quarta-feira, 11 de novembro de 2020
Uma seleção de títulos sobre a obra e o pensamento de Godard
Uma seleção de títulos sobre a obra e o pensamento de Godard
Edição do mês
Redaçãodisse:
5 de novembro de 2020
Uma seleção de títulos sobre a obra e o pensamento de Godard
3
O cineasta francês Jean-Luc Godard ganhou notoriedade com seus filmes políticos de vanguarda (Foto: Philippe Doumic/Domínio Público)
A Nouvelle Vague e Godard
Michel Marie
Papirus, 272 páginas
Tradução: Juliana Araújo e Eloísa Araújo Ribeiro
A história das origens da Nouvelle Vague e da elaboração do primeiro longa-metragem de Godard, Acossado, é examinada por um dos principais especialistas no movimento que revolucionou o cinema francês, originado entre os redatores da revista Cahiers du cinéma.
Godard e a educação
Organização: Ana Lucia Soutto Mayor e Mário Alves Coutinho
Autêntica, 192 páginas
O livro apresenta uma coletânea de textos sobre a contribuição de Godard para a formação humana e a educação. A partir da produção cinematográfica do cineasta, suas narrativas e estratégias discursivas, os autores refletem sobre estratégias pedagógicas inscritas em seus filmes.
Cinema, vídeo, Godard
Philippe Dubois
Cosac Naify, 324 páginas
Tradução: Mateus Araújo Silva
O teórico da imagem Dubois escreve sobre a presença do vídeo na obra de Godard. O livro é dividido em três partes: a primeira sobre as potencialidades artísticas do vídeo, a segunda sobre as relações do vídeo com o cinema e a terceira sobre o uso do meio eletrônico pelo cineasta.
Godard, imagens e memórias: reflexões sobre História(s) do cinema
Organização: José Francisco Serafim
EDUFBA, 226 páginas
Vários autores, como os franceses Céline Scemama e Antoine De Baecque e o próprio organizador, exploram a série de TV História(s) do cinema como um divisor de águas na obra de Godard, uma obra que combina gêneros, formatos e suportes, além de uma trilha sonora extremamente complexa.
Jean-Luc Godard: história(s) da literatura
Maurício Salles Vasconcelos
Relicário, 300 páginas
O autor, poeta, videoartista e pesquisador evoca no título a série televisiva História(s) do cinema de Godard. O livro identifica citações e alusões literárias na filmografia de Godard, além de relacionar, de forma original, elementos dos filmes com aspectos de obras literárias não referidas neles.
Godard e a revolução do cinema
Pietro Milan e Bruno Colli
Clube de Autores, 112 páginas
Os jovens críticos Milan e Colli conceberam o livro como uma introdução ao cinema de Godard por meio de suas influências cinematográficas e da história da arte. A primeira parte traz um resumo breve mas completo da obra do cineasta e a segunda enfoca a trilogia do sublime.
Escrever com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard
Mário Alves Coutinho
Crisálida, 288 páginas
Coutinho, escritor e ensaísta de literatura e cinema, mostra Godard como um cineasta que reinventou o próprio cinema e reconfigurou o fazer audiovisual. Para o autor, o cineasta sabe escrever com a câmera sem deixar de ser absolutamente cinematográfico.
Introdução a uma verdadeira história do cinema
Jean-Luc Godard
Martins Fontes, 312 páginas
Tradução: Antonio de Pádua Danesi
Reunião de palestras que Godard proferiu na Universidade de Montreal em 1978. A palavra “verdadeira” no título significa que a história do cinema seria contada sobretudo em imagens e sons, e não com textos expositivos – como o cineasta realizava na série em vídeo História(s) do cinema.
Godard de Acossado a Imagem e palavra
Mário Alves Coutinho
ETM, 264 páginas
Lançamento, em homenagem aos 90 anos de Godard, é uma compilação de ensaios sobre 14 filmes do cineasta, de seu primeiro longa-metragem ao mais recente, incluindo títulos menos conhecidos, como
O pequeno soldado (1963) e Meetin’ Woody Allen (1986).
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
terça-feira, 10 de novembro de 2020
Editorial: Ainda é possível debater o Recife que queremos?
Há alguns anos atrás, com uma antecipação bastante razoável, fiz uma previsão acertada sobre quem seria o novo prefeito do Recife. Isso, naturalmente, provocou a ira dos seus adversários, que fizeram gestões para que o artigo fosse retirado do ar. Tivemos algumas dores de cabeça com o assunto, mas isso hoje já não importa. Com uma antecedência de até dois anos, o blog acompanhava sistematicamente todo o processo eleitoral, numa atitude republicana, informando aos eleitores não apenas o perfil dos candidatos, mas, principalmente, debatendo os problemas da cidade e a plataforma programática de cada candidatura, quando ela existia. Ousávamos até em inferir sobre a avaliação de campanha de cada candidato, um assunto que, confesso, fugia um pouco à nossa alçada. Passados cinco séculos de existência, Pernambuco ainda é governado como uma capitania do período colonial, não ficando infenso à sua ira aqueles cidadãos e cidadãs - seja homem público, jornalista ou blogueiro - que resolver questionar essas relações de poder.
Não há, portanto, um ambiente transparente e republicano, que faculte a esses profissionais emitirem suas opiniões livremente. Que o digam um Aníbal Fernandes - espancado quando chegava em sua residência em boa viagem - ou um Rubem Braga, por diversas vezes ameaçados aqui na província, durante a vigência do Estado Novo. O cronista teve uma experiência tão traumática que nem gostava de falar sobre o assunto, exceto pelo sarapatéis degustados no Mercado do Bacurau, na companhia de Capiba e do sociólogo Gilberto Freyre. Pouca gente sabe disso, mais os cinco meses que Rubem Braga passou aqui na província foi o período de maior engajamento político do cronista capixaba. Certa vez, Cristiano Cordeiro o encontrou com um volume na cintura e quis saber do que se tratava. Rubem não se fez de rogado. É um martelo que uso para prender o terno quando for preso.
Mencionamos alguns exemplos do Estado-Novo, mas, no então estágio de redemocratização nada mudou em relação a isso. Nossa democracia, na realidade, é uma democracia de arremedo, susceptível aos constantes solavancos golpistas e sob a medida dos interesses de nossas oligarquias torpes, abjetas,covardes e entreguistas. Nunca passou de um grande mal-entendido, como afirmava o historiador Sérgio Buarque de Hollanda. Hoje, então, em pleno projeto de implantação de um programa perverso de ajustes neoliberais no continente aí mesmo é que os espaços de debates públicos ficam obstruídos. Assim, a eleição será no próximo domingo e publicamos apenas um editorial sobre o assunto, o que provocou um questionamento de um fiel eleitor, que nos dava a honra de nos acompanhar por aqui. A lista dos blogueiros e jornalistas vítimas de ações persecutórias dessas elites é extensa. Até professores universitários são perseguidos através de processos judiciais, numa clara demonstração de intimidação. A estrutura univeristária omite-se em defendê-los.
Assim, um debate necessário sobre os destinos da cidade que queremos fica comprometido, envolto em picuinhas, trocas de farpas, disseminação de fake news e coisas do gêneros. Uns dizem que vão acabar com os impostos, outros que vão prender os corruptos, construir plataformas de transportes mirabolantes. E a eleição acaba sendo definida não em razão do melhor projeto para a cidade, mas como resultado da candidatura que conta com maiores recursos, um bom marqueteiro, aquele que definiu uma melhor estratágia para o candidato. Há uma candidatura que não conta sequer com o apoio de alguns membros do seu próprio grêmio partidário, que a boicotam para apoiar o nome do candidato de um outro partido. Dar-se a eles o nome de "Queijos do Reino". Eu não seria tão condescendente.
Boa biografia narra as peripécias e polêmicas de Samuel Wainer, o grande antagonista de Lacerda que revolucionou a imprensa brasileira.
