pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A voz crítica de Lima Barreto ainda ecoa na nossa República, diz pesquisador

Felipe Botelho Correa, professor da King’s College de Londres, comenta a escolha do autor como homenageado da FLIP em 2017
lima-site
Fotografia de Lima Barreto tirada durante os três dias em que esteve internado no Hospício Nacional, em 1919 (Foto: Divulgação)
Eric Campi
No dia 11 de novembro, a FLIP (Festa Literária de Parati) anunciou o escritor carioca Lima Barreto como o homenageado da edição de 2017 do evento. A notícia chega quatro anos depois que a jornalista baiana Joselia Aguiar, atual curadora da FLIP, e a tradutora Denise Bottmann iniciaram uma campanha pela escolha do autor de O triste fim de Policarpo Quaresma.
Para Felipe Botelho Correa, 33, pesquisador e professor da King’s College de Londres, “a demora em homenagear Lima Barreto simboliza e sintetiza uma série de pesquisas que foram feitas nesse começo de século 21 e um saudável desejo de discutir a obra e o legado desse autor”.
Correa identificou 164 textos inéditos de Barreto publicados sob pseudônimos nas revistas ilustradas Fon-Fon e Careta. Os escritos estão compilados no livro Sátiras e outras subversões (Penguin & Cia das Letras), publicado em julho deste ano. Negro e de origem pobre, Lima Barreto produzia crônicas de costumes do Rio de Janeiro e em suas obras tratava sobre o preconceito racial e as injustiças sociais do Brasil. Uma literatura “subversiva e militante”, segundo o pesquisador.
“A voz crítica de Lima Barreto ainda ecoa na nossa República, que em meio a tantas turbulências claramente não deixou de ser uma Bruzundanga”, diz. Na entrevista abaixo, Correa discorre sobre a homenagem ao autor no principal evento literário do país e fala sobre as características de sua literatura “militante”. “Ser um escritor abertamente negro era uma perspectiva pouco comum no meio intelectual da época, quando muitos tentavam se embranquecer.”
CULT – Em 2013 houve um movimento pela escolha de Lima Barreto como homenageado do evento, mas só em 2017 essa homenagem vai, de fato, se concretizar. Como interpreta essa demora de quatro anos?
Felipe Botelho Correa – A homenagem vem em boa hora. Nos últimos quinze anos um grande número de trabalhos reanimou a obra de Lima Barreto. Textos inéditos foram revelados em edições recentes: alguns nos dois volumes com as crônicas que foram editados por Beatriz Resende e Rachel Valença; outros na edição com os contos que foram compilados pela Lilia Moritz Schwarcz, que está também escrevendo uma nova biografia. Além disso, aumentou o número de teses de doutorado sobre Barreto, apontando para novas perspectivas de leitura do autor carioca. O livro Sátiras e outras subversões é, de certa forma, um elemento a mais nessa renovação da obra de Lima Barreto, levando ao público 164 textos que permaneciam inéditos até então, a maioria camuflados por pseudônimos. Nesse sentido, a demora em homenagear Lima Barreto simboliza e sintetiza uma série de pesquisas que foram feitas nesse começo de século 21 e um saudável desejo de discutir a obra e o legado desse autor.
A homenagem na FLIP pode trazer novo fôlego à sua obra?
A FLIP tem sido nos últimos anos um momento de redescoberta de autores fundamentais, atualizando debates e impulsionando acesso e visibilidade à obra dos homenageados. A novidade desse ano é que finalmente teremos uma homenagem que tem respaldo de uma campanha popular que vem sendo sugerida informalmente por muitos anos e que representa uma perspectiva ímpar no nosso panteão literário. Curiosamente, Lima Barreto continua representando aquilo que Jorge Amado sugeriu: um escritor que representa uma certa voz popular. A voz crítica de Lima Barreto ainda ecoa na nossa República, que em meio a tantas turbulências claramente não deixou de ser uma Bruzundanga. Creio que o desafio da curadoria de Joselia Aguiar será traduzir para o nosso momento atual as questões e as subversões que Lima Barreto propunha há cem anos.
Por que devemos voltar à obra e à biografia de Lima Barreto neste momento?
Lima Barreto já faz parte de nossa historiografia e devemos lutar por tê-lo presente em nossas bibliografias, não importando o momento político que estamos atravessando. Feita essa ressalva, eu não poderia deixar de mencionar um aspecto da obra e da perspectiva de Lima Barreto que me parecem importantes neste momento não só no Brasil, mas também em vários outros países, que é a questão do nacionalismo. Em 1920, Lima Barreto escreve um artigo que poderia perfeitamente ser publicado hoje em dia, alertando para os males da utilização desenfreada do nacionalismo político. Naquele momento, essa questão tinha como pano de fundo o fim da Primeira Guerra Mundial e, no Brasil, a questão da intensa imigração europeia e do movimento que veio a fundar o Partido Comunista em 1922. Lido hoje em dia, o artigo “O nacionalismo”, publicado no jornal Voz do Povo em 1920 nos dá um sopro de lucidez e clareza.
Você já afirmou que o projeto literário que dá direção à produção de Lima Barreto é seu anseio por uma “literatura militante”. Essa militância pode ter contribuído para a sua marginalização, digamos assim, na história da literatura brasileira?
De fato, Lima Barreto teve dificuldades em sua trajetória literária, como muitos outros escritores, e há exemplos de instituições nas quais ele não era bem-vindo, como a Academia Brasileira de Letras e o jornal Correio da Manhã, mas estas são questões menos relevantes, ao meu ver. Essa ideia de uma suposta marginalização é difícil de sustentar se olharmos pelo lado do alcance de sua literatura não só em sua época como hoje em dia. Lima Barreto foi um escritor de imprensa, mais especificamente um escritor de revistas, e seu projeto literário e militante passava necessariamente por esse meio. Ele era um profundo conhecedor dos vários tipos de revistas da época (clássica, ilustrada, pequena, de humor, de variedades etc.) e ao longo de sua carreira como escritor sempre esteve ligado a várias publicações e seus respectivos grupos de intelectuais que se reuniam nos cafés da cidade. As pequenas revistas como a Floreal lhe davam a liberdade de escrever seus “sonhos e maluquices” e desafiar a “escala de valores intelectuais”, como ele mesmo dizia.
Por outro lado, as revistas de grande circulação, como as revistas ilustradas, lhe davam não só uma maneira de melhorar sua renda, como também um amplo público que ia muito além da capital, com cerca de 70% de suas numerosas tiragens sendo enviadas para outros estados. Ser lido pelo grande público era um pilar importante dessa literatura militante, e as revistas, muito mais que os livros, eram os meios que proporcionavam esse contato com os leitores. Arrisco a dizer que foi muito mais através das revistas do que por meio de livros que Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge Amado e muitos outros escritores da época conheceram a verve de Lima Barreto. Quando Lima Barreto morre em 1922, essa presença nos periódicos acaba e o que fica são seus poucos livros editados e a imagem de um escritor sagaz e popular, amplamente lido nas várias camadas da sociedade brasileira. Entre as décadas de 1930 e 1950, vemos um escritor que foi esquecido pelo mercado editorial.
Essa escassez de edições só foi sanada na década de 1950 com a iniciativa de Francisco de Assis Barbosa, primeiro com a biografia e depois com a luxuosa edição de 17 volumes em 1956. É só nesse momento que passamos a ter acesso ao Lima Barreto que conhecemos hoje. Mas como escritor de imprensa ou de livros, é difícil sustentar a tese de que Lima Barreto foi um autor marginalizado. Por outro lado, acho perfeitamente cabível entendermos Lima Barreto como escritor marginal no sentido daquele que vai contra a corrente, que produz uma literatura crítica e mordaz sobre o seu tempo, com temáticas até então pouco exploradas. A isso, podemos adicionar também as circunstâncias de sua biografia e os desafios que um escritor negro enfrentava naquele Brasil do começo do século 20, ainda muito dominado pelas ideias do Darwinismo social que surgiram no final do século 19 na Europa e nos EUA. Nesse sentido, ser um escritor abertamente negro era uma perspectiva pouco comum no meio intelectual da época, quando muitos tentavam se embranquecer.
Antonio Candido, por exemplo, observa que, se por um lado, a “militância” de Lima Barreto “favoreceu nele a expressão escrita da personalidade”, por outro “pode ter contribuído para atrapalhar a realização plena do ficcionista”.  Você vê um embate entre esses dois fatores ou considera esta uma ideia já superada?
O fato de boa parte da obra de Lima Barreto ser baseada em referências autobiográficas já foi discutido por vários críticos. Quem primeiro colocou isso em pauta foi Sérgio Buarque de Holanda em 1949 no texto “Em torno de Lima Barreto”, que é uma resposta à declaração de Caio Prado Junior de que, sob muitos aspectos, Lima Barreto era o maior romancista brasileiro, numa comparação indireta com Machado de Assis. Sérgio Buarque, no entanto, responde que Lima Barreto não poderia ser comparado a Machado de Assis porque em grande parte a obra do carioca era uma confissão mal escondida que atrapalhava o acabamento e as qualidades da “literatura de fantasia”. Lima Barreto dizia que, ao contrário de Machado, ele escrevia sem medo da palmatória dos gramáticos e com muito temor de não dizer tudo o que queria e sentia, sem calcular se se rebaixava ou se se exaltava demais. Obviamente, essa questão da exposição da perspectiva pessoal salientada por Lima Barreto tem uma relação direta com o fato de os dois terem sido mulatos numa sociedade marcada indelevelmente pela escravidão. Utilizar essa categoria para ler a obra de Lima Barreto me parece um equívoco, e o próprio Lima já alertava para isso.
No texto “Os enterros de Inhaúma”, um dos que foram revelados em Sátiras e outras subversões, ele esclarece um pouco essa questão. Ele pede desculpas aos leitores por suas constantes confissões e afirma que isso era inevitável, pois tudo que escrevia eram páginas das suas memórias, numa indicação clara de que sua perspectiva era uma espécie de autoficção, misturando autobiografia com invenções. Nesse sentido, não vejo os textos de Lima Barreto como obras de um ficcionista com ambições de uma realização plena como sugeriu Antonio Candido. Nem sei ao certo o que seria essa realização plena. Havia uma urgência naquilo que Lima Barreto produzia.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 20 de novembro de 2016

