pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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segunda-feira, 13 de março de 2017

O caso Karnal-Moro, os intelectuais e as tentações midiáticas


Não há veneno maior para o caráter, suborno maior de pessoas do que a perspectiva de se tornar celebridade, a pessoa que, levada por Mefistófeles, chega ao Olimpo da mídia de massa e imagina que se torna um semideus.
Ministros vetustos do Supremo ou juízes provincianos, intelectuais sólidos ou enganadores, jornalistas jovens ou veteranos, empresários, socialites, poucos escapam à   sedução da mass-mídia. E com as redes sociais e a facilidade extrema de difundir mensagens, a busca da fama instantânea se tornou doença universal.
Como esquecer o rosto do decano Celso de Mello, deslumbrado como uma jovem debutante ao ser filmado em um shopping por um fã sedenta de justiça? Ou o Procurador Geral da República posando para uma foto com um cartaz na mão e um sorriso bobo na boca? Ou o jovem procurador montando um power point com a mesma intenção da atriz de festival de cinema mostrando pernas e busto: atrás do fato inusitado capaz de disputar manchetes?
A mídia seduz pela exposição ou amedronta pelos ataques. É só conferir o que se passou com Luís Roberto Barroso, quando o exército de blogueiros da Veja mirou nele e esguichou alguns jorros de esgoto.
Não se trata apenas da vaidade. Em muitos casos, é um negócio rentável, aporta de entrada no milionário mercado de palestras e consultorias. A exposição em um grande veículo de mídia tornará o mais primário dos comentaristas um guru para um vasto público. É uma das poucas portas de entrada para esse mercado.
Sondados pela mídia, os intelectuais são alvos frequentes de uma mídia, sempre preocupada em encontrar endossos supostamente científicos para suas bandeiras rasas .
Não significa que todos os cooptados são primários, longe disso. Mas o cenário de competição muda substancialmente. É árdua a construção de reputação no ambiente altamente competitivo da academia. De repente, por razões variadas, poucas delas ligadas à excelência do pensamento intelectual, alguém é alçado à condição de celebridade.
Há exemplos de intelectuais que não perdem as linhas-mestras de seu pensamento, mesmo ante a exigência de simplificação e de uso de bordões pela mídia de massa. Nem se deixam seduzir pela futilidade de uma vitrine em que as regras para ingresso poucas vezes batem com a excelência do pensamento.
Mas há outros que, vendo pela frente aquela arma de fácil utilização, acabam assimilando tanto o estilo superficial da mídia que se colocam abaixo da linha, mesmo na métrica pouco seletiva da mídia. É o caso de Roberto da Matta, cujas crônicas se tornaram um monumento ao ego e de uma fragilidade tal que poucos acreditariam ser de autoria de um intelectual referencial anos atrás.

Caráter e deslumbramento

Não se deixar seduzir por esse jogo de lisonja-ameaça não depende de idade ou formação. Caminha mais pelo campo do caráter.
A surpresa de muitos ao confrontar o desempenho de Ministros do Supremo com sua história pregressa é a mesma dos que se escandalizam comparando intelectuais antes e depois de se tornarem celebridades. São bichos diferentes, naturezas distintas, assim como uma molécula quando se altera um micro-organismo qualquer dela. Não há como prever o que essas mudanças radicais perpetrarão no comportamento da pessoa, pois exigiria um teste de caráter impossível de ser feito previamente. Como saber antecipadamente seu comportamento na hora de adotar uma posição que possa contrariar  a maioria, sua resistência para não sucumbir ao aplauso fácil, não aderir a modismos que deponham contra seus valores.
Hoje, no microcosmo das redes sociais, o tema recorrente é o encontro entre o historiador Leandro Karnel e Sérgio Moro. O historiador foi vítima de uma foto etílica – da qual se desculpou. E, em sua obra midiática, não há nada que o coloque no nível de um Da Matta.
Mas o caso Karnel-Moro, por vários motivos me veio à mente, enquanto conversava com a Dodó, 17 anos, exposta ao mesmo tipo de sedução, às mesmas tentações que acometem figuras públicas de todos os quilates – embora no microcosmo de uma comunidade de Facebook.
 Dodó descobriu nas redes sociais uma vocação de polemista. Aderiu a alguns grupos feministas e se dispôs a discutir questões ligadas ao tema. Chegou a organizar a greve dos shortinhos em seu colégio. E sentiu também a reação contrária dos colegas "coxinhas” às suas intervenções no Face. Nem isso a inibiu.
As colegas feministas do Face descobriram que era boa argumentadora e passaram a encaminhar para ela argumentos contrários, para serem desconstruídos. Cada resposta merecia centenas de likes e comemorações, tipo: lacrou!, que significa destruiu a oponente.
Ora, mas não era isso que a Dodó imaginava das discussões. Ela me explica, agora, que polêmicas existem para enriquecer o conhecimento de lado a lado. E detesta quando algumas colegas se juntavam para malhar alguma integrante nova do grupo, que deixasse escapar alguma expressão condenável ou politicamente incorreta ou meramente não aceita pela maioria.
Não vacilou. Rompeu com parte do grupo, abriu mão dos likes indiscriminados, da popularidade fácil. Hoje mantém um círculo mais restrito de amigas feministas, consistente, que a apoiam, respeitam sua opinião e concordam ou discordam de suas opiniões com um discernimento muito maior. Abriu mão da popularidade e preservou o prestígio e os princípios – conceitos distintos que, muitas vezes, nem Ministros do Supremo conseguem entender a diferença.
Muitas vezes, me dá um orgulho danado dessa rapaziada que está entrando no mundo com as principais referências nacionais destruídas pela falta de princípios e valores que acometeu o Brasil institucional.

Luís Nassif, Jornal GGN

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domingo, 12 de março de 2017

Coxinhas e petralhas: para além de mais um falso dilema da classe média brasileira



Mércio Gomes - Maio 2016

Eu sou oposição ao seu governo, presidenta Dilma, mas eu tenho um contentamento em poder dizer isso na sua frente e dizer que vivo num Estado que se pretende utopicamente em realidade, em transformação, de ser um Estado democrático.
Atriz Letícia Sabatella, em discurso no Palácio do Planalto, 31 de março de 2016.
Eu estava em São Paulo, uns cinco anos atrás, quando ouvi a palavra coxinha pela primeira vez usada para caracterizar uma pessoa. Meu amigo, que mora num bairro de classe média paulistana, rotulou um colega por esse nome e me explicou: “É aquele cara todo certinho, bem formado, com espírito competitivo, ideias moderninhas, carro bom, bem viajado, etc.” Ah, como fulano, eu disse, mencionando uma pessoa que conhecemos com essas características: formado na USP, dono de Audi, fala línguas, sedutor, etc. “Não, não, esse é gente boa, não é coxinha”. “Então como sicrano”, disse-lhe eu mais uma vez mencionando outro conhecido: fez PUC, direito, jornalista, Land Rover velho, aventureiro, etc. “Não, não, quer dizer, talvez, mas ... não.” “Então, quem é coxinha, meu caro amigo?” “É o cara que tem ideias meio de direita, pensa muito em grana e status, frequenta lugares da moda e é meio cuzão”. A palavra cuzão, típica de paulista, ainda não chegou por estas bandas. Também é difícil de explicar para quem não é nativo do linguajar e da cultura paulistanos. É evidente que, naquele momento, nada ficou claro para mim. De algum modo, esse meu amigo me parecia meio coxinha por várias características, mas também não, por outras. Por outro lado, não era cuzão, não, de jeito nenhum.