História
O invasor
Boa biografia narra as peripécias e polêmicas de Samuel Wainer, o antagonista de Lacerda que revolucionou a imprensa brasileira
Claudio Bojunga
01nov2020 02h00 (06nov2020 09h27)
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O jornalista Samuel Wainer
Monteiro, Karla
Samuel Wainer: o homem que estava lá
Companhia das Letras • 584 pp • R$ 89,90 / R$ 39,90
Bastava mencionar Samuel Wainer e Carlos Lacerda nos bares de outrora para identificar a esquerda e a direita da mesa. De um lado, gostavam das causas de Samuel: trabalhismo, nacionalismo, reformas. Do outro, atacavam seus métodos, nem sempre ortodoxos. Os primeiros viam em Carlos a mistura de Catão e McCarthy. Conservadores reduziam Samuel a sanguessuga do getulismo.
Idealizar ou pichar ainda hoje personagens tão complexos é o mesmo que embalsamar o maniqueísmo panfletário da Guerra Fria. John Dulles resgatou Lacerda dessa praga póstuma, em obra cujo primeiro volume saiu em 1991 e o segundo, em 1996. Maurício Dominguez Perez lançou, em 2007, um estudo acurado sobre o governador da antiga Guanabara. Chegou a vez de Samuel Wainer, quarenta anos depois de sua morte. Merecia mais do que o explosivo e magoado depoimento Minha razão de viver: memórias de um repórter, organizado por Augusto Nunes em 1987. O livro fez um barulho danado, vendeu mais de 200 mil exemplares em vinte edições.
Surge agora a biografia definitiva Samuel Wainer: o homem que estava lá, obra refletida, bem pesquisada e bem escrita por Karla Monteiro. Livro denso e leve, que lhe tomou cinco anos de trabalho. O bom vinho dessa pipa foi beneficiado pelo tempo, pelos meios digitais e pela sensibilidade da experiente autora mineira para os meios-tons. Suas mais de quinhentas páginas podem e devem ser saboreadas.
Não há pingo de moralismo no retrato do judeu imigrado, do repórter oportunista, do publisher movido a anfetaminas, que também foi bom amigo e pai extremado. O subtítulo apenas salienta o faro jornalístico e o agudo senso da oportunidade de Samuel para o momento decisivo, o fato relevante, o lugar certo, a hora certa. Karla esclarece de passagem o tom vingativo das primeiras memórias: “Samuel tinha contas a acertar na autobiografia. Fora uma vida inteira carregando a cruz do corrupto que se beneficiara da proximidade com o poder para assaltar o Banco do Brasil e fundar uma cadeia de jornais. Na sua opinião, todavia, não era o único. Estava mais para a regra que exceção, e seria um último deleite desmascarar a hipocrisia”.
Paulo Francis, antigo comandado, não perdoou a tartufice dos desafetos. Escreveu que era melhor o BB emprestar dinheiro a um jornal popular do que doar bilhões a milionários que os aplicavam em especulação. Os príncipes suntuários da mídia, era sabido, nunca perdoaram o arrivista que inflacionara o salário dos repórteres.
A autora reproduz comentário atribuído a Roberto Campos: se os industriais assíduos do BB enfrentassem a devassa a que o patrão de Francis fora submetido, o Brasil ficaria com as contas em dia. Entre os donos de jornal, só Samuel morava de aluguel. Se houvesse testamento, o seu único bem disponível seria uma linha telefônica, comprada com a grana da venda de um Dodge Polara.
Pogroms
Os 29 capítulos seguem o meteórico trajeto do imigrante judeu nascido em 1912, na Bessarábia, atualmente Moldávia, no Leste Europeu, espremida entre a Ucrânia e a Romênia, na época sob domínio do Império Russo. A família Wainer era natural de Yednitz, um shtetl (povoado judaico) saído de algum quadro de Chagall e sujeito a eventuais investidas dos cossacos bêbados de Alexandre 3º. Sucessivos pogroms entre 1880 e 1920 forçaram mais de 2 milhões de judeus ao exílio. A família chegou ao Brasil em 1921.
Samuel tinha nove anos quando conheceu o Bom Retiro, reduto judaico no centro de São Paulo. O pai, Chaim, virou seu Jaime. Cantava na sinagoga com timbre igual ao de Al Jolson. Samuel nunca o viu rir. A mãe, Dora, promovia saraus e fazia pasteizinhos russos, os imperdíveis vareniks. Samuel era o sétimo de nove irmãos. Apenas Sofia, a caçula, nasceu aqui.
Karla registra: “Nesse meio russificado, ávido de aceitação e reconhecimento, Samuel começou a despertar para o nacionalismo trabalhista, ideologia que perseguirá vida afora”. Mais adiante, a fundação de Israel o atraiu para a vertente britânica do trabalhismo. Os soviéticos não inspiravam confiança: conhecia a Rússia e seu antissemitismo na pele. “Eu tinha declaradas simpatias pela esquerda, mas nunca fui bem assimilado pelo Partido Comunista e tampouco cheguei a afinar-me com sua ideologia”, escreveu ele.
Em São Paulo, o antissemitismo também se notava. “Continuavam frescas na memória as manhãs de sábado de Aleluia, dia de malhar o Judas, quando eram perseguidos pelas ruas do Bom Retiro [...] onde fora criado e aprendera o significado de ser judeu”.
Einstein comentou a respeito: “O homem só pode florescer quando é possível se fundir numa comunidade. O risco moral do judeu é perder contato com seu povo e ser olhado como estrangeiro pelo povo de sua adoção”. Samuel aceitou o risco ao longo da vida. Foi o oposto do protótipo usado pelos antissemitas: favorável à assimilação, foi mau aluno, era internacionalista, gastador, desprendido, incauto, festeiro, sonhador e dom-juanesco. Nada Shylock.
Quando veio para o Rio, ao final dos anos 1920, sua primeira experiência jornalística foi no órgão da Juventude Israelita, que ficava num canto da praça Onze. A sinagoga do bairro era vizinha da casa da Tia Ciata, onde o samba fora inventado poucos anos antes. O sotaque das ruas, diz Karla, misturava o iídiche à nasalidade dos portugueses e ao ritmo dos negros. Samuel não tinha direito de votar, mas podia brincar o Carnaval — era o que havia de melhor na praça Onze.
Samuel admirava a saga tenentista e as conquistas sociais da Revolução de 30. Compreendeu cedo a importância da imprensa na relação com o poder político: jornais contrários à nova ordem foram devidamente empastelados, como o Diário Carioca. Assis Chateaubriand aderiu: paraibano como João Pessoa — o vice de Vargas, cujo assassinato foi o estopim do levante —, convenceu Getúlio de que precisava de apoio incondicional na imprensa. Getúlio soube agradecer.
Os anos 1930 encontram Samuel na casa dos vinte. Com o charme dos olhos azuis, um jeito maroto de rir revirando a língua e a maneira certa de manejar seu Chesterfield, imitada de Clark Gable, seduziu Bluma Chafir, judia vigorosa, bela e culta, cujo pé no chão (era contadora) contrastava com o feitio sonhador do futuro marido.
Bluma se ressentia da discriminação das mulheres, sobretudo as solteiras. Só casadas podiam votar. Judia, independente e de esquerda, tinha medo de ser deportada caso Getúlio se aproximasse de Hitler. Samuel conseguiu, com astúcia, se registrar como brasileiro: alguém atestou seu nascimento em São Paulo. Bastava isso. Sentia-se brasileiro e preferia o que lhe parecia certo ao que era legal.
Wainer estava de olho nos judeus influentes: o Idiche Presse, de Aron Bergman, partidário de Ben Gurion e próximo do trabalhismo inglês, deu-lhe aulas sobre as correntes de pensamento. Seu irmão Artur, que atraíra os irmãos para a corrente sionista-socialista, era também importante, assim como o advogado Samuel Malamud e Israel Dines, pai do futuro jornalista Alberto Dines, um dos diretores da Relief, organização de amparo ao imigrante.
