pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quinta-feira, 20 de junho de 2019

Michel Zaidan Filho: A fragilidade da criatura humana


 

Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, descreveu um comportamento patológico chamado de “narcisismo primário”. Todos nós, quando pequenos, temos uma boa dose de narcisismo nas nossas atitudes. O duro e lento exercício de descentramento do “eu”, ou seja, não se achar o centro do universo, leva muito tempo. É uma etapa psicológica semelhante a do assassinato psicanalítico da figura paterna. A maioria, contudo, se liberta desse comportamento, e aprende a duras penas que não é o umbigo do universo, mas um grão de poeira ou uma cabeça de alfinete, num vasto mundo que pouco se interessa pelas nossas fantasias de onipotência. Ocorre que um grupo de pessoas não consegue jamais superar esse “narcisismo”, e continuam, vida afora, a se acharem o centro de todas as atenções. Estão inseridas nesse grupo certas personalidades do meio jurídico que têm vida pública ou visibilidade pública através dos meios de comunicação ou por ocuparem cargos públicos.

São parecidas àquelas notabilidades de aldeia, onde que tem pedigree familiar ou estudou fora do país, realçam o seu brilho, como uma gota de água no deserto. O velho Sergio Buarque de Holanda já tinha se referido ao caráter retórico, vistoso, ligado à afirmação da personalidade da pessoa, de nossa formação ibérica, portuguesa. Segundo ele, daríamos mais valor à afetação, ao teatro, do que ao conteúdo do que falamos. Interessaria mais a impressão e o modo do que dizemos/fazemos do que a mensagem propriamente dita.

Nosso estado (ia dizer capitania hereditária), se ufana da sua longevidade histórica e suas raízes coloniais e imperiais. Pernambuco vive desses fantasmas antigos que sempre voltam ou são invocados para impressionar os vivos. Aqui, dizia o conde da Boa vista, quem não é Cavalcanti é cavalgado. Pelo visto, as coisas ainda caminham nesse passo. Os Cavalcantis permaneceram, com o seu brilho, sua tradição retórica e sua vaidade. São como os “narcisistas primários” de Freud, fazem de tudo (bom e ruim) para chamar a atenção. Trocam de lado na política, apoiam candidatos fascistas e autoritários, desqualificam as comissões onde pontificam e usam – como podem – os meios de comunicação para se expressarem como “prima donas” num teatro burlesco e regional. Um arremedo de esfera pública dominado por um punhado de famílias tradicionais e ricas torna-se o palco, por excelência, dessas personalidades performáticos, onde o meio é a mensagem. Ou seja, onde não há mensagem.

Rebentos da oligarquia ou associados a ela, por relações familiares, acham que têm direito natural a tudo: cargos, influencias, posições de prestigio etc. Quando são contrariados, fazem da frustração pessoal uma questão política e assumem posições polêmicas e controversas. É o seu jeito de manifestarem sua revolta pela contrariedade de seus desejos de onipotência infinita. Foi o que ocorreu com o episódio das últimas eleições presidenciais no Brasil. Pessoas de conhecida notabilidade local e regional, tomaram o lado do candidato fascistóide, não por identificação ideológica ou política, mas pela vaidade ferida, por terem sido “esquecidas” pelo governo petista para cargos, comissões ou simples consultores. Acharam-se ofendidos, preteridos, quiçá perseguidos pelo governo de turno. Lamentavelmente, esse tipo de gente pensa que tudo o que acontece no universo tem a ver consigo, para o bem ou para o mal. Se são lembrados e contemplados, ótimo. É merecimento natural. Se são esquecidos, é crime de lesa-vaidade. E aí vem a retaliação na forma de ”ser do contra”, de remar contra a corrente, independentemente de seu conteúdo ideológico, ético ou político.

É preciso considerar esse tipo de comportamento como uma patologia séria e perigosa; se fosse possível criar um reino imaginário, um castelo de cartas, um refúgio qualquer (como a religião) e colocar essas pessoas aí dentro, seria uma terapia social de muita valia. Causaria menos danos à sociedade e a si mesmo. Infelizmente, essas criaturas andam por aí pousando de sumidade jurídica, esperteza político-ideológica, quando não de corregedores morais da nação. Muito triste tudo isso.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Crônica: As paixões de Joaquim Nabuco

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Cláudio Willer, o memorioso

  Wilson Alves-Bezerra 

Claudio Willer, o memorioso
O poeta e ensaísta Claudio Willer (Foto: Reprodução)