Editorial: As "incríveis" histórias em torno da prisão de um Garotinho


Pouca coisa por aqui nos facultam fazer uma defesa do senhor Anthony Garotinho, ex-governador do Estado do Rio de Janeiro. Não cometeria o deslize de o condenar por "convicção", mas em razão de seus precedentes como homem público. Mas, neste caso em particular, do ponto de vista político e jurídico sua prisão foi irregular. Em tese, não caberia o pedido de prisão em razão dos delitos cometidos. Crimes eleitorais - pelo menos o da natureza à qual o governador foi acusado - são punidos com o afastamento da função pública e a inelegibilidade pelos pleitos seguintes. Exatamente em função desses pressupostos é que a sua prisão foi posteriormente revogada por uma juíza do STE. Não sem antes daqueles espetáculos protagonizados durante a sua transferência para o presídio de Bangu, onde ele tentou reagir à sua transferência do hospital onde estava internado.

Mas, o pior viria depois, com as denúncias de uma conhecida publicação semanal, dando conta de que está sendo pedida pelo Ministério Público, em caráter de urgência, uma investigação sobre a suposta tentativa de subornar autoridades públicas - neste caso, o juiz que decretou a sua prisão - numa manobra do ex-governador e do seu filho, em sondagens a pessoas próximas ao magistrado. Aqui, estamos diante de um Garotinho sendo Garotinho...(...)