Passados uns tempos, comecei a ouvir a palavra sendo vocalizada mais frequentemente. Logo entendi. Coxinha é a pessoa que não se afina com o PT, ou com partidos que fazem parte diretamente dos governos do PT, ou com o apoio ao governo atual. Coxinha, consequentemente, é o cara marcado como de direita, mas também como de uma esquerda infiel por não ser PT, nem PSOL, nem PCdoB. Cuzão, ainda não entendi direito. Certamente é alguém que você pode até gostar, mas não admira de jeito nenhum, por talvez ser meio bobão, um tanto babaca, sem noção, além de fazer certas coisas que podem levá-lo a ser caracterizado como mau caráter, outra expressão dirigida a gente com suspeitosos defeitos.
Nos últimos tempos coxinha virou um epíteto acusatório, e a palavra corre solta pelas redes sociais. Sob muitos aspectos, no calor das disputas político-ideológicas do momento, coxinha se opõe a mortadela, que representa o sanduiche doado aos participantes de passeatas de sindicalistas, ou petralha, palavra criada pelo jornalista Reinaldo Azevedo, que seria o petista radical (para Reinaldo, mancomunado ou insensível às roubalheiras de políticos dos governos do PT), que não vacila por suas convicções, suas benesses e seus heróis. Ou que se tornou um ferrenho militante do governo atual.
Acontece que não se precisa ir muito longe para se compreender que aquilo que as pessoas dizem de si mesmas e aquilo que falam sobre os outros está quase sempre em polos opostos. A autoimagem do indivíduo é sempre delineada por um desejo muito grande de se parecer sempre bem, de quem os melhores adjetivos podem ser servidos para caracterizá-lo. Já, ao contrário, a imagem do outro é carregada de tintas foscas, melhor assim para não fazê-lo brilhar. Portanto, é fácil se autoenganar e não saber as motivações mais recônditas de sua alma.
Um dos aspectos psicológicos que mais afastam a pessoa de sua realidade é não conseguir se inserir no contexto em que está, seja por ignorar sua própria história coletiva, seja por desconsiderar sua própria vivência. Daí o “nunca antes na história deste país” e o “é só você querer”, duas expressões tornadas clássicas pelo uso frequente nos últimos anos pela hostes petralhas. Portanto, nessas circunstâncias, é fatal a autoenganação. Como já demonstrou o biólogo Robert Travis, a autoenganação, por ser inconsciente, não é desvirtude dos parvos, ao contrário, serve aos espertos para criar uma vantagem para si. Você nem sabe que está se autoenganando porque o resultado disso é que você está se saindo muito bem.
Esse é o caso de quem acusa o outro de coxinha ou de petralha. Frequentemente a pessoa partilha das mesmas condições sociais e culturais para ser merecedora de qualquer dos epítetos, mas se autoengana ao não se incluir nessas circunstâncias para melhor acusar os outros de uma característica que ele supostamente não detém. Diferença fundamental: o coxinha é acusado de ser elitista e não querer a ascensão do povo; o petralha é visto como um fanático por um líder, mas que no fundo quer é ficar no poder.
É preciso que fique claro que esse debate de acusações se dá exclusivamente no âmbito de segmentos de uma mesma classe social brasileira. As pessoas que se acusam mutuamente de coxinhas ou petralhas são quase todas da mesma classe social, partilham das mesmas condições educacionais e participam do mesmo panorama cultural. Isto é, é gente da classe média brasileira falando de gente da mesma classe média brasileira. Muitas vezes são pessoas da mesma família.
O povo trabalhador está, até o momento, totalmente divorciado dessas acusações. Acontece, apenas, que uma, digamos, facção da classe média está com o PT e seu governo e a outra não está; uma acha que o governo foi eleito e deve continuar, a outra acha que o governo perdeu a legitimidade por crimes administrativos e outros. Uma espera muito desse governo, a outra nunca esperou ou não espera mais grandes coisas. Uma acha que sem o PT o Brasil não existiria com a configuração que tem hoje, a outra acha que o Brasil nunca precisou do PT para se ter a si mesmo, e, sem o PT, com outra visão, teria outra configuração, quiçá até mais bem disposta. E, no processo de autoenganação, cada qual acredita piamente que o Brasil ou está passando pelo perigo de um golpe político e uma possível volta a tempos autoritários, ou está irremediavelmente afundado na corrupção e na autodestruição.
Em outras épocas, quando a discussão política girava em torno de questões levantadas pela temática do marxismo, os atuais coxinhas seriam chamados de pequenos burgueses; e os petralhas de comunas. As discussões eram igualmente virulentas, mas os termos eram diferentes, soavam teóricos e altissonantes. Quem tem razão, Jean-Paul Sartre ou Raymond Aron, por exemplo; Florestan Fernandes ou Gilberto Freyre, outro exemplo. Mas o marxismo deixou de ser o pano de fundo das discussões políticas, tendo sido substituído por uma linguagem propositadamente difusa e imprecisa, porém não menos politicamente influente, característica das contribuições dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Michel Foucault, como veremos abaixo. Aí, a discussão, quando esbarra num beco sem saída, naquela zona em que a razão discursiva dá vez à crença, deteriora-se para o deboche.
O fato é que a visão marxista do Brasil foi ultrapassada nas discussões e celeumas da atualidade por uma visão filosófica e política pós-moderna, onde a temática de classes, soberania política, desenvolvimento econômico e responsabilidade individual foi, se não substituída, ao menos diluída por uma nova temática difusa de coletividades localizadas e minoritárias, conexões infrassubjetivas (rizomáticas) entre sujeitos políticos, consumismo como base da produção econômica, desconsideração do sentido histórico dos povos e nações e, enfim, uma espécie de fuga coletiva da responsabilidade do indivíduo, agora definitivamente considerado refém da máquina do mundo. É desconcertante, no Brasil de hoje, ver um velho intelectual marxista perorando sobre o caráter revolucionário da classe trabalhadora, assim como, na década de 1950, era já penoso ouvir um defasado intelectual positivista descortinar sua erudição sobre a história inexorável da evolução da humanidade. Hoje, a classe trabalhadora é considerada um conjunto maleável de minorias e subjetividades múltiplas que se identificam como trabalhador caso isto lhe convenha, independente de sua real, objetiva, posição socioeconômica na sociedade. Um ricaço pode virar trabalhador, porque, afinal, ele se conecta com o mundo do trabalho.
Parece muito longe o tempo em que brasileiros de esquerda davam algum valor para uma sociedade que adotasse uma economia com algumas características do tipo socialista. Hoje em dia, qualquer modelo de economia comunista ou socialista não é levado em consideração por ninguém, a não ser, romanticamente, para Cuba e, com desprezo, para a Coreia do Norte. Entretanto, ainda que dominante, no Brasil, o capitalismo brasileiro continua impregnado de instituições de ordem patrimonialista e clientelista, de modo que a discussão sobre o modo capitalista de se exercer nas sociedades só penetra nos debates sobre o Brasil de soslaio e frequentemente para servir de boneco de judas no sábado de Aleluia.
Quase todo mundo acha, por exemplo, que a economia brasileira precisa adquirir mais produtividade, porque a maior produtividade é um ganho econômico que reverbera no plano social. Entretanto, logo que o tema é acolhido para se transformar em política pública, dá-se a primeira objeção de cunho ideológico (capitalismo com clientelismo): isto não pode acontecer, pois vai provocar uma maior exploração do trabalhador. Os economistas que se assumem capitalistas, chamados de conservadores, propõem que haja mais investimentos em aplicação de tecnologia, em melhora na organização interna das empresas e numa competitividade maior entre elas. Como método, isso significaria mudar a gestão do trabalho, reforçar a sua contabilização, ampliar a educação técnica, destravar a burocracia e os impostos e, no plano mais geral, reequacionar a relação entre trabalhador e a previdência.
Pontos pacíficos? Nada disso. Na discussão atual o economista formado nas universidades públicas brasileiras só concordaria se essas mudanças viessem para serem aplicadas às empresas privadas, e não às estatais, como a Petrobrás, ou ao serviço público, como as universidades. Teme-se por corte de empregos e perda de direitos adquiridos. No exagero, colocar-se-iam em risco direitos pétreos constitucionais. Por sua vez, quando confrontado com a facilitação de verbas públicas do BNDES para algumas poucas empresas, o economista com vergonha de se mostrar capitalista só aceitaria se tal política tivesse como finalidade fortalecer as empresas estatais.
Enfim, para dizer o mínimo, os economistas não se entendem no Brasil há muitos anos. Os economistas de esquerda ainda carregam consigo o trauma da imposição econômica feita durante o período da ditadura militar e, ao procurar proteger os direitos trabalhistas existentes, acobertam a influência do clientelismo de classe, especialmente os direitos de empregos de classe média. Por sua vez, os economistas capitalistas não suportam mais a tendência do governo em proteger as estatais, mas torcem a cara para acusações de favorecimento do patrimonialismo, que é o amparo da classe alta. Eis por que, ao contrário dos Estados Unidos, onde a política nacional se concentra numa discussão sobre ética e identidade nacional, a economia no Brasil ainda é o principal osso de disputa na nossa liça política, não porque haja dúvidas sobre o domínio do capitalismo em nosso país, mas porque o tema está encoberto de subterfúgios e autoenganações para fugir das questões do patrimonialismo e do clientelismo de classe.
Voltando à fofoca, mesmo pertencendo à mesma classe social, em sua diversidade estética e de propósitos, há alguns motivos para alguém ser rotulado de coxinha ou de petralha. O petralha mais renitente é em geral um membro do governo do PT, ou de algum partido a ele relacionado, ou de alguma ONG que aufere recursos do governo, ou do estrato social que depende do Estado. O menos renitente pode ser um funcionário público, um sindicalista de classe média, ou um membro da geração que sentiu tão arduamente as agruras políticas e culturais do período ditatorial que, passados 50 anos, ainda lamenta por sua existência atual. Em muitos casos, o petralha mediano sabe fazer o jogo político e pode correr de um governo a outro sem muita dificuldades. Muitos militantes do petralhismo vieram do tempo do governo FHC, ou antes até.