Em que idade um escritor deve escrever suas memórias? O dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues iniciou as suas precocemente, em 1967, aos 54 anos de idade, nas páginas do Diário da Manhã. Depois recolheu-as em livro, sob o título A menina sem estrela. Eladio Linacero, personagem literário do uruguaio Juan Carlos Onetti do romance El Pozo (1939), achava que o momento era antes: “Isto que escrevo são minhas memórias. Porque um homem tem que escrever a história de sua vida ao chegar aos quarenta anos, ainda mais se lhe aconteceram coisas interessantes. Li isso não sei onde.” O argentino Ricardo Piglia queria para suas memórias um eterno presente, de modo que optou prematuramente por escrever um diário de escritor: iniciou-o aos 17 anos e adiou a publicação até os 75 anos, quando rearticulou-o transformando seu eu pessoal em um de seus personagens; assim nasceram os três volumes de Os diários de Emilio Renzi.
O poeta e ensaísta brasileiro Claudio Willer, aos 78 anos acaba de publicar suas memórias, que seguem uma quarta via: velar o caráter memorialístico da obra – Dias ácidos, noites lisérgicas (Córrego) – com um despretensioso subtítulo: crônicas. Tampouco são suas primeiras memórias: também precocemente, há duas décadas, escreveu Volta (Iluminuras, 1996), livro que além de ser um ensaio sobre surrealismo, contava muito de suas experiências pessoais nos anos 60 e 70 e era ainda a história singular da circulação de um livro de nome circular, e da memória de um poeta – Augusto Peixoto – sobre a Terra. Dias ácidos, no entanto, é sobretudo memorialístico. São quinze textos, alguns recentes, outros recolhidos de cadernos antigos e há ainda os reaproveitados de entrevistas ou pesquisas não publicadas, agora reescritos, como o longo texto que descreve suas experiências lisérgicas e que dá título ao volume.
É um livro relativamente curto, mas não por isso menos intenso. O poeta passa como um raio sobre vários acontecimentos pessoais, sem se preocupar em torná-los grandiosos. Assim, de passagem, na página 134, ficamos sabendo que foi o livro de estreia de Willer, Anotações para um apocalipse (Massao Ohno, 1964), que inspirou o romancista Roberto Freire a criar o personagem “Claudio, poeta surrealista” de seu romance de estreia, Cleo e Daniel (Brasiliense, 1965). Na página 127 sabemos também que o poeta, ainda aluno de psicologia na USP, fora aluno de Durval Marcondes, um dos importantes difusores da psicanálise freudiana em São Paulo, trazida à universidade pelas mãos de Franco da Rocha, seu professor. Mas esses são dados laterais, o livro é outra coisa.
Dias ácidos, noites lisérgicas se constrói em uma curiosa contraposição entre a leveza da crônica e a força de tempos e cenários idos – sobretudo de São Paulo – que os textos evocam. Claudio Willer não busca o ordenamento cronológico: quase todos os textos têm data, e são de diferentes épocas, entre os anos 60 e a atualidade. O poeta busca não um monumento para si mesmo, mas um mosaico distorcido, uma imagem fugidia, tal qual o espelho do antigo bar Persona, no Bixiga, criado pelo artista plástico Roberto Campadello. Nele, há “no porão, espelhos reversíveis e lanternas, conforme se iluminava, você se enxergava, via quem estivesse do outro lado ou fundia as imagens, podia ser um ou outro.” Não é um livro sobre Claudio, é um livro sobre ele e seus leitores.
O texto de abertura, “A voz” se constrói a partir leitmotiv “Baudelaire”, dito pela boca de um gringo magricela, no Maranhão, em 1964, um lugar anterior ao culto à cor local, onde comia-se filé à parmegiana e não frutos do mar, lugar “não existente. O exótico para além do exótico: desconhecia-se”. O que fazia Claudio lá? Não sabemos. Mas vemos uma outra São Luís pelos olhos do jovem poeta. Sabemos de suas incursões, dos lugares por ele frequentados, mas tal qual nos espelhos do Persona, falta uma parte, uma imagem coesa de fundo, falta o poeta afirmando: “eu sou isso”. O principal, no entanto, não falta: suas leituras de Baudelaire e dos baudelaireanos Rimbaud, Desnos, Bataille, Lautréamont.
Complete a história quem quiser, parece dizer o autor, que passa adiante, retrocedendo a 1959, com “A festa e o homofóbico”, uma saborosa crônica sobre a repressão à sexualidade, com a lembrança de um rapaz da Associação Cristã de Moços, Milton, um homofóbico contumaz que de repente se libera numa festinha na casa do poeta, no bairro do Brooklin, em São Paulo, fazendo em público um ménage com dois outros rapazes. Os nomes? Não sabemos e não importa.
Páginas adiante, lemos “Muradas”, texto resgatado de um caderno, com data de março de 1967: nele, Claudio aclimata Proust, ao evocar uma mítica banana split do bar Muradas – da rua Martins Fontes, no centro de São Paulo – consumido depois de sessões de maconha, música e álcool com os amigos. Já então o jovem de 27 anos queixava-se do desaparecimento da iguaria, do advento anódino dos sorvetes de máquina da rua Augusta. Para os leitores de 2019, um mundo desaparecido comentando outro mundo desaparecido, mas também uma experiência familiar de perda na paisagem sempre movente da cidade, a cidade que não cessa de se transformar.
O texto seguinte “Dias ácidos, noites lisérgicas” é a narração de memórias a partir de paraísos artificiais, desde os anos sessenta até a atualidade, texto poderoso que termina em tom menor ao evocar as quebradas da zona sul de São Paulo, nas fronteiras da cidade em expansão rumo à periferia.
Ao fim do livro, o leitor vacila: não sabe se leu um livro de memórias de um poeta, ou se leu um livro das memórias de uma cidade, ou ainda, se leu memórias inventadas suas ou memórias da literatura de outros. Pois Dias ácidos, noite lisérgicas é tudo isso ao mesmo, e ainda mais: é o relato de experiências lisérgicas, sexuais, afetivas de um homem cujas memórias se inscrevem no corpo da cidade, sua cidade – um ente vivo que se metamorfoseia enquanto ele a rememora.
Wilson Alves-Bezerra é crítico, tradutor e escritor. Escreveu Vapor barato (Iluminuras, 2018), O pau do Brasil (Urutau, 2016), entre outros
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Existe uma sociologa weberiana?

  Michel Misse

Existe uma sociologia weberiana?

Max Weber, conhecido como um dos fundadores da sociologia moderna (Foto: Reprodução)


