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quarta-feira, 29 de maio de 2019

O simbolismo do Exu na produção de uma filosofia do trágico no Brasil


O simbolismo de Exu na produção de uma filosofia do trágico no Brasil
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(Célia Sodré/Reprodução)

Baraperspectivismo: conceito que crio a partir do simbolismo dos mitos de Exu, configura uma visão trágica da existência, caracterizada pela afirmação irrepreensível do corpo na vida da realidade empírica. A noção de perspectivismo, que vem da filosofia de Nietzsche, relaciona-se à ideia do conhecimento que não tem por pretensão enunciar a verdade última das coisas, pois não crê na verdade absoluta; que não se arvora no princípio da universalidade; que enxerga precisamente um fundamento moral nos discursos tradicionais da metafísica no Ocidente; e que se constrói eminentemente como apenas uma interpretação da realidade. Daí, uma interpretação que parte de um lugar, de um ponto de vista, uma perspectiva. Acrescentar a um conceito a noção de perspectivismo enuncia que a ideia de conhecimento ali proposta não se instaura como um centro ao redor do qual gira o mundo, mas sim como um olhar que está ao redor da coisa, admitindo a complementaridade do maior número possível de ângulos de visão. Pois não se trata de desvelar o sentido oculto da realidade, mas de adorná-la com o maior número possível de véus. Já o prefixo bara remete diretamente ao simbolismo de Exu, pois é um dos nomes pelo qual é conhecido. Daí, a cosmovisão da cultura yorubá, principalmente a que apreendemos através de seus mitos, se encontra no cerne da elaboração desse conceito.
Seria sua criação, portanto, um modo de submeter a experiência cultural da sociedade tradicional yorubá às categorias do pensamento ocidental? Será que se apropriar das representações simbólicas produzidas no seio dessa cultura, para criar uma filosofia do trágico, constitui um trabalho de dominação e usurpação, reproduzindo e reinventando os tentáculos do imperialismo ocidental sobre os saberes africanos? Minha resposta é: talvez. Porém, no caso do baraperspectivismo, a interpretação serve muito mais ao propósito da criação de um conceito e de uma filosofia que denunciem os prejuízos do logocentrismo, ou seja, os prejuízos de um racionalismo exacerbado e eminente em relação à vida que foi suprimida; um conceito e uma filosofia que sirvam de alternativa aos valores científicos e morais que caracterizam a hegemonia da cultura ocidental, a partir do estabelecimento da “situação colonial” no século 19. O baraperspectivismo, assim, quer se impor como arma de guerra contra o “complexo de inferioridade” assinalado por Frantz Fanon como a doença que tem suprimido as forças de africanos, africanas e seus descendentes – assim como as das populações nativas dos territórios colonizados nas Américas há quinhentos anos.
A palavra bara, de acordo com Juana Elbein dos Santos, significa “rei do corpo”: “bara = Oba (rei) + ara (corpo)”, potente modo de se pensar uma oposição à hegemonia do lógos, ou da razão, que, na história da filosofia ocidental, implica o alijamento dos sentidos e do corpo dos processos de legitimação do conhecimento e da verdade; o que Nietzsche caracterizou muito bem em um de seus textos sobre a razão na filosofia com a expressão, “fora com o corpo, essa deplorável idée fixe dos sentidos! acometido de todos os erros da lógica, refutado, até mesmo impossível, embora insolente o bastante para portar-se como se fosse real”.
Na filosofia, Exu, rei do corpo, é capaz de fundamentar uma ética, uma estética, uma teoria do conhecimento e uma filosofia da cultura alternativas às que já foram criadas no Ocidente; e, ainda, contar, ou melhor, cantar uma história da filosofia, do seu próprio ponto de vista. E precipuamente brasileira, talvez, posto que o berço do conceito é a própria experiência da diáspora africana. Daí, o diálogo, o jogo, a relação, a troca com pensadores ocidentais, como Nietzsche, que por si já fizeram a crítica do lógos. Não se trata de submeter Exu a Dioniso, portanto, mas de elaborar o discurso que eles poderiam enunciar juntos.
Mas não nos atemos apenas a Nietzsche: acompanham-nos aqui pensadores e filósofos negros como Wole Soyinka, Paulin Hountondji, Molefi Asante, Kabengele Munanga, Frantz Fanon e Aimé Césaire. Nesse percurso que busca enfatizar, enaltecer e defender a potência criativa dos povos pretos, que se mede inclusive pelo interesse de cientistas e missionários europeus que se lançaram sobre suas experiências culturais estimulados, basicamente, pela “força misteriosa”, senão pela “grandeza”, como diria Jacob Burckhardt, que emana das fontes de nossas culturas negras, ora gerando atração, ora repulsa. A atribuição de animalidade e da falta de história aos povos pretos, desde pelo menos Kant e Hegel, gerou consequências irreversíveis para os pretos de agora e do porvir. Entretanto, diante da falência das instituições modernas, estou convicto de que o apelo à animalidade do ser humano, a releitura do que Nietzsche denominou como “texto básico homo natura”, encontra um modesto aliado no baraperspectivismo. Exu e sua ligação com o corpo, com os instintos e com a palavra, é capaz de restituir ao ser humano uma experiência análoga àquilo que o autor de O nascimento da tragédia definiria como a Erlebnis par excellence, a vida a partir de uma perspectiva trágica.
As chagas do século 19 continuam abertas. O projeto colonial da Europa e dos Estados Unidos segue imperialista, racista e sexista. Além da violência perpetrada pelas guerras, pela fome, pela sede e pelas epidemias, a violência da tecnologia atinge coletividades inteiras preparadas para servir como animais de corte. Se os animais de rebanho de Nietzsche sustentaram uma civilização socrática no século 19, agora são os animais de corte que sustentam a civilização contemporânea. Para impor um “basta!” aos desmandos do matadouro, a modesta contribuição do baraperspectivismo procura reavivar o desejo, a alegria, o ímpeto, a festa e o instinto. Diante de uma coletividade constituída por indivíduos tão ludibriados em sua capacidade de querer, tão vilipendiados no âmago de seus desejos, a tal ponto que se tornaram incapazes de criar, incapazes de pensar, o baraperspectivismo quer que não se deixe esquecer o simbolismo de Exu, posto que o rei do corpo é o dono do desejo da palavra, que desperte e que anime as forças sempre renovadas de uma vida.

