pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Crônica: Graciliano, o crítico literário


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José Luiz Gomes

Ao assumir sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, por ocasião do momento protocolar de saudação ao ocupante anterior, o escritor José Lins do Rego quebrou as regras e proferiu um discurso contundentemente crítico sobre a pobreza literária de Ataulfo Paiva. Naturalmente, Bourdieu, isso não ficou nada bem no contexto daquele campo literário, onde as expectativas se orientavam por saudações  meramente protocolares, ensejando, quiçá, rasgados elogios ao antecessor. A repercussão foi tão negativa que, a partir de então, as saudações teriam sido abolidas da cerimônia de posse dos novos imortais. Já àquela época, convém considerar as críticas do escritor de Fogo Morto não apenas a Ataulfo Paiva, mas, a rigor, a própria Academia Brasileira de Letras, cujos critérios de admissão já estavam corrompidos, com eleição de escritores sem livros e, pior, até denúncias de fraudes. Portanto, "A sua vida foi um five o'clock em casa de Dona Luarinda" bem que poderia servir como carapuça aos demais imortais.

Alguns escritores são muito exigentes consigo mesmo. Por vezes, o próprio estilo da escrita denota essa “depuração”, como é o caso, por exemplo, da obra do escritor alagoano Graciliano Ramos. São textos rigorosamente enxutos, por vezes áridos ou agrestes, identificados com a sua personalidade. Até os títulos indicam isso: Vidas Secas, Angustia, Infância. O cronista Graciliano Ramos escrevia para dois jornais alagoanos. Em termos de linha editorial, esses jornais constituíam um binômio de oposição. Um era uma espécie de Diário Oficial, ou seja, concordava com todos os atos do Governo. O outro, um jornal bastante crítico, que não concordava com absolutamente nada. Difícil mesmo, como ele observa, era se equilibrar entre esses dois extremos. Neste último, o ponto de equilíbrio significava, naturalmente, dar vazão à sua verve ácida e meter o pau, com críticas políticas, de costumes e, também, literária. 

Aparentemente, as relações entre Graciliano Ramos e José Lins do Rego eram muito boas. Ambos participaram dos círculos literários de Maceió e, José Lins deu aquele “empurranzinho” para viabilizar a publicação de obras do escritor alagoano. Li, por exemplo, muitos elogios de Graciliano ao colega paraibano, a quem dizia que usava bota de sete léguas, numa referência à sua extensa produção literária. Um segredo de alcova - pouco conhecido, se não não seria de alcova - é que, num desses momentos de sinceridade, Graciliano Ramos deixa escapar uma dura crítica ao conterrâneo: mas se até o José Lins é escritor... Dizia Gracialiano que a coisa mais fácil do mundo é fazer crítica literária. Num texto carregado, pedia aos leitores para retirarem dali os chavões, os galicismos e as tolices e observassem o que restava. Pouca coisa de concreto. Algo que denota apenas a indisposição dos "legitimados" aos calouros que objetivam entrar no "clube".

Sempre condizente com a linha editorial dos dois jornais onde escrevia, um crítico e um a favor, Graciliano brincava com os textos de ambos, quando, por exemplo, analisava os sonetos de uma tal poetisa Mlle.Gertrudes, possivelmente um nome ficcional. Hoje me ocorreu ser bem possível que essa observação ao escritor e amigo José Lins do Rego tenha surgido, possivelmente, no bojo de algum texto seu, quiçá, publicado no jornal do contra, aquele em que, contingenciado pela linha editorial do vespertino, o Velho Graça identificava-se com a franqueza e a imparcialidade que caracterizavam sua personalidade. Talvez. Nunca saberemos.

Charge! Benett via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Le Monde Diplomatique: A economia política do fascismo

O fascismo mais evidente, explicitado politicamente, tende a vir à tona em conjunturas econômicas difíceis