Faz diferença cultural ser um petralha ou ser um coxinha. Há os puros-sangues petralhas intelectuais, como os professores, estudantes e funcionários públicos que cultivam um discurso de origem marxista porém já encharcado pela penetração triunfante das propostas filosóficas de Deleuze e Foucault, como dito acima. Estes, inesperadamente, por mais que incompreensíveis sejam para a grande maioria dos seus leitores, se esparramaram e se diluíram de muitas formas pela sociedade letrada brasileira, talvez porque se coadunassem como parte das condições econômicas, políticas e culturais dos tempos atuais, tempos pós-modernos.
Os conceitos e argumentações desses autores se tornaram pedras angulares do comportamento social e do pensamento ideológico atual, tal como o sentimento prevalente de que todo comportamento humano é dominado pela vontade do poder; que a vida em geral está em eterna transformação sem nenhum sentido, portanto, é algo indefinido; que o ser humano (e também a sociedade e a nação, qualquer que seja ela) não possui propriamente uma identidade, mas tão somente multiplicidades ou o potencial múltiplo de contínuas variações de variações de “identidades” segundo suas conexões “rizomáticas” com outras multiplicidades, e, para encurtar, que é inútil e fantasioso buscar algo verdadeiro, pois a verdade não passa de uma asserção discursiva momentânea que interrompe o fluxo de olhares e perspectivas, e que, no fundo, só serve a quem a emite (favor ler de novo a epígrafe deste artigo).
Por sua vez, essa visão filosófica se faz extremamente atraente porque estimula uma abertura ilimitada para uma espécie de libertarianismo existencial, cultural e político, e contém altas doses de promessas de autonomia do homem. Por exemplo, no plano político-cultural, para os seguidores conscientes ou inconscientes de Deleuze, só os segmentos sociais que estão por baixo ou à margem de alguma situação de poder social estabelecido — mulheres, minorias étnicas e sexuais, e o que Marx chamaria de lumpenproletariado — se constituem por aquilo que Deleuze chama de devir, i.e., o ímpeto de mudança, de dispersão e de adaptação — portanto, de espírito crítico e de criatividade. Os demais segmentos sociais de algum modo estabelecidos estariam condenados a estiolar em seus míseros e desbotados lugares do não-devir, numa pretensa autossuficiência própria a uma sociedade capitalista (aliás, capitalista aqui é palavrão mais feio do que quando emitido por um stalinista).
Nessa atmosfera político-filosófica, com consequências sobre o pensamento e o comportamento dos brasileiros de várias gerações pós-1970, petralhas ou não, há algumas variações do pensamento que se assentam no campo teórico de um pós-marxista como Pierre Bourdieu, para fortalecer a ideia de que, nas condições atuais de vida, tudo é embate, tudo é tensão, tudo vem carregado de subterfúgios e manobras.
E, ainda que com menos popularidade, penetra nesse comportamento pós-moderno a visão de que a vida é um conjunto de ações que se interpenetram como numa rede, tal qual se vê nas comunidades da internet, de conexões praticamente infinitas, onde os interesses de cada um (pessoa, instituição, grupos) se assumem e se dissimulam para melhor tirar vantagem e estão à espreita dos incautos para pegá-los de surpresa. Em suma, este espírito do nosso tempo brasileiro de classe média nos faz conviver com espectros de todos os tipos e por todos os lados, fazendo do mundo (sua cidade, sua comunidade, até seu próprio lar) não somente uma arena de competição, mas um lugar onde prevalece um sentimento próximo do paranoico e faz do constante embate sua razão de ser. Não é por outro maior e mais profundo motivo que emergiu o discurso vocalizado de vários modos pelos mais eminentes intelectuais acadêmicos brasileiros segundo o qual a história do Brasil tem sido desde sempre uma farsa completa — no caso, para alguns, só redimível pela chegada do PT.
O pensamento acima delineado, que podemos cognominar de “marxista-deleuziano” (por mais que logicamente contraditório isto pareça ser), perpassa com maior ou menor intensidade a sociedade brasileira letrada, de classe média, que está nas ruas em protesto. No caso dos chamados coxinhas, a variação desse pensamento tende a se opor um tanto aos seus pontos mais radicais, isto é, aqueles que recusam a identidade do ser. Pudera, dado o predomínio desse discurso, os coxinhas estão na defensiva — mas ao menos querem que o ser tenha identidade palpável.
Entretanto, é preciso apontar desde já que há dois tipos de coxinha: os de esquerda e os de direita. Os de esquerda tomam como base a velha dialética marxista, à la Lukács ou Sartre ou até à la Bourdieu, mas fugindo dos filósofos já mencionados, agrupados como filósofos da diferença. Acham que entre esses últimos, por insistirem na volatilidade do comportamento e da verdade, falta-lhes sentido ético, por um lado, enquanto prevalece um ilusório radicalismo teórico, por outro. Os coxinhas de esquerda detestam as linguagens próprias de cada um dos filósofos da diferença, cheias de conceitos inusitados e aparentemente contraditórios, os quais consideram todos carregados de certa ambiguidade e inconsistência, difíceis de serem monitorados por quem não se dedica profundamente às novas e cambiantes palavras dos mestres. Os coxinhas pensam que Gilberto Freyre ou Darcy Ribeiro, ainda que de gerações diferentes e inclinações políticas distintas, pensam o Brasil por uma veia culturalista que lhes permite sentir na história do Brasil uma realidade em formação e algum conforto para sua existência atual. Coxinhas esquerdistas, já calejados por prévias ilusões políticas, principalmente a comunista, pensam que só com uma afirmação cultural radical é que o destino do Brasil pode encontrar seu caminho de desenvolvimento. Por conseguinte, consideram que a democracia é uma negociação política razoável e que as formas atuais do capitalismo devem ser acatadas como parte da modernização do Brasil, apenas para serem submetidas aos contornos mais característicos da identidade brasileira — que, aliás, deve se constituir.
Já os coxinhas de direita, ainda não bem assumidos, ou, quando assumidos, um tanto estrepitosos, estão buscando em autores conservadores um caminho mais seguro para a vida que veem se desenrolando pelo mundo. Uma vida que lhes parece caminhando para um abismo pela falta de fé cristã e pelo afã de mudanças e do consumismo. Filósofos como Roger Scruton, Eric Voegelin e o brasileiro Olavo de Carvalho são ícones do conservadorismo brasileiro, ou melhor, neoconservadorismo, que se descortina na atualidade. Os neoconservadores brasileiros, apesar de sua estridência verbal e política, se preparam a cada dia para produzir ideias e novos autores que um dia possam ser reconhecidos e influenciar os destinos do Brasil, tal como, imaginam, já o foram Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) e Vicente de Carvalho, entre outros. Do ponto de vista político-econômico os coxinhas de direita acatam as condições e exigências clássicas do capitalismo liberal ou socioliberal, se tal ainda puder existir.
Assim, os coxinhas vêm de duas direções opostas. E há evidentemente uma briga política se oferecendo como palco dessa intensa, obtusa e insciente contenda intelectual de bastidores brasileiros. Por enquanto os coxinhas de direita e esquerda tocam o banjo no mesmo diapasão porque aparentemente têm um adversário comum formidável — os petralhas, que, com o poder, ainda que, aparentemente, a escorrer entre os dedos, se apresentam com um vigor fantástico, com a gana de quem quer sobreviver. Entretanto, em breve, a aliança inopinada desses contrários — Bolsonaro e Gabeira, para exemplificar — se quebrará, na medida em que a causa petista for perdendo o fôlego e diminuindo a resistência à perda de poder, no caso, tanto político quanto intelectual. É muito provável que boa parte do atual quadro do petralhismo, os gentis filopetistas que se apresentam como denodados defensores de uma democracia unívoca, só possível sob o petismo, debandem para as hostes dos atuais coxinhas de esquerda em busca de uma nova visão de esquerda, mais aberta e mais generosa, na medida em que forem se dando conta de sua desconfortável posição filosófica.
Seja como for, atirando ao ar esse jogo de acusações mútuas que cada vez mais vai se transformando em lixo da história, vem chegando a hora de o Brasil não mais poder fazer vistas grossas para a nossa inusitada situação política, econômica e principalmente cultural. Na política a principal novidade é o reconhecimento cabal, por provas evidentes, da corrupção que nos atinge de um modo avassalador. Abrir a janela da verdade está nos levando para o sufoco do fedor que nos penetra, porém, em consequência, nos empurrando para a tomada de atitude determinante. A segunda é a necessidade irrecorrível da transparência do Estado, com tudo a que isso se refere. Na questão econômica está evidente a necessidade de se reconhecer que o desenvolvimento do país exigirá um novo modelo da relação entre capital, trabalho, tecnologia e o estado brasileiro, bem como novos métodos de trabalho, de apuração de lucro, de investimento do capital e de distribuição da riqueza privada e social. E no plano cultural, haveremos de nos orientar em torno de um comprometimento firme entre o povão trabalhador e a classe média construtora de um novo discurso político e cultural. Esse comprometimento deve se pautar não só pelas chamadas políticas de compensação e de direitos humanos, mas sobretudo por uma política educacional que reconheça de cara, para melhor superá-lo, o papel nefasto do professorado (de origem majoritariamente da classe média) na educação da população pobre brasileira. Papel este exercido por uma retórica de esquerda (o Estado opressor), esquentada por discursos de direitos de trabalhadores (o Estado como patrão), mas que serve só a si próprio, irresponsavelmente relegando seus deveres e comprometendo as mínimas chances de fortalecimento da classe trabalhadora e de sua integração na civilização brasileira.
Portanto, que nos desarmemos todos das mútuas acusações tolas e das firulas de palavreado que nos dominaram nos últimos tempos, e partamos para o que interessa: repensar o Brasil sob um novo paradigma a ser construído depois da iminente borrasca que se nos avizinha, não só por um possível impeachment da presidente do Brasil (ou sua continuidade como pato manco), mas também pela indefinição paralisante sobre como sair do declínio econômico e da depressão cultural que nos acometem.
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Mércio Gomes é antropólogo.