Rodrigo dos Santos é ator, mestre e doutorando em Filosofia pela UFRJ e membro do Laboratório KHORA de Filosofia da Alteridade.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Quem é a mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial



Quem é mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial

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A antropóloga Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial (Arte Andreia Freire/Revista CULT)

Minha pele não é retinta. Tenho a cor da miscigenação brasileira, que tantas vezes foi utilizada para reafirmar o mito da democracia social. “Você precisa escrever sobre isso. Precisa falar sobre colorismo”, declarou Sueli Carneiro da última vez que nos encontramos. E se Sueli declara, a gente obedece.
Colorismo significa, de maneira simplificada, que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura é sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinados ambientes ou situações.
É isso. Mas não é só isso. Poder ser vista como branca, ou melhor, como não negra, me permitiu oportunidades que provavelmente eu não teria se tivesse a pele mais escura, como ocupar um cargo de coordenação em um colégio europeu, de elite, onde um dia precisei argumentar fervorosamente que era uma mulher negra e que essa era uma afirmação importante. Mas não se pode perder de vista que na cidade onde vivo, São Paulo, empregos subalternos, o trabalho doméstico, os presídios têm a minha cor de pele.
Tarefa difícil essa de escrever sobre colorismo, que certamente não se esgota neste texto. “Como determinar a cor se, aqui, não se fica para sempre negro e/ou se ‘embranquece’ por dinheiro ou se ‘empretece’ por queda social?”, perguntou certa vez a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Para falar sobre colorismo precisamos considerar classe, escolarização e outros marcadores sociais da diferença. E uma breve genealogia do termo pardo pode ser útil. Nos memes de redes sociais, pardo é papel, não gente. Mas o termo se refere a pessoas desde o Brasil colonial, com múltiplos usos e significados.
No século 17, era utilizado em São Paulo para designar indígenas escravizados ilegalmente. Já no Nordeste açucareiro do mesmo período, onde africanos eram a maior parte da população, tendia a ser sinônimo de mestiçagem, ou do fruto da união entre europeus, africanos e indígenas. Mais tarde, no Sudeste, o termo aparece não só como referência à mestiçagem, mas também como sinônimo de pessoa livre, independentemente da cor de pele. O termo pardo no Brasil Colônia, portanto, indicava, além da cor de pele, o status social de pessoas não brancas livres, em um universo escravista. Segundo Hebe Mattos, o termo era uma possibilidade de diferenciação social, variável conforme o caso. “Assim, todo escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre que trouxesse a marca de sua ascendência africana – fosse mestiço ou não”, escreveu a historiadora.
Da mesma forma, os termos preto e negro também apresentavam diferenças semânticas no período escravocrata: negro era o escravo insubmisso, e preto, o cativo fiel. Mas é possível perceber variações de significados em diferentes períodos: até a primeira metade do século 19, crioulo era exclusivo de escravos e forros nascidos no Brasil, preto designava africanos.
Os censos evidenciam, no quesito cor, como essa semântica é negociada no Brasil de forma complexa, muitas vezes intencionalmente confusa. O primeiro e o segundo censos do país, em 1872 e 1890, registraram a população preta, branca e mestiça; no de 1872 acrescida à informação da condição de escravo ou livre. Nos censos de 1900, 1920 e 1970, o item cor foi retirado. Diante da constatação de que o Brasil era um país mestiço e negro, o terceiro e quarto censo simplesmente deixaram de registrar a informação sobre a população, assim como o primeiro censo do regime militar, quando se reforçava a ideia de homogeneizar o país. No censo de 1950, a população foi distribuída entre brancos, pretos, amarelos e pardos. Indígenas não possuíam uma categoria classificatória. Em 1960, indígenas deveriam ser declarados como pardos. Em 1980, havia uma explicação para pardos: “mulatos, mestiços, índios, caboclos, mamelucos, cafuzos etc.”.
Em 1976, o IBGE fez a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio em que deixou a categoria cor como uma pergunta aberta. Cento e trinta e seis cores diferentes foram registradas, que iam da acastanhada à vermelha.
Esse uso flexível e maleável na cor que se observa no Brasil desde o período da escravidão, tão explicitado na pesquisa de 1976, está relacionado à imagem negativa da mestiçagem propagada explicitamente até a década de 1930, seguida pela extensa propaganda oficial do mito da democracia racial. Desde o século 19, teóricos das raças enalteciam “tipos puros” e colocavam a miscigenação como sinônimo de degeneração racial e social. O termo eugenia, criado em 1883, propagava a visão de que as capacidades humanas estavam exclusivamente ligadas à hereditariedade. A criminalidade, por exemplo, era vista como fenômeno físico e hereditário. Raça se tornou, nesse período, um conceito para discriminar e hierarquizar povos. Na metade do século 20, geneticistas e biólogos moleculares afirmaram que as raças puras não existem cientificamente. Mas pouco antes disso, na década de 1930, ganhou relevância no Brasil uma interpretação social, e não biológica, das relações raciais brasileiras. Gilberto Freyre afirma que a miscigenação teria acomodado conflitos raciais no Brasil, corrigindo a distância social entre a casa-grande e a senzala.
Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial denunciando que o sistema escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Uma década depois, Sueli Carneiro cunha o “estupro colonial” da mulher negra pelo homem branco como as bases para a fundação do mito da cordialidade e da democracia racial brasileira.
O movimento negro vem buscando conscientizar quem sofre discriminações por sua aparência física e origem racial – seja quem se declara preto ou pardo ao IBGE – em torno de uma mesma identidade racial de negro. “Trata-se, sem dúvida, de uma definição política embasada na divisão birracial ou bipolar norte-americana, e não biológica. Essa divisão é uma tentativa que (…) remonta à fundação do Movimento Negro Unificado, que tem uma proposta política clara de construir a solidariedade e a identidade dos excluídos pelo racismo à brasileira”, explicou o antropólogo Kabengele Munanga. Da mesma forma, o movimento de mulheres negras, que nasce dentro do movimento negro, busca conscientizar mulheres, desde a década de 1980, de sua identidade de mulher negra.
Como já escreveu tantas vezes Sueli Carneiro, o projeto em curso no Brasil ainda é o de uma hegemonia branca. Ele opera pela exclusão e a violência contra pessoas não brancas, especialmente as negras e indígenas. No imaginário social, este projeto também aparece em uma leitura de passado que omite a violência e a resistência à escravidão; encoberta as estratégias de branqueamento e do silenciamento de vozes e memórias da população negra. O mito da democracia racial branqueava negras e negros miscigenados. É importante, ao falarmos sobre colorismo, não cometermos o mesmo erro. Afinal, a quem isso poderia interessar? Como escreveu Lélia “(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se mulher negra é uma conquista”.
(Publicado originalmente no site da revista Cult)

