialismo e o atraso  agrário.

O levantamento coordenado por FHC não apenas desmentia o idílio.

Ele  antecipava a vontade predominante no empresariado industrial brasileiro de se aliar ao capital estrangeiro, ao largo de Jango, dos sindicatos e das reformas de base.

Em síntese, as bases burguesas do projeto nacional e popular eram tão sólidas quanto se revelaria o dispositivo militar de Jango.

O esquematismo importado das sociedades europeias viveu seu teste do pudim dois meses depois de publicado o diagnóstico e deu razão ao sociólogo.

Três anos mais tarde, com Faletto, ele ampliaria essa constatação, dando-lhe o escopo de uma matriz de validade latino-americana.

Focado na realidade efetiva dos interesses das classes dominantes, que opunha o capital às massas populares na disputa pela destinação do excedente econômico na região, ‘Dependência e Desenvolvimento na América Latina’, sinalizava a complementariedade de propósitos entre o capital local e o estrangeiro.

Tal convergência, antes de levar à estagnação pela atrofia do mercado interno, em decorrência do arquivamento das reformas de base, permitiria um padrão de desenvolvimento associado e dependente.

Ao privilegiar os conflitos de interesse no interior da sociedade à margem de idealizações ideológicas, o livro representou um avanço, sem  todavia definir um novo marco histórico.

Faltava-lhe abordar o essencial: a problematização dos conflitos inerentes à endogamia entre o capital local e o internacional  e o seu custo social.

A ausência desse olhar dialético e engajado o levaria a amplificar aquilo que corretamente criticava nos esquematismos de uma parte da esquerda: trocava-se a materialidade da luta de classes por um fatalismo alheio às contradições transformadoras do processo.

Até que ponto seria viável um desenvolvimento que alijava a grande maioria da sociedade das decisões relativas ao seu destino e à destinação do excedente econômico?

A visão de FH, de certa forma, repetia o tropeço dos que viam no desenvolvimento periférico quase que  uma atividade reflexa do centro hegemônico.

A dinâmica interna estaria assim previamente dada; independente da prática política, ela orbitaria como um lubrificante, sem nunca alterar o núcleo duro da engrenagem.

Com a exacerbação da lógica financeira, a partir da desregulação propiciada pelas derrotas da esquerda mundial nos anos 70/80, esse enredo mecanicista ganha a robustez de um sujeito histórico hegemônico.

Os mercados autorreguláveis, seus agentes racionais e as agencias de risco assumem o rosto genérico de um interlocutor dotado de mando e ubiquidade.

Esse determinismo  inquestionável, sob a ótica conservadora,  daria estofo ao  projeto político do sociólogo que exerceu  a Presidência da República de 1995 a 2002, disposto a  personificar sua teoria.

E assim o fez.

A saber: com as privatizações, o desmonte do Estado (‘sepultar a Era Vargas’) , o descompromisso  estatal com as grandes obras de infraestrutura, a renúncia a uma política industrial, a redução do Itamaraty a um anexo do Departamento de Estado norte-americano, a desmoralização do planejamento econômico,  a terceirização do interesse público a agentes privados, a corrosão do poder aquisitivo dos trabalhadores, a desqualificação dos sindicatos e das organizações sociais, o sopão à pobreza (cuja sorte seria entregue à transição demográfica), a derrisão de tudo o que remetesse ao interesse público e, finamente, o deslumbramento constrangedor de um cosmopolitismo provinciano, festejado no Presidente que falava ‘línguas’ e era bajulado no exterior pelo bom comportamento.

Aquilo que em princípio era só  uma constatação  histórica, que desmentia o flerte da elite local com a agenda do desenvolvimento soberano,  transformar-se-ia na determinação política de fazer da servidão uma virtude.

O surgimento do PT e a vitória desconcertante do líder operário em 2002 e 2006 –que fez  a sucessora em 2010–  introduziu um ruído insuportável no escopo desse conformismo estratégico com a sorte do país e de sua gente.

Para revalidar a teoria  –e os interesses aos quais ela consagra uma dominância irreversível, era preciso desqualificar a heresia de forma exemplar.