Embora seja usual falar-se de uma sociologia “weberiana” e de sociólogos “weberianos”, ou de uma escola “weberiana”, não podemos aceitar rigorosamente essas classificações, a não ser quando se pretende demarcar uma tendência dominante, em certos autores e obras, da influência de conceitos e perspectivas desenvolvidos nos diferentes trabalhos de Max Weber. Mesmo assim, não há nada, nesse caso, comparável, por exemplo, seja à apropriação e desenvolvimento das teorias de Marx no marxismo, seja à apropriação e desenvolvimento das teorias de Freud na psicanálise. Não há nada na obra de Weber que permita desenvolvimento similar ao do marxismo e ao da psicanálise, e isso por duas razões.
Em primeiro lugar, Weber não propõe uma revolução científica ou um deslocamento teórico fundamental, um novo paradigma científico, e nem foram esses os efeitos epistemológicos de sua obra, como, ao contrário, parece acontecer com as obras de Marx e de Freud (tal, pelo menos, como reivindicam marxistas e psicanalistas). O próprio Weber condenava, no marxismo e na psicanálise, sua unilateralidade radical, que os lançava, em seu entender, na metafísica e na disputa de pressupostos últimos aos quais a ciência não poderia responder.
Em segundo lugar, Weber reivindica a tradição acadêmica e científica da pesquisa histórico-social de seu tempo, mesmo quando de sua contribuição original para essa ciência, a sociologia, que também se desenvolve, independentemente de sua obra, e com base em outros paradigmas, em outros lugares. Ainda que proponha métodos e conceitos suficientemente abrangentes e rigorosos para entronizá-lo como fundador de uma escola, sua obra não produziu influência dessa maneira, mas de outra, mais difusa, e também mais coerente com o sentido que a distinguia das demais.
Weber não formou uma escola, como aconteceu com Marx e Freud, e mesmo com Durkheim. Não teve discípulos diretos, com os quais precisasse retificar constantemente o desenvolvimento de seu próprio paradigma. No entanto, é indubitável que no desenvolvimento da sociologia, tal como vem se realizando desde o início do século, a contribuição weberiana é decisiva, fundamental mesmo, por demarcar um de seus principais paradigmas. Curiosamente, embora Durkheim tenha uma posição análoga à de Weber por ter também contribuído com outro paradigma fundamental, e ao mesmo tempo divergente do dele, não é usual falar atualmente de sociólogos “durkheimianos” ou de uma sociologia “durkheimiana”, e isso quando se sabe que a influência de Durkheim foi mais sistemática que a de Weber, a ponto de ter existido uma “escola durkheimiana” na França, o que nunca ocorreu com Weber, nem mesmo na Alemanha.
A influência da obra de Weber, embora crescente ainda quando ele estava vivo, não era do tipo que possibilitasse uma escola. Mesmo essa influência foi drasticamente interrompida, na Alemanha, 12 anos após sua morte, pela chegada dos nazistas ao poder. Suas principais obras, com exceção de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, permaneceram esgotadas e sem reedições durante quase 20 anos, e em grande parte espalhadas em revistas e periódicos de pouco acesso ao público não germânico. Apesar disso, sua influência foi decisiva em obras que foram publicadas antes da Segunda Guerra, algumas das quais vieram conformar grande parte do quadro atual da sociologia. Entre essas obras, basta citar Ideologia e Utopia, de Karl Mannheim; História e Consciência de Classe, de Georg Lukács; Estrutura da Ação Social, de Talcott Parsons; e Fenomenologia do Mundo Social, de Alfred Schutz.
O weberianismo como contrassenso
Desde aqui já se pode notar a abrangência e o tipo de influência que a obra de Weber começará a exercer. Nenhum desses trabalhos é “weberiano” e, no entanto, todos estão numa relação fundamental com a obra de Weber; em todos eles, também, a posição weberiana é posta em situação de interlocução, de diálogo com outros pensadores-chave; Lukács e Mannheim, de modo diferente e pesos desiguais, põem Weber em relação com Marx, e daí destilam suas contribuições originais; Parsons põe Weber em relação com Durkheim e Pareto; Shutz coloca Weber em relação com Husserl.
Para cada uma dessas posições, enfatiza-se um aspecto da obra de Weber. Pode-se dizer que são Webers diferentes os que saem dessas posições: um Weber subsumido no marxismo hegeliano de Lukács; um Weber que retifica e modera Marx, na sociologia do conhecimento de Mannheim; um Weber fenomenológico, intuicionista, neoidealista, na “síntese” de Shutz. No campo substantivo da influência, a abrangência e a variedade não são menores. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é o rosto mais badalado da influência, mas não é nem a principal nem a mais duradoura, apesar de ter produzido um dos grandes veios polêmicos do século. Weber trabalhou sobre campos extraordinariamente diversos e sua influência acompanha essa diversidade, que vai do direito à sociologia da música, da história econômica à sociologia das religiões, da filosofia da ciência à política alemã. Conceitos como “tipo ideal”, “ação social”, “compreensão”, “autoridade”, “dominação”, “carisma”, “vocação”, “racionalidade”, “burocracia”, “estamentos”, “legitimidade” e muitos outros estão inteiramente orientados, na sociologia contemporânea, pela influência de Weber.
O peso das interpretações pioneiras de Weber, em especial por sua influência sobre toda a sociologia acadêmica mundial, aquela que veio da obra de Talcott Parsons, vem passando por ampla reavaliação crítica há quase cinco décadas. Os resultados dessa reavaliação, que incluiu um renovado interesse dos marxistas por sua obra, têm possibilitado – 90 anos após sua morte – o conhecimento de um Weber muito mais profundo e contemporâneo do que as primeiras interpretações poderiam fazer supor. Não é exagerado afirmar que sua influência, hoje, é comparativamente mais abrangente, mais sistemática e mais rigorosa do que em sua própria época ou em qualquer outra, não obstante manter sua característica de não formar escola. O propalado “weberianismo” é um contrassenso com a própria perspectiva científica de Weber, e o próprio Weber testemunha contra esse equívoco: “Na ciência, sabemos que nossas realizações se tornarão antiquadas em dez, vinte, cinquenta anos. É esse o destino a que está condicionada a ciência: é o sentido mesmo do trabalho científico… Toda realização científica suscita novas ‘perguntas’: pede para ser ‘ultrapassada’ e superada. Quem deseja servir à ciência tem de resignar-se a tal fato”.
A influência de Weber, apesar disso, ultrapassou seus próprios cálculos e merece uma reflexão porque é isso que ainda legitima o emprego de expressões como “weberianismo”. A ciência social carrega a bendita maldição filosófica de sua origem: a política. E como a filosofia e a política, o marxismo e a psicanálise, a sociologia precisa desenvolver-se renovando sempre suas relações teóricas com seus pais-fundadores: a reinterpretação das obras clássicas acompanha e indica esse desenvolvimento, tanto quanto os avanços obtidos nos campos substantivos (empírico e teórico). Não é impossível escrever uma história da sociologia com base na sucessão das reinterpretações de seus clássicos. Essas reinterpretações são tão inesgotáveis quanto sua tendência para avançar para além do que estava originalmente escrito, conferindo-lhe uma nova dimensão, só possível pelo avanço substantivo efetivamente realizado. O que define uma obra como “clássica” é exatamente isto: manter-se contemporânea.
A influência disseminada
Talcott Parsons, cuja obra dominou a sociologia norte-americana por mais de duas décadas (1950-1960) e exerceu – e ainda exerce (embora seja declinante) – influência sobre toda a sociologia acadêmica mundial, travou contato com a obra de Weber ainda nos anos 1930, na Alemanha. Sua tese de doutoramento versava sobre o conceito de capitalismo em Weber e Sombart, o que lhe permitiu preparar o terreno teórico sobre o qual desenvolveria, em 1937, uma original tentativa de síntese sociológica, a primeira elaboração de sua teoria geral da ação. O livro, um grosso calhamaço de mil páginas, intitulado Estrutura da Ação Social, dedicou quase um terço das páginas à interpretação parsoniana de Weber. No entanto, sua apropriação de Weber caracteriza-se pela ênfase posta sobre as normas e valores sociais, em função de sua preocupação em construir as bases de uma teoria da integração social. Se isso lhe permitiu aproximar Weber de Durkheim muito mais facilmente do que é efetivamente possível, facilitou, no entanto, uma apropriação da obra de Weber nos Estados Unidos que, além de incorreta e problemática, enfatizava excessivamente sua utilização conservadora. No entanto, a influência de Weber na sociologia norte-americana, até então pequena, pegou carona no funcionalismo parsoniano e cresceu, até que no fim dos anos 1960 a revisão interpretativa de suas contribuições começasse a ser feita, resgatando-o contra Parsons. Quanto a isso, o pioneiro foi C. Wright Mills, cuja obra reflete uma influência weberiana bastante diferente daquela encontrada em Parsons e sua escola.