(Conteúdo exclusivo, liberado apenas para os assinantes do blog) 

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Le Monde: Nicarágua: o que resta do sandinismo?


Seus esforços puderam contar tanto com a conjuntura internacional – boom do preço das commodities no mercado mundial – quanto com a ajuda maciça da Venezuela de Hugo Chávez. Mas agora a primeira mudou, e a segunda secou.
por Bernard Duterme


"Nicarágua sandinista”. As duas palavras estão coladas uma à outra. Na década de 1980, a América Central atravessava um período de revoluções e contrarrevoluções. Em 1979, os rebeldes sandinistas tinham conseguido derrubar o ditador Anastasio Somoza, há muito conhecido na região como “homem dos Estados Unidos”. Imputava-se aos líderes norte-americanos a tirada: “Somoza é um filho da puta, mas é o nosso filho da puta” – frase que o presidente Franklin Delano Roosevelt teria pronunciado em 1939 a respeito de Somoza pai e que o secretário de Estado Henry Kissinger teria repetido para falar do filho, já que a dinastia Somoza reinou de 1936 a 1979.
A Guerra Fria era reproduzida na América Central. Um medo percorria o Ocidente: de acordo com a “teoria do dominó”, o comunismo ameaçava conquistar um país após o outro em suas “zonas de influência”. A solidariedade internacionalista convergia em peso para uma pequena nação que zombava do “império” em seu próprio quintal. De um lado, Golias, na pele do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, arquiteto de uma virada conservadora e liberal; do outro, Davi, encarnado pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN).
Na Europa, o Centro Tricontinental (Cetri), na Bélgica, é há muito tempo um dos principais locais de estudo da Revolução Sandinista. Ele chegou a receber, em 1989, a visita do presidente Daniel Ortega; seu fundador, François Houtart, foi diversas vezes condecorado pelo país. Uma obra monumental do ex-ministro da cultura sandinista, o padre, poeta e escultor Ernesto Cardenal, ainda reina diante dos gabinetes do centro em Louvain-la-Neuve: o Zanatillo, símbolo da emancipação do Terceiro Mundo.
No início dos anos 1980, o governo revolucionário da Nicarágua dedicou-se à redistribuição da riqueza, bem como à promoção da saúde e da educação. Ele tentou a economia mista,1 o pluralismo político, o não alinhamento, enquanto a direita norte-americana denunciava um “regime comunista” e armava a oposição: os “Contras”, chamados “combatentes da liberdade”. Em 1990, os comandantes sandinistas, à frente do país desde 1979, acabaram se dobrando. Esgotada pelos anos de guerra, a população fechou o parêntesis revolucionário nas urnas, em um balanço dividido. O lado bom: a luta contra o analfabetismo e a desigualdade, a escola para todos, as campanhas de vacinação, a reforma agrária, a aspiração à soberania nacional. O lado sombrio: o dirigismo de um poder seguro de sua missão libertadora, a razão do Estado imposta a todos, os sacrifícios consentidos em um contexto de violência política e boicote, o ambiente militarizado. Os sandinistas aceitaram a derrota eleitoral. Entrou em cena a “democracia liberal”.