Por indicação de Wolf Klabin, industrial ligado aos sionistas e amigo de Artur, entrou para o Diário Carioca, encarregado da coluna Diário Israelita, cuja missão era conter o antissemitismo. Samuel chegara à primeira divisão, num Rio cindido entre os vermelhos de Prestes e os camisas-verdes de Plínio Salgado. Klabin o ajudaria a se transferir para a Revista Brasileira, do genro de Ruy Barbosa, Antônio Batista Pereira. Publicação séria: trezentas páginas, mais da metade traduzidas da francesa Ce Soir. Samuel conheceu ali a cozinha do jornalismo, da pauta à gráfica. Era colega de Antônio Azevedo Amaral, polemista que defendia a “democracia autoritária”. O encontro mudaria a vida de Samuel.
Em 1938, Amaral convidou-o a criar uma nova publicação. Samuel o considerava um fascista — mas tinha subsídio da Light, graças à boa vontade de Getúlio. O olho cresceu. “Dois contos mensais, um bom dinheiro. O polvo canadense controlava tudo: energia elétrica, gás, telefonia, iluminação, bondes. E esticava os tentáculos sobre a imprensa através das agências de publicidade.” Wainer imagina uma revista de reportagens sobre a vida política, econômica e social do país e do mundo. Como escreve Karla, ele “contrataria os comunistas da Revista Acadêmica e faria a melhor revista que o Brasil jamais tivera: Diretrizes”.
O primeiro número (5 mil exemplares), com Hemingway e Huxley, esgotou no primeiro dia em que ficou exposto na Livraria José Olympio. Samuel não demoraria a passar a perna em Amaral, registrando a revista em seu nome. Perdeu a Light, mas encontrou dinheiro em outros lugares: recebeu tanto do Departamento de Estado americano quanto dos nazistas, que não ligavam em financiar um judeu, contanto que fosse útil. E Samuel, como diz sua biógrafa, nunca foi muito kosher em matéria de dinheiro. A fila de colaboradores ilustres cresceu: Mário e Oswald de Andrade, Rachel de Queiroz, Eneida, Graciliano, Nelson Werneck Sodré e Álvaro Moreyra.
Lacerda e Wainer eram amigos na época. A expulsão do Partido Comunista e a pecha de traidor levaram Carlos a esmurrar, altas horas de noite, a porta do apartamento de Samuel e Bluma. Embriagado, desabou, aos prantos, dizendo “mataram a minha mãe, estou órfão”. Com o tempo, Lacerda foi se incompatibilizando com os colaboradores de Diretrizes. Uma crítica venenosa a Portinari afastou Moacir Werneck de Castro. Ataques a Jorge de Lima levaram Jorge Amado a cortar relações. Aos poucos tornou-se persona non grata. Samuel teve de demiti-lo. Diretrizes durou até julho de 1944, quando suas provocações levaram o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) de Lourival Fontes a suspender sua cota de papel.
No pós-guerra, Samuel assumiu a direção da redação de O Jornal, carro-chefe dos Associados de Chatô. Considerava o chefe desprezível, arrogante e entreguista, fazendo o jogo dos monopólios estrangeiros, vendendo-se a quem pagasse o melhor preço. Ficou três meses no cargo. Preferiu pedir ao chefe para fazer reportagens especiais. Viajou a Israel. Escapou do fogo cruzado, arranjou uma namorada iemenita e voltou ao Rio esquelético, tuberculoso. Passou algum tempo num sanatório em Minas e safou-se graças aos novos remédios que começaram a chegar.
Com o fim da guerra, Samuel foi enviado à Europa. Baseado em Paris, viajou à Espanha e publicou, no tão almejado Ce Soir, de Louis Aragon, reportagens sobre a face escondida do franquismo: torturas, prisões arbitrárias, violações dos direitos humanos. Rumou, em seguida, para a Alemanha, para cobrir o Tribunal de Nuremberg. Arrancou seu furo com o advogado de defesa do almirante Karl Dönitz, da Marinha alemã, que assinara a rendição nazista. O almirante confirmou a importância da base militar no Nordeste na derrota.
Última Hora
O furo decisivo de Samuel veio em 1949: a entrevista com Getúlio Vargas, que estava havia mais de quatro anos num exílio voluntário em São Borja. A conversa selou uma fraternidade que o beneficiaria até o suicídio do presidente, em agosto de 1954. O episódio foi o precipitador do retorno ao Catete do “pai dos pobres”. Vargas o chamou carinhosamente de profeta e facilitou a compra de um jornal para apoiá-lo. Samuel se demitiu dos Associados e instalou a Última Hora no antigo prédio reformado do Diário Carioca, na praça Onze. Armou um time de craques: João Etcheverry, Otávio Malta, Francisco de Assis Barbosa, Paulo Silveira, Otto Lara Resende e Nelson Rodrigues, entre outros. No colunismo social, Maneco Müller; como ilustradores, Nássara, Augusto Rodrigues e Lan, futuro criador do pérfido Corvo, apelido que grudaria em Lacerda.
Lacerda, do seu lado, demitiu-se do Correio da Manhã batendo a porta. Em dezembro de 1949, inaugurou a Tribuna da Imprensa, mediante ações de subscrição pública. O jornal do “xerife da rua do Lavradio” (expressão dele) fincou a bandeira conservadora — bastava olhar o Conselho Consultivo: Alceu de Amoroso Lima, Adauto Lúcio Cardoso, Gustavo Corção, Sobral Pinto. Estava armado o octógono para o vale-tudo entre os dois.
O centro do livro se ocupa dessa infindável e furiosa rinha. Samuel se tornara personagem dominante do segundo governo Vargas, era amigável ao poder nos anos JK e quase companheiro de Jango. Lacerda era o udenista aliado dos militares que apoiaram Eduardo Gomes e veriam sucessivas tentativas de golpe frustradas.
Não convém avançar demais nos spoilers do bafafá armado pelos jornais, tão bem reproduzido por Karla Monteiro. Seria roubar do leitor jovem os inacreditáveis expedientes e baixarias desse confronto de gladiadores que recorrem a métodos da imprensa marrom. Briga repleta de pasquinadas, golpes baixos, armadilhas diabólicas, cpis, infâmias, prisões, intrigas internacionais e, ao final, as poderosas e novas armas de massa — a TV Tupi de Chatô e a Rádio Globo de Roberto Marinho, postas a serviço da demolição de Getúlio e de Jânio, sucessivamente, por Carlos Lacerda.
O centro do livro se ocupa da infindável e furiosa rinha entre Samuel Wainer e Carlos Lacerda
O cabo de guerra incluiu acusações a Samuel de dumping, mediante financiamento com dinheiro público; de ter uma aliança clandestina com o sindicalismo peronista e de não ser nascido no Brasil, condição exigida para ser proprietário de um meio de comunicação. Lacerda enfrentou uma CPI por ter aberto ao público, por negligência, o código secreto do Itamaraty, no afã de comprovar denúncias, e por ter forjado uma testemunha (que nunca existiu) para tentar provar o favorecimento do Banco do Brasil à Última Hora.
Na apoteose do poder de Samuel, Paulo Francis viu-o como um Gatsby, festeiro, sedutor, rico, casado com a bela, independente e desejada Danuza Leão, com quem teve três filhos, recebendo e frequentando banqueiros, intelectuais, artistas e atores de Hollywood, sem falar na classe política em peso. A embaixada americana o vigiava para saber o que pensava o presidente. Teve mansão, mordomo empertigado e filhos que se educaram no que havia de melhor.