Se Parsons procurou aproximar Weber do funcionalismo durkheimiano, Wright Mills fez a aproximação com a tradição marxista, extraindo daí não só uma interpretação, mas um efeito – em suas próprias obras – crítico e politicamente renovador. Mills foi praticamente uma voz isolada numa América conservadora e exposta ao maniqueísmo da Guerra Fria, e uma voz que se calou precocemente (ele morreu aos 47 anos, em 1961). Apesar disso, sua influência na renovação antiparsoniana da sociologia norte-americana dos anos 1970 deveu-se, em grande parte, à extração marxista de sua apropriação de Weber, que lhe permitiu enfatizar, ao contrário de Parsons, os conceitos de classe, de interesse e de conflito. No entanto, ao contrário daquele, Mills jamais tentou uma sistematização conceitual que lhe permitisse construir uma abordagem tão abrangente quanto a parsoniana. Por isso, sua contribuição terminou confinada à sua época.
Lukács, o grande pensador marxista, frequentou assiduamente o Círculo de Heidelberg, que se reuniu na casa de Weber por quase uma década. Nos dois últimos anos da vida de Weber, quando já se tornara marxista, Lukács, ainda sob sua influência, redige alguns dos trabalhos que vão compor seu livro mais célebre. Além de abundantes referências aos trabalhos de Weber, Lukács promove uma inusitada aproximação marxista com a problemática weberiana da “racionalização”, cuja influência posterior não deve ser negligenciada. Mannheim, que foi chamado de “marxista burguês” e de weberiano “marxista” (sic), escreveu suas principais obras entre as décadas de 1920 e 1940. Sua influência, particularmente no campo da sociologia do conhecimento, é decisiva, e tão grande quanto sua pretensão de construir uma ponte entre Weber e Marx que resolvesse algumas das antinomias postas por essa relação. Sua influência sobre Mills permitiu a este se apartar da todo-poderosa interpretação parsoniana de Weber. Do mesmo modo, sua obra permitiu aos funcionalistas manter uma porta aberta ao marxismo (pelo menos nessa área da “sociologia do conhecimento”), como no estudo de Robert K. Merton sobre sociologia da ciência.
No pós-guerra, a influência de Weber alastra-se pela Europa e pela América. Raymond Aron, na França, forja o conceito de “sociedade industrial” e se apoia em Weber para criticar o marxismo. Ralf Dahrendorf, na Alemanha, sob forte influência weberiana, revisa o conceito de classe e, como Aron, substitui capitalismo por “sociedade industrial”, para enfatizar a dimensão mais abrangente (principalmente política) dos conflitos sociais do capitalismo tardio. A sociologia inglesa renova-se com a influência de Weber, principalmente nas obras de John Rex, J. Goldthorpe, David Lockwood, Frank Parkin e Anthony Giddens. Na França, Michel Crozier e Alain Touraine estudam a burocracia e a classe trabalhadora em aberto diálogo com as hipóteses weberianas, e Pierre Bourdieu reinterpreta Weber em seus trabalhos de sociologia da cultura.
Apesar da forte influência de Parsons, a sociologia norte-americana reencontrou Weber de diversas maneiras, desde o pós-guerra até hoje. Obras muito importantes como as de Seymour M. Lipset, Reinhardt Bendix, Robert Bellah, Clifford Geertz, Randall Collins e S. Eisenstadt, entre outros, foram desenvolvidas em constante recuperação e reinterpretação das hipóteses weberianas. Tendências que aparecem na época da Guerra Fria, como a sociologia fenomenológica, a etnometodologia, a sociologia radical, o interacionismo simbólico, retomam Weber exatamente onde Parsons o havia recalcado: no seu “idealismo”, na sua “sociologia compreensiva” e nas minuciosas questões metodológicas.
Em compensação, o “materialismo” de Weber é recuperado pelo marxismo do pós-guerra, que antes lhe havia reservado a indiferença dogmática ou o ataque superficial. Essa indiferença não existiu nos clássicos do marxismo, mas tornou-se dominante no período stalinista. Kautsky, Bukhárin, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Lukács e Max Adler citam Weber e quase sempre em apoio às suas próprias ideias. Mas o conhecimento da obra de Weber era ínfimo, se comparado ao que os marxistas contemporâneos passam a ostentar a partir dos anos 1960. A influência de Weber na Escola de Frankfurt é reconhecida e bastante significativa, principalmente na obra de Habermas. A crítica superficial foi abandonada e o rigor com que muitos marxistas reavaliam a obra de Weber não fica nada a dever ao ostentado pelos “weberianos”.
Uma verdadeira história das reinterpretações de Weber e de suas disputas teria, agora, que descer ao campo temático e conceitual. Acompanhar a disputa dos conceitos, a detecção de suas ambiguidades originais, o aparecimento de novos problemas sobre os escombros de problemas que pareciam resolvidos, enfim, teria de ser uma história da constante reatualização de Weber, como a feita brilhantemente por Wolfgang Schluter nas últimas décadas. Aqui entrariam, por exemplo, a penetrante e nem sempre admitida influência de Weber sobre as obras seminais de Norbert Elias e Michel Foucault, apenas para citar dois nomes que continuam em evidência. Naturalmente, isso não pode ser feito aqui. De qualquer modo, será feito por cada sociólogo, em sua área específica de atuação. Isso será inevitável sempre que se descobrir que o sociólogo “weberiano” se dedica a uma coisa “que na realidade jamais chega, e jamais pode chegar, ao fim”.
Quem foi
Max Weber é conhecido como um dos fundadores da sociologia moderna, ao lado de pensadores como Vilfredo Pareto (1848-1923), Émile Durkheim (1858-1917) e Georg Simmel (1858-1918). Seu pensamento é marcado por uma crítica do materialismo histórico, que, em seu dizer, petrifica as relações entre as formas de produção e de trabalho e as outras manifestações culturais da sociedade. Para ele, o pensador social deve estar disposto a reconhecer a influência que as formas culturais, como a religião, por exemplo, podem exercer sobre a própria estrutura econômica.Karl Emil Maximilian Weber nasceu em Erfurt, em 1864, em uma família protestante.A partir de 1869, instala-se com a família em Berlim. Seu pai foi deputado do Partido Nacional Liberal, e, graças a ele, Weber, desde cedo, teve contato com homens políticos e pensadores influentes que eram frequentemente convidados à sua casa.
O jovem Max, entediando-se na escola e tendo pouco contato com os colegas de sua idade, tornou-se um leitor insaciável. Suas leituras (Cícero, Maquiavel, Kant etc.) testemunham sua grande precocidade intelectual. Terminada sua formação básica, Weber inscreve-se na Faculdade de Direito de Heidelberg, seguindo igualmente cursos de economia política, filosofia, história e teologia.Em 1889, Weber conclui seu doutorado sobre o desenvolvimento das sociedades comerciais nas cidades italianas da Idade Média. Em 1891, termina o trabalho A Importância da História Agrária Romana para o Direito Público e Privado, que o qualifica para ser professor na universidade. Esses anos foram decisivos na formação de Max Weber, porque o fizeram se interessar pelos problemas sociais de sua época.Aos 29 anos, em 1893, assume o cargo de professor de história do direito romano e de direito comercial na Faculdade de Berlim. Casa-se com Marianne Schnittger, ícone da causa feminista e intelectual engajada em questões políticas. Ela terá um papel decisivo na edição da obra de Weber, supervisionando principalmente a publicação dos escritos póstumos de seu marido, em especial de sua obra magna Economia e Sociedade.
De 1897 a 1903, Weber sofre de uma grave depressão nervosa, sendo obrigado a interromper seu magistério. Em 1903, retomando suas atividades intelectuais, reorienta suas pesquisas para a sociologia. É nesse contexto que ele publica A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em 1909, funda a Sociedade Alemã de Sociologia.
Durante a Primeira Guerra Mundial, Weber inicia a redação de seu vasto projeto de sociologia comparada das religiões mundiais. Em 1919, muda-se para Munique, a fim de ocupar a cátedra de sociologia que a universidade havia criado especialmente para ele. É nessa ocasião que ele pronuncia duas de suas mais conhecidas conferências: “A Ciência como Vocação” e “A Política como Vocação”. Morreu subitamente em 1920, em consequência de uma pneumonia mal tratada.