Não apenas  derrotá-la nas urnas.

Quando a realidade teima,  a redenção requer o açoite inapelável da moral.

E parecia que Joaquim Barbosa seria o anjo negro de origem humilde, desfrutável em mais de um sentido, capaz de executar a purga saneadora  da história maculada pelo ‘voluntarismo petista’, como espicaçou FH em outro artigo (‘Estadão’, 03-03-2014).

Não foi assim que se deu.

O artigo deste domingo retoma então os marcos analíticos de uma biografia em rota de colisão com a realidade e exorta o país a aceitar o seu confinamento no tabuleiro geopolítico que os vencedores manejam à revelia das ilusões multipolares.

Como em 1967, não se cogita discutir os requisitos para disputar a hegemonia do processo.

Não há atores e interesses capacitados a operar essa difícil disputa, sugere o ex-presidente.

Nem no Brasil, nem em outras latitudes da  América Latina, onde hereges  verão  igualmente  fracassar  uma agenda social desprovida de sustentação econômica e inserção mundial.

A demonização das experiências venezuelana, boliviana e argentina faz parte desse tour de force  que transforma o noticiário internacional em uma extensão da guerra interna contra a ingerência do Estado e da democracia nas diretrizes do desenvolvimento.

FHC e assemelhados tem razão ao apontar a espiral de desequilíbrios introduzida na matriz econômica brasileira desde 2003.

De fato, mais de 50 milhões de novos consumidores aportaram no mercado em apenas dez anos; 17 milhões de empregos foram criados no período; o salário mínimo registrou um aumento real superior  a 60%.

O conjunto não apenas invadiu o mercado, mas a teoria de 1967 e com ela asfixiou o espaço politico e eleitoral d conservadorismo.

Um novo protagonista histórico, imprevisto e improvável na mecânica fatalista da dependência conservadora exige seu espaço na democracia depois de tê-lo conquistado no mercado:  o consumo das famílias brasileiras cresce ininterruptamente há 120 meses; tempo suficiente para uma geração nascer, crescer e completar dez anos.

Como devolver essa pasta de dente ao tubo estreito da dependência se a disputa se acirrou com demandas crescentes por infraestrutura, serviços de qualidade, habitação, participação, segurança, lazer etc?

O conformismo de 1967  esgotou o prazo de validade e com ele a pertinência da agenda conservadora abrigada no PSDB e assemelhados?

Não, sugere FHC, se o caos urbano –e o constrangimento externo decorrentes de desequilíbrios na capacidade de pagar importações crescentes– fizer regredir os avanços da última década. 

Não se o torniquete financeiro internacional  –ancorado nas agencias de risco e na potencial fuga de capitais–  tanger a pasta  com a  chibata dos juros altos, o estalo do arrocho fiscal, a volta do desemprego e reversão dos ganhos salariais.

A hora do acerto de contas chegou, brada o conservadorismo latino-americano de olho na reversão do ciclo mundial de liquidez que, de fato, restringe a   margem de manobra progressista para mitigar a disputa pelo excedente.

É um pedaço da verdade. Mas a exemplo do que constatou o livro de 1967, não é toda a verdade.

O Brasil  dispõe dos requisitos objetivos para um salto industrializante que irradie a produtividade necessária aos novos avanços em direção à cidadania plena de sua gente.

A saber: 

1) as empresas instaladas no país dispõem de uma massa de capital monetário suficiente,  hoje alocado na roleta rentista (que inclui a dívida pública; e em repouso em paraísos fiscais, onde Brasil figura como o 4º país com maior volume de depósitos: US$ 520 bi, ou mais de R$ 1 trilhão, segundo a organização inglesa “Tax Justice Network);

2) o mercado de massa brasileiro forma hoje, sozinho, o 16º maior país do mundo em movimento econômico;

3) a economia dispõe de sólidas bases de recursos naturais, incluindo-se o impulso industrializante inerente à exploração das maiores reservas de petróleo descobertas no planeta neste século. 