Mas Samuel quase nunca ficava lá. Vivia na redação, olhando por cima dos ombros de seus jornalistas. Sua paixão maior era o crepitar das Remingtons; o som das rotativas, o cheiro da tinta, que alguns suspeitavam correr em suas veias. Engolia anfetaminas para não dormir e, ao raiar o dia, arrancava boêmios extenuados do Sacha’s para apreciarem seu jornal mal saído do forno. Gostava tanto de jornal que perdeu duas mulheres excepcionais por negligência e ausência.
Muitas testemunhas da caça às bruxas de Samuel evocam o bafo da inveja do velho establishment a propósito de sua intromissão no jogo de poder e nas mamatas habituais. Perseguição que foi se agravando, à medida que a Última Hora espalhava sucursais por São Paulo, Minas e Nordeste. No final do processo de expansão, no início dos anos 1960, que culminaria no Recife, a Última Hora publicava onze edições em sete estados. Alberto Dines tinha vindo da Manchete para se tornar um dos xodós do chefe. Karla reproduz seu diagnóstico: “Muitos jornalistas meteram a mão no bolso do governo. Ninguém falou nada. O caso do Diário Carioca era sabido, ganhou do Dutra o dinheiro para construir a sede da Praça Onze, que Samuel compraria para instalar a Última Hora. A campanha contra ele não foi contra um jornalista que se vendeu. Mas contra um invasor que adotou uma linha política contrária”.
Depois da renúncia de Jânio, Samuel fincou pé na tese da legalidade, apoiou João Goulart até o fim. Tentou mediar ou suavizar conflitos, acautelar quanto aos excessos dos radicais, recomendar prudência e evitar pisar no que desabaria. Sobretudo não provocar o fim da aliança PSD-PTB e estimular a união dos adversários.
Não deu certo: tudo ruiu em abril de 1964. Samuel se exilou no Consulado do Chile. Era o 16º na primeira lista dos que tiveram seus direitos civis e políticos cassados por dez anos. Em Paris, chegaria a um entendimento civilizado com Danuza em relação aos filhos. Faria mil e uma tentativas de empreendimentos, mas as musas o tinham abandonado.
Quando conseguiu voltar ao Brasil, tentou reviver a Última Hora com novos parceiros, mas, dentro de um ano, o jornal exibia prejuízo de 1 milhão de dólares. Em dezembro de 1968, o AI-5 decretou a ditadura ampla e irrestrita. Os jogos estavam feitos.
Foram múltiplas as tentativas, em São Paulo, de manter-se, sem afundar. Mas seus muitos fôlegos começaram a se exaurir quando a saúde passou a ratear. Muito doente, com crises respiratórias, sequelas da tuberculose, agravadas pelo cigarro, não parava quieto. “Enquanto existir bambu, há flecha”, escreve Karla. A última delas foi certeira: em sua coluna na Folha de S.Paulo, identificada por um modesto S. W., apontava Lula como a grande novidade no cenário brasileiro — um líder sindicalista de verdade, com futuro promissor.
Só entregou os pontos no dia 2 de setembro de 1980.
(Publicado originalmente no site da Quantro Cinco Um, a revista dos livros)
segunda-feira, 9 de novembro de 2020
Camus, amor e vertigem
Muito já se disse que Albert Camus – sempre envergando capa de gabardine e com cigarro pendente dos lábios – compunha uma persona semelhante a Humphrey Bogart. Mas o que pouco se sabe é que o escritor protagonizou uma cena digna de Casablanca, filme de 1942 em que o ator norte-americano vive uma história de amor cujo início se dá em Paris ao som dos canhões nazistas.
Em 6 de junho de 1944, no mesmo dia em que os Aliados desembarcavam na Normandia, deflagrando a ofensiva final contra os exércitos de ocupação alemães, Camus começava, também em Paris, um relacionamento amoroso com a atriz espanhola Maria Casarès que duraria até sua morte.
Há no episódio outras ressonâncias, embora desencontradas, do longa-metragem de Michael Curtiz. Editor do jornal clandestino Combat, Camus participava ativamente da Resistência – assim como o marido de Ilsa Lund, a personagem de Ingrid Bergman por quem se apaixona o cínico Rick, interpretado por Bogart.
E a própria Maria Casarès tinha envolvimento familiar com o movimento anti-fascista. Seu pai, Santiago Casares Quiroga, foi um dos últimos chefes de governo da turbulenta Segunda República espanhola. Em sua breve gestão (maio a julho de 1936), eclodiu a sublevação militar que deu início à Guerra Civil, levando o general Franco ao poder e a Espanha a mais de 40 anos de ditadura.
De origem catalã por parte de mãe, Camus projetou sobre Casarès a profunda identificação que sempre teve com a Espanha. Seu primeiro texto autoral foi a peça Revolta nas Astúrias, criação coletiva baseada na revolução operária de 1934, em Oviedo. E o teatro camusiano voltaria à Espanha com Estado de sítio, peça ambientada em Cádiz num passado impreciso, mas que remete aos autos sacramentais de Calderón de la Barca. Contraponto ao romance A peste, que Camus publicara em 1947, Estado de sítio também lança mão do contexto imaginário da cidade assolada por uma epidemia como alegoria da opressão.
Detalhe importante: a peça estreou em 1948, quando a intelectualidade francesa se dividia ante as denúncias dos crimes de Stálin, prenunciando a ruptura entre Sartre (pró-comunista) e Camus (anti-totalitarista), que se daria após a publicação de O homem revoltado (1951), seu ensaio sobre a divinização da história e a justificação da violência pelas utopias revolucionárias, entre elas a utopia hegeliano-marxista que dera origem aos gulags soviéticos. Entretanto, é a Espanha – então governada pela extrema-direita – que fornece o cenário para Estado de sítio, da mesma maneira que A peste (ambientada em Orã, na sua Argélia natal), era uma evidente metáfora da Europa sob o nazismo.
Peça, romance e ensaio, portanto, cobrem todo o espectro político na obra desse escritor mais fiel à concretude de suas percepções, ao ethos de suas origens mediterrâneas, do que às abstrações ideológicas. E, nesse sentido, a espanhola Maria Casarès será seu duplo nas fases subsequentes de sua trajetória.
Esse enredo passional pode ser conhecido na intimidade com a publicação de Correspondência: 1944–1959, que a editora Record lança em 2020. Com 1.300 páginas na edição original da NRF/Gallimard, o volume reúne cartas trocadas pelos dois amantes, com texto estabelecido por Béatrice Vaillant e prefácio de Catherine Camus, filha do escritor.
Nesse prefácio, Catherine conta como ambos se conheceram no dia 19 de março de 1944, na casa de Michel e Zette Leiris durante leitura dramática de O desejo agarrado pelo rabo, de Pablo Picasso. O encontro foi celebrizado por fotografia de Brassaï em que aparecem, além do pintor espanhol e do anfitrião, Camus (responsável pela mise en scène), Sartre, Simone de Beauvoir, o psicanalista Jacques Lacan e o poeta Pierre Reverdy.
Entre outros convivas, também está presente uma atriz de 22 anos, descrita por Olivier Todd (biógrafo de Camus) como “magnífica, além dos cânones clássicos, olhos rasgados, queixo voluntarioso, voz rouca”. Pouco depois, Maria Casarès é convidada pelo diretor Marcel Herrand para integrar o elenco de O mal-entendido e descobre que o autor da peça é o mesmo jovem de “rosto altaneiro sem insolência”, com “ar de indiferença displicente”, cuja presença a impressionara na casa dos Leiris.
Tornam-se amantes no Dia D, o dia do desembarque na Normandia. O último verão da guerra (que acabaria no ano seguinte) nada tem de idílico. Camus vê colegas de Combat serem deportados e, embora não integre diretamente as ações do grupo (do qual o jornal que edita é porta-voz), chega a participar de operações clandestinas, tendo a anti-franquista Casarès a seu lado.