Nos anos 1930, década da maior crise econômico-social já ocorrida no capitalismo, o mundo se viu às voltas com o surgimento e crescimento do nazismo na Alemanha e de ideias e movimentos fascistas, que acabaram por assumir o poder em diversos países – principalmente na Europa, mas não exclusivamente.
A sua consequência mais imediata foi a instalação nesses países de regimes ditatoriais (Estados policiais), que destruíram o Estado de direito típico das democracias liberais: fechamento ou controle dos parlamentos, subordinação do judiciário às necessidades do regime de exceção, extinção da liberdade de imprensa e de opinião, suspensão das garantias individuais do cidadão, proibição de reunião e associação sindical e partidária e, no limite, prisões arbitrárias, torturas e assassinatos.
O seu desdobramento mais deletério foi a Segunda Guerra Mundial, que envolveu praticamente todos os países e regiões do planeta, resultando em 50 milhões de mortos, com a chacina e o genocídio assombroso de populações civis, em especial judeus, ciganos e outras minorias étnicas, homossexuais e deficientes físicos e mentais. Ao final do conflito (1945), o nazismo e o fascismo foram derrotados em todas as frentes (apesar de sua sobrevida em Portugal e na Espanha); mas logo a seguir instalou-se a chamada Guerra Fria, entre o capitalismo (com o seu Estado de bem-estar social nos países centrais, mas não na periferia) e o socialismo soviético – disputa encerrada pelo desmoronamento interno deste último, no início dos anos 1990.
A partir daí, entrou-se em um período de hegemonia absoluta do imperialismo dos Estados Unidos, apoiado no ideário neoliberal e acompanhado pelos processos de reestruturação produtiva e financeirização do capitalismo em escala mundial; ambos difundidos pela mundialização do capital (a chamada globalização). Os resultados daí decorrentes foram ficando cada vez mais explícitos com as sucessivas crises econômicas; primeiro nos países periféricos (anos 1990) e em 2008 no centro do capitalismo (os Estados Unidos).
Ao lado dos avanços tecnológicos até então inimagináveis e do extraordinário crescimento da riqueza material, evidenciou-se o aumento escandaloso da concentração da riqueza e da renda em quase todos os países, crescimento da pobreza, distanciamento cada vez maior entre os países centrais (ditos desenvolvidos) e os países periféricos (subdesenvolvidos), elevação do desemprego estrutural e precarização do trabalho, desmoralização da democracia liberal (dos parlamentos e políticos profissionais, dos judiciários e seus agentes, da mídia corporativa dominada pela plutocracia). Tudo isso acompanhado pela criminalização da política, xenofobia, homofobia, misoginia, racismo e… a volta do fascismo – no mundo e no Brasil.
O filósofo e escritor italiano, Umberto Eco, constatou, acertadamente, que o nazismo foi uma experiência única, localizada na Alemanha na primeira metade do século XX; diferentemente do fascismo, que existiu, e pode existir e se reproduzir, de várias maneiras e formas em distintos lugares e épocas. Mas, ao falarmos de fascismos, no plural, estamos afirmando também que existe um “núcleo duro” comum a todos eles que os igualam. Então, quais seriam as características ou atributos que definem qualquer tipo de fascismo? A resposta a essa questão é decisiva, condição necessária embora não suficiente, para compreendermos fenômenos como, entre outros, Trump nos Estados Unidos, a Frente Nacional na França, a Liga Lombarda na Itália e Jair Bolsonaro no Brasil; bem como termos a exata noção e dimensão do perigo e do fantasma que ameaçam atualmente a convivência civilizada nas sociedades contemporâneas.
O fascismo mais evidente, explicitado politicamente, tende a vir à tona em conjunturas econômicas difíceis (como a brasileira atualmente e o centro do capitalismo desde meados dos anos 2000) de crise (desemprego, precarização do trabalho, queda da renda e aumento da pobreza) que penaliza a maioria da sociedade, especialmente os grupos e camadas que caem na escala social: que descem econômica e socialmente, que mudam para pior o seu status social. É principalmente nessa parte da população, atingida pela crise de modo particular, e também entre aqueles que, potencialmente, podem vir a cair, que o fascismo pode proliferar e recrutar seus apoiadores.
Essa hecatombe social, que atinge duramente o modo de vida desses indivíduos, é sentida como uma derrota pessoal e uma enorme injustiça (o que de fato é); sentimento que pode (não necessariamente, portanto) ser transformado em rancor, ressentimento e ódio contra o status quo (o sistema vigente) – qualquer que seja este último. O fascismo apelará a esse grupo de “perdedores” frustrados com um conjunto de ideias e sentimentos difusos e confusos, como explicação para a situação desfavorável em que se encontram – ignorando e obscurecendo as razões e contradições mais profundas do desenvolvimento capitalista, que levaram à crise.
Em primeiro lugar, o fascismo traz um apelo fortemente emocional contra o “outro”: imigrantes, minorias étnicas (como ciganos), judeus, comunistas, homossexuais, negros, nordestinos no caso do Brasil, mulheres independentes e/ou feministas (misoginia), vagabundos e marginais de todo tipo, moradores de rua, sem teto, sem terra etc. Tudo misturado, o “outro” é o responsável (culpado) direto, ou indireto, pela situação desfavorável vivida pelo indivíduo, o perigo a ser combatido – devendo ser negado liminarmente e, se possível, ser eliminado simbólica e/ou fisicamente.
Em segundo lugar, exatamente pelo fato do “outro” ser tão heterogêneo, os argumentos políticos contra ele, que procuram desqualificá-lo e criminalizá-lo, são sempre toscos, confusos e contraditórios, primários, quase infantis. Por isso, a racionalidade e a coerência não são o forte do fascismo; o que o leva a mobilizar seus potenciais adeptos (o fascismo é fortemente mobilizador!) apelando para o senso comum e sentimentos/emoções irracionais – que não são passíveis de serem entendidos nem explicados minimamente de forma lógica. Essa característica se expressa, de forma inequívoca, no líder fascista – que encarna toda a irracionalidade dessa ideologia regressiva.
Por fim, o fascismo, por definição, é autoritário e antidemocrático pela própria natureza: não admite a presença e a participação do “outro”, podendo, no limite, fazer uso de violência paramilitar. Tem como um dos seus principais aliados os sentimentos de “raiva”, “medo” e “insegurança”: raiva dos que decaíram socialmente e medo e insegurança dos que ainda não desceram na escala social, mas se sentem ameaçados (de fato ou subjetivamente). E, para coroar, apresenta soluções simplórias (e perigosas) para problemas complexos, soluções compatíveis com o senso comum e a diminuta capacidade intelectual de seus militantes e potenciais apoiadores, movidos fundamentalmente por emoções negativas (rancor, ódio e inveja). Exemplo: propor que a população adquira armas, como resposta à insegurança e criminalidade.
No Brasil, na atual conjuntura, o fascismo, além de apresentar as características listadas acima, se constitui também de uma mistura bizarra de moralismo (no âmbito do comportamento, dos costumes e da cultura), fundamentalismo mágico-religioso reacionário (difundido principalmente, mas não apenas, por variadas denominações evangélicas), ideologia da meritocracia e do empreendedorismo (avessa às políticas sociais, aos impostos e a tudo que é público), negação dos direitos humanos e apelo à violência e às formas mais extremadas de repressão policial (justificadas pela necessidade de segurança), e exaltação do individualismo, da competição e do mercado como valores maiores da vida social. É o fascismo brasileiro da era neoliberal, com fortes vínculos religiosos, abertamente pró-capital e que tem apoio e expressão importante no âmbito das instituições do Poder Judiciário e do Ministério Público – que vem contribuindo, juntamente com a “direita moderna neoliberal”, para legitimar a construção de um Estado de exceção no país, cuja ponta de lança, operacional e simbólica, é a Operação Lava-Jato.
Essa estranha mistura ideológica amplia, para além dos “perdedores”, os segmentos sociais potencialmente sensíveis ao fascismo; em especial atinge parte daqueles que conseguiram ascender socialmente (tiveram sucesso) na Era Lula (regredindo ou não posteriormente), mas que acreditam que isso ocorreu exclusivamente por esforço individual e mérito próprio, sem qualquer vínculo com políticas públicas, e cuja sociabilidade se dá fundamentalmente através da religião – e não, ou muito secundariamente, através do trabalho.
Nesse segmento de “classe média baixa”, o sucesso econômico-social, sempre individual, é justificado pelo merecimento (a teologia da prosperidade), um prêmio (uma benção) de Deus àqueles que trabalham disciplinadamente e que seguem os seus ensinamentos (os da igreja). Os que não conseguem obter sucesso (a maioria) é porque não se esforçaram o suficiente e, por isso, não têm o merecimento e a chancela de Deus. A experiência individual é extrapolada, indevidamente, para o conjunto da sociedade através da ideologia da meritocracia, associada também a uma espécie de teologia mercantil: uma troca interessada entre o Deus e o fiel (é dando que se recebe).
Adicionalmente, o “fascismo brasileiro”, na atual conjuntura político-econômica, também tem forte apelo entre segmentos importantes da massa pobre marginalizada, totalmente precarizada e sem qualquer tipo de organização política (trabalhista, partidária etc.). E por fim, o seu atual candidato a Presidência da República, Jair Bolsonaro, sensibiliza parte da população jovem desinformada e despolitizada, mas que tem presença nas redes sociais e que enxerga nele um “comportamento supostamente transgressor”, distinto dos demais políticos profissionais – em geral desmoralizados.
Aqui vale uma observação importante: a maioria das pessoas que faz parte desses grupos, potencialmente sensíveis na atual conjuntura, por diferentes razões, à mensagem fascista, não são politico-ideologicamente fascistas. Na verdade, elas expressam uma decepção enorme com a sua condição de trabalho e de vida, associada à total descrença com a política institucional, os partidos e, no limite, a própria democracia. Os sentimentos de insegurança (em todos os níveis) e impotência conspiram contra a possibilidade de conceber planos e imaginar o futuro de suas trajetórias de vida. Uma ausência completa de perspectiva, restando apenas o aqui e o agora.
Em suma, o fascismo, mais do que um credo político, é uma visão (prática) social do mundo reacionária (anti-iluminista) e um modo de sociabilidade, que procura influenciar e dirigir a vida cotidiana das pessoas – separando-as em grupos dotados, segundo ele, de especificidades irredutíveis. Na atual conjuntura brasileira ele vem acompanhado pelo racismo biológico e/ou cultural (discriminando principalmente negros e nordestinos), machismo, misoginia e homofobia.
Em qualquer lugar, o fascismo situa-se na extrema direita do espectro político-ideológico e se caracteriza pela defesa da propriedade privada de forma absoluta e do capitalismo – sendo visceralmente anticomunista ou mesmo antisocialdemocrata. Por isso, a depender das circunstâncias (como na Itália fascista de Mussolini), pode ser utilizado e apoiado pelo grande capital (hoje, a grande burguesia financeirizada) – quando este se sente fortemente ameaçado em seus interesses de classe. Reuniões recentes de Bolsonaro com agentes do capital financeiro e grandes empresários aplaudindo, rindo e se divertindo são sintomáticas: Mussolini e Hitler, histriônicos como Bolsonaro, no início também eram considerados irrelevantes, “folclóricos” e engraçados, quase que palhaços (com o perdão destes). Na sequência, a história se mostrou trágica.

*Luiz Filgueiras é professor titular da Faculdade de Economia da UFBA. Doutor em Teoria Econômica pela Unicamp e pós-doutorado em Política Econômica pela Universidade Paris XIII. Autor do livro História do Plano Real (São Paulo, Boitempo, 2000; última edição em 2016) e coautor do livro Economia Política do governo Lula (Rio de Janeiro, Contraponto, 2007).

Guernica, Pablo Picasso. Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid
 

Editorial: O combate à violência em Honduras



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Salvo melhor juízo, o sociólogo Francisco Weffort teria produzido alguns trabalhos teóricos apontando uma tendência populista ou autoritário entre os países colonizados do continente latino americano. De concreto, pode-se concluir que estes países não guardam nenhum compromisso ou vocação para a consolidação de suas experiências democráticas. As razões são diversas e não daríamos conta neste espaço de editorial. No final de semana, tive a oportunidade de acompanhar, através de um canal fechado, uma série sobre o combate à violência em Honduras, um dos países mais violentos do mundo, de acordo com os organismos internacionais. Para ser mais preciso, consoante relatório da ONU, o mais violento no ano de 2012.