domingo, 26 de maio de 2019

Le Monde Diplomatique: Como a direita seduziu o eleitorado popular

Em um estado muito pobre como a Louisiana, manchado por vazamentos de petróleo, a maioria da população vota em candidatos que combatem os benefícios sociais e a proteção ambiental. Socióloga, Arlie Hochschild investigou esse paradoxo. Meses depois da publicação de seu estudo, Donald Trump ganhou com ampla vantagem as eleições na Louisiana
Uma história profunda, epidérmica, é a que inspira nossos ressentimentos, na linguagem dos símbolos. Ela elimina o julgamento, elude os fatos. Determina o que nos inspira. Ela permite que aqueles que se encontram em ambos os extremos do espectro político deem um passo atrás e explorem o prisma subjetivo através do qual o lado adversário apreende o mundo.
Eu quis reconstruir esta história para apresentar – de forma metafórica – as esperanças, os medos, o orgulho, a vergonha, o ressentimento e a ansiedade da vida das pessoas com quem deparei no caminho. Então a testei com elas para ter certeza de que achavam que ela era consistente com a experiência delas. Elas me garantiram que sim.
Como uma peça, ela se passa em vários atos.
Você espera pacientemente em uma longa fila que leva ao topo de uma colina, como em uma peregrinação. Você está no meio, entre pessoas todas tão brancas como você, todas de igual modo cristãs, algumas mais velhas, outras menos, a maioria delas do sexo masculino, às vezes graduadas, às vezes pouco ou nada qualificadas.
Do outro lado da colina se situa o sonho americano, o objetivo da viagem de cada um. Bem no final da fila estão as pessoas de cor – pobres, jovens ou velhas, a maioria sem diploma universitário. Olhar para trás lhe causa medo; elas são muitas a seguir você. Em princípio, você não as quer mal. Mas você esperou por muito tempo, trabalhou duro e, à sua frente, a fila mal se move. Você mereceria avançar um pouco mais rápido. Você aguenta pacientemente, mas está muito preocupado. Seus pensamentos estão voltados para aqueles que o precedem, em especial para aqueles que já alcançaram o topo.
O sonho americano é um sonho de progresso – a esperança de que você vai se dar melhor do que seus pais, que, por sua vez, já se esforçavam para se dar melhor que os deles. É um sonho maior que dinheiro e bens materiais. Por um salário miserável, você suportou trabalho escravo, demissões, exposição a produtos tóxicos. Você aguentou firme na prova de fogo. O sonho americano de prosperidade e segurança é apenas a justa recompensa por seus esforços, uma maneira de reconhecer o que você tem sido e o que você é – uma espécie de medalha de honra.
Faz cada vez mais calor e a fila continua não avançando. Parece até que ela está recuando. Você não recebeu um aumento por anos e não vai ser amanhã que terá a chance de alguém lhe conceder um. Na verdade, seus ganhos diminuíram constantemente nos últimos vinte anos, sobretudo se você não tem um diploma universitário e ainda mais se não completou o ensino médio. Todos os seus amigos seguiram o mesmo destino. A maior parte deles nem se incomoda em procurar um emprego decente, porque acha que é um tesouro fora do alcance de pessoas como eles.