(Publicado originalmente no site Gramsci e o Brasil)

Nunca existiu governo do PT

Cláudio Oliveira


Nunca existiu governo do PT

O ex-presidente Lula e o presidente Michel Temer (Foto: Arte sobre foto de André Coelho/ Agência O Globo)


A maioria dos chamados “erros do PT” são erros de uma coalizão entre partidos de esquerda e de direita que governaram o país nos últimos treze anos


Tenho evitado escrever sobre a situação brasileira aqui na coluna. A ideia original era que eu escreveria sobre Paris, sobre o que vejo e sobre o que encontro ou nas viagens que faço por aqui. Além do mais, como estou distante, fica mais difícil acompanhar tudo o que está acontecendo, mesmo que a primeira coisa que eu faça, todos os dias, ao acordar, seja ler os jornais brasileiros. Também tento me informar através dos blogs de jornalistas independentes (chamados pela direita brasileira de blogs sujos) e também um pouco através do que as pessoas postam no Facebook e das conversas por áudio e câmera com amigos e familiares. Mas isso é diferente de estar no Brasil, vivendo no dia-a-dia a coisa mesma.
A situação brasileira é tão complexa que é difícil decidir por onde começar uma vez que decidimos falar sobre ela. Talvez um começo seja lembrar que ela não é desconectada da situação internacional. Nem nunca foi. Assim como o golpe de 1964 não pode ser entendido fora de um contexto internacional – a Guerra Fria, a luta dos Estados Unidos e dos seus aliados contra a emergência de países comunistas -, o mesmo deve ser dito da situação que vivemos agora e do golpe de Estado que sofremos no ano passado. Só que essa situação internacional não é mais a mesma, mesmo que a luta de algum modo permaneça a mesma. Os lados da luta se mantêm inalterados, ainda que hoje seus instrumentos sejam diferentes. Os contextos mudaram.
Não há mais o fantasma do comunismo. A morte de Fidel veio sacramentar esse fato. O que existe hoje não é mais a ideia de revolução, de constituição de um Estado socialista. Ninguém mais pensa nisso como uma real possibilidade, a não ser alguns poucos autores. Mesmo a China representa hoje outra coisa, um outro tipo de ameça. A China não é hoje a ameça comunista, mas apenas a ameaça chinesa. Não vejo, por exemplo, a China muito concernida pelo que acontece nos outros países, não é muito clara para mim a atuação internacional chinesa, enquanto uma atuação política. O fantasma hoje é outro.
O perigo agora para a direita é, a meu ver, a chegada ao poder, via voto popular, de lideranças de esquerda. O fato de muitas dessas lideranças terem chegado ao poder, via voto popular, foi o fato que marcou a década passada, a primeira década do século 21. Essas lideranças de esquerda não só chegaram ao poder, mas implementaram políticas sociais que modificaram a vida de milhões de pessoas. Acendeu-se uma nova luz vermelha. O que implicou um novo modo de combater esse novo tipo de ameaça.
Podemos dizer que já era essa a tendência na América do Sul quando ocorreram os golpes militares das décadas de 1960 e 1970. A eleição de Allende, no Chile, e a de Jango, no Brasil, mostravam que a esquerda já estava buscando uma chegada ao poder através das eleições. E ela estava sendo vitoriosa. Mas a resposta da direita, todos nós a conhecemos, foram os golpes militares no Chile e no Brasil. Ou seja, é uma tradição da direita, pelo menos na América Latina: ela só respeita a democracia quando vence. Quando perde, ela produz golpes de Estado. Essa história se repetiu no Brasil em 2016, mesmo sem que os militares tenham tido participação no golpe dessa vez. Ela já tinha acontecido, do mesmo modo, no Paraguai, em 2013, com o impeachment de Fernando Lugo. Mas em Honduras, em 2009, a deportação de Manuel Zelaya, considerada por uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas como um golpe militar, não aconteceu sem a atuação das forças armadas daquele país.
Após a queda das ditaduras militares que se impuseram na segunda metade do século passado na América do Sul, houve um fortalecimento, nós acreditávamos, das instituições democráticas. Achávamos que um golpe nunca mais aconteceria. E mais uma vez, a esquerda buscou o caminho democrático das urnas para chegar ao poder. O que não é fácil num país em que todas as instâncias de poder, dentre as quais a do poder midiático, são dominadas pela direita.
A esquerda foi vitoriosa na maioria dos países da América do Sul e em alguns da América Central no início do século 21. Essa vitória não implicou, no entanto, em nenhuma quebra ou modificação da economia de mercado, mas introduziu mudanças significativas nas ações sociais dos governos eleitos. Em outras palavras, ninguém tentou implantar nesses países uma sociedade de tipo comunista ou socialista. Os governos implantados estavam mais para a clássica receita da social-democracia: economia de mercado com justiça social. No Brasil há coisas estranhas: o Partido dos Trabalhadores, em tese socialista, buscou exercer, de fato, um governo social-democrata, enquanto o Partido da Social Democracia Brasileira, apesar do nome,  não tem nada de social-democrata, tendo praticado um governo totalmente neoliberal.
A lição que tiramos, no Brasil, dos anos de governo do PT é a de que a social-democracia, aquela praticada pelo PT, já é suficientemente perigosa e insuportável para a classe dominante brasileira, mesmo que esse “ensaio” de social-democracia estivesse ainda muito distante do que seria uma social-democracia de fato. A única social-democracia que a classe dominante brasileira pode suportar é aquela do PSDB, ou seja, um neo-liberalismo que tem a social-democracia apenas no nome. Podemos tirar a mesma conclusão do países da América Latina em geral (a exceção, até agora, é o Uruguai).
De fato, o que vivemos hoje é uma derrota generalizada das esquerdas no mundo, em especial na América Latina. O caso Canadá é uma incógnita. E eu não tenho informações suficientes para comentar o caso (lembremos apenas que o Canadá vinha de um longo período de governo pelo Partido Conservador e isso deve ter produzido um esgotamento). O paradigma do momento não é, no entanto, Justin Trudeau, mas Donald Trump, com seu correspondente brasileiro, ou melhor, paulista (espero que ele permaneça um correspondente apenas paulista), João Dória.
Há uma tendência conservadora no mundo como um todo. Mesmo um oásis progressista como a Holanda sente essa tendência: “Há uma atmosfera conservadora”, diz Jonathan Foster, dono de um coffeeshop em Amsterdã, leio em notícia publicada na Folha de S.Paulo. A observação do proprietário se deve à notícia do fechamento do Mellow Yellow, o mais antigo coffeeshop de Amsterdã, no qual a venda e consumo de maconha eram tolerados desde 1972. O fechamento da casa se deve a uma nova “medida que proíbe a venda de maconha a menos de 250 metros de escolas —o Mellow Yellow estava a 230 metros de um curso de barbeiro”. A medida teve que ser aceita pela prefeitura de Amsterdã, mais liberal, como uma espécie de negociação com o governo nacional, mais conservador, que queria simplesmente proibir turistas de frequentarem esses estabelecimentos. “Sabemos que isso chateia quem foi afetado”, diz, à Folha de S.Paulo, Jasper Karman, porta-voz da prefeitura. “Tivemos que escolher. Acreditamos ter tomado a decisão certa.”
Cito essa situação porque para mim ela é um paradigma do que temos na América Latina, onde mesmo governos de orientação socialista ou social-democrata tiveram que permanentemente negociar com uma classe dominante extremamente conservadora. Sabemos que essa negociação chateia muita gente, sobretudo aqueles que são afetados por ela, mas foi uma negociação sempre necessária para evitar um mal pior.
Fiquemos no caso do Brasil, e do governo do PT. Durante todo o seu governo, Lula e Dilma tiveram que negociar os anéis para não perder os dedos. O que lhes rendeu inúmeras críticas vindas da esquerda, seja de partidos da esquerda, seja simplesmente de cidadãos que por terem votado nos candidatos do PT esperavam um governo 100% de esquerda. As pessoas são inocentes ao ponto de acreditarem que, após ter chegado ao poder, o PT poderia ter feito o que quisesse. E se não o fez, é porque não quis. É o tal do mito voluntarista da “vontade política”.