Michel Misse é professor de sociologia da UFRJ

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: Capitalismo Gore


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No contexto deste debate que promovemos por aqui, em torno das instituições democráticas brasileiras, nesta semana gostaríamos de sugerir a leitura de um livro, assim como propor uma reflexão a partir de um posicionamento do professor Daniel Aarão Reis, em sua página, acerca da "oportunidade perdida" pelos partidos e coalizões de governo que assumiram o poder após o processo de redemocratização política. No entender do professor, os flancos ficaram abertos ou desguarnecidos, colocando nossas instituições da democracia numa condição de vulnerabilidade, susceptíveis às investidas de caráter autoritário. Os tucanos, embora tivessem estabilizado a economia, celebraram alianças com partidos cevados nos estertores do regime militar, como o PFL, interditando avanços mais significativos no sentido de democratizar a democracia. A coalizão petista, por seu turno, embora tenha distribuído renda - um dado importante no que concerne à democracia substantiva - e ampliado as conquistas e reconhecido o direito de minorias, igualmente alinhavou-se como forças políticas conservadoras, impossibilitando a materialização de reformas importantes, assim como não mexeu nos interesses da banca, permitindo lucros estupendos ao setor financeiro. 

Em linhas gerais, consoante as reflexões do professor, perdeu-se uma oportunidade de aperfeiçoar as instituições da democracia, assim como republicanizar o país, tornando-o infenso às investidas de caráter antidemocráticas. É a surrada conciliação de classe, que, no Brasil, significa não apenas não mexer nos espúrios interesses dessa elite política e econômica, assim como ficar a mercê das mesmas, tornando-se refém na primeira oportunidade, quando eles decidirem que a brincadeira deve acabar. Está se tornando cada vez mais evidente o conflito entre as instituições da democracia e as novas formas de acumulação do capital. O mercado editorial brasileiro, nos últimos meses, foi literalmente inundado por publicações que tratam da crise da democracia aqui e alhures, uma vez que se trata de uma onda conservadora que varre o planeta. Mas, no tocante à recomendação de leitura que fiz no início deste editorial,o texto é de Ellen M. Wood, Democracia Contra o Capitalismo, editado no Brasil pela editora Boitempo. Registre-se, um excelente texto, onde evidencia-se os condicionantes dessas engrenagens acumulativas, cada vez mais incongruentes com a manutenção da engenharia da democracia liberal, ferindo de morte suas instituições.