Pactuar com os fura-filas?
Você se acomodou a essa situação porque não é do seu feitio reclamar. No fim das contas, você tem sorte. Você gostaria de ajudar mais sua família e sua igreja, porque é neles que coloca sua fé. Você gostaria que eles lhe agradecessem sua generosidade. Mas a fila continua não avançando. Depois de tanto trabalho duro, de tantos sacrifícios, você começa a se sentir preso numa armadilha.
Você pensa no que o enche de orgulho – a começar por sua moral cristã. Você sempre apreciou a probidade, a monogamia, o casamento heterossexual. Nem sempre foi fácil. Você mesmo sofreu uma separação, talvez até um divórcio. Os esquerdistas dizem que suas ideias são antiquadas, sexistas, homofóbicas, mas ninguém entende nada dos valores que eles afirmam defender. Falam de tolerância, mas você guarda na memória tempos melhores, nos quais, quando criança, começava seu dia na escola pública com a oração matinal e a saudação à bandeira – foi antes do “Em nome do Senhor” ser relegado à categoria de opção facultativa.
Olhe! Na sua frente, malandros estão se esgueirando. Você segue as regras; eles, não. À medida que eles progridem, você tem a impressão de que está perdendo terreno. Como eles ousam fazer isso? Quem são? Alguns são pretos. Por meio de programas de ação afirmativa colocados em prática pelo governo federal, eles têm acesso privilegiado a universidades, estágios, emprego, assistência social, refeições gratuitas. Mulheres, imigrantes, refugiados, funcionários públicos: onde isso vai parar? Seu dinheiro escorre num coador igualitarista que escapa a seu controle e aprovação. Você gostaria de ter as mesmas oportunidades quando precisou delas – ninguém pensou em oferecê-las a você em sua juventude, então não há razão para fazer com que os jovens de hoje possam desfrutar delas. Isso não é justo.
E Obama! O que diabos esse cara fez para chegar à Casa Branca? O filho mestiço de uma mãe solteira de baixa renda que se tornou presidente do país mais poderoso do planeta, isso era algo que você ainda não tinha visto. Em que posição o coloca o triunfo de um homem como ele, quando, ao mesmo tempo, lhe explicam que você é muito mais privilegiado? Que favores Barack Obama obteve para estudar em uma universidade tão cara quanto Columbia? Onde Michelle Obama encontrou dinheiro suficiente para estudar em Princeton e depois na Faculdade de Direito de Harvard, quando o pai dela era apenas um humilde funcionário do serviço de água? Nunca se viu nada assim. Certamente, foi o governo federal que pagou a conta. Michelle deveria ser grata por tudo que tem, em vez de ficar o tempo todo furiosa. Ela não tem direito algum de ficar com raiva.
As mulheres: outro grupo que passa impunemente na sua frente. Elas reivindicam o direito de ocupar os mesmos cargos que os homens. Ainda bem que seu pai não precisou se preocupar com a concorrência delas para conseguir emprego. E o que dizer dos funcionários públicos, recrutados em sua maioria entre mulheres e grupos de minorias? Pelo que você sabe, eles são muito bem pagos para fazer muito pouco. Veja o caso dessa assistente executiva do Departamento de Regulamentação: sem dúvida, ela desfruta de horários confortáveis e de um cargo garantido para a vida inteira, tendo, diante de si, a perspectiva de uma bela aposentadoria. No momento, ela provavelmente está postada de forma indolente à frente do computador fazendo compras on-line. O que a torna merecedora de favores a que você nunca terá direito?
O mesmo vale para os imigrantes. Com um visto ou um green card na mão, filipinos, mexicanos, árabes, indianos ou chineses passam na sua frente, quando não acabam furando a fila. Bem recentemente, você viu homens parecidos com mexicanos construindo o acampamento que vai abrigar encanadores filipinos do grupo Sasol. Você vê que eles trabalham duro e respeita isso, mas não os perdoa por expulsarem a força de trabalho americana aceitando baixos salários.
Os refugiados? Quatro milhões de sírios fugiram da guerra e do caos, parte deles em direção à costa grega. O presidente Obama decidiu acolher 10 mil em território americano [dos quais dois terços são mulheres e crianças]. Todo mundo sabe que nove entre dez refugiados são homens jovens, possivelmente terroristas, determinados a abusar da sua educação na fila e levar uma boa vida com o dinheiro dos seus impostos. Você não sofreu inundações, derramamentos de óleo e poluição química? Há dias em que parece que você mesmo é um refugiado.
Não cabe ao pelicano-pardo zombar de você batendo suas largas asas cobertas de óleo. Essa típica ave da Louisiana, o símbolo oficial do estado, aninha-se em mangues ao longo da costa. Há muito tempo ameaçada de extinção pela poluição química, ela havia se recuperado a ponto de ser retirada da lista de espécies ameaçadas em 2009 – apenas um ano antes do terrível derramamento de óleo causado pela British Petroleum (BP). Para sobreviver, ela precisa de peixes não contaminados, água livre de óleo, manguezais limpos, costas protegidas da erosão. É por isso que o pelicano-pardo também passa na sua frente na fila. Ainda assim, é apenas um pássaro!
Negros, mulheres, imigrantes, refugiados, pelicanos, todo mundo vai passando na frente embaixo do seu nariz. Mas são pessoas como você que fizeram a grandeza da América. É preciso reconhecer: os fura-filas irritam você. Eles desrespeitam as regras do jogo. Você não os carrega no coração e não vê por que deveria se desculpar por isso.
Você não é desprovido de compaixão. Mas sua compaixão não poderia incluir todos os fraudadores que se acotovelam à sua frente. Você é vacinado contra a ideia de ter de ser simpático. As pessoas nunca param de reclamar. O racismo. As discriminações. O sexismo. Impuseram a você histórias de negros oprimidos, mulheres dominadas, imigrantes explorados, homossexuais perseguidos, refugiados desesperados. Em algum momento, você acha que é hora de fechar as fronteiras da simpatia humana – especialmente quando isso beneficia pessoas que podem prejudicá-lo. Você suportou mais do que sua parcela de sofrimento, sem nunca choramingar.
A partir daí, você fica desconfiado. Se todas essas pessoas se permitem disputar espaço com você na fila, é porque alguém importante as está apoiando. Quem? Normalmente, há um homem que controla a fila, que a percorre de cima a baixo, garantindo que todos permaneçam em seu lugar e que o acesso ao sonho americano seja feito em condições equitativas. Esse homem é Barack Hussein Obama. Sim, mas olha só: em vez de repreender os espertinhos, ele os saúda amigavelmente, demonstrando-lhes uma simpatia que ele evidentemente não sente de forma alguma por você. Ele está do lado deles. Aquele que tem a responsabilidade de regular o avanço da fila quer que você pactue com os fura-filas.
Você se sente traído. Suas defesas agora estão bem ativadas. Esse presidente não sabe nada do imenso orgulho de ser americano. Ser americano é uma honra que você mais do que nunca tem de defender, dada a lentidão da fila do sonho americano e a insolência dos comentários feitos sobre brancos, homens e cristãos. Hoje, basta ser ameríndio, mulher ou gay para atrair a simpatia da opinião pública. Esses movimentos sociais deixaram apenas um grupo para trás deles: o seu.
Você pode não ter uma casa grande, mas isso não o impede de se orgulhar de seu país. Qualquer um que ataque os Estados Unidos também estará atacando você. E, se você não pode mais se orgulhar dos Estados Unidos por meio de seu presidente, resta-lhe se juntar àqueles que, como você, se sentem estrangeiros em seu próprio país.

A máquina de sonhos está sem sistema
Entre as imagens dos negros enraizadas no espírito das pessoas que conheci, uma estava faltando: a de uma mulher ou de um homem que, como eles, apenas esperava a justa recompensa por seus esforços. A história profunda contada por brancos, cristãos, idosos ou reacionários da Louisiana respondia, no entanto, a um trauma real. De um lado, o ideal nacional do sonho americano, isto é, do progresso. De outro, uma dificuldade crescente para progredir.
Para a população “inferior”, ou seja, nove em cada dez americanos, a máquina dos sonhos instalada no lado invisível da colina não funciona mais, desativada pela automação, pelo deslocamento de empresas para outros países e pelo poder exorbitante das multinacionais sobre sua força de trabalho. Dentro desse grupo muito grande, a competição entre brancos e não brancos tornou-se cada vez mais acirrada – seja pelo emprego, seja por um lugar na sociedade ou pelos auxílios.
O fracasso da máquina dos sonhos remonta a 1950. As pessoas nascidas antes dessa data viram suas rendas crescer à medida que envelheciam Para aquelas nascidas depois, é o contrário.

*Arlie Hochschild é socióloga da Universidade da Califórnia em Berkeley. Autora de Strangers in Their Own Land: Anger and Mourning of the American Right [Estranhos em sua própria terra: raiva e luto da direita norte-americana], The New Press, Nova York, 2016, de onde este texto foi adaptado.