“Populista responsável”
Na mesma época, um período chamado de “normalização democrática” teve início em toda a América Central. Liberalização política formal e liberalização econômica real, ambas com resultado no mínimo problemático. Duas décadas e meia depois, a região não conseguiu romper com o modelo agroexportador, ainda dominante. Apesar de exibir, entre altos e baixos, uma taxa de crescimento de cerca de 4% em média, a Nicarágua não logrou reduzir a pobreza, que afeta uma em cada duas pessoas, e combater a desigualdade: o patrimônio de seus duzentos cidadãos mais ricos representa 2,7 vezes a riqueza que o país produz a cada ano. Ela também não conseguiu garantir emprego formal para a maioria da população ativa nem matar a fome dos habitantes das regiões atingidas pela seca e pelas mudanças climáticas. Depois do Haiti, o país continua sendo o mais pobre do hemisfério ocidental e o mais vulnerável a furacões e terremotos.
Esse balanço social é o mesmo do sandinismo do século XXI. De volta ao governo da Nicarágua em 2006, o ex-líder revolucionário Daniel Ortega completa este ano seu terceiro mandato, fechando duas décadas à frente do Estado (1980-1990 e 2006-2016). Para voltar ao poder após três derrotas consecutivas (nas eleições presidenciais de 1990, 1996 e 2001), o inamovível secretário-geral da FSLN não recuou diante de manobras táticas nem de reviravoltas políticas.
Em termos estritamente eleitorais, sua vitória em 2006, com cerca de 38% dos votos, deve muito a uma primeira reforma constitucional,2 obtida graças ao “pacto” controverso com Arnoldo Alemán. Presidente ultraliberal da Nicarágua entre 1996 e 2001, este havia sido condenado por corrupção, antes de ser absolvido pela Corte Suprema... de obediência sandinista. Para poder candidatar-se novamente em 2011, já que a Constituição proíbe que uma pessoa tenha mais do que dois mandatos presidenciais, Ortega contou com uma oportuna revogação da mesma Corte Suprema. A vitória, obtida no primeiro turno com uma confortável maioria (62%), continua maculada por várias “irregularidades”, apontadas principalmente pela União Europeia e pela Organização dos Estados Americanos (OEA).
Na perspectiva das eleições presidenciais de 6 de novembro, o FSLN, que controla a Assembleia Nacional, conseguiu remover todos os obstáculos constitucionais à reeleição ilimitada por maioria simples. Basta “Daniel” (como é chamado na Nicarágua) confirmar as pesquisas, que lhe dão ampla vitória. Hoje, seus concorrentes estão divididos, por falta de notoriedade ou credibilidade, ou impedidos: em junho de 2016, a Corte Suprema de Justiça retirou do Partido Liberal Independente, motor da principal força de oposição (a Coalizão Nacional pela Democracia), a possibilidade legal de apresentar seu candidato para a próxima eleição presidencial. Tudo sob os auspícios de um Conselho Supremo Eleitoral mais do que nunca composto de servos do presidente e contrário, como ele, a qualquer observação externa das eleições.
Em termos fundamentalmente políticos, o “danielismo”, ou “orteguismo” – nas palavras de seus críticos –, não bebe no sandinismo original, mas manteve seu nome. Com concessões disfarçadas e arranjos contraditórios, Ortega soube ganhar o apoio dos setores da sociedade outrora hostis, mantendo sua popularidade entre o povo sandinista.
A criminalização de todas as formas de aborto (inclusive em caso de estupro ou risco de morte), aprovada pelos deputados da FSLN em 2006, marcou os espíritos.3 Ela agradou especialmente ao conservadorismo cristão, dominante na Nicarágua, e em particular ao velho cardeal Miguel Obando. O ex-inimigo jurado do sandinismo começou a mostrar apoio incondicional à família Ortega, que aumentou as promessas de boa-fé... O casal presidencial casou-se na igreja em 2007, após um quarto de século de concubinato e uma sórdida história de abuso sexual de uma filha adotiva. O slogan para a campanha eleitoral de 2011, “Por uma Nicarágua cristã, socialista e solidária”, é repetido incansavelmente nas comunicações governamentais.
Instituições financeiras internacionais, investidores estrangeiros e patronato também encontraram apaziguamento na gestão ortodoxa do presidente Ortega e seu vice-presidente liberal, Jaime Morales, cuja trajetória fala por si só: ex-banqueiro e homem de negócios exilado durante o período revolucionário, ex-líder dos Contras, ex-ministro do presidente Alemán... Juntos, eles decidiram aplicar os programas de austeridade do FMI e do Banco Mundial, privatizar empresas nacionalizadas. Ratificaram o tratado de livre-comércio com os Estados Unidos – país com o qual a Nicarágua realiza hoje metade de seu comércio –, forjaram alianças com o Conselho Superior da Empresa Privada (Cosep, uma organização patronal), ofereceram exoneração parcial de impostos aos investimentos estrangeiros diretos (IED) etc.
Uma tendência tão reconfortante que, às vésperas das eleições de 2011, o presidente sandinista era descrito nos círculos de negócios como um “populista responsável”. Em 6 de agosto de 2014, a manchete da revista econômica Forbes falava sobre o “milagre da Nicarágua”, elogiando as “políticas de Daniel Ortega”, que “conseguiram atrair investimentos e empresas estrangeiras, graças ao consenso entre governo e setor privado, bem como as reformas estruturais [...] necessárias para a economia de mercado e a reativação das exportações e, consequentemente, para o crescimento econômico e o progresso social”.
Embora o “progresso social” não esteja exatamente presente, as medidas tomadas desde 2007 nas áreas de educação e saúde (retorno à gratuidade), combate à pobreza (programa Fome Zero), habitação (projeto Moradia Digna), apoio a pequenos e médios produtores e a cooperativas de mulheres, tudo isso alimentou a popularidade do presidente junto à sua base social sandinista, que permanece leal a ele. Seus esforços puderam contar tanto com a conjuntura internacional – boom do preço das commodities no mercado mundial – quanto com a ajuda maciça da Venezuela de Hugo Chávez. Mas agora a primeira mudou, e a segunda secou.

Um hiato intransponível
As críticas mais duras vêm dos antigos compañeros do presidente, que foram expulsos da FSLN ou saíram por conta própria, a cada fase da privatização do partido vermelho e negro por Ortega e seu clã. Mais ou menos à esquerda da FSLN, mas às vezes também à direita, eles ainda se afirmam sandinistas, empenham-se em “resgatá-la” ou “renová-la” e opõem-se violentamente ao “orteguismo”. Eles vêm das fileiras dos dirigentes, ministros e deputados sandinistas dos anos 1980. A seu lado estão os intelectuais e artistas da Revolução Sandinista da mesma época. Mas, até agora, nenhum deles conseguiu construir uma base social ou eleitoral.
Eles acusam Ortega de ter capturado a FSLN desde a derrota de 1990 e de tê-la instrumentalizado a serviço de sua própria pessoa, quando ela devia ter sido democratizada. Denunciam o “caudilhismo” do comandante, tanto à frente do partido como do país. Criticam seu contorcionismo ideológico para ganhar (e manter) a presidência vitalícia, seu enriquecimento e sua conivência com as grandes fortunas nacionais, o domínio de seu clã – esposa, filhos e amigos – sobre todas as instâncias do Estado e para além dele (Exército, polícia, mídia). Para Dora María Téllez, ícone da revolução e ex-ministra sandinista da Saúde, o presidente tenta “institucionalizar a sucessão familiar” (El País, 19 fev. 2016).
Mais oportunista que socialista, o presidente sandinista mantém um hiato intransponível entre, de um lado, a retórica anti-imperialista, o nacionalismo soberanista e o alinhamento ao livre-comércio e, de outro, a venda das vantagens comparativas do país para quem pagar mais. Um grupo de 27 intelectuais, incluindo o poeta Ernesto Cardenal e a escritora Gioconda Belli, publicaram em maio de 2016 um manifesto intitulado “Não deixemos uma minoria sequestrar a nação”. O modelo de governança orteguista é descrito como um sistema “autoritário, excludente e corrupto”, além de “repressivo em relação às tensões sociais que ele mesmo engendra”. O manifesto denuncia ainda a explosão, entre 2007 e 2015, da economia informal e do subemprego, da dívida externa e dos lucros das grandes empresas.
O sandinismo atual também ofereceu aos investidores estrangeiros (asiáticos, norte-americanos etc.) diversas concessões para projetos ou megaprojetos de desenvolvimento de mineração, energia e turismo, oficialmente para “erradicar a pobreza”. Entre eles, o faraônico e polêmico projeto de escavação do “grande canal da Nicarágua”, ladeado (pelo menos no papel) por uma zona de comércio livre de impostos, um novo aeroporto internacional, complexos turísticos de luxo, portos de águas profundas, estradas, viadutos etc.4
Apesar das contestações, a FSLN e seu líder gozam de uma reputação e de um poder de influência que lhes permitem olhar para o escrutínio de novembro com otimismo.