Ao longo de séculos de existência, o capitalismo passou por algumas transformações, mas manteve, em essência, inabalável, a lógica que o caracteriza: o processo reprodutivo do capital, sob quaisquer circunstâncias. Se cometo alguma impropriedade aqui, peço desculpas ao senhor Karl Marx, que dedicou uma vida a estudar esse modo de produção. Essa lógica hoje implica entender que os indivíduos não consumidores podem ser perfeitamente descartados. Mas, até neste particular, essa lógica objetiva auferir algumas vantagens, ou seja, lucrar com esses descartes.O termo gore está associado a uma situação de extrema violência, ou seja, implica dizer que o atual estágio de acumulação do capital traz, no seu bojo, algumas características bem definidas, observadas em cidades que tem sido o palco dessas barbáries, como é o caso da cidade de Tijuana, no México que faz fronteira com os Estados Unidos, que ostenta taxas elevadíssimas de violência. Salvo  melhor juízo, há uma serie da Netflix abordando a violência nessa cidade Mexicana, onde os assassinatos são cometidos com requintes de crueldade, daí o termo gore

Convém registrar que esses corpos inertes, meu caro Michel Foucault, traduzem, por assim dizer, uma identidade com a própria dinâmica da economia nesses tempos de cólera, descrito pela autora Sayang. O livro relata a experiência do estado mexicano com essa nova modalidade de reprodução do capital, mas, como estamos num mundo globalizado, essa modalidade de capitalismo já começa a demonstrar seus reflexos em cidades como o Rio de Janeiro, onde milícia, polícia, política e Estado acabam se tornando a mesma coisa, com reflexos diretos sobre a vida do cidadão comum. O mais grave é que a eliminação físicas de desafetos não ocorre apenas por suas teses - que contrariam os interesses desses grupos - mas pela tonalidade de sua pele, por sua opção sexual, por sua posição na pirâmide social. Custoso entender aqui que a militante Marielle Franco não morreu apenas por suas teses - que, de fato,  incomodavam bastante - mas por ser mulher, negra, da favela e homossexual.

Outro dia li um artigo bastante interessante sobre a origem das milícias no Rio de Janeiro. Contraditório observar que o próprio poder público esteve diretamente ligado à formação desses núcleos milicianos. As milícias surgiram na Zona Oeste,  como simples associações de moradores. Logo criariam tentáculos absurdos, impondo suas diretrizes através de muita violência, o que inclui o assassinato de desafetos. Saiu completamente do controle do poder público, com negócios que vão desde transporte - ocupam o espaço onde a Uber não entra -, extorsão de comerciantes, gás, energia elétrica, água, moradia através da grilagem de terra, e, mais recentemente, a morte por encomenda, assim como o trafico de drogas, o que as torna em narcomilícias. Ainda mais grave, seus tentáculos penetraram no aparelho repressor do Estado, assim como colocaram seus representantes no  Executivo e no Legislativo, já que esses contingentes habitacionais, onde essas milícias atuam, são responsáveis pela eleição de parlamentares em todos os níveis. As teses levantadas por Sayak Valência, assim como pelo pensador africano, Achille Mbembe, portanto, se aplicam tanto à realidade do México quanto à realidade brasileira, com seus componentes já observados em Estados como o Rio de Janeiro.

sábado, 8 de junho de 2019

Charge! Via Folha de São Paulo

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Peter Handke, a escrita e o risco da literatura


Peter Handke, a escrita e o risco da literatura
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O escritor austríaco Peter Handke (Foto: Divulgação)