(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)


Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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Publisher: Lipset and a litter chocolate for Brazilian democracy



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For some time now, out of duty, identification and conviction, I have read a lot about democratic regimes. I note that there are many more convergences than differences among scholars, especially when the stability or ruin of this system of government is under discussion. Among the variables pointed out, which could guarantee its stability, of course, the so-called substantive or economic democracy, related to the distribution of income in a given society; the framework and health of the institutions that support the democratic regime, which provide the balance and distribution of power, thus avoiding tyranny; the pattern of harassment or impairment of individual and collective rights and guarantees, governed by the Constitution; regular and clean elections (without the use of fake news, preferably with the participation of competitive actors, without the use of legal devices to remove them from the lawsuit); a less corrupt political system and, indeed, identified with the yearnings of the average population. What we have today, in reality, when we reason in terms of the Brazilian political system, are lobbyists, financed and identified with corporate interests of the dark, of no republican nature; and last but not least, the so-called educational opportunities, which is highlighted by the political scientist Martin Lipset, a thesis with which I have a great deal of affinity. Naturally, our Lipset is that of childhood in the slums of New York, of working life, of deprivations of youth, of flirting with Marxism.

Notice that all the variables pointed above diverge deeply from the current capitalist logic, translated in some way into the nefarious ultraliberal policies, whose adoption would only be feasible in a regime of force, therefore authoritarian, hence this conservative wave that sweeps the world, with reflexes here in Brazil. Never could the proposals of this indecent agenda be discussed in public square. But, let's get back to Lipset and its educational opportunities. By the year 2013, when sectors of the economic and political elite - with the support of the crazy middle class and international banking - joined forces for the skirmishes that would undermine the still fragile experience of country democracy - we had made significant strides in this area, promoting the largest enrollment program for impoverished black youth in the Brazilian university system.

In addition to the fact that it represented in itself a broad program of educational opportunities, it faced the brunt of the structural racism of Brazilian society, the only indicator in which we have progressed in relation to the black race in these more than five centuries of the existence of a country simulacrum called Brazil. Hence we can also understand the anger of conservative sectors of our slave elite ever since they played on the cushion to prevent the advances and achievements obtained by the bottom floor of the social pyramid. During this period of openness and educational opportunities, there was a real revolution in the country, since 83% of the parents of these young people did not have access to higher education, as surveyed by a research institution linked to the Ministry of Education itself. There are, in fact, many strokes of mercy in the fragile Brazilian democracy, but certainly the recent cuts in masters and doctoral scholarships, as well as in the funding of public universities, is one of those bitter chocolates that gradually lead to the collapse of our democratic institutions.

Nor do I come here to the merit of university autonomy, as well as to the issue of academic freedom - constitutional principles that accredit the IFES as natural districts as a counterpoint to authoritarian advances - but also because, by virtue of public policies of an inclusive nature, these academic spaces become spaces of diversity, of plurality of opinions, non-segregationist. Apparently, some symptoms of schizophrenia may be observed in the conduct of a government that wishes to place the country in the select OECD club, while reducing funding costs, cutting scholarship and master's research grants, reducing our participation in the rankings academic excellence, as well as in the university education of its population. A strategic sector that, as Professor Wilson Gomes has observed, nor the military in 1964 dared to move, despite idiosyncrasies with teachers.

Editorial: Ainda(e sempre) a democracia

 
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Na semana passada publicamos por aqui um texto onde discutíamos as variáveis que poderiam assegurar a consolidação ou o desmoronamento de um regime democrático. O editorial alcançou grande repercussão, dado aferido a partir de uma série de e-mails recebidos pelo blog, com leitores concordando ou discordando do texto, aproveitando o momento para sugerir outras variáveis não mencionadas ali, como, por exemplo, o direito de associação e a proteção às minorias. Duas variáveis que, reconheço, não poderiam deixar de estar ali. Quanto ao questionamento sobre as entidades internacionais que aferem a saúde de um regime democrático, informo que os dados foram obtidos na Democracy Index e na Freedow House. Além de nossas preocupações sobre os rumos do nosso incipiente e frágil processo democrático, um outro fato nos intriga bastante: Até bem pouco tempo, de acordo com essas organizações, a saúde de nossa democracia ia muito bem obrigado, atingindo a nota 07, numa escala que ia até 09, referente aos países com democracias perfeitamente consolidadas, portanto infensos às aventuras golpistas. Estávamos muito bem, portanto. O que houve para que, em tão pouco tempo, ocorresse tal retrocesso? Ou haveria algum problema com os critérios de mensuração desses índices?
 
A rigor, a rigor, como informo por ali, nossa experiência democrática nunca foi lá grandes coisas. Na realidade, um grande mal-entendido, conforme observava o historiador Sérgio Buarque de Holanda, ao analisar os reflexos, para o país, dos vícios impostos pelo colonialismo português. Difícil "institucionalizar" um país - requisito para a democracia -  sem a delimitação de fronteiras entre o público e o privado, com uma enorme massa de deserdados que vivem dos favores dessa elite, de suas migalhas, sem jamais terem seus direitos reconhecidos, sem exercerem sua cidadania. Os episódios mais recentes - como esse rearranjo das forças conservadoras em escala mundial - evidenciam que a efetivação da aplicação desse receituário de reformas neoliberais apenas seria possível com a adoção de um regime de força, que, hoje, tende a recrudescer em razão dos embaraços encontrados nos canais de negociação ainda possíveis, como o parlamento. Diante desse quadro, nossa incipiente democracia encontra-se na UTI, com poucas chances de sobrevivência. Vocês arriscariam atribuir uma nota hoje?
 
As duas variáveis acima, observadas pelos diletos leitores e leitoras - infelizmente negligenciadas pelo editor, pelo que já antecipo um pedido de desculpas - diz muito sobre a atual conjuntura política que vive o país. Notadamente em relação ao reconhecimento dos direitos de minorias, como as comunidades quilombolas, indígenas e LGBTs, que passam por um momento bastante difícil, quando se toma como referência a agenda de políticas públicas. Aproveito para agradecer a audiência do blog - sobretudo depois da volta dos editoriais - mesmo que comedidos, prudência imposta nesses tempos bicudos - assim como sugerir aos leitores e leitoras que continuem participando desses debates através da blogosfera, que, em muitos casos, deixou de exercer um papel republicano e transformou-se em trincheira de ataques vis a atores ou princípios que se orientam pela defesa do regime democrático.