No Brasil de hoje, fala-se muito dos “erros do PT”. Mas esses “erros” são mesmo do PT, devem ser atribuídos unicamente ao PT ou, antes, eles teriam que ser atribuídos à classe dominante brasileira, àquele 0,1 % da população brasileira que detém a metade da riqueza de tudo o que é produzido em nosso país e que traduz esse poder econômico em poder legislativo, judiciário, executivo e, sobretudo, em poder midiático? Será que é tão difícil para as pessoas entenderem (refiro-me às pessoas que votaram no PT e que se dizem desiludidas) que o PT nunca governou sozinho esse país, mas sim junto com a direita?
Agora nós podemos ver a olho nu com quem o PT estava governando. Não é senão isso o governo Temer. Portanto, a questão que nós temos que colocar agora deve ser invertida: como o PT conseguiu fazer tudo o que fez mesmo tendo que governar com esses caras? Ora, o fato de que o governo do PT encabeçava esse governo de coalizão colocava certos limites à atuação da direita dentro do governo, mesmo que essa direita também colocasse limites à atuação do PT. O que vemos agora é essa direita atuando sem nenhum limite.
Nós nunca tivemos um governo do PT propriamente dito, nem no nível nacional, nem no nível estadual. Simplesmente nunca houve um governo de esquerda propriamente dito no nosso país. Nós não sabemos o que é isso. Portanto, não podemos fazer exigências ao PT como se isso tivesse algum dia existido. Em países como Canadá e Inglaterra, um partido só pode chegar ao poder se tiver maioria no Congresso. Em outras palavras, o partido que obtém maioria no Congresso nomeia o primeiro ministro. No Brasil, não existe nada disso. E como existe uma pulverização dos partidos políticos (eterno tema de uma reforma política que nunca acontece), surgiu o tal de “presidencialismo de coalização”.
Portanto, precisamos levar em consideração que a maioria dos chamados erros do PT não são erros do PT, são erros de uma coalizão entre partidos de esquerda e de direita que governaram o país nos últimos treze anos. É claro que, além desses, há erros que podem ser atribuídos, a meu ver, não tanto ao PT, mas ao Lula e à própria Dilma enquanto governantes. Por exemplo, todas as nomeações de juízes para o Supremo Tribunal Federal foram erros. Nem Lula nem Dilma foram capazes de realmente constituir um STF progressista, mesmo que possamos ver algum avanço da Corte atual em relação a um ou outro ponto. Mas o STF continua a serviço da classe dominante brasileira. Também foram erros de Lula e de Dilma terem dado todas as condições para o surgimento desses monstros que se tornaram o Ministério Público Federal e a Polícia Federal. Não ter politizado as nomeações foi um erro, pois não politizá-las pela esquerda significa simplesmente permitir a politização pela direita. Temos hoje um Judiciário caracterizado pela ideologia das classes dominantes e nem Lula nem Dilma foram capazes de produzir qualquer tipo de mudança nesse sentido. E tudo em nome de uma neutralidade democrática que eles julgavam ser o procedimento correto a ser adotado nessas nomeações.
Nós poderíamos elencar muitos outros “erros” dos governos Lula e Dilma, mas creio que os “erros” pelos quais eles são acusados, enquanto “erros” do PT, têm outra natureza e só podem ser entendidos à luz das condições complexas, para não dizer complicadas, em que eles tiveram que exercer seus mandatos presidenciais.
Hoje já temos elementos suficientes para poder compreender que Lula não é nem nunca foi apenas um líder da esquerda brasileira. Enquanto tal, ele jamais teria chegado ao poder, jamais teria ganho uma eleição presidencial. A esquerda não tem como chegar ao poder no Brasil, e mesmo que chegue, cai.
Lula não chegou ao poder apenas como um líder da esquerda. Ele chegou ao poder como um líder da esquerda que conseguiu negociar um acordo com a direita. Isso ficou já totalmente claro em sua primeira eleição  – não só na famosa Carta aos Brasileiros – e foi só por isso que ele finalmente conseguiu vencê-la após três tentativas fracassadas. Foi só quando incluiu explicitamente a direita em sua candidatura que Lula pôde vencer a eleição presidencial. Em outras palavras, ele continuou sendo um sindicalista enquanto presidente. Ele continuou sendo o representante da classe trabalhadora a negociar com os “patrões”. O fato de que ele era agora Presidente da República não o tornou um “patrão”. Ele continuou sendo um trabalhador. A única coisa que o diferenciava dos outros trabalhadores era exatamente o fato de que, enquanto os representava, era recebido pelos “patrões” ou os recebia no Palácio do Planalto. Mas ele jamais se tornou um patrão. A prova cabal disso é que a classe dominante, a classe dos patrões, continuou tratando-o como o que ele é: um simples sindicalista. A empáfia de um juiz como Sergio Moro diante de Lula, um ex-Presidente da República é, a meu ver, a melhor imagem do desprezo da classe dominante brasileira pela classe trabalhadora (incluindo nesse desprezo a classe média brasileira, que se identifica com a classe dominante e não com a classe trabalhadora). Por contraste, basta ver como Fernando Henrique Cardoso foi tratado em recente interrogatório pelo mesmo juiz Sergio Moro. Lula não passou a ser tratado como um patrão por ter sido presidente. Suas origens populares, operárias e sindicais lhe condenam a ser para sempre tratado pela classe dominante como qualquer brasileiro médio com as mesmas origens. Daí sua condução coercitiva sem justificativas.
Portanto, a chegada de Lula à presidência não significa, nem nunca significou uma chegada da esquerda ao poder no Brasil. Assim como nunca significou uma verdadeira modificação das relações de poder no Brasil. Significou simplesmente um refresco ou algo que nós poderíamos chamar hoje de uma política de diminuição de danos, para tomar de empréstimo uma expressão da área de saúde pública. Significou simplesmente a presença de um negociador na Presidência da República, que tentava conseguir junto à classe dominante melhores condições de existência para a classe trabalhadora. A classe dominante teve que aceitar a partir de um determinado momento uma figura como Lula simplesmente pelo fato de que ela, a classe dominante, não tinha sido capaz nos últimos anos de criar uma liderança política que estivesse em condições de vencer uma eleição presidencial. O caso Aécio Neves é talvez o mais emblemático nesse sentido, pois conseguiu perder para uma presidente com baixa popularidade num momento de crise econômica aguda, o que contradiz todas as regras da ciência política. Mas isso se explica, talvez, pela fato de que a última vez que a direita teve um candidato vencedor, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, foi uma tragédia para o país. E uma parcela muito significativa dos brasileiros guarda até hoje uma lembrança muito clara dessa tragédia. Foi o que impediu uma vitória do PSDB nas quatro últimas eleições presidenciais no Brasil.
Não sendo capaz de ganhar eleições presidenciais, a classe dominante, no entanto, não deixa de dominar todas as outras instâncias de poder, mesmo a instância do executivo, pois mesmo nos governos do PT sempre houve a presença de representantes dessa classe em seus quadros, em vários dos seus ministérios. E no que diz respeito a outros poderes, o Judiciário, o Legislativo e o quarto poder, a mídia, a classe dominante sempre teve total controle dos mesmos. Em 2016, essa classe dominante viu uma janela, uma possibilidade de estar no poder sozinha sem o incômodo que era o PT.
O PT não se uniu a essa classe dominante por gosto. Ele o fez pelo Brasil. Já está mais do que na hora de nós entendermos isso.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Drops político para a reflexão: Um assassinato cruel