Bernard Duterme é diretor do Centro Tricontinental (Cetri), Louvain-la-Neuve, Bélgica (www.cetri.be)

1    Com empresas privadas e um setor público forte.
2    Elegibilidade no primeiro turno a partir de 35% dos votos.
3    Ver Maurice Lemoine, “Une gauche délavée s’enracine au Nicaragua” [Uma esquerda desbotada ganha força na Nicarágua], Le Monde Diplomatique, maio 2012.
4    Ver “Le Nicaragua double le canal de Panama: à quel prix?” [Nicarágua duplica o Canal do Panamá: a que preço?] e “Le grand canal du Nicaragua: une concession imposée à un pays vaincu” [O grande canal da Nicarágua: concessão imposta a um país derrotado], mar. 2016. Disponível em: www.cetri.be.

31 de Agosto de 2016
Palavras chave: NicaraguáSandinismoFSLNDaniel OrtegaAmérica LatinaPanamáVenezuelaContra

Crônicas do cotidiano: Gilberto Freyre e o Português do Porto do Recife.




José Luiz Gomes da Silva


Confesso que, não raro, fico confuso sobre alguns dados biográficos do sociólogo Gilberto Freyre. Aliás, Gilberto é um ser híbrido em muitos aspectos. Híbrido e certamente complexo, o que suscita algumas interpretações igualmente confusas sobre sua vida e, principalmente sobre a sua obra. Ainda ontem discutíamos por aqui uma polêmica entre ele e o médico Josué de Castro, envolvendo questões relativas à alimentação. Quando as nuvens políticas se fecharam aqui na província, em razão do Estado Novo, ele se exilou em Portugal, um país que tinha todos os motivos para acolhê-lo bem, em razão de suas excelentes relações políticas e acadêmicas com aquele país, inclusive com com intelectuais ligados ao salazarismo. Apesar desse ambiente político favorável, o que se diz é que ele teria enfrentado muitas dificuldades, tendo que ministrar aulas para sobreviver. Foi nesse período que ele teria dado os retoques finais em sua obra clássica Casa Grande&Senzala. Como sempre brinco, apesar de doce, Casa Grande & Senzala foi produzida num momento delicado do seu autor. 

Um outro dado curioso que alguns biógrafos relutam em assumir abertamente é o que informa que o sociólogo de Apipucos é filho da fina flor da aristocracia açucareira do Estado, ou, como diria Tobias Barreto, da açucarocracia pernambucana. Ontem li um texto onde a primeira referência da autora é sobre este assunto, confirmando este fato. Seu pai, Alfredo Freyre, era juiz e professor catedrático de economia política da Faculdade de Direito do Recife. Sua família era descendente dos colonizadores portugueses, o que talvez possa informar muita coisa acerca de suas teses sobre o conceito de colonialismo assimilativo, em contraposição ao do tipo segregacionista inglês. O que também reforça essa sua relação com a aristocracia açucareira do Estado, desde suas origens, é o fato de ele passar suas férias em um engenho da família, em São Severino dos Ramos. Sobre suas ligações políticas com esta classe senhorial, creio, dispensa-se os comentários.

O repórter Geneton Moraes Neto certa vez comentou que Gilberto Freyre costumava receber os jornalistas nos jardins da Fundação Joaquim Nabuco. Ali, num bate papo informal, respondia, uma a uma, as perguntas a ele dirigidas, sempre muito cortes, sempre muito solícito. Por vezes, as perguntas envolviam diversos temas, mas, qual não era a surpresa dos jornalistas quando chegavam às redações. Ao fazerem a checagem do material, estavam diante de um artigo muito bem redigido, com argumentos consistentes e uma linguagem bem articulada. Freyre era um homem de uma inteligência ímpar. Comenta-se que até hoje em sua residência existem algumas cartas a ele dirigidas onde se escreve Gilberto Freyre com "i". Quando Dona Madalena Freyre reclamava que ele não abria as correspondência, ele repetia: não é para mim. É para um tal de Gilberto Freyre com "i". Quem gosta muito dessa história é o jornalista Paulo Henrique Amorim. Ainda escrevo uma crônica sobre o assunto, mas antecipo que ela envolve um alto executivo das organizações globo. 