Falta a amarração política desses ingredientes, processo que guarda semelhança com a disputa de um gigantesco jogo de truco estratégico.

A iniciativa privada mantém o pé no freio do investimento e a emissão conservadora  exaspera a guerra de expectativas para desencorajar o capital privado a  apostar no país.

Derrotado o ‘lulopetismo’, o lucro será maior, sugere-se.

Quem pode induzir a  gigantesca escala de investimentos e o salto tecnológico que os oligopólios globais e seus associados locais – assim convertidos, como previa FHC em 1967–  se recusam a deflagrar?

Para escapar ao fatalismo conservador, e à  hipertrofia autoritária do Estado verificada  na ditadura, só existe um caminho:  encarar o fortalecimento da democracia participativa como um requisito indispensável à reordenação do desenvolvimento brasileiro.

Entenda-se por isso a criação dos instrumentos que forem necessários à ampla repactuação de metas e prazos  que tornem críveis as linhas de passagem entre as urgências da sociedade  e as possibilidades efetivas do crescimento.

Antes  que a crispação conservadora resulte em um endosso ao fatalismo embutido em ‘Dependência e Desenvolvimento na América Latina’, será preciso escrever na prática uma outra referência histórica que liberte a democracia da passividade a que foi condenada no arcabouço conservador.

‘Democracia Social e Desenvolvimento na América Latina’ é um bom título para esse novo período à espera do seu autor coletivo.
(Publicado originalmente no Conversa Afiada)

Ucrânia: Putin conteve Obama


04.03.2014 | Fonte de informações: 

Pravda.ru

 
Ucrânia: Putin conteve Obama. 19913.jpeg
Russo sendo torturado por Ucranianos

Os EUA entraram em novo surto de excepcionalismo, com o presidente Barack Obama a ameaçar a Rússia, sobre respeitar a soberania da Ucrânia e não desestabilizar a região.

Por "excepcionalismo norte-americano" designa-se a capacidade de Washington, , para excepcional arrogância e excepcional dizer uma coisa e fazer outra, capacidade aparentemente sem limites.

Obama ainda não acusou a Rússia diretamente de "invasão militar" no país destroçado pela crise, mas essa é inferência clara, se se ouve o que ele disse na conferência de imprensa desse fim de semana. Numa ameaça velada de confrontação militar, o presidente dos EUA 'avisou' que haverá "custos" para Moscou.

"Qualquer violação da soberania e da integridade territorial da Ucrânia será profundamente desestabilizadora e os EUA unem-se à comunidade internacional para afirmar que haverá custos [pela violação]" - disse Obama, em declaração à imprensa, redigida às pressas, em Washington, na 6ª-feira.

A Casa Branca está obviamente transtornada pelas notícias de movimentação de tropas russas pela península da Crimeia, no sul da Ucrânia. Moscou diz que sua presença militar na república autônoma da Crimeia na Ucrâni está plenamente de acordo com tratado vigente há muito tempo, que a autoriza a manter soldados estacionados ali, como parte da guarnição de sua base naval no Mar do Norte.

Esse acordo foi renovado em 2010, entre Moscou e Kiev, por mais 20 anos, assegurando a presença militar russa na Crimeia, especialmente na base naval de Sevastopol, onde está ancorada a Frota do Mar Negro russa.

O embaixador russo à ONU, Vitaly Churkin, negou que a Rússia tivesse invadido território da Ucrânia e disse que "Estamos operando sob os termos desse acordo [com a Ucrânia]." (...)

Há uma ironia risível nos protestos de Obama. Os recentes aparentes movimentos militares dos russos acontecem depois de meses de desestabilização da Ucrânia patrocinada pelos EUA. Essa interferência ilegal e clandestina sapateou durante muito tempo sobre a soberania ucraniana; exatamente o que, agora, ironicamente, Obama acusa o presidente Obama, de estar fazendo. (...) Washington invadiu a Ucrânia com agentes da CIA e com milhares das chamadas 'organizações não governamentais', e o faz desde o início dos anos 1990s - sempre com o objetivo de agitar uma mudança de regime na ex-República Soviética.