O país estava no caos quando resolveu adotar uma série de medidas com o propósito de enfrentar o problema. Com o apoio do Estado, Ministério Público e sociedade civil, várias ações de políticas públicas de combate à violência foram desencadeadas, o que resultou no desmonte de gangs organizadas, que se dedicavam à extorsões, tráficos de drogas, quadrilhas que operavam nos perímetros urbano e rural, com frequência de dentro das próprias unidades prisionais do país. Existiam famílias de bandoleiros que controlavam e espalhavam o terror em unidades federadas ou departamentos, como eles se referem aos Estados. Com essas medidas, a redução da criminalidade naquele pais caiu drasticamente.

Uma pena mesmo que essas medidas saneadoras não tenham atingido o sistema politico, que continuou susceptível às quarteladas  ou, mais precisamente, aos golpes de um novo tipo, que se tornariam frequentes no continente. O não aperfeiçoamento das instituições da democracia naquele país, infelizmente, contribuíram para fragilizar o Estado Democrático de Direito. Num arranjo entre forças congressuais, do poder judiciário e setores militares foi afastado um presidente legitimamente eleito pelos cidadãos e cidadãs daquele país, ampliando o alcance da violência institucional, que hoje atinge notadamente camponeses e lideranças indígenas, um fenômeno recorrente aos países que passam por essa experiência autoritária no continente.  

terça-feira, 21 de agosto de 2018

A Vale está atropelando quilombolas com processos para duplicar ferrovia no Maranhão


Sabrina Felipe

“O senhor se vê em alguma dessas quatro fotos, seu Benedito?”, pergunto ao lavrador Benedito Pires Belfort, 75 anos. Ele aperta os olhos, ajeita os óculos no rosto, se aproxima da tela do computador e examina as imagens. “Não, não me vejo.”
Informo a ele que foi com base em um boletim de ocorrência e nas quatro fotos em preto e branco apresentadas, bastante granuladas e com a maioria das 28 pessoas aparecendo de costas que ele e mais cinco quilombolas foram processados pela mineradora transnacional Vale S.A. em 2014. É impossível ver com nitidez o rosto das cinco que aparecem de frente. “É mesmo?!”, pergunta, rindo da inconsistência da ação de reintegração de posse ajuizada pela empresa.
Em 23 de setembro daquele ano, mais de 500 quilombolas de Itapecuru-Mirim, no Maranhão, bloquearam os trilhos da Estrada de Ferro Carajás, a EFC, da Vale. O bloqueio aconteceu na altura do quilombo Santa Rosa dos Pretos para exigir que a mineradora e o poder público fossem transparentes no processo de consulta à população sobre as obras de duplicação da ferrovia, em curso desde 2013. Os quilombolas exigiam também que o governo federal cumprisse demandas relativas à demarcação das terras remanescentes de quilombos.
O processo de titulação de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo foi segurado por pelo menos três anos pela Vale, que em 2009 contestou a demarcação dos dois territórios alegando que não foi deixada terra suficiente para a duplicação da ferrovia. O protesto durou cinco dias e só terminou em 27 de setembro, quando uma comitiva do governo federal se apresentou no acampamento para conversar com a população.

Seu Benedito Belfort
Benedito Belfort está acostumado a defender a terra quilombola. Só não esperava um inimigo sem rosto.
Foto: Sabrina Felipe

Belfort não só não aparece nas fotos que a Vale usou para processá-lo, como também não participou do primeiro dia de protesto, mesma data em que a ação de reintegração de posse foi movida. Ele havia passado por uma cirurgia em 2011 para a retirada de um coágulo no cérebro, e a família quis poupá-lo do calor antes que o acampamento estivesse totalmente montado, com proteções contra o sol. “No dia 24 [segundo dia de protesto], não me seguraram mais. Eu fui e fiquei até o dia que levantamos nossas baterias e viemos pra casa.”

De autores a réus

Anacleta Pires da Silva, 52 anos, é outra quilombola de Santa Rosa dos Pretos processada. Assim como Belfort, ela não se reconheceu em nenhuma das quatro fotos. Ela e as outras cinco pessoas citadas na ação da Vale são lideranças dos territórios Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo.
Com exceção do lavrador, todas apresentaram denúncias contra a mineradora em ação civil pública ajuizada em 2011 pelo Ministério Público Federal contra a Vale e o Ibama. A ação, que ainda tramita, foi aberta por que o grupo alega que há irregularidades no estudo de impacto ambiental das obras de duplicação da estrada de ferro. Segundo o MPF, a mineradora foi omissa ao não considerar no estudo Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo como territórios impactados pelo empreendimento. Em 2012, a Justiça Federal obrigou a empresa a realizar uma série de ações de mitigação e compensação nos dois territórios.
Seis anos após a decisão, a Vale ainda não cumpriu todo o acordo, segundo manifestação do juiz federal Ricardo Macieira e depoimentos de quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo. Já a duplicação da EFC está 85% finalizada, de acordo com a empresa, com 542 km duplicados do total de 637 km. A conclusão das obras está prevista para o fim deste ano.

Anacleta Silva
Anacleta Silva também é uma das processadas. E também não está na foto.
Foto: Sabrina Felipe

No dia do protesto, a mineradora enviou um ofício ao juiz informando sobre o bloqueio. Disse não ter nada a ver com o assunto, alegou ser a única prejudicada com o fechamento da EFC e pediu uma audiência sobre o tema. No dia seguinte, o juiz federal negou o pedido alegando que a insatisfação das comunidades não seria resolvida em audiência, mas, sim, no momento em que a Vale cumprisse as obrigações já demandas pela Justiça na ação civil pública.
Questionei a Vale sobre como a empresa identificou as pessoas nas fotos apresentadas como provas e pedi que apontasse nas imagens cada indivíduo citado na ação de reintegração de posse. A mineradora não respondeu a essas e outras questões relativas ao processo e informou que “não comenta decisões judiciais.”
Segundo Caroline Rios Santos, da rede Justiça nos Trilhos, advogada dos quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo no processo, mover ações de reintegração de posse com provas inconsistentes é uma prática comum da mineradora.
“Na maioria das ações decorrentes de protesto nas quais a gente tem atuado, a identificação é super vaga. Não há uma preocupação, por exemplo, de indicar os motivos de aquelas pessoas serem apontadas como rés na ação. Em alguns casos são apenas moradores da região que nem participaram da manifestação”, ela me disse. “Mas a jurisprudência entende, em casos como esse, que é um ônus grande para a parte autora ter que identificar especificamente cada pessoa, e aceita uma identificação mais genérica.”

Nunca mais ocupar a EFC

Mesmo após três anos desde que a ação de reintegração de posse foi movida, e mesmo com a desobstrução da via – objeto da ação – ao fim do protesto, a juíza Mirella Freitas, titular da 2a. Vara da Comarca de Itapecuru-Mirim, intimou os seis quilombolas para uma audiência de conciliação com a Vale em junho de 2017.
A proposta do advogado da Vale foi que os quilombolas nunca mais, por qualquer motivo, ocupassem os trilhos da EFC, segundo Anacleta Pires da Silva, uma das líderes do movimento. Como contraproposta, Silva exigiu que a mineradora retirasse das terras quilombolas todos os trilhos da estrada de ferro. Não houve acordo.
No último dia 9 de julho, quase quatro anos depois da desobstrução da EFC, a juíza Mirella Freitas determinou que fosse feita “a citação por edital das demais pessoas que participaram da invasão à EFC.” A advogada da rede Justiça nos Trilhos afirmou que não há, nos autos do processo, nenhuma notícia de nova manifestação ou perturbação da posse da empresa. “Inclusive, ao assumir obrigações com as comunidades na ação civil pública, ela [Vale] reconhece a legitimidade da reivindicação”, explicou a advogada. Considerando todos esses fatos, a defesa dos quilombolas considera que o processo perdeu a razão de existir, especialmente porque a EFC foi desocupada em setembro de 2014.
Belfort é escolado na defesa de sua terra. Há quatro décadas, enfrentava grileiros e fazendeiros face a face. Sua luta pelo quilombo Santa Rosa dos Pretos seguia o rastro da batalha pregressa dos homens e mulheres sequestrados na Guiné-Bissau nos séculos 18 e 19 e trazidos a Itapecuru-Mirim para trabalharem como escravos em fazendas de algodão, café e cana de açúcar de invasores europeus.
Belfort brigava por uma terra conquistada na ponta da chibata. “Eu conversava com grileiro de olho a olho e dizia ‘o senhor está errado, nós vamos resolver o problema aqui, e, se não resolver, vamos levar pra justiça. E levava. Eu nunca tive medo”, ele me disse. Nos anos 1980, chegou a peitar o então vice-governador, João Rodolfo Ribeiro Gonçalves, que havia colocado gado para pastar na roça de mandioca de Benedito, destruindo a produção. Na ação direta e no argumento, a briga foi vencida pelos quilombolas.
Hoje, porém, as coisas mudaram. O antagonista não tem rosto e nem se apresenta para o confronto. Age à distância e em silêncio. Para o lavrador, a continuação do processo, tanto quanto seu início, não tem sentido.
“Quando eu recebi a notícia do processo, pra mim aquilo não existiu. A gente não tava tirando nada da Vale. A gente tava brigando pelo nosso direito, e, se a Vale tava com a culpa, ela tinha que desocupar o que era nosso”, diz o lavrador. “Ser processado pela mineradora intimidou o senhor na sua luta?”, perguntei. “Não. Na época que eu era delegado sindical, eu resolvia as coisas sozinho. Agora, nós temos vários companheiros, amigos, não só daqui de Itapecuru, como de São Luís, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Estados Unidos, e com isso a gente se fortalece muito mais. Agora é que não dá de ter medo. Essa luta eu só deixo quando morrer.”