Aos 17 anos, Gilberto Freyre saiu aqui da província para estudar nos Estados Unidos, precisamente nas Universidades de Baylor- Columbia, onde tornou-se amigo do professor Franz Boas, que exerceria forte influência sobre ele, inclusive no seu projeto posterior de criação do Museu do Homem do Nordeste. Gilberto ganhou uma bolsa de estudos concedida por entidades ligadas a Igreja Batista à qual sua família pertencia. Aqui, na juventude, era um disciplinado pregador, um missionário, o que nos informava o ex-bispo anglicano Robinson Cavalcanti. Já nos Estados Unidos, Gilberto abandona completamente suas convicções religiosas, o que contingenciou Robinson Cavalcanti a escrever um artigo nos jornais locais fazendo um apelo: Volta ao púlpito, pregador

Exílio é sempre algo muito ruim. O sociólogo Josué de Castro morreu deprimido, em Paris, tentando voltar para casa, para matar saudade da paisagem e da gente dos bairros alagados do Recife, habitat de seus estudos sobre a fome. Outro dia, publicamos por aqui um belo texto escrito por Paulo Freire, em homenagem à família que o acolheu no Chile. O poema - sim, um poema - invoca as belas paisagens do Recife, com aquele nomes de ruas que mais se parecem um convite ao encantamento, à paixão. Mas, um dado curioso que li recentemente fala de um momento difícil na vida do autor de Casa Grande & Senzala. Creio que a década de 40 tenha sido uma das mais difíceis para Gilberto Freyre, embora no seu finalzinho, em 49, já como Deputado Constituinte, ele tenha conseguido a aprovação do projeto de lei que criou o então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco. 

Gilberto sofreu uma brutal perseguição do Estado Novo, embora tivesse uma boa relação com Getúlio Vargas. O problema era o seu "carrasco no Estado", como se referia a Agamenon Magalhães, Getúlio Vargas. Foi preso durante duas vezes, escapou de uma tentativa de assassinato na Pracinha do Diário de Pernambuco e ficou praticamente interditado aqui no Estado. Dessa época há relatos sobre reais dificuldades financeiras do mestre de Apipucos. Para sobreviver, segundo este autor, ele precisava corrigir o Português dos documentos do Porto do Recife, uma atividade que o desagradava profundamente. Apesar de suas dificuldades iniciais - foi alfabetizado antes em Inglês - Freyre, como ele mesmo gabava-se, "dançava" muito bem em língua portuguesa. 


https://pt.wikipedia.org/wiki/Gilberto_Freyre

Gilberto de Mello Freyre KBE (Recife, 15 de março de 1900 — Recife, 18 de julho de 1987) foi um polímata brasileiro. Como escritor, dedicou-se à ensaística da ...
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quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Crônicas do cotidiano: Gilberto Freyre e Josué de Castro num encontro na Ilha de Deus






José Luiz Gomes da Silva


Quando se discute a questão da alimentação, sobretudo se tomarmos como referência a região do Nordeste brasileiro, há divergências substantivas entre o médico Josué de Castro e o sociólogo Gilberto Freyre. O tema é bastante polêmico e, parte a parte, em dados momentos de suas conclusões, um estudioso dessa polêmica ficaria, no mínimo dividido, caso não se deixasse levar pelas suas simpatias por este ou aquele autor. Quem nos dá a honra de ler nossas crônicas aqui pelo blog, sabe que somos, naturalmente, suspeitos para deixarmos de assumir uma posição. No campo do estudo sobre alimentação, Gilberto Freyre apresenta-se como mais um precursor, antecipando-se a outros estudos encaminhados, inclusive, por profissionais de outras formações como nutricionistas e médicos. 

Gilberto acerta ao apontar situações como o regime escravocrata, a monocultura da cana-de-açúcar, os grandes latifúndios, assim como a introdução da farinha de mandioca, pouco nutritiva, como base da alimentação nordestina, em substituição da farinha de trigo dos colonizadores, como fatores que poderiam contribuir para uma alimentação carente de alguns nutrientes importantes. Nossa alimentação "mestiça - como resultado da relação entre as três raças - de fato, excluía vegetais, legumes, ovos, leite e algumas fontes proteicas necessárias a uma boa alimentação. Ao apontar os senhores de engenhos e os escravos da região como os mais bem alimentados, entretanto, ele comete o equívoco de confundir comer muito com comer bem, sobretudo em relação aos escravos, conforme alfineta Josué de Castro. Errou feio ao sugerir também que a região canavieira era uma das mais bem nutridas do país, mito completamente rechaçados pelos estudos de José de Castro.

O curioso é que esta polêmica entre ambos é longa, tendo réplicas e tréplicas abusadas de ambos aos autores. Teria sido iniciada com os primeiros trabalhos de Josué de Castro, acerca da alimentação de grupos de operários do Recife, estudos de livre-docência do sociólogo da fome. Depois se estenderia pela demarcação de "campo" - como Gilberto advertindo Josué a não se imiscuir a assuntos relacionados à sociologia ou antropologia, assim Josué devolvendo, que um sociólogo não estaria habilitado a utilizar determinados conceitos, como o de albuminóides e proteínas, onde Freyre, de acordo com Josué, demonstrava absoluta ignorância do termo e que, portanto, não poderia ser levado a sério. O fato concreto é que, enquanto Freyre aponta as causas "naturais" das possíveis carências alimentares, Josué de Castro deduz que ela pode ser o resultado de engrenagens sociais perversas, alimentadas - permita-me o trocadilho - pelas relações estabelecidas entre os homens. Josué de Castro, como bem observara Manuel Correia de Andrade, empresta ao fenômeno da fome um status político. 

Mas, todo esse introito vem a respeito dos nossos mocambos dos bairros alagados do Recife. Aqui, ambos parecem estabelecer uma "trégua" embora não tenha lido nada do sociólogo Gilberto Freyre sobre a alimentação dos habitantes das palafitas do Recife, enquanto Josué de Castro tomou esse tema até como incursão literária, ao escrever um poema para o homem-caranguejo. Outro dia, escrevemos por aqui um artigo sobre o direito à cidade. Ali, lembrávamos das divergências sobre os mocambos do Recife, envolvendo o sociólogo Gilberto Freyre e o interventor Agamenon Magalhães. Ao defender as palafitas do Recife da sanha higienista de Agamenon Magalhães, Gilberto enfatizava as soluções ecologicamente corretas utilizadas por aquela população empobrecida - em sua maioria oriunda das usinas da zona da mata do Estado - assim como a proximidade com a sua fonte principal de alimentação, os crustáceos. 