Victoria Nuland, do Departamento de Estado dos EUA disse, ela mesma, recentemente, que Washington "investiu" cerca de $5 bilhões para "promover a democracia" (quer dizer, em subversão e sedição) na Ucrânia ao longo das últimas duas décadas.

A crise eclodiu quando o enfraquecido presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, desapareceu do próprio gabinete, semana passada, e pediu asilo à Rússia. O parlamento ucraniano, depois disso, foi invadido por seus opositores patrocinados pelo ocidente e instalou-se um governo provisório. Washington e Bruxelas rapidamente reconheceram a suposta nova autoridade em Kiev. Mas a Rússia, amparada em sólido argumento legal, denunciou a derrubada do presidente eleito Yanukovych e seu governo, como golpe de estado.

Os tumultos na Ucrânia, sim, tem todas as marcas de operação para 'mudança de regime' comandada por Washington. Desnecessário dizer que se trata de interferência absolutamente criminosa, que zomba da lei internacional. O alvo final dessas operações, como foi pretensiosamente exposto no início dos anos 1990s por Zbigniew Brzezinski e outros estrategistas do Império dos EUA, sempre foi a desestabilização da própria Rússia.

Agora, ridiculamente, o novo presidente-fantoche-de-Washington em Kiev, Oleksandr Turchynov, pôs-se a acusar forças russas de "tomar e capturar" o parlamento regional e outros prédios públicos na Crimeia, ao sul da Ucrânia. (...)

Até agora, o presidente Vladimir Putin da Rússia manteve-se em silêncio. Mas Putin conhece muito bem a infinita capacidade de Washington para a mentira e a hipocrisia, e também sabe da agenda clandestina de Washington para 'mudanças de regime' - agenda que os EUA ainda seguem contra a Síria, aliada árabe da Rússia.

Por hora, Moscou parece interessada em agir em termos de calma legalidade e jogando pelas regras. Só fez dizer que a presença de soldados russos na Crimeia é parte de acordo militar bilateral legal e vigente, com a Ucrânia.

Mas os norte-americanos sabem que, de fato, o que Putin disse foi: "Querem jogar sujo, OK. Também sabemos jogar sujo. Agora, deem o fora daqui." (...)

Putin está absolutamente correto, ao impor um marcador militar não dito às ambições de Washington sobre a Ucrânia, exatamente como fez quando os norte-americanos tentaram intrometer-se militarmente na Ossetia Sul, em 2008, usando como braço armado a Geórgia, agente da OTAN.

Os EUA são caso excepcionalíssimo de arrogância e desconsideração pela lei internacional; por isso não entendem a linguagem da diplomacia. A única linguagem que os EUA entendem, como argumento contra sua força bruta, é a força bruta. ***