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Crônica: Pernambuco Novo


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José Luiz Gomes
 
Em nossas crônicas, não raro, surgem referências à cidade de Paulista, localizada na região metropolitana do Recife, onde nasci. Seria natural que assim o fosse, sobretudo numa fase mais inicial, onde as fontes de inspiração dos candidatos a cronistas estão recheadas de suas reminiscências de infância. Graciliano Ramos é natural de Quebrangulo, mas foi prefeito de Palmeiras dos Índios por 02 anos. Dizem que renunciou. Íntegro e republicano, não deve ter tido estômago para suportar ou pulmões para respirar aquele ambiente tão profundamente comprometido de safadezas e imoralidades. Não é para qualquer um não. Não sei se já informei isso aqui antes aos leitores, mas continuo lendo os livros de crônicas de Graciliano, de um tempo em que ele escrevia para jornais alagoanos. Um outro interesse nesse trabalho, como já observou o escritor Raimundo Carrero, é que o autor de Vidas Secas, nessas crônicas, disseca um pouco sobre o ato de escrever, o que se constitui numa boa aprendizagem para os calouros. De fato, sim, Carrero tem razão. Graciliano nos brinda com boas dicas de escrita naquelas crônicas cotidianas. Na Maceió daqueles tempos - ainda descubro onde eles se reuniam - havia um círculo literário que reunia nomes de peso da literatura nacional, como Jorge Amado, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, além do Velho Graça. Numa prática recorrente entre escritores, não era incomum Graciliano revisar ou criticar os trabalhos dos colegas. E o Velho Graça não perdoava: o engajamento ideológico do Jorge Amado comprometeu o enredo de "Suor"; José Lins perdeu o "controle" dos seus personagens. Por vezes, um pouco de exagero: como uma mulher pode ter escrito O Quinze? Além do mais, ainda tão jovem!

Na crônica de hoje ele fala sobre a cidade que governou por um período de 02 anos, Palmeira dos Índios, localizada na Zona da Mata de Alagoas, nas terras de quilombos. Desta vez não vou aqui fazer comentários sobre a sua gestão, mas sempre costumo enfatizar a nobreza de seu irredutível espírito público. Embora tenha muita coisa a se destacar aqui, essa sua faceta de gestor acaba sendo superada pela sua condição de um dos maiores escritores brasileiros. Nesta crônica, o alagoano parece fazer coro com o antropólogo Roberta DaMatta, quando se refere a importância do carnaval para o brasileiro. O Brasil é um país essencialmente carnavalesco. Os defeitos e virtudes de um país como o Brasil, de alguma forma, acabam se refletindo nas pequenas cidades como Palmeira dos Índios. Não sei se ainda existe essa rua por aquela cidade, mas, na época de Graciliano Ramos existia uma rua denominada Pernambuco Novo. Curiosamente, uma rua de prostituição. 

No texto, o Velho Graça não sugere pistas que nos permitam compreender melhor a situação. No Recife, por exemplo, existia uma Rua da Guia que era famosa pelos pontos de prostituição, mas a isso ocorria circunstancialmente, em razão da proximidade do Porto do Recife. No nome, em particular, nenhuma associação, exceto, talvez, na cabeça dos boêmios do Recife. Ainda ontem, no trabalho, conversava com um colega sobre a cidade de Abreu e Lima, aqui no Recife, uma espécie de Sodoma em décadas passadas. Possivelmente a maior concentração de prostíbulos por metro quadrado do Brasil. Curiosamente, antes que a ira de Deus sugerisse jogar enxofre sobre os seus habitantes, a cidade, aos poucos se transformou num reduto evangélico. Hoje, é a maior densidade evangélica da América Latina. Noutros tempos, ainda curioso sobre o porquê dessa concentração de evangélicos na cidade, descobri que nas décadas de 30/40 aqui em Pernambuco, na vigência do Estado Novo, sob o comando do China Gordo, ou o sujeito era batizado, frequentava as missas todos os domingos e se confessava ao padre ou estava literalmente lascado. Evangélicos e praticantes de cultos de matriz africana eram violentamente perseguidos. Sem possibilidade de pregarem o evangelho no Recife, os crentes se refugiaram na antiga Maricota. A carne é fraca, irmão.  

 

Ao mestre com carinho: Conferência da Saudade e os 40 anos de docência de Durval Muniz

 



O professor e historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. se despede da UFRN na próxima quinta-feira (12) não sem antes dar mais uma de suas concorridas aulas. Ele ministra a Conferência da Saudade, a partir das 18h30, no auditório da Reitoria. A homenagem está sendo organizada pela UFRN e a Ong Resposta.
Durval Muniz celebra em 2018 quatro décadas em sala de aula como professor, quase a metade no curso de história da UFRN. Por meio das redes sociais, ele comunicou semana passada a amigos, alunos, colegas e familiares sobre o pedido de aposentadoria. Ganhou de volta centenas de mensagens de carinho e gratidão. Ainda que se afaste da graduação, Muniz continuará ligado ao curso de pós-graduação, no programa Histórias e Espaços, como professor voluntário e colaborador.
O historiador dará sequência à carreira na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). As aulas serão ministradas na unidade de Guarabira. Paraibano, Durval Muniz estará praticamente em casa. Ele nasceu em Campina Grande e concluiu a graduação em História na própria UEPB. Já o mestrado e o doutorado foram realizados na Unicamp, em Campinas (SP).
Durante as quatro décadas na UFRN, Durval ministrou as disciplinas Teoria da História; História dos Espaços; História e Literatura; e História, Gênero e Sexualidade.
Paralelamente à carreira de pesquisador e professor de História, Durval Muniz publicou centenas de artigos e ensaios científicos em revistas de renome nacional e internacional. E transformou em livros várias de suas teses, frutos de pesquisas na área.
Foram oito livros até agora: História: a arte de inventar o passado – ensaios de teoria da história; Xenofobia: medo e rejeição ao estrangeiro; Nordestino: invenção do ‘falo’: uma história do gênero masculino; A Feira dos Mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular; ‘O Morto Vestido para um Ato Inaugural’: procedimentos e práticas dos estudos de folclore e de cultura popular; A Invenção do Nordeste e outras artes; Nos Destinos de Fronteira: história, espaços e identidade regional; Preconceito contra a origem geográfica e de lugar – As fronteiras da discórdia.
Algumas das pesquisas de Durval Muniz transcenderam as obras literárias. Há dois anos, o grupo potiguar Carmim de Teatro levou para os palcos uma adaptação do livro A Invenção do Nordeste e Outras Artes, sob direção de Quitéria Kelly. O espetáculo vem rodando o país e conquistou elogios do público e da crítica.
As pesquisas de Muniz também foram fundamentais para os cineastas Paulo Caldas e Bárbara Cunha, na produção do documentário Saudade. O filme é inspirado no capítulo Espaços de Saudade, do livro A Invenção do Nordeste, e foi transformado numa série de nove capítulos exibida recentemente pelo canal Arte 1.
Aliás, a saudade é o atual tema de pesquisa do historiador.
Crítico da realidade e consciente do momento grave de ruptura democrática no país, Durval Muniz é colunista do portal da agência Saiba Mais desde a fundação do projeto e escreve aos domingos sobre temas de extrema relevância para o Brasil.