Desde 1940, Camus era casado com Francine Faure, que permanecera na Argélia durante a Ocupação. Com a libertação do território francês, ela pôde enfim reencontrar o marido. Diante das circunstâncias, Camus e Casarès se separam – mas voltam a se cruzar no Boulevard Saint-Germain em 1948, no dia 6 de junho, exatos quatro anos após o início do relacionamento.
Camus e Casarès em Paris, no final da década de 1940
Camus e Casarès em Paris, no final da década de 1940 (©Collection Catherine et Jean Camus)
Correspondência traduz tais intermitências. Em 1944, apenas cartas enviadas por Camus a Casarès. Durante o período de separação, silêncio quebrado somente pela mensagem de condolências que ele envia à atriz pela morte de sua mãe, em 1946. E, a partir de 1948, cartas trocadas regularmente pelos amantes.
Na última, de 30 de dezembro de 1959, Camus anuncia seu breve retorno a Paris, partindo da casa de Lourmarin (Provença) onde se instalara com a família após receber o Nobel de literatura de 1957. O encontro não acontecerá. Em 4 de janeiro de 1960, Camus – que planejara ir de trem – viaja de carona no carro do amigo Michel Gallimard, da família de seus editores. No trajeto, o Facel Vega de Michel se estraçalha contra um plátano. Camus morre na hora. Entre os destroços, estavam os manuscritos do romance O primeiro homem, que só seria publicado em 1994.
É arriscado situar o livro – póstumo e inacabado – na obra de Camus. Basta lembrar de A morte feliz, romance de juventude também publicado postumamente, mas que ele abandonou, conservando apenas (e com pequena variação de grafia) o nome do protagonista Mersault, que reapareceria como Meursault em O estrangeiro.
Por um lado, é certo que O primeiro homem sofreria modificações até tomar forma final. Por outro, sente-se a escrita de um autor seguro, apesar de algumas repetições e discretas incongruências (mudança de foco narrativo no meio de um período; troca do nome de um personagem) que soam como atos falhos a revelar como o enredo é calcado em sua biografia, com episódios como a morte do pai na Primeira Guerra, a infância pobre em Argel ou a paixão pelo futebol.
De todo modo, O primeiro homem, na forma que restou (incluindo as anotações fragmentárias ao final), associa dois elementos que correspondem aos últimos dos três ciclos que Camus esboçou para sua obra: uma antropologia do homem mediterrâneo e o tema mais geral do amor.
Camus e Maria Casarès em 1948, Paris, rua de Vaugirard, 148
Camus e Maria Casarès em 1948, Paris, rua de Vaugirard, 148 (©Collection Catherine Camus)
“Eu tinha um plano preciso quando comecei minha obra”, diz Camus em Estocolmo, por ocasião do Nobel. “De início, queria exprimir a negação. Sob três formas. Romanesca: foi assim com O estrangeiro. Dramática: Calígula, O mal-entendido. Ideológica: O mito de Sísifo. Eu previa o aspecto positivo também sob três formas. Romanesca: A peste. Dramática: Estado de sítio e Os justos. Ideológica: O homem revoltado. E já entrevia uma terceira camada, em torno do tema do amor.”
E, numa anotação de seus Carnets, ele associa a cada um desses ciclos uma entidade mítica: Sísifo para o absurdo, Prometeu para a revolta e Nêmesis para o amor. Se a tarefa absurda de Sísifo fora esquadrinhada no ensaio que leva seu nome, e se em O homem revoltado é fácil entrever a ambiguidade do gesto prometeico de roubar o fogo dos deuses (que pode tanto emancipar os homens como reproduzir, no plano secular, a injustiça divina), a figura vingativa de Nêmesis adquire, na leitura camusiana, duplo sentido.
É ao mesmo tempo a deusa que “vigia o equilíbrio” (punindo quem o quebra, como Camus afirmara no capítulo “O pensamento do meio-dia”, de O homem revoltado), mas também figura feminina, deusa-mãe, promessa de reconciliação dos contrários.
As referências míticas de Camus nunca redundam (com exceção de Estado de sítio, com sua retórica de auto sacramental) numa escrita simbólica, como ocorre em Kafka, no plano ficcional, ou Nietzsche, no filosófico – dois autores admirados por ele. Aplica-se a sua obra o que ele mesmo celebrou em Melville: “o símbolo sai da realidade, a imagem nasce da percepção”, nunca se apartando “nem da carne, nem da natureza”; Camus, como o autor de Moby Dick, “construiu seus símbolos sobre o concreto, e não sobre a matéria do sonho”.
Camus em Mont-Roch, nos arredores de Chamonix, alpes franceses, em 1956
Camus em Mont-Roch, nos arredores de Chamonix, em 1956 (©Collection Catherine et Jean Camus)
Assim, ao recriar mitos, Camus faria da figura de Dom Juan uma das expressões cotidianas do homem absurdo, ou seja, aquele que exaure as possibilidades de uma vida assombrada pela vertigem da finitude – e que revelará sua face perversa, subjugadora, no sombrio Clamence de A queda.
O próprio Camus se lançou, em sua vida amorosa, numa desesperada corrida contra essa vertigem. Paralelamente à paixão por Maria Casarès, manteve romances com a norte-americana Patricia Blake (que conhecera em Nova York), a atriz Catherine Sellers (de origem argelina como ele) e a desenhista dinamarquesa Mi (Mette Ivers).
Mas, em consonância com as antinomias que percorrem sua obra (hedonismo individual e cumplicidade coletiva; núpcias inocentes com a natureza e culpa pela danação de dar curso à história), o donjuanismo absurdo – insinuado nas referências a outras mulheres em suas cartas a Casarès – deveria dar lugar a um amor sob o signo de Nêmesis. Um amor que, como o ethos mediterrâneo celebrado em O primeiro homem (no qual as “divindades do sol, do mar e da miséria” eram um contraveneno para as crenças na vida futura ou nas promessas da história), equilibrasse exaltação e sobriedade, nudez e esquecimento.
Se a terceira fase da obra de Camus não chegou a se realizar, Maria Casarès permaneceu como expressão vital dessa fidelidade singular (tão singular quanto o acordo entre o homem e sua existência que ele sentia sob o sol da Argélia) em meio à “indiferença pelo futuro e a paixão de esgotar tudo o que é dado” (O mito de Sísifo). Talvez por isso, entre tantos amores, Camus se referisse a ela como “A Única”.
MANUEL DA COSTA PINTO é jornalista e crítico literário, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Usp e autor de Albert Camus: um elogio do ensaio (Ateliê)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
domingo, 8 de novembro de 2020
Le Monde: As eleições americanas e o futuro do mundo
por André Luiz Cançado Motta e Yury Machado de Moura
6 de novembro de 2020
A eleição presidencial nos Estados Unidos ocorre em um cenário extremamente polarizado. O pleito é visto por diversos analistas políticos, inclusive os escritores deste artigo, como uma batalha a ser travada por muitos cidadãos americanos pela retirada de um presidente com legado de ingerências na política exterior
A crise de 2008 intensificou e evidenciou processos que vinham acontecendo desde a década de 1980, perpassando por todos os governos presidenciais estadunidenses, sendo eles democratas ou republicanos: o enfraquecimento de políticas sociais, reformas trabalhistas agressivas em detrimento dos direitos das e dos trabalhadores e a flexibilização de instituições regulatórias do mercado. Os direitos construídos e firmados no contrato social americano durante o período pós Segunda Guerra Mundial, que foram o pilar do american dream, agora são entendidos como empecilhos para o crescimento econômico e a geração de empregos em todo o mundo.
A eleição do democrata Barack Obama para a presidência gerou esperanças de mudança desse cenário para seus apoiadores. Porém, apesar da eleição de um presidente afro-americano representar uma grande conquista para uma sociedade marcada por um histórico de segregação racial ainda muito recente e persistente, seu governo não favoreceu as necessidades econômicas dos trabalhadores da classe média e pobres.