Possivelmente em razão da influência de Gilberto Freyre, outro intelectual que iria demonstrar uma profunda simpatia pelos mocambos do Recife foi o escritor paraibano, José Lins do Rego. Em seu processo de recifinização, lá estavam os mocambos, além do Pátio do Carmo, da Av. Encruzilhada, da Rua da Aurora e, possivelmente, dos quebra nos becos dos bairros de boemia e prostituição do Recife Antigo. Sobre a relação de Josué de Castro com esses bairros alagados no Recife, creio ser desnecessário acrescentar alguma coisa. De acordo com relatos de amigos, sempre que voltava ao Recife, atolava os pés na lama para conversar com os homens e mulheres caranguejos. Um homem que conheceu o mundo, ministrou aulas na Sorbonne, morou em Paris, morreu de saudade dos Afogados, do píer do Pina, dos ribeirinhos da Ilha de Deus.





Na Web,  em termos de acessos, perdemos apenas para o próprio site do médico Josué de Castro. Desta vez, ganhamos da Wikipedia. Obrigado aos leitores.



www.josuedecastro.com.br/

A vida e a obra do intelectual brasileiro que pioneiramente mapeou o drama da fome no Brasil e no mundo. Josué de Castro diagnosticou a relação direta entre ...

Crônicas do cotidiano: Gilberto Freyre e Josué de Castro num ...

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20 min atrás - Crônicas do cotidiano: Gilberto Freyre e Josué de Castro num encontro na Ilha de Deus

Josué de Castro – Wikipédia, a enciclopédia livre

https://pt.wikipedia.org/wiki/Josué_de_Castro

Josué Apolônio de Castro (Recife, 5 de setembro de 1908 - Paris, 24 de setembro de 1973), mais conhecido como Josué de Castro, foi um influente médico, ...

  

Volume final da triologia biográfica de Kafka desconstrói mitos sobre o autor


Autor mostra as circunstâncias pessoais, políticas e culturais que moldaram o jovem Kafka a se tornar um dos autores que moldaram a literatura moderna
Retrato de Kafka por Renato Guttuso (Reprodução)
Retrato de Kafka por Renato Guttuso (Reprodução)
Redação
Franz Kafka não era um escritor neurótico, recluso ou marcado unicamente pelo relacionamento difícil que mantinha com o pai, um comerciante chamado Hermann. As conclusões estão no volume final da trilogia biográfica do autor, Kafka: The yearly years(Princeton University Press), originalmente publicado em 2013 e recentemente traduzido para o inglês.
A obra, que completa o trabalho de duas décadas empreendido pelo autor alemão Reiner Stach, cobre os primeiros vinte e sete anos da vida de Kafka, nascido em Praga no ano de 1883 em uma família de judeus de classe média. Já no prefácio, a tradutora Shelley Frisch avisa: “Os leitores desta obra verão os mitos sobre Kafka explodir”.
Entre eles, segundo Frisch, está a ideia de que o autor de A Metaformose e O Processo teria sido um homem alienado da vida cotidiana, algo que seu trabalho como funcionário de uma companhia de seguros de saúde não permitiria, por exemplo.
Em outras passagens, Stach mostra que uma das primeiras experiências sentimentais de Kafka foi a solidão – uma vez que os pais passavam doze horas por dia trabalhando na loja da família –, e não a humilhação a que Hermann o submetia constantemente.
A investigação foi feita com base em cartas de família, memórias de colegas do colégio e diários do amigo e testamenteiro Max Brod. O difícil acesso a esses diários, que revelavam especialmente fatos sobre os anos de formação de Kafka, foram o principal motivo pela ordem não cronológica de publicação dos volumes.
The decisive years, de 2002, cobre o período de 1910 a 1915, quando algumas de suas principais obras são lançadas, enquanto The years of insight, de 2008, trata dos anos finais da vida de Kafka, do fim do relacionamento com Felice Bauer à sua morte, em 1924.
“Kafka é um autor realista que criou uma nova forma para dar conta de uma nova realidade, pois o mundo havia se tornado tão obscuro, tão insolúvel, que ele deveria fazer uma construção literária para dar conta literariamente daquilo. Então ele inventou um narrador que não sabe, e esse narrador somos nós”, disse Modesto Carone à CULT em 2014, em depoimento publicado no Dossiê Kafka – A literatura como experimentação política e filosófica.
Só agora, quatorze anos depois do primeiro título, serão de fato documentadas as complexas circunstâncias pessoais, políticas e culturais que moldaram o jovem Frank Kafka a se tornar um dos autores que ajudaram a moldar a literatura moderna.
k10818
Kafka: The early years

Reiner Stach
Princeton University Press
584 págs. – R$ 115,80


(Publicado originalmente no site da revista Cult)

Le Monde: Nem leão nem gazela


Todas as manhãs, a gazela acorda sabendo que tem de correr mais velozmente que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rapidamente que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o Sol desponta, o melhor é começares a correr. Provérbio africano
por Clemente Ganz Lúcio