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem)

Michel Zaidan Filho: A ONU, a justiça brasileira e a prisão de Lula


 
Questionado sobre a eficácia da recente resolução do comitê de Direitos Humanos, da ONU sobre a elegibilidade do Presidente LULA, tenho respondido que a resolução tem dois aspectos distintos, embora interligados:   o   legal e a questão da legitimidade internacional. Isto porque o ministro da Justiça, do governo de temer, alegou que a ONU não devia interferir em assuntos internos no Brasil, em razão da soberania jurídica e política de que goza o país no concerto das nações.

Essa é uma meia verdade. O nosso país é membro da comunidade internacional e signatário dos acordos, tratados e projetos de convenção da ONU. O Brasil, ao contrário de outras nações, tem cumprido rigorosamente todas as decisões da entidade internacional, e no governo de LULA, tornou-se –inclusive – uma “Player” mundial, arbitrando conflitos e ajudando outros países a resolverem suas contendas   externas. A verdade (inteira) é que a nossa ordem política internacional se apoia ainda no Tratado de Westfália, que elegeu os estados-nação como atores privilegiados da comunidade política internacional. O que implica no respeito à sua soberania total e absoluta na aceitação de leis e acordos. Isto significa que os tratados, acordos e projetos de convenção, aprovados nas conferências de cúpula pelo órgão multilateral, precisa da homologação dos parlamentos nacionais para ter eficácia jurídica. A rigor, eles não possuem força vinculante e não são autoaplicáveis. E há países que não os cumpre e desafiam abertamente a organização internacional: EEUUs. E o Estado de Israel. Alegam o direito de autodefesa, inclusive quando violam direitos humanos internacionais. Outros especialistas alegam que não há um regime internacional de direitos humanos, o que permite que determinados países   avoquem a si o direito de polícia do mundo para invadir, destruir e saquear as riquezas de estados menores.

Mas existe um   outro aspecto que deve ser considerado: a questão da legitimidade e da imagem de cada país, externamente. Embora as decisões da ONU nem sempre tenham força vinculante, como as leis internas de cada estado nacional, faz parte do reconhecimento  de cada povo ou nação – no cenário diplomático e comercial do mundo de hoje-  que ele não seja considerado um país fora da lei ou pária, ou seja uma entidade estatal fora do sistema jurídico internacional. Nesta condição, ele pode sofrer embargos e sansões econômicas e comerciais dos demais membros da Organização das Nações Unidas e de suas agências regionais. A questão da prisão e da inelegibilidade de LULA vai além da questão jurídica externa. Ela tem a ver essencialmente com a legitimidade de uma eleição presidencial sem a presença do candidato mais aprovado nas pesquisas de opinião, que não teve ainda seus direitos políticos cassados por nenhum tribunal e cuja condenação ainda não transitou em julgado. A presunção de inocência é um preceito constitucional. Não pode ser atropelado por uma lei ordinária menor. Faz   parte do ordenamento jurídico brasileiro e   pensamento garantista dos nossos melhores juristas (togados ou não).

Ignorar a resolução do Comitê de Direitos Humanos, da ONU, a vontade da maioria do povo brasileiro, o direito à presunção de inocência e a elegibilidade de qualquer candidato lança uma suspeita muito grave sobre o resultado dessas próximas eleições presidenciais e pode custar caro ao país na esfera do  direito internacional.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.

 

As coinfissões da carne, a libidinização do sexo e a mamadeira

                                           
Marcia Tiburi

As confissões da carne, a libidinização do sexo e a mamadeira
O filósofo Michel Foucault, 1984 (Arte Andreia Freire | Foto Michele Bancilhon / Reprodução)