Isso não significa dizer, no entanto, que o governo Obama não trouxe conquistas para seus cidadãos. Seu governo implementou medidas para promover igualdade e justiça para a membros da comunidade LGBTQI+, sendo a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo nacionalmente, em 2015, uma das medidas mais significativas nesse sentido. Além disso, o Obama Care – Affordable Care Act (ACA) ampliou significativamente a cobertura de saúde do país, regulamentando aspectos importantes dos planos de saúde e oferecendo cobertura para as populações mais vulneráveis economicamente.
Ainda assim, o que grande parte do povo americano observava durante o governo democrata, tanto apoiadores quanto opositores, é que, ao mesmo tempo que viam suas garantias sociais desaparecendo, seu poder de consumo diminuindo e empregos se tornando cada vez mais escassos e precarizados, a Casa Branca ainda disponibilizava bilhões de dólares para evitar que grandes empresas do setor financeiro tivessem que lidar com crise que eles mesmos criaram. Somou-se a isso o constante aumento do consumo de recursos do Estado pelas forças armadas, para lidar com conflitos em terras estrangeiras e ameaças internacionais.
Nesse sentido, ficou cada vez mais claro que, independentemente do partido na presidência, as questões econômicas tangentes a maior parte das e os cidadãos norte-americanos não seriam tratadas em seu favor. A principal evidência disso é que 93% do capital adicional criado em 2010 nos EUA, cerca de 288 bilhões de dólares, foi retido por apenas 1% dos contribuintes e 37% pelos 0,1% mais ricos do país, aumentando o capital desses indivíduos em 22%, ao passo que a classe média e os pobres tinham que lidar com precarização dos seus empregos e o aumento do estresse financeiro nas famílias e, por conseguinte, nas comunidades, desencadeados, em grande parte, pelo prolongamento das horas de trabalho e pela descontinuidade de auxílios sociais. Tudo isso em prol de uma recuperação econômica cujo ônus recaiu apenas sobre eles e o bônus apenas e tão somente em uma parcela minúscula da população – os 1% mais ricos, persistentes em todos os dados de análise de concentração de renda.
Uma sociedade dividida
A insatisfação com tal cenário vem diminuindo a confiança dos cidadãos na política para lidar com a situação, em especial entre os eleitores com as menores rendas, muito em função do acirramento da precarização da vida. O ressentimento contra o establishment político liberal é interpretado por estudiosos da área, como a professora de Ciência Política e Social da New School de Nova Iorque, Nancy Fraser, como uns dos principais propulsores da intensa polarização na atual política norte-americana. Aqui, essa aversão aos políticos tradicionais observa-se com o aumento da visibilidade de políticos que se caracterizam como outsiders do establishment político, como o democrata Bernie Sanders e, consequentemente, Donald Trump, eleito na corrida presidencial de 2016.
Em seu artigo “Do Neoliberalismo Progressista A Trump – E Além”, Fraser discorre sobre formação de uma ambivalência na sociedade estadunidense entre dois movimentos chamados por ela de neoliberalismo progressista e neoliberalismo (ultra) reacionário. O primeiro seria a junção de políticas econômicas de cunho neoliberal a pautas identitárias progressistas, que formou o bloco hegemônico político até o governo Obama. Já o segundo, seria uma resposta ao primeiro, caracterizado por uma perspectiva nacionalista, anti-imigração, antiglobalização, pró-valores cristãos e fortemente crítica de quaisquer políticas associadas aos governos democratas – como o Obama Care.
Essa ambivalência não diminuiu após a vitória de Trump. Muito pelo contrário, percebe-se uma significativa radicalização dos apoiadores do mesmo, em especial aqueles contrários aos apoiadores das manifestações realizadas pelo movimento Black Lives Matter (BLM). Estes, que levantam palavras de ordem contra a violência policial e racismo após a morte de George Floyd, em Portland em maio deste ano, confrontam-se recorrentemente com aqueles que apoiam Trump ou, se não, pautas ainda mais radicais e fundamentalistas – como o apelo pelo americanismo, isso é, os direitos fundamentais dos norte-americanos que, a despeito do avanço liberal, estaria morrendo.
É neste cenário polarizado que mais uma vez, mas dessa vez ainda pior, a eleição presidencial nos EUA ocorre. O pleito é visto por diversos analistas políticos, inclusive os escritores deste artigo, como uma batalha a ser travada por muitos cidadãos americanos pela retirada de um presidente com legado de ingerências na política exterior, políticas discriminatórias e um das piores respostas à crise sanitária representada pela pandemia da Covid-19.
No entanto, o desafio posto é de que Donald Trump ainda possui um grande contingente do eleitorado a seu lado. Uma verdadeira legião de apoiadores, que defendem suas políticas negacionistas em relação a pandemia e sua postura repreensiva com as manifestações do BLM.
Biden e a alternativa progressista
O apreço por candidatos que faziam fortes oposições as políticas econômicas neoliberais fizeram com que o senador pelo estado de Vermont, Bernie Sanders, ganhasse muito espaço entre os democratas no período de campanha das eleições primárias americanas. Assim como em 2016, o senador auto intitulado socialista, era visto com muito entusiasmo para disputar a presidência contra Trump, em especial por seus discursos que favoreciam políticas sociais de distribuição de renda, a saúde pública gratuita e ensino superior gratuito, ao mesmo tempo se mostrando fortemente combativo as políticas que beneficiavam os 1% mais ricos do país.
Essas expectativas foram frustradas quando Sanders retirou sua candidatura e declarou apoio ao também senador e vice presidente na gestão Obama, Joe Biden. O democrata que, de acordo com as previsões do The Economist, possui 96% de chances de vencer a eleição, aposta sua vitória fortemente na oposição às ingerências do governo de Trump, em especial sua nociva gestão da crise do coronavírus, o intervencionismo em instituições políticas caras a democracia estadunidense e o enfraquecimento das relações internacionais dos EUA, que levaram ao comprometimento de sua hegemonia global.
Ao contrário de Sanders, Biden não possui propostas para uma extensa reforma tributária. Sua perspectiva econômica é bem mais amena. O que Biden tenta fazer e, de acordo com previsões citadas, tem conseguido é conquistar os votos de trabalhadores que viram Trump como a solução, mas que se frustraram com a péssima gestão do presidente, em que não só falhou em cumprir suas promessas de campanha – entre elas aumentar o salário mínimo e aliviar os impostos para a classe média -, como aprovou uma reforma tributária que beneficiou ainda mais as camadas mais ricas da população.
E se Biden ganhar?
Cientistas políticos sempre se aventuram, com base nas suas análises de dados, a deduzirem hipóteses do que poderá ocorrer quando um candidato ou outro converta o resultado ao seu favor. Aqui, não faremos diferente. Com base nas evidências levantadas, podemos fazer uma reflexão acerca da vitória de Biden, e o que isso significa para os Estados Unidos e para o mundo.
O candidato presidencial democrata dos EUA Joe Biden e sua esposa Jill Biden participam de um evento de campanha drive-in na Pensilvânia (REUTERS/Kevin Lamarque)
A linha seguida por Trump, contrária a uma ordem liberal internacional, pode ser entendida como um tiro no próprio pé. O “America first” preconizado na agenda do presidente, apela por um retorno a um país livre de interesses ocultos, elitizados, distantes da população trabalhadora, que constrangem a “América” de ser “A verdadeira América”. A mensagem por de trás desse pensamento é, essencialmente, uma: devemos ser aquilo que não somos. Isso é, devemos mudar toda a estrutura que, até aqui, construímos. Desde 1945, as principais instituições criadas: Organização das Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional, Bretton Woods, e tantas outras, serviram para construir relações e contatos entre países de todo o mundo, pelas vias multilaterais. O trauma do pós-guerra seguiu-se, no entanto, pela guerra fria entre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os Estados Unidos.