Uma outra variável - esta muito estudada pelo cientista político Jorge Zaverucha - diz respeito as intrincadas relações entre civis e militares no Brasil. Numa democracia consolidada, presume-se, o poder militar deve estar subordinado ao poder civil, condição jamais obtida plenamente no país. As rusgas são frequentes, em todos os momentos de nossa História, e hoje não seriam diferentes, colocando em lados opostos militares e um denominado grupo ideológico, bastante influente neste Governo. Entregar o Ministério da Defesa a um civil - conforme ficou acordado a partir da Constituição de 1988 - embora simbólico, indicava, ao menos, o respeito ao que preconizava a Carta de 1988. Os militares voltaram a ocupar o Ministério da Defesa, depois de um longo período nas mãos do poder civil.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

O paradoxo do silêncio em "Aurora de cedro", de Tito Leite


O paradoxo do silêncio em ‘Aurora de cedro’, de Tito Leite

O monge beneditino Tito Leite, autor de 'Aurora de cedro' (Foto: Divulgação)

No novo livro de poemas do monge beneditino Tito Leite, Aurora de cedro (7Letras, 2019), nos deparamos com o silêncio da linguagem metafórica que nos leva a um não-lugar, a um desconhecimento de tudo por suas analogias que quebram com a lógica binária e estruturalista. Rompendo com uma alma poética aparentemente barroca, com suas oposições entre carne e espírito, o poeta aqui em questão hibridiza polaridades, nos fazendo lembrar da “música calada”, de um San Juan de la Cruz, que unia elementos díspares num mesmo sopro de vida, criando a unidade em meio á multiplicidade. Retomando uma voz lírica de Manoel de Barros com seus encantos dos pássaros que não poderiam ser medidos pela lógica racional, a linguagem literária de Tito Leite é composta pela junção entre o corpus linguístico e a temática de cunho social, revelando uma realidade plena e cortante. O monge não vive na reclusão de um mosteiro, mas salta os olhos adiante para o real circundante, mostrando seus problemas e impasses na contemporaneidade.
Dividido entre a temática do sagrado e o campo do sociológico, Tito Leite consegue unir estes elementos opostos num amalgama metafórico exemplar. Como disse, André Luiz Pinto, no seu belíssimo prefácio sobre o poeta por ora aqui apresentado: “O que é uma metáfora? Qual a sua natureza? É a pergunta que me faço ao ler Aurora de cedro, o novo livro de poemas de Cícero Leilton Leite, o poeta e monge beneditino Tito Leite, depois do excelente Digitais do caos, de 2016.” A metáfora se esconde nas entrelinhas de Deus, no Deus absconditus, que oculta sua face dos pecados dos homens: “É um abrir as portas/da morada de Deus/e no íntimo do seu/ínfimo não entrar.” Como no poema “Monte Carmelo”, de San Juan de la Cruz, para se chegar a Deus são necessários o desprendimento e o despojamento, algo que nos falta, devido a nossa carne pecadora traduzida na origem, nos seres originários do Paraíso. Em “Misereri Nobis”, encontramos a temática social que se mescla nas linhas fiáveis do sagrado poético: “A resistência/ é um gato branco/ numa noite/de blecaute/ Muitos pastores/ um só holocausto:/ Deus nos salve/ de Deus”. Após a expulsão dos primeiros seres do Paraíso, que tinham a totalidade da natureza, resta aos seres expulsos o mundo do trabalho, do suor e das lágrimas, o universo em sociedade com suas prisões, injustiças e medos: “Adão, tu ganhas/o pão com o suor/da tua tarde,/mas muitos dos teus/filhos comem/a nossa carne”. Esses componentes inusitados, unindo o sagrado, o poético e o social, ganham peso em sua poesia que mescla o perene ao imanente e transitório.
Apesar de sermos medidos e catalogados em nossa convivência social a partir de um tom taxonômico e hierárquico, Deus não pode ser medido, assim como a natureza plena que nos circunda. Essa imensurabilidade está presente a partir dos versos do místico Angelus Silesius: “Deus se funda sem sonda, sem medida se mede! Quem com Ele se une, isto percebe”. E Manoel de Barros completa a partir de sua bela poesia: “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá/ mas não pode medir seus encantos/ A ciência não pode calcular quantos cavalos de força/ existem/nos cantos de um sabiá.” A poesia de Tito Leite não pode ser julgada por olhos simplórios. Sua poesia ultrapassa o usual, o trivial, para se fazer sublime e eterna, algo que não pode ser calculado pela ciência exata. Sua poesia produz o desconcerto e a junção entre pares inconciliáveis, sem desdizer a aurora dos tempos atuais. É um trabalho riquíssimo no campo da literatura através de suas imagens impactantes e originais. Os olhos de Tito Leite observam a aurora de cedro das manhãs não contaminadas pelo lodo da exatidão matemática. Sua poesia é paradoxal a partir do silêncio das metáforas que traduzem o que os olhos não veem.
A própria expressão do título do livro é de uma beleza metafórica ímpar. Vejamos o que nos dizem os grandes dicionaristas Jean Chevalier e Alain Gheerbrant sobre as palavras “aurora” e “cedro” no Dicionário de símbolos: a aurora para eles, é “símbolo de todas as possibilidades, signo de todas as promessas” e o cedro, “assim como todas as coníferas, é consequentemente um símbolo da imortalidade”. Dessa forma, unindo todos os dois elementos, temos o encontro das águas incorruptíveis da alma, a essência do ser em toda a sua grandeza e eternidade. O impossível, que ultrapassa a lógica, é o conviver de nossa originalidade e criatividade que surge com os primeiros rompantes do dia. A claridade é luz que ilumina o pensar e o sentir. A poesia de Tito Leite é feita de iluminuras, do tecer das manhãs mais belas a partir do rejuvenescer e ressignificar das metáforas mais ricas. O reino das possibilidades poéticas na sua escrita é um jorro que anima o desejo pela imortalidade das palavras que se eternizam pelos versos plenos e libertos das amarras do que é estrutural e massacrante. Sua poesia é feita de claridades e mistérios que tecem as auroras mais belas dos destinos dos homens que são perfumadas pelos cedros da terra. O que é transcendente se recolhe na imensidão da paz original e se enraíza no terreno a partir do imanente. O imensurável da aurora é um terreno de possibilidades de novas auroras que são queimadas pela árvore da matéria. Alma e corpo se unem num mesmo dedilhar de segredos.
Em Comunicação em prosa moderna, singular livro de Othon M. Garcia, este diz sobre o verbete “metáfora”: “Em síntese – didática -, pode-se definir a metáfora como a figura de significação (tropo) que consiste em dizer que uma coisa (A) é outra (B), em virtude de qualquer semelhança percebida pelo espírito entre um traço característico de A e o atributo predominante, atributo por excelência, de B, feita a exclusão de outros, secundários por não convenientes à caracterização do termo próprio A”. É recorrente na poesia de Tito Leite a utilização das metáforas mais ricas e originais, mapeando uma floresta de símbolos que percorrem os labirintos inusitados da literariedade. Sua poesia é plena na sua convivência implícita com as palavras energizadas pelo poético no seu tom mais alto e dinâmico. Mas suas metáforas não vivem em castelos sublimes de cristal, longe dos sussurros e gritos do real. Suas imagens se inundam na esperança de uma sociedade mais justa.
A revolução dos seus versos produz o retorno da poesia à sua função engajada e libertária a socorrer os pequenos, os proscritos, os malditos e os refugiados, o gesto maior de Jesus Cristo frente aos desvalidos na sua cultura circundante. O hábito do monge se comove com os apelos do mundo que o cerca, produzindo uma poesia diferente, ao unir o sagrado, o literário e o social, como recursos que se enriquecem e se catalisam pelo poder da metáfora e sua força em mover o silêncio das montanhas mais distantes para trazê-lo para perto de nós, a partir de sua escuta de nossos irmãos menores que poderiam naufragar nos novelos do delírio, mas que pela dinamicidade de sua poesia, podem alcançar a “aurora de cedro” das possibilidades e da eternidade: “Não é a lua/ que sangra/ são os pés/dos retirantes”. Fugindo de um lugar distante e inalcançável, sua poesia alcança o acorde dos sentidos mais plenos e mágicos, possibilitando a doação de toda a humanidade. Tito Leite não nos desfamiliariza, ele produz um processo de familiarização com o real através do dom da caridade e da solidariedade: “O que é/ distante nos é semelhante”. A mistura entre o peso do social e a leveza de seu lirismo faz de sua poética algo ambivalente em sua força poética: “Fazendo das dúvidas/ que ardem/ uma begônia”. Tito Leite busca o sentido a todo custo. Como explicar o mundo em que vivemos pelas palavras, fugindo do ostracismo do zero? “Enquanto isso, no gume da estrela/ high-tech,/ há poetas que fogem do dígito 0.” Saindo do nonsense e da ilogicidade, sua poesia também não se espelha numa lógica dual, é feita de luz e sombra, memória e esquecimento, reunindo num só canto de pássaros a verve criativa da poesia verdadeira que flerta com os ditames de uma fala originária, anterior a toda caoticidade. A verdade de Tito Leite é oceânica, não pode ser medida pela razão humana, suas ideias são livres como os cantos dos pássaros, suas verdades não são digitáveis, mas imensuráveis e grandiosas como os oceanos das ideias. Portanto, sua poesia recolhe no seu claustro o silêncio paradoxal das metáforas, unindo o grito dos silenciados à linguagem silenciosa de seus cantos e encantos sagrados.
Alexandra Vieira de Almeida  é escritora e doutora em Literatura Comparada pela UERJ
Aurora de cedro
Tito Leite
7Letras
88 páginas – R$ 38
(Publicado originalmente no site da revista Cult)