Por Alessandro Francisco
Em 8 de fevereiro deste ano, foi publicado, pelas Éditions Gallimard, mais um inédito de Michel Foucault (1926-1984): As confissões da carne (Les aveux de la chair). Trata-se do quarto volume de seu projeto de uma História da sexualidade.
O texto, na versão datilografada, fora depositado na editora no outono de 1982 e, ainda que Foucault tenha falecido em 1984, não fora publicado. Já no depósito, ele advertiu a editora que a publicação não seria imediata, pois havia outro escrito que o devia preceder. Este foi desdobrado em dois volumes – 2 e 3, respectivamente, da mesma História da sexualidade: O uso dos prazeres e O cuidado de si, – publicados em 1984, pouco antes de sua morte. O primeiro volume, A vontade de saber, havia sido publicado em 1976, oito anos antes.
Para o estabelecimento do livro, foi realizado um verdadeiro trabalho de pesquisa. Frédéric Gros, que se dedica ao estudo do pensamento de Michel Foucault ao menos desde seu doutoramento, é o responsável por esta edição. Gros não somente recorreu à versão datilografada do texto, mas também ao manuscrito, depositado na Biblioteca Nacional da França por Daniel Defert – companheiro e um dos herdeiros de Foucault –, em 2014, dois anos após o Ministério da Cultura francês classificar a “obra” de Michel Foucault como Tesouro Nacional.
As confissões da carne, que deve ter em breve uma tradução para a língua portuguesa, abarca a análise de discursos de filósofos dos dois primeiros séculos de nossa era, tais como Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) e Caio Musonio Rufo (25 d.C. – 95 d.C.), passando pelo cristianismo de Clemente de Alexandria (150 d.C. – 215 d.C.) e de Tertuliano (160 d.C. – 220 d.C.), atravessando os discursos de exegetas cristãos como Gregório de Nissa (330 d.C. – 395 d.C.), Basílio de Ancira (ca. 336 d.C. – ca. 362 d.C.) e João Crisóstomo (347 d.C. – 407 d.C.), alcançando, por fim, Agostinho (354 d.C. -430 d.C.).
Em sua análise, Michel Foucault aborda, dentre outros, temas como o matrimônio e as relações entre esposos, em especial a relação sexual; o batismo e toda uma série de procedimentos que o preparavam no âmbito do chamado cristianismo primitivo; a segunda penitência, oferecida aos cristãos como segundo recurso após o batismo; a virgindade; e a concupiscência.
Neste escrito, Foucault nos faz ver, por exemplo, que os problemas que envolviam a prática da virgindade se transferem de um quadro negativo, presente em alguns tratados da Antiguidade, em que ela era concebida como interdição ao ato sexual, para um quadro positivo, em que se faz o elogio da castidade como distinção do “sujeito”, na medida em que sua prática o aproxima do estado paradisíaco. Toda esta discussão perpassa tratados destinados aos monges, que já praticavam a castidade – sequer mencionando a relação sexual ou a dita fornicação – e outros tantos que visavam a difundir a “vida cristã” a toda uma comunidade.
No dito cristianismo primitivo, o matrimônio (relação entre esposos) passa de objeto de recusa a “bem positivo” sobre o qual se deve estar atento e que, portanto, deve obedecer às prescrições de um certo modo de vida cristão, de uma “vida verdadeira”. O matrimônio se torna elemento que requer gestão.
Batismo, prática da virgindade, matrimônio, todos envolviam uma tecnologia, isto é, um conjunto amplo de procedimentos preparatórios, de um lado, e permanentes, de outro. O exame de consciência era um deles: uma contínua vigilância do pensamento que, já nos exegetas dos séculos 3 e 4 d.C., tinha por finalidade fazer o “sujeito” acessar uma verdade interior, os “segredos do coração”, para que fosse purificado.
Não é diferente o caso das chamadas “provas de exorcismo”: para aceder à iluminação se deve extirpar os males – neste caso, os pecados –, sendo a fornicação o pior de todos, pois, conforme a leitura que Foucault faz de diversos tratados dos primeiros séculos de nossa era, ela seria o primeiro dos males na ordem causal. Todos os pecados estariam apoiados na fornicação, pois é ela que enraíza o “sujeito” no mundo terreno.
No que se refere à confissão, são ainda as noções de purificação e de iluminação que estão em jogo. Uma vez realizado um exame da própria consciência, por meio de contínua vigilância dos pensamentos – não basta ocupar-se do corpo, é preciso buscar igualmente a limpeza da alma –, é necessário enunciar as faltas cometidas e aquelas presentes “em ato” na consciência. Sim! Segundo diversos tratados antigos, o pecado reside em ato nos pensamentos, daí ser indispensável um incessante exame de consciência.
A penitência, por sua vez, também é ato de purificação e é evocada, por vezes, não como uma simples prática, mas como uma vida inteiramente penitente. Se o batismo lava e purifica pela água, a penitência não é distinta: o faz pelas lágrimas do “sujeito”. Se, de uma parte, ela requisitava práticas privadas – a penitência tem lugar, por exemplo, a partir da confissão realizada privativamente a um sacerdote –, de outra, exigia a manifestação pública do “estado de pecador” do catecúmeno. Exemplo disso é o rito de andar vestido com um saco e coberto de cinzas, referência à Bíblia (Ester 4,1).
Todos, como vimos, são procedimentos que lavam, purificam o corpo e a alma, conduzem à iluminação e, portanto, a uma relação direta da alma com Deus. Entretanto, ainda na esfera do dito cristianismo primitivo tal como analisado por Foucault, nada se pode fazer sem uma adequada direção de consciência. Toda esta tecnologia – esta coleção de técnicas, portanto – deve se dar no quadro da orientação de um mestre. Esta direção de consciência requer a renúncia total da própria vontade e se funda na obediência global ao mestre-diretor.
É, então, que, nos últimos dois capítulos do texto, Foucault se debruça sobre escritos de Agostinho, na passagem do século 4 para o 5 d.C.. Aí, o problema da concupiscência ganha uma nova configuração. Antes do aparecimento daquilo que Foucault denomina “teoria da libido”, presente no discurso de Agostinho, a atração entre os sexos se dava pela manifestação de um desejo natural que, exercido pelo corpo, confundia a alma e a fazia pesar. A libido – concebida como desejo, vontade, prazer, se considerarmos o complexo composto por seus sentidos antigos – aparece, no exemplo do discurso de João Cassiano (360 d.C. – 435 d.C.), como algo que se desdobra nas profundezas da alma. Assim, pouco antes de Agostinho e em alguns de seus contemporâneos, o problema da libido se organizava no quadro de uma partição alma-corpo: a concupiscência está inscrita na alma e é motivada pelo corpo.
Consideremos ainda que alguns pensadores anteriores a Agostinho defendiam que o ato sexual não era realizado no Paraíso, antes da queda, enquanto, para este, o ato era efetuado, mas sem concupiscência, sem libido. Isto promove a transformação de todo o complexo de ingredientes presentes no discurso ocidental.
No discurso de Agostinho, a libido não aparece mais assentada na distinção alma-corpo, mas fundada no próprio “sujeito”: é somente após a queda que o ato sexual se torna libidinoso. A libido, segundo Agostinho, habita a natureza do próprio homem, o modo como ele faz uso de sua vontade. Ele não deve desejar o que quer a concupiscência que nele reside. O homem surge, assim, no discurso de Agostinho, como “sujeito de desejo”, de modo que sua vontade não se relaciona diretamente com o objeto desejado, mas com o desejo inscrito em seu próprio ser. Segundo esta compreensão, no ato sexual, pode-se buscar a satisfação da concupiscência ou conceber filhos. Destarte, conforme o discurso de Agostinho, a libido estará sempre presente, pois faz parte da natureza decaída do homem. Cabe ao “sujeito” querer o que ela quer ou fazer outro uso de sua vontade.
O escrito póstumo de Michel Foucault é de uma riqueza sem tamanho, trazendo elementos que interessam, dentre outras áreas, à História, à Sociologia, à Antropologia, à Psicologia, ao Direito, à Teologia. Não podemos menosprezar a relevância que os temas abordados suscitarão no campo da prática psicanalítica. Entretanto, devemos destacar que, numa perspectiva dita foucaultiana, seu escrito contribui menos a desenvolver a Psicanálise como prática terapêutica e mais a compreender os ingredientes que tornaram possível o aparecimento do discurso psicanalítico. Estaria a psicanálise, ainda hoje, devotada a analisar um certo sujeito cuja emergência se faz ver, até certo ponto, já na passagem entre os séculos 4 e 5 de nossa era?
No que compete à filosofia, o texto aporta muitos elementos. Mormente no quadro dos problemas que envolvem as relações entre a subjetividade e a verdade. Os inúmeros procedimentos de purificação-iluminação presentes no chamado cristianismo primitivo não somente permitem ao “sujeito” uma relação com Deus, e, portanto, um certo modo de relação com a verdade divina, mas também o acesso à sua própria verdade, incrustada – segundo os discursos dos primeiros séculos de nossa era – em nossos pensamentos. É preciso vigiar os pensamentos, extirpar os males, purificar-se pelas águas do batismo e das lágrimas, confessar a verdade mais secreta àquele que dirige nossa consciência, para alcançar a mais íntima e própria verdade de si. Triste percurso trilhado pela história da experiência da subjetividade ocidental, cujos resquícios ainda ressoam aqui e ali em nossos saberes e em nossas práticas.
Por fim, para atenuar esta discussão um tanto quanto densa, não sem recorrer à tradição penitencial em que os cristãos se cobriam de cinzas – é preciso lembrar que estas permanecem presentes na chamada Quarta-feira de cinzas –, partilho, aqui, uma curiosidade. Em julho de 1977, as mesmas cinzas foram evocadas ao final de uma sessão organizada por normalistas – como são chamados os estudantes da École Normale Supérieure de Paris –, com a presença de Michel Foucault. A reunião reservada – publicada em forma de texto originalmente num boletim freudiano francês e posteriormente na série que reúne alguns ditos e escritos de Michel Foucault – tinha por objetivo discutir o primeiro volume da História da sexualidade, publicado um ano antes. Na ocasião, um dos normalistas era o querido amigo e mestre Alain Grosrichard – atualmente Professor Emérito da Universidade de Genebra, onde sucedeu Jean Starobinski –, que recordou a citada reunião ainda em março deste ano quando estivemos juntos.
Na época, próximo de Foucault e conhecendo seu senso humor, Alain Grosrichard não perdeu a oportunidade de lançar a isca: em meio a uma discussão sobre o desenvolvimento de métodos contraceptivos no século 18, ele diz “É a época em que se inventa a mamadeira moderna”. Foucault exclama: “Não conheço a data”. E Grosrichard, por seu turno, assevera: “1786”, indicando seu inventor italiano e a tradução francesa do texto. Num clima de companheirismo entre normalistas, Foucault arremata “Renuncio a todas as minhas funções públicas e privadas! A vergonha se abate sobre mim! Cubro-me de cinzas! [grifo nosso] Eu não sabia a data da mamadeira!”. E a sessão se encerra numa sinfonia de risos.

Alessandro Francisco é doutor em Filosofia pela PUC-SP e pela Université Paris 8, é professor dos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu do UNIFAI e pesquisador associado à Université Paris 8 e à École Normale Supérieure de Paris, em nível de Pós-Doutorado.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Folha de São Paulo

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Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Michel Zaidan Filho: Retórica, jogos de linguagem e sofística

                

 
A ciência moderna da Retórica foi profundamente influenciada pela suspeita metódica, do filósofo Frederico Nietzsche, em relação ao conhecimento humano. Num curto ensaio intitulado: “A verdade e a mentira no sentido extramoral”, Nietzsche lança as bases do neo-nominalismo na ciência, na filosofia e na religião. Segundo ele, o pensamento é uma patologia humana, uma espécie de racionalização do complexo dos homens em relação às demais criaturas do universo. Pensa-se para justificar a pobreza cósmica e filosófica da humanidade. Sobretudo, a sua solidão metafísica. O pensamento seria uma espécie de doença responsável pelo sentimento de angústia e desamparo humanos diante da grandeza do mundo.

Neste ponto, os conceitos, as ideias gerais, os princípios éticos e gnosiológicos não passariam de meras “efígies” das coisas, sem correspondência nenhuma com elas. Um tal pensamento levaria a um relativismo ético desesperador, no sentido de que todas as assertivas morais e deontológicas não passariam de uma racionalização da vontade de poder, ou de potência – como dizemos nietzschianos. Daí a moral do mais forte, do vencedor. E o cinismo reinante quanto às razões dos vencidos, dos dominados.