No entanto, após 1991, a dissolução da URSS e a criação do Estado russo, a ordem norte-americana alegou-se, e podia alegar-se, vitoriosa e triunfante: hegemônica no que podia ser, unipolar na frente internacional. Não cabe aqui discutir as consequências imediatas disso, mas é necessário dizer que, apesar de tudo, esse é a inércia que trouxe a ordem liberal internacional ao lado dos Estados Unidos, a qual estabeleceu um ambiente incontestável a seu favor: um mundo onde a maior parte das instituições ou foram criadas pelos norte-americanos ou tinham sua presença.
Essa inércia foi contestada por Trump, em sua plataforma política. O mundo não poderia, e nem deveria, ter a presença norte-americana em níveis como os formatados. Deveria, sim, abandonar a ordem criada por eles mesmos, em favor e benefício de voltar-se para dentro, novamente, e isolar-se e preocupar-se com seus próprios interesses, naquilo que interpretamos como uma forte aversão ao mundo globalizado. É nisso que seus eleitores acreditaram, e por isso hoje ele é candidato a reeleição. Caso seu nome seja o vitorioso, instituições se enfraquecerão ainda mais: afinal, temos um exemplo claro disso, que revelou-se com a forma com que os Estados Unidos lidaram com a crise da Covid-19, e a falta de liderança chave na Organização Mundial da Saúde (OMS) em benefício de uma estratégia unilateral de combate ao vírus que é, por natureza, de alcance global, revelando e expondo a fraqueza da ordem internacional em lidar com problemas globais de forma coordenada e pacífica.
Biden, no entanto, poderá trazer de volta uma equipe com iniciativas progressistas, evitando a precarização das instituições internacionais e fortalecendo a presença norte-americana nos ambientes de negociação multilaterais. Isso, por conseguinte, será uma resposta positiva da fragilizada ordem liberal internacional, que se espera ser capaz, a partir de sua vitória, apaziguar conflitos e trazer de volta o protagonismo de liderança norte-americana. Espera-se, de maneira demasiada otimista, que isso facilite o consenso político e o diálogo para elaboração de propostas de solução de desafios globais que exigem coordenação e colaboração. Com isso, abandonam-se intenções e guinadas nacionalistas e isolacionistas, as quais provam ser decisões erradas dado ao nível de interação entre os países expostos pelo avanço globalizatório que apela por decisões integradas e multilaterais.
Por conseguinte, com a derrota da agenda autoritária de Trump, é claro o retorno de um ambiente mais favorável a candidaturas progressistas por todo o mundo, não apenas nos Estados Unidos. Em um momento onde se vive uma pandemia global que causará (e já causou) danos graves na economia, educação e saúde, espera-se que discursos menos individualistas e mais universais ganhem força para, daí então, transformarem-se em ações políticas que atendam às necessidades de quem está sofrendo com os atuais acontecimentos.
Para Biden, esse contexto será um desafio dada a necessidade de reconstruir o tecido social norte-americano – e global – por meio da criação de empregos com garantias trabalhistas para os países desenvolvidos e, principalmente, em desenvolvimento. Por fim, sabe-se que Biden é sujeito político passivo de muitas críticas. Não se espera dele nada mais que o fundamental: que se traga bons quadros do partido democrata para a o poder dos Estados Unidos e das instituições liberais. A esperança é que, numa ordem liberal consolidada, a história sopre os ventos mais a favor dos progressistas que dos reacionários.
André Luiz Cançado Motta, graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestrando em Política Internacional pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (FCS-UFG) e Assessor Parlamentar na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás.
Yury Machado de Moura, graduado em Ciências Sociais com Habilitação em Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e mestrando em Ciência Política pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL-UnB).
sexta-feira, 6 de novembro de 2020
Crônica: Dois escritores num quarto de pensão.

José Luiz Gomes
Alguns anos atrás, por indicação de um amigo, li o livro de crônicas “Linhas Tortas”, do escritor alagoano Graciliano Ramos. Relutei um pouco, a princípio, por saber tratar-se de um texto não consagrado do escritor alagoano, a exemplo de Angústia, Caetés ou Vidas Secas. Depois, fui convencido por este amigo com a informação de que se tratava de um livro onde o autor faz algumas considerações sobre o ato de escrever. A melhor impressão possível. Gostei tanto que acabei produzindo uma série de outras crônicas, a partir dos assuntos abordados pelo alagoano. Graciliano, como se sabe, era muito exigente com o ato de escrever. Comparava-o ao ofício das lavadeiras, que lavam, enxáguam, batem as roupas nas pedras, voltam a enxaguar até concluírem o trabalho.
O livro reúne as crônicas que o escritor publicou em alguns jornais do Estado de Alagoas, possivelmente escritos do início de sua carreira literária. Além dos inúmeros assuntos do cotidiano - algo inerente a qualquer cronista - se sobressaem nesses textos algumas reflexões de Graciliano sobre o ato de escrever, onde ele analisa alguns textos que lhes chegam às mãos, seja de candidatos a escritor ou de escritores já consagrados, como os amigos do círculo literário de Maceió, como José Lins do Rego, Raquel de Queiroz e Jorge Amado.
Há poucas referências de publicações de crônicas do escritor Graciliano Ramos. Não nos parece ter sido um gênero com o qual ele guardasse maiores afinidades, diferentemente do conterrâneo José Lins do Rego, que nos surpreendeu pelo número de crônicas publicadas, inclusive crônicas esportivas, não raro com remissões à sua paixão, o Clube de Regatas Flamengo.
A lembrança do cronista Graciliano Ramos, no entanto, fez algum sentido depois da leitura de uma resenha literária publicada numa revista comemorativa aos 40 anos de Vidas Secas, aquele livro que é considerada sua obra-prima. Durante o Estado-Novo, em razão de suas ligações com o Partido Comunista, Graciliano amargaria 08 meses de prisão nos porões da Ditadura Getulista, o que implicou, entre outras tantas sequelas, na perda do seu emprego e, assim, nas dificuldades de sustentar sua família. Contou com a ajuda do amigo José Lins do Rego, que teve um visto de entrada nos Estados Unidos negado em razão disso. O paraibano morreu sem nunca ter entrado naquele país, depois de impedido de acompanhar a cerimônia de casamento de uma de suas filhas.
Neste período, em São Paulo, dividiu um quarto de pensão com o cronista capixaba Rubem Braga, onde se dedicava a escrever contos para jornais, como forma de superar aquelas dificuldades financeiras. Assim surgiu Vidas Secas, obra onde alguns críticos apontam uma certa “descontinuidade”, em razão da forma como foi escrita. Mas não são todos os críticos que defendem essa tese. Há aqueles que, inclusive, encontram no texto uma profunda sintonia e unidade entre os capítulos.
Rubem Braga, este sim, o cânone da crônica brasileira, foi editor de um jornal do Partido Comunista quando esteve aqui no Recife. É o período de maior envolvimento político do escritor capixaba, embora nem ele, tampouco a família gostassem de falar sobre o assunto. Da província, talvez, apenas as lembranças dos sarapatéis compartilhados com Capiba e Gilberto Freyre no Mercado do Bacurau. Ele falava tão bem desse sarapatel que bate até água na boca quando trato do assunto. Um dia desses, não me contive e fui experimentá-lo no templo da gastronomia tipicamente pernambucana, o Mercado de São José. Fico imaginando aqui como teria sido a convivência entre ambos e as possíveis ideias que eles teriam trocados sobre literatura em noites insones. Pelo menos Rubem era um incorrigível notívago. O alagoano talvez fosse mais disciplinado.
Graciliano Ramos: Linguagem literária e vida sociocultural
Linguagem literária e vida sociocultural
Benjamin Abdala Junior e Luzia Barrosdisse:
8 de outubro de 2018
Linguagem literária e vida sociocultural
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Graciliano na livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1942 (Foto KURT KLAGSBRUNN / Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F01-001)
Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.