2/3/2014, Finian Cunningham, PressTV, Irã

Lúcio Centeno: Acordando no Alabama dos anos 50


publicado em 5 de março de 2014 às 8:33

Brasil:  12(6) anos de escravidão
por Lúcio Centeno, do Levante Popular da Juventude, via Facebook
Um negro livre é sequestrado nos Estados Unidos, no ano de 1841. Vendido como escravo, Soloman Northup é obrigado a trabalhar durante 12 anos nas plantações do estado da Louisiana. Vencedor do Oscar de melhor filme, 12 anos de escravidão é baseado na autobiografia de Soloman Northup, publicada em 1853, em que ele próprio registra sua saga para retomar o estatuto de homem livre, no contexto de uma sociedade escravista.
O filme do diretor Steve McQueen é uma obra feita para chocar, não é possível ficar indiferente ao assistí-lo. Assim como os personagens da trama, os espectadores são “violentados” com a história de Soloman. No entanto, a maior virtude do filme não é por ser uma representação ou uma denúncia de um período histórico, mas por sintetizar a gramática social racializada própria de sociedades coloniais, como a brasileira. 12 anos de escravidão não fala apenas sobre o regime escravista, mas sobre o racismo contemporâneo.
Soloman Northup não era um escravo, de acordo com o ordenamento jurídico de sua época. Era um homem livre, assim como os demais brancos. Em termos comportamentais vestia-se como um branco. Sabia ler e escrever, algo que uma parcela considerável dos seus contemporâneos brancos não dominava. Não realizava trabalhos braçais como os escravos, era um músico profissional.
Todos esses atributos não foram suficientes para Soloman gozar da sua condição de homem livre. Assim como outros milhares de afro-americanos livres, Soloman foi raptado e vendido como escravo, da mesma forma que seus ancestrais na África.
Mas o que isso tem a ver com o Brasil? Vivemos em uma República democrática que celebra neste ano 126 anos da abolição da escravatura.
No entanto, 12 anos de escravidão provoca-nos a pensar sobre esta transição.
A pergunta que se impõe é:  se a condição de homem livre de Soloman não foi suficiente para que seu corpo não fosse tratado como propriedade de outrem, porque a igualdade jurídica, entre negros e brancos, afirmada em nossa constituição, asseguraria a massa negra do povo brasileiro a efetiva superação de seu antigo estatuto de sub-humanos?
Na sociedade brasileira recorrentemente emergem fatos que questionam a existência de uma igualdade jurídica entre brancos e negros, para não falar em uma igualdade ontológica (entre “humanos” e “sub-humanos”).
As reiteradas denúncias da existência de trabalhadores vivendo ainda em situação análoga à escravidão, seriam o exemplo mais óbvio dessa diferenciação.
O caso do desaparecimento do pedreiro Amarildo no Rio de Janeiro, tornou-se símbolo de uma prática policial bastante difundida nas periferias brasileiras, o tribunal de rua.
A onda crescente de justiçamentos contra supostos criminosos, invariavelmente negros, acorrentados a postes, e linchados publicamente com a cumplicidade de setores da mídia.
Como não associar as fotos dessas agressões com as representações de um Pelourinho que estão em nosso imaginário sobre a escravidão?
A reação histérica frente aos Rolezinhos nos shoppings de São Paulo revelam a existência de uma nítida segregação espacial, onde a parcela negra da população só entra sob uma condição: não se fazendo visível.
Quando isso não ocorre, dormimos sob a égide do Código Civil brasileiro, e acordamos no Alabama dos anos 50.
A população negra no Brasil vive cotidianamente em uma situação de instabilidade jurídica. Sua cidadania existe é claro, mas a qualquer momento pode ser sequestrada tal como a de Soloman foi.
Nestes 126 anos de abolição da escravidão, o processo de estratificação social se complexificou cada vez mais. O desenvolvimento capitalista em nosso país não suplantou esta estrutura social racializada, pelo contrário se acoplou nela para enrijecer-se.
Não podemos correr o risco de esquecer o legado vivo da escravidão, sob pena de não interpretarmos corretamente o nosso país.
Ao escrever a sua autobiografia, após se libertar do jugo da escravidão, Soloman Northup, nos ajudou a manter a consciência sobre esse legado. Amarildo não conseguirá fazer o mesmo.
(Publicado originalmente no Viomundo)

Temperatura alta entre PMDB e PT



Nas últimas horas, aumentaram as tensões entre o PMDB e o PT. Problema de diplomacia emendas e cargos. O Presidente do PT, Rui Falcão, teve um encontro com os morubixabas da legenda peemedebista e talvez tenha sido franco demais ao ecoar junto aos peemedebistas a avaliação que o Planalto faz sobre a insatisfação do aliado. O PMDB, sobretudo o ligado ao Deputado Paulo Cunha,não cede a esse tipo de bravata. A relação do deputado com a presidente Dilma sempre foi muito conflituosa. Uma canetada liberando emendas ou nomeando alguém pelo Diário Oficial teria maior efeito. De fato, a presidente Dilma já está cansada dessas chantagens, mas, em nome, da preservação dos interesses em comum, Rui Falcão talvez devesse ter sido mais comedido. Hoje Dilma teria um encontro com o presidente Lula para ajustarem as próximas ações em relação à sua campanha de reeleição. Num momento, digamos assim, de turbulência. De temperatura alta. Mesmo sabendo dos prejuízos republicanos dessa aliança, em nome da realpolitik, alguém precisa habilitar-se a jogar um balde de água.