Sob a influência da chamada crise da razão ou do mal-estar na modernidade, esse relativismo ético se tornaria mais robusto com a pós-modernidade e os pensadores pós-modernos, muitos de inspiração neo-nietzschiana (Foucault, Deleuze, Guatarri, Lancan).E a principal influência viria da chamada “virada linguística” patrocinada por Ludwig Wittgestein e, sobretudo, o segundo Wittgstein, o da crítica à representação e dos jogos de linguagem. Segundo nosso filósofo da linguagem, o nosso pensamento não pode ser concebido de uma perspectiva representacional e a correspondência biunívoca entre ser e linguagem seria apenas um dos jogos ou função da linguagem.

Essa crítica exerceu uma enorme influência sobre a ética, o direito e a ciência, relativizando as pretensões de validade do discurso científico, jurídico ou filosóficos. O que levou a elaboração de outras éticas (Opel, Habermas, Deleuze), éticas relacionais, discursivas ou pragmáticas. No caso do Direito, houve um grande avanço dos estudos retóricos, com sua repartição entre a retórica material, a retórica pragmática e a retórica analítica, conjugada à semiótica o estudo do signo jurídico – na relação entre sujeitos (agontica), entre sujeitos e coisas (ergontica) a relação entre o sujeito e os sinais (pitaneutica). O estudo da filosofia do Direito, a partir da retórica e da semiologia jurídica levou ao que se pode chamar de uma semiurgia, de um mundo feito a partir da linguagem, dos signos jurídicos. É quando o mundo das normas, dos fatos e das vivências se esfuma e se torna mero discurso.

As consequências dessa virada linguística, responsável pela supervalorização da retórica na ciência do Direito teria imediatas consequências políticas e éticas. Ao não reconhecer mais as pretensões de validade normativa, estética ou gnosiológica das assertivas filosóficas, o filósofo se torna, não um retórico (no sentido aristotélico da palavra), mas um sofista, que aluga ou vende o seu discurso ou seu saber filosófico a quem pode pagar por ele. Daí a justificação de golpes, estados de exceção, doutrinas decisionistas ou autoritárias, torna-se possível em função de uma razão retórica que, as vezes, resvala para o cinismo ou o puro e simples casuísmo.

Essas considerações talvez fossem ociosas e especulativas se essa orientação não estivesse, hoje, nos cursos de Pós-graduação em Direito, nos cursos de Bacharelado em Direito, nas estantes das bibliotecas e livrarias de Direito e nas colunas de jornais e espaços de debate, justificando a recente ruptura institucional que o país sofreu, a serviço de interesses privados. Estaria aí, quem sabe, a razão de uma distinção formulada, a pouco por um doutorando, em tese sobre os cursos de Direito do estado de Pernambuco, entre filósofos do Direito e sofistas, não retóricos. Os primeiros pensam, refletem e criam; os segundos vendem seu cabedal filosófico a quem pode pagar regiamente por ele.

Sei que com essas palavras, serei tratado como “tacanho”, “mesquinho” e “ultrapassado”. Mas já está na hora de abrir o debate amplo, aberto e desassombrado sobre a relação Filosofia do Direito, Retórica e Sofística. E que cada um assuma as consequências de seus atos retóricos.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.
 

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Brasil usa rituais islâmicos para matar frangos, mas pode proibir abate religioso de matriz africana.




Juliana Gonçalves

É na Corte, sob a proteção de um crucifixo no plenário, que os ministros do Supremo Tribunal Federal vão decidir nesta quinta-feira se garantir a preservação dos ritos das religiões de matriz africana com uso de animais é constitucional ou não. No país em que setores do agronegócio lucram com o abate religioso seguindo os preceitos islâmicos (halal) e judaicos (kosher), uma ação do Ministério Público gaúcho contesta que assegurar liturgias das religiões afro-brasileiras é conceder “privilégio”.
Em 2003, o Rio Grande do Sul, um dos estados com mais terreiros no Brasil, criou uma lei de proteção animal que poderia tornar ilegal o abate religioso. No ano seguinte, uma outra lei foi criada para acrescentar ao código de proteção um parágrafo que cria uma excepcionalidade para os ritos e liturgias das religiões de matriz africana. O remendo foi uma garantia ao cumprimento do parágrafo V da Constituição Federal que prevê a liberdade de crença e cultos religiosos. No entanto, o MP entrou com o recurso por entender que a reforma no código viola a laicidade do estado por não citar outras religiões que também praticam o abate religioso com as bênçãos do agronegócio.
O Brasil é o maior exportador de carne bovina e de frango do mundo e se especializou no abate seguindo os preceitos religiosos que compram essa carne. Hoje, 90% dos frigoríficos são habilitados para o abate halal e é líder na exportação – quando o abate é feito por um muçulmano que recita dizeres da religião e o animal está posicionado para meca. Em dois anos, o mercado brasileiro deve exportar 60% mais carne halal ao passar a vender para a Indonésia. Hoje, as empresas brasileiras atendem 22 países de cultura islâmica, um total de 2 milhões de toneladas de carne por ano. O país também faz abates seguindo os preceitos do judaísmo, mas em uma escala muito menor, já que a exportação acontece apenas para Israel. Ou seja, legitima o abate religioso dentro dos preceitos islâmicos e judaicos nos frigoríficos e criminaliza o abate nos terreiros.
“Tendo em vista que somos o país que mais exporta carne sacralizada das américas e que tem frigoríficos adaptados para o abate religioso, a ação é mais uma tentativa de criminalizar as práticas religiosas afro-brasileiras”, afirma o Roger Cipó, Ogan Alagbe e membro da Comissão afro-religiosa Òkàn Dimó, que está na organização da marcha contra a intolerância e o racismo religioso que acontece nesta quarta em São Paulo.
‘Os defensores de animais focam nas religiões afro-brasileiras o que eles entendem como maltrato. Se fossem a um abatedouro de frango não estariam brigando com os religiosos.’
O movimento que começou no Rio Grande do Sul abriu espaço para que outras cidades também tentassem proibir o abate religioso nas religiões de matriz-africana, mesmo que nestes locais houvessem frigoríficos praticando o abate halal ou kosher – como foi o caso de Cotia, em São Paulo. O uso de animais com finalidade “mística, iniciática, esotérica ou religiosa” tornou-se passível de multa na cidade. O caso foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendeu que a lei 1.960/2016 é inconstitucional e o que prevalece é a liberdade de culto. A cidade de Valinhos, também no interior paulista, aprovou uma legislação semelhante.
“Existe uma orquestração, eu já perdi a conta das vezes que saí de São Paulo para o interior para tratar de leis que querem proibir o abate religioso na umbanda e no candomblé nos últimos dez anos”, diz o advogado Jáder Freire de Macedo. Ele representa as religiões de matriz-africana no STF ao lado de Hédio Silva Júnior e Antônio Basílio Filho.”Foram várias reuniões da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB para explicar a vereadores que leis desse tipo rompem com a liberdade de culto que é garantida na Constituição. Eu posso listar mais de 30 leis como essas”, diz.
Para Macedo, o que está sendo julgado não é a proteção animal e sim o cerceamento à liberdade religiosa. “Os defensores de animais que acabam focalizando nas religiões afro-brasileiras o que eles entendem como maltrato. Se qualquer um deles fosse a um abatedouro de frango eles não estariam brigando com os religiosos”, completa.
De acordo com a Lei de Proteção Animal, o mau-trato é caracterizado pela morte lenta, com um sofrimento prolongado. O método utilizado no abate religioso é o da degola, catalogada pelo Ministério da Agricultura como método humanitário. Nas religiões afro-brasileiras, o abate acontece durante o ritual, para tornar o alimento sagrado. Os animais são abençoados pela força dos orixás e parte da comida é repartida entre a comunidade do terreiro para que as pessoas se alimentem da sua fé – algo semelhante ao que acontece nas religiões islâmica e judaica.
“No abate religioso, o animal não sofre maus-tratos. Nós sacralizamos o animal, e depois ele é consumido como alimento. A gente não faz sacrifício, quem sacrifica é a Friboi”, afirmou o babalorixá Ivanir de Santos, que é interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro em entrevista ao Intercept em 2017.
Ações que visam proibir práticas de Umbanda e do Candomblé são um braço do racismo. O movimento tenta apagar as tradições do povo de terreiro e não está de fato preocupado com a proteção animal, uma vez que não questiona as outras formas de abate religioso. O recurso extraordinário no STF eleva a questão a nível nacional e passa a ser um marco na luta contra o racismo.