Em 1984, Peter Handke publica “A tarde de um escritor”, uma curta novela na qual um personagem escritor espanta-se, diante de uma crise sem nome, por ter perdido “a intimidade com a palavra”. Ele está no seu local de trabalho, o lócus onde escreve – “a casa dentro da casa”, como ele mesmo diz -, mas encontra-se paralisado. Sente-se impotente justamente por não ter escrito, recentemente, nenhuma anotação que o completasse, que o alterasse e levasse a sua prosa adiante. Se a inspiração da escrita o abandonou, ele, o escritor-personagem resolve fazer desse abandono um ato literário.
Embora não seja de fato uma novidade, esse gesto de abandono de escrita revela a encruzilhada que Handke foi tecendo ao longo da sua obra. Para ele, o escritor que usa a literatura apenas para representar o mundo individual está fadado a cair no que ele chamou, num famoso seminário do Gruppe 47 em Princenton, de “impotência descritiva”. De forma esparsa, a escrita está no cerne do projeto literário de Handke. Uma escrita, contudo, que é tensa, ambivalente e que se furta de uma delimitação concreta, precisa. A escrita de Handke é sempre movente e tensiona-se num vai e vem entre fronteiras de gêneros – como a poesia, o romance, o teatro, a prosa, o ensaio –, mas também de mídias, como o rádio e o cinema.
Um nova subjetividade
Escritos com pouco mais de vinte anos, os primeiros romances e peças teatrais de Peter Handke dialogam diretamente com o emergente paradigma de uma Nova Subjetividade, termo cunhado pelo crítico Marcel Reich-Ranicki. Um olhar mais atento, no entanto, constata que Handke tece complexos gestos diante dessa nova subjetividade. Suas aproximações são paulatinamente cadenciadas por um constante apagamento da experiência subjetiva. Nesse recorte, as suas Peças faladas são exemplos seminais de uma radical ruptura diante de uma certa excessiva primazia da subjetividade. Numa peça como Insulto ao público, de 1968, Handke dispõe quatro atores diante da platéia e avisa, desde o início, que nos últimos minutos todos os espectadores serão deliberadamente xingados. Há um gesto de afronta, mas também uma aposta em diluir e mesmo abolir o tácito pacto teatral que une – pela centralidade do verbo colado ao enredo – os jogos de projeção e identidade entre a estória, os personagens, a trama, e os espectadores.
Quando nos debruçamos nos romances de Handke dessa época, temos, contudo, uma interessante metamorfose. Em meados dos anos 1960 ele inicia uma série de romances com tons abertamente autobiográficos. Na maioria dos casos, os protagonistas são escritores que contam, narram, descrevem e relatam fatos abertamente autobiográficos.
Em 1972, logo depois de publicar O medo do goleiro diante do pênalti, Handke é arrematado pela notícia do suicídio da sua mãe. Foi nesse impulso que ele se pôs a escrever a novela Bem-aventurada infelicidade, que a partir dessa notícia conduz o leitor a uma viagem pela Eslovênia, onde Handke passou sua primeira infância, e pelas ruínas de Berlim logo após a Segunda Guerra Mundial.
Nessa novela, Handke modula suas emoções, sua imagens, e oscila entre um pathosevidente para a sua suavização diante da paisagem de abetos cobertos por neves. O que é uma morte diante do mundo? O que é um suicídio da mãe diante da nossa pequenez e as paisagens que nos cercam por todos os lados? Esse romance é exímio nas modulações do mote subjetivo, o prenúncio do que hoje chama-se “autoficção”, e uma descrição que conduz o olhar do leitor como se fosse uma câmera, uma fotografia, uma imagem do mundo mediado por letras.
Em 1981, Handke publica História de uma infância, outro livro abertamente autobiográfico e que faz parte de uma importante tetralogia – composta por História da infânciaSobre as aldeias,  Lento retorno e O mestre de Sainte-Victoire. Nessa curta novela, ele faz um relato da sua experiência como um pai solteiro; de como educou sozinho sua filha Ânima, depois que obteve a sua guarda. Sem datas, nomes nem períodos claros, a infância passeia límpida pela pena de Handke entre verões, outonos, invernos, primaveras. Sua criança torna-se criança enquanto ele se transforma em um pai. Não há mais uma clássica separação de sujeito e objeto, mas um mútuo processo de constituição da criança no pai e do pai na criança; numa dinâmica delicada, tensa, que algumas vezes reforça o patriarcalismo para, outras, sublimá-lo.
O deslocamento, a aposta na descrição e a Ekphrasis
Em 1984, Peter Handke lança o livro O mestre de Sainte-Victoire, mistura de ensaio, com um percurso de formação, no qual ele se fia nas imagens, nos locais e nos fios deixados por Paul Cézanne em Aix-en Provence, onde o pintor viveu os últimos anos da sua vida. Handke viaja para  Aix-en-Provence e é esse trajeto que ele descreve com afinco e minúcia.
Ao se aproximar de Cézanne, Handke faz da sua prosa um gesto muito bem refletido que suscita uma nova forma de paisagem. Se em Hopper a paisagem ainda é representativa, edulcorada por um belo clássico, e mimética, com Cézanne ela é uma forma de proximidade, uma maneira de estar presente quando ausente, ou ausente quando presente. É uma paisagem evidentemente materialista, na qual se vêem as pinceladas, os traços e, aos poucos, de tanto pintar a montanha por anos e anos a fio, Cézanne passa a vê-la no instante e nas flamas da sua desaparição. As pinceladas tornam-se mais esparsas. Elas ocorrem enquanto simultaneamente esboçam uma desaparição. É aqui que vemos o cerne da influência de Cézanne: gesticular para uma escrita, uma imagem, que pisque um desaparecimento no mesmo instante em que acontece, num ato estético que conjugue presença com desaparecimento. Numa das descrições que faz do quadro de Cézanne, Handke chega ao conceito de Coisa-Imagem-Escrita (Ding-Bild-Schirft).
Indissociáveis, a materialidade, a imagem, e mesmo a escrita precisam pulsar na mesma vibração. Como se Handke se voltasse contrário a um certo cisma iconoclasta que maculou a história da literatura ocidental, no qual a imagem prescinde da palavra e esta daquela. Ao remeter à Cezanne, Handke busca uma ontologia da escrita que não negue a imagem e uma forma de despertar imagens que não faça do verbo um suporte expressivo de representação. Cézanne e Heidegger, juntos, tornam-se os profetas de uma escrita que busca sua própria espacialidade para emergir como um evento autônomo, independente. Se, para Heidegger, o ser ocorre num aparecimento e numa ocupação do espaço –  instaura uma temporalidade própria que o cria enquanto é criado – a escrita de Handke torna-se, delicadamente, uma experiência sensível dessas elaborações estéticas e filosóficas.
Em O mestre de Sainte-Victoire, Handke passa, deliberadamente, a ser um adepto das Ekphrasis. Na sua acepção mais difundida, Ekphrasis são descrições verbais de obras visuais. São formas de aludir a imagens que não estão diante dos olhos. Imagens ausentes, que o verbo reacende numa química efêmera, fugidia, fulgaz. Permeada pela perda, pela sombra do Ut pcitura poesis de Horácio – da pintura como poesia – e, sobretudo, maculada pela desaparição, a Ekphrasis assume-se mais frágil que uma narração, uma narrativa, ou mesmo a ação aristotélica, já que ela gera imagens individuais, ausentes e distantes de telas, imagens íntimas e subjetivas dos eventos que descreve. De certa forma, o projeto poético-literário de Handke visa trazer novas faíscas visuais às imaginações, à força das imagens que cada palavra carrega e transmite consigo – sozinha, no seu choque, na sua combinação com outras e outras palavras.
Peter Handke e o cinema
Desde o início da sua carreira como escritor, o cinema pairou sobre horizonte de Handke. Ele foi cinéfilo, roteirista de obras seminais de Wim Wenders, com quem colaborou em pelo menos quatro filmes, e, por fim, possui uma obra cinematográfica individual. Deve-se, primeiramente, salientar que Handke não é um caso isolado de escritor-cineasta. Na geração literária européia do pós-guerra havia um constante estímulo de produtoras de cinema e de televisão em convocar escritores para realizar roteiros e filmes. Como se fosse o projeto de reconstruir as ruínas da guerra perpasse por reunir escritores e as novas mídias. Escritores da Escócia à Itália, como Peter Weiss e Pier Paolo Pasolini, e sobretudo escritores franceses vinculados ao nouveau roman, como Alain Robbe-Grillet e Marguerite Duras, construíram obras cinematográficas paralelas à suas literaturas.
Com Wim Wenders, Handke foi roteirista da sua própria novela O medo do goleiro diante do pênalti. Em seguida elaborou uma livre adaptação de Os anos de aprendizagemde Wilhelm Meister, de Goethe, que tornou-se o filme Movimento em falso. Por fim, em 1986, colaborou com as falas de Asas do desejo, talvez o filme mais famoso da parceria entre Handke e Wenders. Bem recentemente, em 2016, essa parceria obteve a filmagem de Os belos dias de Aranjuez, realizado em 3D, e como uma adaptação de uma peça homônima de Handke.
Um tanto bissexto, o diretor Handke realiza filmagens nos intervalos seus trabalhos literários, como se fosse um refúgio, um descanso dos seus tormentos com as palavras. Em 1971, a TV alemã o contrata para dirigir Chronick der laufenden Ereignissen,uma obra experimental que flerta com a performance, elementos do teatro do seu tempo e atores que também estiveram em suas peças dos anos setenta. Em 1978, Handke filme em Paris A mulher canhota, certamente seu filme mais melancólico, que possui sua antiga casa como locação. Lançado no Festival de Cannes, mostra o auge literário-cinematográfico de Handke. Em 1985, ele realiza em Salzburg a adaptação de La Maladie de la Mort, romance homônimo de Marguerite Duras, o qual inicia-se com a mão do diretor escrevendo e traduzindo o romance de Duras, como se o ato de escrever filmes fosse sempre uma tradução de um meio, de uma mídia para a outra. Por fim, em 1992, Handke realiza A ausência, que é, sem dúvida, o seu filme melhor acabado, no qual atores como Bruno Ganz e Jeanne Moreau contracenam em sequências que impregnam na memória e enaltecem belas paisagens de vários deslocamentos pela Europa. Em cada um desses filmes, é a escrita e seu abandono que Handke busca, de forma obsessiva, recorrente, incansável. Escreve enquanto filma e filma para escrever de outra forma, para forjar uma auto-transformação.
Handke foi obsessivo em buscar um escrita performática, que instaura  um movimento. Uma escrita que inventa um local e que se furta, propositadamente, do fardo de uma representação, de uma imitação, de uma mimésis. Uma escrita não restrita ao livro, às tradicionais mídias da literatura, mas que se declina em imagens, palcos, filmes. Uma escrita que aposta na descrição, para elaborar lentas imagens que instaurem uma duração. É assim, numa aposta radical e consistente de escrita que Handke arrisca-se e risca, simultaneamente, algumas das tradições literárias mais naturalizadas dentro da história da literatura. O riso traçado por Handke é duplo, sempre ambivalente, e é por isso mesmo ele, em si, outro gesto de escrita.
Pablo Gonçalo é doutor em Comunicação pela UFRJ e professor adjunto do curso de Audiovisual e Publicidade da UnB
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 2 de junho de 2019