Barbosa, a marionete do golpe, morreu pela boca

Barbosa, a marionete do golpe, morreu pela boca

Enviado por  on 27/02/2014 – 4:25 am
O escritor argentino Ricardo Piglia, num de seus ensaios, propõe uma tese segundo a qual um conto oferece sempre duas histórias. Uma delas acontece num descampado aberto, à vista do leitor, e o talento do artista consiste em esconder a segunda história nos interstícios da primeira.
Agora sabemos que não são apenas escritores que sabem ocultar uma história secreta nas entrelinhas de uma narrativa clássica. O ministro Luís Roberto Barroso nos mostrou que um jurista astuto (no bom sentido) também possui esse dom.
Esta é a razão do ridículo destempero de Joaquim Barbosa. Esta é a razão pela qual Barbosa interrompeu o voto do colega várias vezes e fez questão de, ao final deste, vociferar um discurso raivoso e mal educado.
Barbosa sentiu o golpe.
Houve um momento em que Barbosa praticamente se auto-acusou: “o que fizemos não é arbitrariedade”. Ora, o termo não fora usado por Barroso. Barbosa, portanto, não berrava apenas contra seu colega. Havia um oponente imaginário assombrando Barbosa, que não se encontrava em plenário, mas ele sentiu sua presença enquanto ouvia Barroso ler, tranquilamente, seu voto.
O oponente imaginário são os milhares de brasileiros que vem se aprofundando cada vez mais nos autos da Ação Penal 470, acompanhando os debates do Supremo Tribunal Federal, ajudando alguns réus a pagar suas multas, dando entrevistas bem duras em que denunciam os erros do julgamento, e constatando, perplexos, que houve, sim, uma série de erros processuais e arbitrariedades.
Barroso contou duas histórias. Uma delas, no primeiro plano, era seu voto. Um voto tranquilo e técnico. Só que nada na Ação Penal 470 foi tranquilo e técnico, e aí entra a história subterrânea, por trás do cavalheirismo modesto de Barroso.
E aí se explica a fúria de Barbosa.
A história secreta contada por Barroso, com uma sutileza digna de um escritor de suspense, de um Edgar Allan Poe, com uma ironia só encontrada nos romances de Faulkner ou Guimarães Rosa, é a denúncia da farsa.
Aos poucos, essa história subterrânea virá à tôna. Alguns observadores mais atentos já a pressentiram há tempos.
O novo ministro, antes mesmo de ingressar no STF, entendeu que há um muro de ódio e violência à sua frente, construído ao longo de oito anos, cujos tijolos foram cimentados com preconceito político, chantagens, vaidade e uma truculência midiática que só encontra paralelo nas grandes crises dos anos 50 e 60, que culminaram com o golpe de Estado.
Sabe o ministro que não é ele, sozinho, que poderá desconstruir esse muro. Em entrevista a um jornal, o próprio admitiu que estava assustado com a violência da qual já estava sendo vítima: o médico de sua mulher, sem ser perguntado, disse a ela que não tinha gostado do voto de seu marido, e suas filhas vinham sendo questionadas na escola por colegas e professores.
O Brasil vive um tipo de fascismo midiático cuja maior vítima (e algoz) é a classe média e os estamentos profissionais que ela ocupa.
É a ditadura dos saguões dos aeroportos, das salas de espera em consultórios médicos, dos shows da Marisa Monte.
Nos últimos meses, eu tenho feito alguns novos amigos, que tem me dado um testemunho parecido. Todos reclamam da solidão. A mãe rodeada de filhos “coxinhas”. O pai que é assediado, às vezes quase agredido, pelas filhas reacionárias. A executiva na empresa pública isolada entre tucanos raivosos. Alguns, mais velhos, encaram a situação com bom humor. Outros, mais jovens, vivem atordoados com as pancadas diárias que levam de seus próximos.
No entanto, o PT é o partido preferido dos brasileiros, ganha eleições presidenciais, aumenta presença no congresso e pode ganhar novamente a presidência este ano, até mesmo no primeiro turno.