“Estamos falando em racismo religioso porque entendemos que a violência contra as religiões de matriz africana não se dá no mesmo contexto da intolerância a outras religiões”, explica Roger Cipó ao lembrar que o fato de se tratarem de religiões majoritariamente negras potencializa os ataques.

(Publicado originalmente no site Intercept Brasil)

Crônica: O Moleque Ricardo em Paulista

 
 
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José Luiz Gomes
 
 
 
Em todos os estudos que li sobre a obra do escritor paraibano José Lins do Rego, O Moleque Ricardo sempre ocupou um papel relevante. Mesmo entre aqueles estudos onde, a princípio, o livro não seria elencado como objeto. Eis aqui mais uma evidência de sua importância na obra de José Lins do Rego. O Moleque Ricardo integra aqueles livros do chamado ciclo da cana-de-açúcar do escritor. Embora os livros dessa fase sejam apresentados como os mais importantes do escritor, sobretudo entre os críticos literários, parece existir um consenso de que ainda não seriam os escritos de sua maturidade como escritor, justamente em razão do seu caráter acentuadamente memorialista. Livros de fases seguintes, que não alcançaram o mesmo êxito dos livros escritos sobre o ciclo econômico da produção da cana-de-açúcar na região, do ponto de vista da crítica literária, ocupariam um status mais elevado, em razão de o escritor estar mais "solto" das amarras memorialistas do apogeu dos engenhos no Nordeste brasileiro. 

Na realidade, José Lins do Rego era uma espécie de "homo literatus" de Gilberto Freyre, na perspectiva de consolidação de seu regionalismo. Ambos se conheceram logo após a formatura de José Lins do Rego em Direito, aqui na Faculdade de Direito do Recife, e se tornariam amigos íntimos. Embora já, de certa forma, iniciado no jornalismo e na literatura, José Lins confessa uma mudança radical em sua vida depois de conhecer o sociólogo Gilberto Freyre. Há, nas entrelinhas dessa confissão, claros indícios dos rumos literários que ele tomaria a partir de então. Menino de Engenho é de 1932 e Casa Grande & Senzala de 1933. Enquanto Gilberto Freyre se dedicou ao ensaísmo histórico, José Lins enveredou pela tarefa de "romancear" o ciclo da cana-de-açúcar na região, claro, sob os auspícios do mestre de Apipucos. Um fiel escudeiro. Gilberto Freyre ficou bastante abatido com a sua morte, ainda jovem, com pouco mais de 55 anos de idade. Uma carta de despedida que ele escreveu a este respeito é de partir os corações mais sensíveis. 

Nos dois trabalhos acadêmicos que li recentemente envolvendo a obra do escritor - um deles escrito por Gladson de Oliveira Santos, "José Lins e a modernização da economia açucareira"; o outro de Carla de Fátima Cordeiro, "Pelos olhos de um menino. Os personagens negros na obra de José Lins do Rego" - embora em abordagens distintas, lá estava O Moleque Ricardo. Ricardo era íntimo de Carlinhos nas peripécias da bagaceira. Certamente, teria mais habilidades para essas estripulias, assim como ocorria com todos os moleques da senzala, que faziam tudo melhor do que os filhos da Casa Grande dos engenhos. Ricardo era um moleque especial. Diferente dos outros meninos da bagaceira, sabia ler, graças aos esforços de sua mãe. Eis que, num determinado momento - não lembro qual a motivação - ele resolve deixar o engenho Santa Rosa e vir para a cidade do Recife. Se quisermos aqui uma "essência" do texto O Moleque Ricardo, ela está na narrativa discursiva sobre a vida nos engenhos de cana-de-açúcar em contraposição à vida na cidade. Há uma dissertação de mestrado que trata exatamente sobre este assunto. Essa vida urbana proporcionada pela açucarocracia nordestina aos seus rebentos, aliás, irá se constituir num tema dos mais importantes quando se considera, por exemplo, a fase de decadência dos engenhos, uma vez que "enebriados" pela vida nas grandes cidades, os herdeiros se desinteressavam em tocar os negócios dos seus antepassados. 

José Lins, por exemplo, tornou-se um homem de boemia e literatura. Terminou o curso de Direito com um "simplesmente", ou seja, a nota mínima exigida para a aprovação. Um dos piores momentos sua vida, foi quando exerceu um cargo de promotor numa cidade mineira, emprego conseguido por um parente. Em vários momentos de suas obras, fica claro a sua absoluta inapetência para a vida no eito, em substituição ao coronel José Paulino, cuja decadência ele apenas acompanha, de preferência deitado numa rede, lendo o Diário de Pernambuco. Não esconde, igualmente, sua inabilidade para as letras jurídicas. No Menino de Engenho, há relatos de sua volta ao Santa Rosa, onde uma tia sua insistia em perguntar-lhes, nas horas da refeição: Já pegou alguma causa, Carlinhos?

Aqui no Recife, Ricardo acabou por cometer alguns delitos e cumpriu pena em Fernando de Noronha. Mas, o mais interessante nessa história é que descobrimos algo curioso. Há uma possibilidade concreta - a partir do próprio texto - de Ricardo ter trabalhado na Companhia de Tecidos Paulista, aqui na cidade de Paulista, que pertencia à família Lundgren. Desta vez não se trata de ficção, mas de um relato fidedigno aos fatos. Quando voltou ao Engenho Santa Rosa - já de fogo morto e em franca decadência, em razão da chegada das usinas - Ricardo iria acompanhar os lamentos de Gilberto Freyre e José Lins do Rego pelo fim de um ciclo, o ciclo dos engenhos, da bagaceira, das safadezas com as mulatas, das licenciosidades entre senhores e escravos. A pesquisadora Carla de Fátima lembra, por exemplo, que em nenhum momento da obra de José Lins do Rego ele usa a palavra "prostituta", mas ela entende que mulata teria o mesmo significado. Numa época em que o cajado ainda funcionava, o coronel José Paulino mantinha umas quatro. Na realidade, era disso que eles sentiam saudades. 

 O Moleque Ricardo é o quarto volume dos romances que integram o chamado ciclo da cana-de-açúcar do escritor José Lins do Rego. Os anteriores são, pela ordem, Menino de Engenho, Doidinho, Banguê. Usina e Fogo Morto, apesar da remissão inevitável, não integram este ciclo. Logo após a publicação dessa crônica, comecei a ler uma dissertação de mestrado sobre o livro, cujo autor tentava fazer um link entre geografia e literatura a partir da obra do escritor paraibano. Talvez em nenhum outro texto de José Lins do Rego fique tão evidente essa relação entre campo e cidade quanto em O Moleque Ricardo. Aliás, o percurso recifense de Ricardo aqui na capital pernambucana, na realidade, é o mesmo percurso do escritor paraibano, que aqui se instalou para estudar Direito, depois de uma ligeira passagem pelo Ginásio Pernambucano.
 
Lá estão o Rio Capibaribe com suas pontes, a Rua da Aurora, o Pátio do Carmo, a Avenida Encruzilhada, os bairros alagados, com seus mocambos e palafitas. Possivelmente em função da influência de Gilberto Freyre, José Lins do Rego irá desenvolver uma relação muito sentimental em relação a essas edificações construídas pela população pobre do Recife. O encontro entre ambos ocorreu logo após a formatura de José Lins na Faculdade de Direito do Recife, como já enfatizamos. Três nomes foram determinantes na sua formação de escritor: José Américo de Almeida, Olívio Montenegro e Gilberto Freyre. Mas, como ele mesmo confessa, nenhum deles foi mais importante do que Gilberto Freyre, que exerceu o papel de mentor literário do jovem escritor paraibano, indicando a ele os livros certos para a sua formação literária, além do seu "capital simbólico", obtido em centros acadêmicos e nas viagens realizadas pelo exterior. Gilberto foi o homem responsável por sua "conversão" num ilustre homem de letras do seu regionalismo. 


Charge! Benett via Folha de São Paulo

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