Publisher: A ranking of authoritarianism

For some time now I have not read some encouraging article about the current political situation in the country. He could, too. The country is experiencing one of its most delicate political moments, wrapped in an unprecedented institutional, political and social crisis, aggravated by the militarization of the state apparatus, a combination that can become explosive, in an acute situation of managing this crisis. In recent weeks, we have discussed here the serious situation in which our democratic institutions are, pointing out their weaknesses. We knew, therefore, that the picture was serious, but this morning I read an article published by Piauí magazine in its March issue written by Celso Rocha de Barros, where he makes a rather pessimistic assessment of another indicator, the one that indicates the current stage of our authoritarian depression.

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As we have already reported here, this authoritarian depression is something that appears on a global scale, as a crisis of liberal democracy in a more general way, with reflexes, of course, here in the country, as a rearrangement of the conservative forces. draws attention to the degree of authoritarian retreat faced by various countries, in this wave that sweeps the planet, also as a reflection of the arrangement of the capitalist economy or, more precisely, of its increasingly precarious relationship with the institutions of liberal democracy. On this scale, according to the good analysts of political science, the country had a grotesque setback, occupying the first place of the list, that is to say, it is the country where this authoritarian retrogression more evolved of that gallery, with indicators observed daily by the most insightful readers. One of the indicators pointed out in the text - with our endorsement - is the absolute disrespect for the positions of the international organisms on what happens in the country.

This may be explained by our permanent stage of democratic vulnerability, as discussed in previous editorials. Our democracy was never consolidated, it was always of low intensity, for the reasons indicated there. There is talk today of possible political pacts or solutions that could represent a safeguard against the residual remains of this autocratic tsunami that began there in 2013, culminating in the institutional coup of 2016. As I report at the beginning of this editorial, they are alvissareiras, which contributes to further aggravate the social crisis. This time without the political buffers, which would allow the rulers to emerge from the inertia, from the administrative paralysis provoked by the difficulties of negotiations with the parliament, in an environment of non ideal governance - with coalition presidentialism this would be unlikely - but possible.

Good news, readers, despite the delicate moment, is that I perceive that there are some spaces where social analysts are looking at these neuralgic themes, assuming more consistent positions, such as pointing out the mistakes and successes of previous governments, such as the the Pact's coalition government and the Tucan era. Toucans, as Celso Rocha de Barros observed in this same article, have democratized the PFL, a political group fattened in the throes of the dictatorship established in the country with the civil-military coup of 1964. These were institutional arrangements that, governance, and somehow interdicted authoritarian harassment and shocks in the conduct of economic policy by keeping the inflationary process under control. A big gain, let's face it. Today, the Toucans moved away from the game, practically handing the caption to a political actor identified with the status quo of the group that took power, the governor of São Paulo, João Dória Júnior.