"Condena-se a sociedade às incertezas do mercado em todas as dimensões da vida social, da educação e saúde até a previdência social, o trabalho e a assistência social. O país perderá gerações - presentes e futuras -, que não terão nem condições de disputar a xepa da feira para a sua sobrevivência imediata, enquanto poucos reinarão num mundo de ostentação vazia."

Amélia Cohn, professora do mestrado em Direito da Saúde ( Unisanta), em artigo publicado na última edição do Le Monde Diplomatique

Drops político para reflexão: Quem ganha com a Reforma da Previdência?



"Em função do caráter restritivo da reforma proposta, grande parte dos trabalhadores de menor renda deixará de contribuir. Dissemina-se no seio da sociedade a correta percepção de que "se não vou usar, para que pagar?". Daí advêm duas graves consequências . A primeira é o aumento do universo dos trabalhadores sem proteção, além dos atuais 25 milhões (37,7% do total). A segunda é a quebra financeira da Previdência Social, plea retração das receitas provenientes das camadas mais pobres, intensificadas pela fuga das classes mais ricas para o setor privado. Tanto quanto se pode avaliar hoje, essas duas consequências seriam os propósitos implícitos da reforma em estudo."

Eduardo Fagnani, professor de economia da Unicamp e coordenador da Plataforma Polícia Social, em artigo na última edição do Le Monde Diplomatique. 

Charge! Duke em O Dia

sábado, 11 de março de 2017

Drops político para reflexão: A crise civilizatória



"A crise, no entanto, é civilizatória. Vivemos globalmente na sociedade da desigualdade e da devastação. Se o presente desenhar o futuro, estaremos indo para a barbárie, para a violência, para a miséria e para a exclusão de populações cada vez maiores, para o colapso ambiental, para regimes políticos autoritários e opressores."

Sílvio Caccia Bava, em editorial do Le Monde Diplomatique. 

sexta-feira, 10 de março de 2017

Em pleno século XXI, "História" insiste em apagar a produção das mulheres negras.