domingo, 19 de maio de 2019

Editorial: Colapso do sistema político



sexta-feira, 17 de maio de 2019

Graça Machel:O tesouro de todos os tempos e a educação

                                          
Amanda Massuela


Graça Machel: O tesouro de todos os tesouros é a educação


A ativista e ex-ministra da Educação moçambicana Graça Machel (Foto: Divulgação)

O conhecimento é o principal instrumento para a construção de um mundo mais igual – e caso não seja aplicado para a libertação da consciência humana, servirá para reproduzir sistemas de opressão. A fala é da ativista e ex-ministra da Educação moçambicana Graça Machel, que na manhã desta quinta (16) convocou alunos e professores da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, a engajarem conhecimento, energia e capacidade de organização na luta contra a discriminação racial, a pobreza e a violência de gênero.
“A luta contra o apartheid parecia um monstro, um sonho irrealizável, mas eles se organizaram e viveram a manhã da liberdade. Disseram com convicção: freedom in our lifetime, ou seja, ‘liberdade ainda no nosso tempo de vida’. Pode levar 30 ou 50 anos, não importa, mas [essas mudanças] têm que acontecer ainda no vosso tempo de vida”, afirmou Machel, que aos 25 anos se juntou à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) na luta armada pela independência do país.
Aos 73, é uma das mais importantes ativistas pelos direitos humanos do continente africano. Ex-professora, foi ministra da Educação do governo moçambicano entre 1965 e 1979, período no qual elevou para mais de 80% a taxa de crianças em idade escolar matriculadas em instituições de ensino.
Sua experiência como educadora e defensora dos direitos das crianças levou o então secretário-geral da ONU Boutros Boutros-Ghali a convidá-la, em 1993, para liderar um estudo inovador sobre o impacto de conflitos armados na infância – documento mais tarde conhecido como “relatório Machel”. Hoje, por meio da Graça Machel Trust, instituição que criou em Joanesburgo em 2010, lidera ações pela saúde, nutrição e educação infantil e pela autonomia econômica das mulheres.
“Sou parte de uma geração em África que lutou contra o colonialismo e o apartheid. Talvez hoje os vossos alvos pareçam difusos, não tão claros como eram os nossos, mas primeiro é preciso entender que, como seres humanos, não há absolutamente nada que nos distingue”, disse ela, dirigindo-se principalmente ao corpo discente da universidade, formado em sua maioria por alunas e alunos que se autodeclaram negros (90% deles, segundo a faculdade). 
Ovacionada pela plateia que lotou o auditório, pediu que a juventude não apenas ocupe “instituições estabelecidas para oprimir”, mas que também promova transformações. “Esse processo pode ser lento, mas tem que ser o vosso alvo principal. Vocês têm tudo para tecer esse espaço coletivo de iguais”, disse. “Leiam livros, mas também libertem outros.”
Machel também mencionou a necessidade de reformulação dos sistemas de ensino, que “continuam a formar e a conduzir pessoas de acordo com as necessidades do mercado do século 20″. “Aqui e lá [Moçambique e África do Sul] temos milhares de jovens que saem das instituições de ensino, mas que estão totalmente mal equipados para o trabalho. Portanto a tarefa está aí: diminuir o gap entre educação e mercado de trabalho”. 
Nascida em uma família de seis filhos na vila moçambicana de Manjacaze, ela mesma afirma ter tido a vida transformada pelas oportunidades de estudo proporcionadas pela mãe e pelos irmãos mais velhos: “A educação é o tesouro dos tesouros”, disse, lembrando-se de outras mulheres do seu vilarejo que não tiveram a mesma chance, e já muito jovens se casaram e tiveram filhos. “Sei que se o meu destino tivesse sido o mesmo eu também não existiria mais, assim como elas”.
Machel se casou em 1976, aos 31 anos, com o primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel, com quem teve dois filhos. Tornou-se viúva dez anos depois, e em 1998 casou-se com o primeiro presidente negro da África do Sul, Nelson Mandela.
Em São Paulo para participar da conferência internacional Fronteiras do Pensamento, a ativista impôs como condição que sua passagem pela cidade incluísse uma visita à Zumbi dos Palmares, instituição comunitária de ensino superior que tem como foco a cultura, a história e os valores cultura negra – a primeira nesses moldes na América Latina.
Não foi a sua primeira vez no campus, que têm até uma placa em sua homenagem. Em 2014, recebeu ali o Troféu Raça Negra e participou da festa literária FlinkSampa. “O negro e o branco nascem iguais, homem e mulher nascem iguais, e quando chega o fim da vida morrem iguais. O mundo que nossa geração quer deixar para a de vocês é um mundo de iguais, e não de integrados.”