Por que esta solidão se tanta gente vota no partido?
Claro que voltamos à questão da mídia, que influencia particularmente as camadas médias da sociedade, à esquerda e à direita. A maioria da classe média tradicional, hoje, independente da ideologia que professa, odeia o PT, idolatra Joaquim Barbosa, e lê os livros sugeridos nos cadernos de cultura tradicionais.
Eu conheço um bocado de artistas. Hoje são quase todos de direita, embora a maior parte se considere de esquerda. Todos odeiam Dirceu, sem nem saber porque. E me olham com profunda perplexidade quando eu tento argumentar. Como assim, parecem me perguntar, com olhos onde vemos rapidamente nascer um ódio atávico, irracional, como assim você não odeia Dirceu?
Eu tento conversar, com a mesma calma de Barroso, mas não adianta muito. Eles reagem com agressividade e intolerância.
Pessoas em geral pacatas se transformam em figuras raivosas e vingativas. O humanismo, que tanto fingem apreciar nos europeus, mandam às favas ao desejar que os réus petistas apodreçam no pior presídio do Brasil.
Eu mesmo costumo usar os mesmos termos de Barroso. “Respeito sua opinião”, eu digo. Às vezes até procuro elogiar o interlocutor, numa tentativa ingênua e canhestra de quebrar a casca de ódio que impede qualquer diálogo. Não adianta. Qual um bando de Barbosas, eles respondem, quase sempre, com grosserias e sarcasmos.
Quantas vezes não vivi a mesma situação de Barroso? Às vezes, inclusive, aceitei teses que não acreditava, violentei-me, num esforço desesperado para transmitir uma pequena divergência, uma singela ideia que foge ao script da mentalidade de um interlocutor cheio de certezas.
Entretanto, a serenidade estóica e elegante de Barroso significou uma grande vitória para nós, os solitários, os que arrostamos as truculências diárias da mídia e de seu imenso, quase infinito, exército de zumbis.
Porque encontramos um igual.
Encontramos alguém que sofre, que tenta expor uma ideia diferente, e recebe de volta uma saraivada de golpes de quem não aceita ser contestado.
Não confundamos, contudo, elegância com covardia. Não se pode exigir a um homem que derrube sozinho uma muralha desse calibre. Esse trabalho não é de Barroso. Será um esforço coletivo, que já estamos empreendendo. Barroso encontrará forças em nossas ideias.
Mesmo que ele tenha de fazer algum recuo estratégico, como aliás já fez, ao condenar Genoíno, será para avançar em seguida.
Mas a função de um juiz do STF não é defender uma classe. Não é defender a rapaziada que frequenta o show da Marisa Monte e lê os editoriais de Merval Pereira. Não é se tornar celebridade ou “justiceiro”. A função de um juiz é ser justo e defender tanto as razões do Estado acusador quanto os direitos dos réus.
Quando Getúlio deu um tiro em si mesmo, ele deixou um recado, no qual há referências algo misteriosas a “forças” que se desencadearam sobre ele.
Como que antevendo o que continuaríamos a enfrentar, durante muito tempo, o velhinho ainda tentou, em sua dolorosa despedida, nos consolar:
“Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado.”
E cá estamos, Getúlio, diante das mesmas forças obscuras. Diante da mesma truculência, das mesmas arbitrariedades, que dessa vez encontraram voz na figura, trágica ironia, de um negro. Do primeiro negro que nós, o povo, nomeamos para o STF, mas que preferiu se unir aos poderosos de sempre, aos donos do dinheiro, aos barões da mídia, à turma do saguão do aeroporto…
É positivamente curioso como os ministros da mídia demonstram auto-confiança, arrogância, desenvoltura. Gilmar Mendes, Barbosa, Marco Aurélio Mello, dão entrevistas como se fizessem parte de uma raça superior. São campeões de um STF triunfante, que prendeu os “mensaleiros”.