Ana Maria Gonçalves

JÁ NÃO ME LEMBRO como cheguei à tese “Os Segredos de Virgínia: Estudo de Atitudes Raciais em São Paulo (1945-1955)”, de Janaína Damaceno Gomes. Janaína é professora da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, doutora em Antropologia Social pela USP e Mestre em Educação e Bacharel em Filosofia pela Unicamp. Virgínia foi normalista, educadora sanitária, visitadora psiquiátrica, psicologista, socióloga e psicanalista, desafiando não apenas o lugar que se propunha ou se esperava para uma mulher – principalmente uma mulher negra – na primeira metade do século passado, mas também o pensamento dominante em relação a temas como educação e relações raciais.
O trabalho de Virgínia quase foi mantido em segredo, como nos conta Janaína, “pelo roubo de arquivos, pelo mofar literal da tese da autora, por entrevistas não publicadas, por citações não feitas, por textos extirpados de compêndios, pela eleição de uma bibliografia canônica que se perpetua e muito pouco é revisada…”. Qualquer semelhança com algumas situações atuais não é mera coincidência.
Virgínia Leone Bicudo nasceu em São Paulo, em 1910, filha de Giovanna Leone, imigrante italiana, e de Theofilo Júlio Bicudo. Giovanna trabalhava como criada na casa do Coronel Bento Bicudo, em Campinas, onde conheceu o jovem Theofilo, nascido do ventre livre da escrava Virgínia Júlio. Apadrinhado pelo coronel, Theofilo foi bastante ambicioso para um jovem negro, e seu sonho era cursar a Faculdade de Medicina de São Paulo, onde foi barrado por um professor que acreditava que aquele não era lugar para negros. O casal teve seis filhos e resolveu investir na educação deles.
Virgínia gostava de estudar e seguia a recomendação dos pais de ser bastante aplicada, “para evitar ser prejudicada e dominada pela expectativa de rejeição… por causa da cor da pele”. “Olha, a ideia de meu pai era que as pessoas valem pelo estudo, pelo preparo que têm, estudando, isso era meu pai. Então, meu pai pôs todos na escola”, disse, em entrevista a Marcos Maio, em 1995. Mas logo veria que isto não era verdade, pois era seguida pelos colegas aos gritos de “negrinha, negrinha, negrinha”.
Em 1930, Virgínia Leone se formou na Escola Normal e, em 1932, depois de concluir o curso de Educação Sanitária, começou a trabalhar como educadora sanitária e depois como visitadora psiquiátrica, chegando ao cargo de supervisora das visitadoras na Clínica de Orientação Infantil de São Paulo. Durante esse tempo, circulou bastante pela cidade, conhecendo a realidade de várias crianças que eram tratadas como “problemáticas” pela campanha higienista e as ideias eugênicas que tomavam conta da política de implantação da escola pública brasileira. Talvez tenha se reconhecido nelas.
Em 1936, foi a única mulher a ingressar no curso de Ciências Políticas e Sociais da recém fundada Escola Livre de Sociologia e Política, onde em formou em 1938. “Eu fui para a escola de sociologia porque eu tinha sofrimento, tinha dor, e eu queria saber o que me causava tanto sofrimento. E eu colocava que eram condições exteriores a mim. Então eu pensei que a Sociologia iria me esclarecer sobre os motivos do meu sofrimento.”
Durante o curso, Virgínia tomará contato com ideias novas que, mais tarde, darão um novo rumo à sua carreira: “…pela primeira vez em minha vida, eu ouvi falar de Freud, em sublimação e fatores internos. Então eu disse, bem, não é sociologia que eu tenho que estudar, eu tenho que estudar é psicanálise e Freud.”
Menos do que “embranquecer”, a ascensão social cria consciência da cor.
Seu interesse pela psicanálise vai levá-la a ser a primeira mulher a fazer análise na América Latina, em 1937. E é bastante interessante pensarmos que uma mulher negra, querendo entender as dores causadas pelo racismo, tenha sido a primeira a se deitar no divã de uma mulher alemã judia que veio para o Brasil a convite da recém fundada Sociedade Brasileira de Psicanálise, a Dra. Adelheid Koch, que também fugia do nazismo.
Continuando seus estudos, integrante da primeira turma de pós-graduação em Ciências Sociais no Brasil, sob a orientação de Donald Pierson, Virgínia Leone Bicudo é a primeira pessoa a defender uma tese sobre relações raciais no Brasil, em 1945, “Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”. Neste mesmo ano, é contratada como professora da faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Em 1949, foi convidada a integrar a projeto de pesquisa sobre relações raciais da UNESCO, sob coordenação de Roger Bastide e Florestan Fernandes. Seu trabalho, que depois será mantido fora da publicação dos resultados de tal projeto, em 1957, é o único a concluir que o Brasil não é a democracia racial que todos gostariam que fosse, contrariando, inclusive, as conclusões de seu orientador, Donald Pierson. Segundo ele, existia preconceito no Brasil, mas ele era mais de classe do que de raça.
Ao estudar negros e mulatos que tinham conseguido alguma ascensão social em São Paulo, Virgínia conclui que, menos do que “embranquecer”, a ascensão social cria consciência da cor, porque mesmo tendo condições financeiras para frequentar certos locais, como clubes e hotéis, os negros que podiam pagar eram rejeitados por causa de sua cor.
Aprofundando seus estudos em psicanálise, Virgínia Leone Bicudo se torna a primeira psicanalista não médica no Brasil, sendo acusada de charlatã. Indignada com o tratamento recebido, parte para Londres em 1955, onde tem contato e estuda com os analistas mais importantes de sua época, como Melanie Klein, Ernest Jones, Winnicott, Bion e Anna Freud. A partir de Londres, para divulgar a psicanálise, Virgínia transmite várias palestras para o Brasil, através da BBC.
Quando retorna, em 1959, já está com um nome consolidado para retornar a atividade clínica, atendendo a elite paulistana, como o atual senador Eduardo Suplicy. É uma das fundadoras do Instituto de Psicanálise da SBPSB, em Brasília, teve um dos programas mais ouvidos e comentados da Rádio Excelsior, onde comentava e dramatizava casos enviados para ela via carta, o “Nosso Mundo Mental”. Com o mesmo nome, que também batizou seu livro, tinha uma coluna no jornal Folha da Manhã. Virgínia ficou rica com a psicanálise, sendo uma das primeiras mulheres a dirigir o próprio carro pelas ruas de São Paulo, na década de 1950, e adquirindo vários imóveis pela cidade. Mas, de acordo com Janaína Damaceno, teve uma morte negra, em 2003, aos 93 anos de idade: esquecida, enlouquecida, abandonada em uma instituição para doentes mentais.
A tese de Virgínia somente foi resgatada e publicada em 2010, no centenário de seu nascimento. Virgínia estava certa em relação ao racismo quando a escreveu e foi silenciada por seus pares, que não concordavam com ela. Janaína Damaceno nos conta que encontrou sua tese, a primeira sobre questões raciais no Brasil, úmida e mofada, nos arquivos da Escola de Sociologia e Política da USP.
Ainda é bastante atual este processo de apagamento da produção intelectual de mulheres negras, e ilustro com um caso narrado pela própria Janaína na tese: “Enquanto realizava o doutoramento, prestei a seleção para uma bolsa de doutorado sanduiche de uma fundação americana. Quando fui entrevistada, um dos membros da banca, um cientista social, me interpelou acerca da veracidade de haver brasileiros estudando psicanálise e sendo psicanalisados no Brasil já nos anos 1940, e observou que isso deveria ser um erro crasso de minha pesquisa visto que os argentinos tinham uma tradição em psicanálise anterior à nossa, e pelo fato de que, sendo gaúcho, ficava óbvia essa tradição. Contestou também a existência de Virgínia Bicudo enquanto mulher negra, já que havia trabalhado com Florestan Fernandes e conhecia bem do assunto. Não recebi a bolsa.”
Ao longo dos tempos, é exatamente o que continuamos a ver: nosso conhecimento e trabalho sendo contestados por quem não os conhece. Racismo e machismo trabalhando juntos para nos manter na posição de meros objetos de estudo, como gostaria o sociólogo Luiz Aguiar Costa Pinto, ao ser acusado de distorção de fatos e plágio por Abdias do Nascimento e Alberto Guerreiro Ramos. Autor do livro “O negro no Rio de Janeiro”, Costa Pinto não gostou de ser interpelado pelos seus “objetos de estudo”, e que era uma ameaça às ciências sociais que um pesquisador pudesse. 
Resposta dada por Costa Pinto a um jornal carioca da época, em trecho do livro “O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil”
Resposta dada por Costa Pinto a um jornal carioca da época, em trecho do livro “O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil”
Para quem desafiou e continua desafiando este lugar de “material de laboratório”, meus profundos agradecimentos. Em honra a todas as mulheres negras que lutam por respeito, espaço e reconhecimento, deixo o meu muito obrigado a Dona Virgínia Leone Bicudo e a Dra. Janaina Damaceno Gomes. Elas nos representam!

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

quinta-feira, 9 de março de 2017

Charge!Jarbas via Diário de Pernambuco

Drops políticos para reflexão: os efeitos da Reforma da Previdência sobre o mercado informal

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"No Brasil, mais de 40% da mão de obra ativa está na informalidade. Em geral, são pessoas pobres e pouco informadas. Somente uma ínfima parcela delas contribui como trabalhador autônomo.

Pois bem, a proposta de reforma de Michel Temer, ao extinguir a aposentadoria por idade e exigir tempo de contribuição, em vez de tempo de trabalho, para a aposentadoria, na prática tira desse pessoal a possibilidade de se aposentar.