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 12 de maio de 2019

Editorial: Lipset e um chocolate amargo para a democracia brasileira.

 
 
 
 
Há algum tempo, por dever de oficio, identificação  e convicção, tenho lido bastante sobre os regimes democráticos. Observo que há muito mais convergências do que divergências entre os estudiosos do assunto, sobretudo quando se está em discussão a estabilidade ou a ruína desse sistema de governo. Entre as variáveis apontadas, que poderiam assegurar sua estabilidade, naturalmente, a chamada democracia substantiva ou econômica, relacionada à distribuição de renda numa determinada sociedade; o arcabouço e a saúde das instituições que dão suporte ao regime democrático, que proporcionam o equilíbrio e a distribuição do poder, evitando, assim, a tirania; o padrão de assédio ou comprometimento dos direitos e garantias individuais e coletivas, regidos pela Constituição; eleições regulares e limpas (sem o uso de fake news, de preferência com a participação de atores competitivos, sem o uso de artimanhas jurídicas para afastá-los do pleito); um sistema político menos corrupto e, de fato, identificado com os anseios da média da população. O que temos, hoje, na realidade, quando se raciocina em termos de sistema político brasileiro, são lobbistas, financiados e identificados com interesses corporativos escusos, de corte nada republicano; por fim - e não menos importante - as chamadas oportunidades educacionais, elencada pelo cientista político Martin Lipset, uma tese com a qual guardo muita afinidade. Naturalmente que o nosso Lipset é aquele da infância nos bairros pobres de Nova York, da vida de operário, das privações da juventude e do flerte com o marxismo.  
 
Reparem que todas as variáveis apontadas acima divergem profundamente da lógica capitalista atual, traduzida, de alguma forma, nas nefastas políticas ultraliberais, cuja adoção apenas seria factível num regime de força, portanto autoritário, daí essa onda conservadora que varre o mundo, com reflexos aqui no Brasil. Jamais as propostas dessa agenda indecente poderiam ser discutidas em praça pública. Mas, voltemos a Lipset e as suas oportunidades educacionais. Até o ano de 2013, quando setores da elite econômica e política - com o apoio da classe média porra-louca e da banca internacional - se uniram para as escaramuças que solapariam a ainda frágil experiência de democracia país - havíamos conquistados avanços significativos nesse quesito, promovendo o maior programa de ingresso de jovens negros empobrecidos ao sistema universitário brasileiro.
 
Além de o fato representar, em si, um amplo programa de oportunidades educacionais, enfrentou a nódoa do racismo estrutural da sociedade brasileira, sendo o único indicador em que avançamos em ralação à raça negra nestes mais de  cinco séculos de existência de um simulacro de país chamado Brasil. Daí se entender, igualmente, a ira de setores conservadores de nossa elite escravagista desde sempre, que jogaram no tapetão para impedir os avanços e conquistas obtidas pelo andar de baixo da pirâmide social. Durante esse período de abertura e oportunidades educacionais, ocorreu uma verdadeira revolução no país, uma vez que 83% dos pais desses jovens não tiveram acesso ao ensino superior, conforme levantamento realizado por uma instituição de pesquisa vinculada ao próprio Ministério da Educação. Há, na realidade, muitos golpes de misericórdia na fragilizada democracia brasileira, mas, certamente, os recentes cortes em bolsas de mestrado e doutorado, assim como nas verbas de custeio das universidades públicas é um desses chocolates amargos que conduzem, paulatinamente, ao esfacelamento de nossas instituições democráticas.

Nem entro aqui no mérito da autonomia universitária, assim como na questão da liberdade de cátedra - princípios constitucionais que credenciam as IFES como redutos naturais de contraponto às investidas autoritárias - mas, igualmente, ao fato de, por força das políticas públicas de caráter inclusivo, esses espaços acadêmicos se tornarem espaços da diversidade, da pluralidade de opiniões, não-segregacionistas. Aparentemente, pode-se observar alguns sintomas de esquizofrenia na condução de um governo que deseja colocar o país no seleto clube da OCDE e, ao mesmo tempo, reduz verbas de custeio, corta bolsas de pesquisa de mestrado e doutorado, reduzindo nossa participação nos rankings internacionais de excelência de produção acadêmica, assim como na formação universitária de sua população. Um setor estratégico que, como observou o professor Wilson Gomes, nem os militares de 1964 ousaram mexer, apesar das idiossincrasias com os professores.