Enquanto isso, os outros ministros agem com humildade, discrição, prudência. Barroso lê seu voto com voz quase trêmula, e pede reiteradas desculpas por cada mínima divergência. Nunca se ouviu um ministro pedir tantas vênias como Barroso. Nunca se viu um juiz fazer tantos elogios àquele mesmo que o destrata sem nenhuma preocupação quanto à etiqueta de um tribunal.
Mas o que Barroso pode fazer? Não faríamos o mesmo? A situação de Barroso é quase a de um sertanejo humilde, argumentando em voz baixa diante de seu patrão.
Sintomático que Luiz Fux, que aderiu também à Casa Grande, tenha citado Lampião para designar a “quadrilha dos mensaleiros”. O mundo dá tantas voltas, e retorna ao mesmo lugar. Virgulino Ferreira da Silva, o terror do Nordeste, o maior dos facínoras, quem diria, seria comparado a José Dirceu! É o tipo de comparação que não dá para ouvir sem darmos um sorriso triste e malicioso.
Não foi Virgulino igualmente o maior herói do sertão? Não foi ele o maior símbolo das injustiças e arbitrariedades que se abatiam, dia e noite, sobre um povo sofrido e miserável?
Evidentemente, não existe comparação mais idiota. Dirceu é um homem de paz, que acreditou na democracia e na política. Lampião foi um bandido que desistiu de qualquer solução política ou pacífica para seus problemas.
Mas também Fux, sem disso ter consciência, trouxe à baila uma história subterrânea, soterrada sob sua postura covarde de um juiz submetido aos barões de sempre: Lampião provou ao Brasil que não existe opressão sem resistência, mesmo que na forma de banditismo. Esta é a lei mais antiga da humanidade. A resistência e o heroísmo nascem da opressão e da arbitrariedade, como um filho nasce da mãe e do pai.
A campanha de solidariedade aos réus petistas foi a prova disso. Mas não vai parar aí. Ao chancelar uma farsa odiosa, arbitrária, truculenta e, sobretudo, mentirosa, o STF produziu milhares de Virgulinos. Só que não são Virgulinos por serem bandidos ou violentos. São Virgulinos exatamente pela razão oposta: a coragem de lutar de maneira pacífica e democrática.
É a coragem, sempre, a grande lição que o mais humilde dos cidadãos dá aos poderosos. É a coragem que faz alguém se insurgir contra a opinião do ambiente de trabalho, da família, do condomínio, dos saguões dos aeroportos, e assumir uma posição política independente, inspirada unicamente em sua consciência.
É a coragem, enfim, que faz os olhos de Barroso irradiarem um brilho de confiante serenidade. Sua voz pode tremer, mas não por medo. Treme antes pelo receio de escorregar um milímetro no fio da navalha por onde caminha, entre o desejo de falar duras verdades a um tratante e a determinação de manter uma elegância absoluta.
Barroso sequer consegue usar o pronome “seu” ao se referir a Barbosa, com medo de cometer um deslize verbal. Se Barbosa fosse uma figura serena, amiga, Barroso não teria esse escrúpulo. Tratando-se de um oponente sem caráter, sem moderação, e ao mesmo tempo tão incensado e blindado pela mídia, Barroso tem de tomar um cuidado máximo. Tem de tratá-lo com respeito até mesmo exagerado. Barroso sabe que Barbosa é vítima de megalomania e arrogância messiânica, que sofre de uma espécie de loucura, uma loucura perigosíssima, porque protegida pelos canhões da imprensa corporativa.
Ao contestar tão ofensivamente o teor do voto de Barroso, ao acusá-lo, de maneira tão vil, Barbosa disparou um tiro no próprio pé. Ganhará um bocado de palmas dos saguões aeroportuários, mas haverá mais gente erguendo a sombrancelha, desconfiada de tanta fanfarronice e falta de modos.
Barroso deixou que Barbosa morresse como um peixe, pela boca.
Foi a vitória da serenidade sobre o destempero, da delicadeza sobre chauvinismo, do respeito à divergência sobre a intolerância.
Barroso
(Publicado originalmente no site O Cafezinho)