Dois séculos de disputa

É por meio do trabalho que as sociedades produzem o bem-estar e a qualidade de vida. Desde a Revolução Industrial, no século XIX, a economia capitalista transforma o trabalho em mercadoria (mão de obra) a ser comprada livremente para ser empregada na produção. Desde então, os trabalhadores lutam para se libertar das amarras que os aprisionam nos limites da sociedade de mercado. Regular as relações sociais de produção por meio das leis e dos acordos coletivos visa colocar limites à livre exploração dos trabalhadores.
Nesses quase dois séculos, a engrenagem de produção capitalista aumentou a geração de riqueza, viabilizou a acumulação de capital e promoveu a desigualdade e, muitas vezes, a pobreza. A sociedade de mercado gestou a questão social e a economia de mercado, a luta de classes.
Os trabalhadores desenvolvem, em cada tempo histórico, diversas formas de lutas para disputar as regras que regem a produção e a distribuição da riqueza e da renda. Duas grandes guerras fizeram emergir na Europa, no pós-1945, a consolidação do Estado moderno, a democracia e os pactos sociais que combinaram a acumulação de capital com estratégias distributivas, de tal modo que a era de ouro do capitalismo conformou, em trinta anos, um sistema tributário progressivo, com políticas sociais de promoção e proteção social e laboral. A disputa distributiva e regulatória ganhou centralidade na sociedade, com legislação protetora e organização social, especialmente o sindicalismo, capaz de representar interesses. As negociações coletivas adquiriram importância como mecanismo regulador das relações de trabalho, e os sindicatos conseguiram o direito de representação coletiva e de organização no local de trabalho.
Os empresários constroem, desde sempre, uma resistência à expansão da regulação. Nos anos 1970, já eram visíveis os sinais de que fariam tudo para dar o troco ao modelo regulatório que emergiu no pós-guerra. Conformaram uma nova força econômica, política e social, denominada neoliberalismo e comandada pelas grandes corporações transnacionais e, especialmente, pelo sistema financeiro e rentista. Ronald Reagan e Margaret Thatcher foram baluartes desse movimento, que se tornou hegemônico em quase todo o mundo. Os neoliberais prometem entregar crescimento econômico, vendem felicidade, exacerbam o individualismo e a meritocracia. Não entregam o crescimento. Ao contrário, provocaram a monumental crise de 2008, promovem o aumento vertiginoso da desigualdade, exacerbam o individualismo, o qual adoece uma sociedade conectada, que vive a solidão, a depressão e o acirramento dos conflitos sociais.
Afirmam, com convicção divina, que é necessário competir, reduzir o custo do trabalho, diminuir o tamanho do Estado, aliviar a carga tributária, reduzir impostos, liberar o acesso aos mercados, limitar o direito de representação coletiva e o papel das instituições. Coagir, reprimir e cooptar são verbos que os neoliberais precisam conjugar, instrumentos necessários para o convencimento, renovados todas as manhãs quando acordam. Adoram uma sociedade de leões e gazelas, com a certeza de que são leões e de que não morrerão de fome.

Gazelas, comecem a correr
Há trinta anos, a lógica neoliberal busca desregular o mercado de trabalho para reduzir o custo do trabalho, flexibilizar as regras que promovem e protegem os empregos e os direitos laborais, diminuir o poder de proteção coletiva dos sindicatos e aumentar o poder de coerção das empresas sobre os trabalhadores. As crises e o desemprego criam um ambiente favorável para o alcance desses objetivos. Tem sido assim na Europa. Agora, passa novamente a ser assim no Brasil.
É preciso lembrar que, nos anos 1990, dezenas de iniciativas legislativas desregularam direitos trabalhistas, criaram formas precárias de contrato de trabalho, de flexibilização da jornada de trabalho sem pagamento (banco de horas) etc. A terceirização foi uma grande sacada e passou a ser uma maneira estrutural de reduzir custos, transferir riscos e fragilizar a ação sindical. Precarização, informalidade, arrocho salarial, desemprego, desigualdade e pobreza são expressões desse movimento, que agora retorna.
As lutas sociais no Brasil acompanharam a disputa regulatória que os trabalhadores fizeram mundo afora. Avançou-se na produção social e política de uma legislação de proteção laboral e sindical reunida na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), bem como na estruturação de um sistema de relações de trabalho que, por meio da negociação coletiva, representa o interesse coletivo dos trabalhadores e avança na formatação dos direitos laborais. Em 1988, a ditadura civil-militar foi superada com um conjunto de novas regras que se consolidaram na Constituição. Ambas, Constituição e CLT, têm sido permanentemente alteradas.
Os sindicatos sempre apostaram nas negociações e na prevalência do acordado, sempre que é superior ao legislado. É assim que, há décadas, a negociação coletiva promove, de maneira incremental, avanços nos direitos laborais.
Agora, mais uma vez, os empresários propõem reformas na legislação para que o negociado prevaleça sobre o legislado e se faça a modernização da legislação trabalhista. Para eles, modernizar é sinônimo de flexibilidade para reduzir, desmontar e desmobilizar o padrão civilizatório duramente construído. Negociar, para eles, é aumentar a capacidade de submeter e enquadrar, para que o acordado possa reduzir aquilo que a legislação define como piso.
Não somos nem leões nem gazelas. A inteligência (pensamento e memória) e a história (conhecimento de si e do outro) permitem desenhar projetos de futuro e de sociedade nos quais a igualdade, a liberdade, a justiça, a cooperação e a solidariedade deem outro sentido para as manhãs.
Por isso, o movimento sindical luta para: modernizar a legislação trabalhista, a fim de incluir aqueles que ainda estão desprotegidos e criar novas regras para as ocupações que surgem; fortalecer as negociações coletivas; coibir a fragmentação sindical; ter organizações sindicais representativas desde o chão da empresa; garantir uma institucionalidade que promova a solução ágil dos conflitos; ampliar o direito de greve e de organização; que todos os trabalhadores estejam protegidos pelas leis laborais e previdenciárias, pois um terço ainda está sem nenhuma proteção.
O movimento sindical acredita que, na democracia, as escolhas se fazem pelo debate público, capaz de afirmar o sentido geral e o bem comum de cada dimensão da vida em sociedade, pela ampla participação, pela capacidade coletiva de corrigir erros e de aprender.

Clemente Ganz Lúcio
é Sociólogo, diretor técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), Membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e do Conselho de Administração do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE).


03 de Outubro de 2016
Palavras chave: direitostrabalhistasgolpedesempregopobrezaTemerflexibilizaçãotrabalho