Assim, além de um imenso saco de maldades trazidos por essa reforma de Temer e sua turminha braba, ela exclui da Previdência quase a totalidade dos trabalhadores informais - que são quase a metade do total de trabalhadores. Em vez de receberem aposentadorias miseráveis, como agora, eles passarão a não receber nada. Terão que trabalhar até morrer, literalmente.

É um ataque frontal a qualquer veleidade de construção de uma nação civilizada.

Enquanto isso, a grande questão para parte da esquerda parece ser apoiar ou não golpistas para as presidências da Câmara e do Senado, conseguindo assim meia dúzia de cargos comissionados para seus amigos.
É de doer."

(Jornalista Cid Benjamin, em seu perfil da rede Facebook)

quarta-feira, 8 de março de 2017

Crônicas do cotidiano: Uma melancia na cabeça. Não para "aparecer", mas para "sobreviver".


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José Luiz Gomes


Creio que em 2012, o sociólogo alemão Ulrick Beck deixou seus afazeres como professor titular da London Scholl of Economics e veio fazer uma visita ao Brasil, no contexto do seus estudos sobre a Sociedade de Risco e as mudanças que se processavam com o mundo do trabalho, notadamente na Europa. Mudanças, diga-se, radicais, pois os europeus enfrentavam uma verdadeira erosão e desregulamentação dos empregos formais. Beck ficou "encantado" com os mecanismos pelos quais os brasileiros enfrentavam o desemprego e, numa longa entrevista ao jornal Folha de São Paulo, lançou a tese da "Brasilização do Ocidente", enfatizando, inclusive alguns aspectos relacionados à nossa "democracia da economia informal" como mais um adendo no qual os europeus deveriam se espelhar. Aqui ele fazia referência à diversidade de gênero e raça que se dedicavam ao mercado informal, numa aparente remissão à tese da democracia racial levantada pelo sociólogo Gilberto Freyre.  Já naquela época, o também sociólogo Anthony Giddens, seu chefe de departamento naquela universidade inglesa, apontava alguns "furos" nas conclusões do colega Ulrick Beck. 

Apesar de nosso entusiasmo inicial com esta tese, as leituras críticas subsequentes foram aprimorando as nossas conclusões. Num desses feriados, tive a oportunidades de voltar ao Mercado de São José, aqui no Recife, que, no seu entorno concentra uma infinidade de atividades relacionadas à economia informal. Não raro tomo iniciativas do tipo, uma vez que estudo esse tema deste os primeiros anos de faculdade. Finalmente encontrei um homem com uma melancia na cabeça. Só que ele não o fazia para "aparecer", como poderia supor o saudoso Liedo Maranhão, mas para "sobreviver". Incrível sua desenvoltura, com um balaio na cabeça, portando melancias inteiras e alguns pedaços, gentilmente oferecidos ao público. Uma pena que não consegui fotografá-lo para ilustrar essa crônica.

Um dos maiores estudiosos do mundo do trabalho no Brasil é o sociólogo Ricardo Antunes, decano da Unicamp. Conheci-o quando estudava o PT - partido de quem ele já era um crítico à época - notadamente no que concerne aos seus estudos sobre o novo-sindicalismo e a fundação do Partido dos Trabalhadores. Outro dia tive a oportunidade de revê-lo, através de um artigo publicado no jornal Le Monde Diplomatique, onde ele observava que talvez nunca tenha existido um momento tão delicado para os trabalhadores. Estamos observando uma conjunção de fatores extremamente perniciosa à classe trabalhadora, como o agravamento do desemprego estrutural, pior recessão de todos os tempos, desregulamentação e assédio sobre a CLT - que é a constituição dos trabalhadores -, e os sindicatos e centrais sindicais "paralisados" diante de um governo de corte autoritário e a ausência de condições políticas favoráveis à defesa de interesses da categoria. No plano da economia informal, sobre como estão se virando aqueles excluídos dos empregos formais, o quadro é ainda mais desolador. 

Quem produziu uma boa síntese sobre o assunto foi o jornalista Cid Benjamim, de quem já publicamos alguns artigos por aqui. Os comentários de Cid nas redes sociais, envolvendo assuntos relacionados à política, a economia - e até futebol - alcançam grande repercussão entre os internautas. Cid publica seus artigos em jornais do Sudeste que, normalmente, vetam a sua reprodução. Na opinião de Cid, com a qual concordamos, estamos diante de uma barbárie à vista: 

No Brasil, mais de 40% da mão de obra ativa está na informalidade. Em geral, são pessoas pobres e pouco informadas. Somente uma ínfima parcela delas contribui como trabalhador autônomo.

Pois bem, a proposta de reforma de Michel Temer, ao extinguir a aposentadoria por idade e exigir tempo de contribuição, em vez de tempo de trabalho, para a aposentadoria, na prática tira desse pessoal a possibilidade de se aposentar.

Assim, além de um imenso saco de maldades trazidos por essa reforma de Temer e sua turminha braba, ela exclui da Previdência quase a totalidade dos trabalhadores informais - que são quase a metade do total de trabalhadores. Em vez de receberem aposentadorias miseráveis, como agora, eles passarão a não receber nada. Terão que trabalhar até morrer, literalmente.

É um ataque frontal a qualquer veleidade de construção de uma nação civilizada.

Enquanto isso, a grande questão para parte da esquerda parece ser apoiar ou não golpistas para as presidências da Câmara e do Senado, conseguindo assim meia dúzia de cargos comissionados para seus amigos.
É de doer. 


Prometo que vou encaminhar essas conclusões ao professor Ulrick Beck. Se ele não for daqueles acadêmicos pavões - o que é muito comum na academia - e tiver alguma humildade, poderá chegar à conclusão de que a sua tese não teria apenas um furo, mais uma tábua de pirulitos completa, daquelas usadas pelos que se dedicam à economia informal. Essa descoberta, no entanto, não desmerece o trabalho realizado pelo sociólogo alemão, que dedicou parte de sua vida acadêmica a esses estudos, o que ele insere numa espécie de "segunda modernidade". Isso, de fato, dá um bom debate, pois se considerarmos as observações do sociólogo francês, Michel Maffesoli, o Brasil não passou pela transição da modernidade, indo direto para a pós-modernidade. 

A princípio, pode-se entender um certo "entusiasmo" de Ulrick Beck em sua visita ao país. Não nos consta se ele chegou a visitar o Recife, mas, se o fizesse, poderia ficar impressionado com as habilidades dos nossos peregrinos do mercado informal, o que, na cidade, possui uma longa tradição histórica. Ali pelo entorno do Mercado de São José, esses peregrinos conseguem vender iogurtes, com prazo de validade vencido, sob o calor das 11h:00 da manhã, sem nenhum tipo de higiene ou acondicionamento adequado. A vigilância da Prefeitura do Recife até atua no sentido de disciplinar esse comércio, mas os fiscais também possuem seu momento de folga para o almoço, por vezes estendido com a sesta. Com uma incrível capacidade de mobilidade, os camelôs aproveitam essas "brechas". 

A tese da democracia racial - atribuída ao sociólogo Gilberto Freyre - foi completamente rechaçada ao longo dos anos, chegando-se à conclusão inevitável de um racismo no Brasil e, pior, de caráter institucional. Não temos dúvidas de que o mesmo raciocínio se aplica ao outro "encantamento" de Ulrick Beck, que se entusiasmou com o fato de que negros, pardos, brancos, homens e mulheres se "harmonizavam" nessas atividades. Qualquer levantamento apontaria que os negros são maioria nessa atividade. Aliás, a origem dessa atividade está intrinsecamente ligada à etnia negra. Alguns estudos apontam que este comércio teve origem, aqui no Brasil, através dos escravos de ganho, que comercializavam alguns produtos para os seus senhores. 

P.S.: Contexto Político: Acerca dos problemas sociais acarretados pela Reforma da Previdência ora em estudo no Legislativo, aconselhamos a leitura do artigo do professor Michel Zaidan Filho, aqui publicado no dia de ontem.