Carlos de Oliveira, in Mãe po
Carlos de Oliveira, escritor neorrealista português que nos serve de epígrafe, foi um assíduo leitor de Graciliano Ramos. Em seus versos, ele se insere – como o escritor brasileiro – na perspectiva do artista em cujas produções a ênfase sociocultural se associa estreitamente com o trabalho estético sobre a linguagem. De um ângulo subjetivo, ao liberar o processo criativo, Graciliano Ramos descarta apriorismos de forma/conteúdo, procurando ter um máximo de consciência dos mecanismos de funcionamento da linguagem literária. Essa atitude, entendida como articulações, cria hábitos, que interagem com as múltiplas convenções da vida sociocultural.
Há, nessa práxis artística de Graciliano Ramos, a ideia de que a consciência da realidade (referencial ou literária) depende das conexões do objeto (fatos representados ou o próprio texto) com um sistema mais amplo de conexões, que se articulam, por sua vez, com as tensões da vida social. Com o procedimento, a escrita de Graciliano procura transformar-se em um fato social ativo pelo desempenho de uma dupla função histórica: por um lado, através da práxis e da metalinguagem dos narradores, essa escrita define a si mesma; por outro, contribui para o processo do conhecimento sociocultural, definição da totalidade social, presente em sua escrita não apenas como representação referencial, mas como formas articulatórias capazes de entrar em tensão com as articulações culturais de seus leitores. Pela práxis, entendida assim não como prática, mas como movimento que vai do sujeito para o objeto e, deste, com impactos no sujeito, estabelece-se uma dinâmica que provoca criticidade no leitor.
Graciliano Ramos rompe com a redução da subjetividade individual e coletiva que as imobiliza ao campo do objeto de referência, tal como foi entendido pelo realismo oitocentista e que se projetou no século 20. O seu sentido de representação objetiva pressupõe a participação ativa do sujeito em suas interações com as articulações socioculturais de sua situação histórica.
Concretude, objetividade, assim, não são conceitos que se reduzem ao objeto, expulsando o sujeito, como ocorreu com o modo de pensar a realidade afinada com o “velho” realismo. Graciliano não se coloca, por outro lado, na perspectiva neorromântica de absolutizar o sujeito, quando poderíamos ter processos de esfumaçamentos da realidade referencial. Ao contrário, procura construir uma escrita que pressupõe a interação contrastante entre dados subjetivos e objetivos, que se concretizam nas redes de articulação do texto.
Graciliano Ramos tensiona reflexivamente, em suas personae narradoras, níveis de consciência da enunciação (que traz marcas do próprio autor implícito no texto) e do sujeito do enunciado (personagem narradora), mostrando muitas vezes a consciência problemática dessas interconexões. Sua estratégia artística provoca impactos nos leitores, para que estes se conscientizem de emparedamentos que também são seus. Para tanto, os níveis de consciência dessas personae oscilam entre formulações da consciência “real” de suas personagens, em relação de homologia com as vividas muitas vezes por seus leitores, e os níveis mais amplos de consciência da situação histórico-social, possíveis de serem discernidos, para nos valer dessas categorizações de Lucien Goldmann. Como as personagens mostram-se alienadas desse sentido de totalização que envolve as articulações provenientes da enunciação, a dialética da dinâmica enunciativa evita, por exemplo, uma apreensão da realidade de “falsa consciência” (sentido mais usual do conceito de ideologia), como em Luís da Silva, personagem-narrador de Angústia.
O processo de efetivo conhecimento desse narrador-personagem do que seria o objeto focalizado (a personagem Marina, por exemplo), através de atributos físicos e psicológicos, não é possível apenas pela visão fragmentada da personagem ou pela simples somatória das partes no todo (“os pedaços não combinavam bem; davam-me a impressão de que a vizinha estava desconjuntada”), mas pela experimentação do objeto em sua função de “máquina”. Ainda assim a visão de Luís da Silva continua reduzida, sem a percepção do sentido de totalização que envolveria outras atribuições socioculturais. Via-a, ainda de forma reduzida, como “máquina”, um objeto que se circunscreve reduzidamente a sua função sexual.
Luís da Silva está alienado de si mesmo e transfere a sua visão reduzida para o objeto, uma mercadoria a ser consumida. Enquadra-se, sob este aspecto, na alienação social, que segue as convenções sociais dominantes, que preceituam valores a partir da valia de uso. Desconsiderou a personagem, entretanto, o fato de que, em sua perspectiva, Marina impregnou-se de atributos afetivos. Essa contradição na apreensão do objeto será intensificada posteriormente, quando Marina (como um produto sujeito às regras do mercado) lhe será alienada pelo poder de “compra” de Julião Tavares.
Graciliano e a mulher, Heloísa, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, 1949 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F13-025)
Graciliano e a mulher, Heloísa, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, 1949 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F13-025)
Marina e Julião Tavares estão submetidos aos estereótipos culturais (hábitos) que estabelecem uma ponte comunicativa entre eles: gestos, vestuário, literatura, oratória. Luís da Silva tentou encantá-la imitando formas de impacto desses ritos convencionais, mas não possuía o poder maior que os enformava (dinheiro). Julião Tavares, ao contrário, é o símbolo desse poder e daí apropriar-se de sua mercadoria. Trata-se de um modelo de articulação simétrico ao que ocorre de maneira hegemônica em múltiplos campos da atividade social, em que toda forma de trabalho (físico, intelectual) é compelida para a sua transformação em mercadoria.
Formam-se então nos campos de atividades humanas dos romances de Graciliano Ramos inter-relações hegemônicas que envolvem os objetos, uma rede opressiva que reproduz as convenções dominantes, que procura subordinar a si as demais, que vêm da experiência sociocultural. Qual a solução? Para Luís da Silva foi o assassinato de Julião Tavares, símbolo do agente da opressão. A solução individual, para a enunciação, não resolve o problema: Luís da Silva não se desvincula dos valores do conjunto social, mesmo nos momentos de grande emoção. O ato de paixão, isto é, sem o controle da razão, levou-o a um delírio anárquico, rejeitado pela ânsia de rigor e ordem de Graciliano Ramos.
No nível da escrita de Angústia, quais seriam as homologias? Na desagregação da linguagem de Luís da Silva, nos momentos de delírio? A linguagem, como os fatos culturais, articula-se também em uma “rede” condicionadora não apenas da seleção vocabular, mas sobretudo da combinação sintática. Ela está associada de forma genética e estrutural com a situação social que a produziu, reproduzindo, por sua vez, congeminações ideológicas, dominantes ou não. É igualmente um campo de tensões. A ruptura passional da personagem narradora desse romance, de motivação psicossocial, vai ser registrada, então, através de uma acumulação de palavras em que não ocorrem hierarquizações de imagens. À desagregação psicossocial da personagem corresponde uma correlata desagregação de lógica discursiva.
A situação de Luís da Silva, nesse momento, aproxima-se da anomia: os hábitos sociais parecem ter perdido sua força reguladora, mas estes padrões estão presentes, tensionando interiormente a personagem. Não ocorre uma ruptura total pelo controle da enunciação que explica a projeção das imagens, como a evitar uma ruptura total com o discurso lógico. A personagem continua a aceitar os valores dominantes do conjunto social: sua visão reduzida permite-lhe apenas a observação de dados particulares. Falta-lhe uma visão mais totalizadora que lhe propicie a determinação para optar, por exemplo e segundo a enunciação, pela escrita de um romance. Isto é, para construir novas articulações valendo-se dos escombros das velhas. Mas era muito para o burocrata Luís da Silva: preferiu libertar-se da prisão referencial para prender-se a uma cadeia sociológica mais sutil, onde continuaria a escrever artigos jornalísticos sob encomenda.
Interessante a se destacar é o tópico da cadeia que ocorre no conjunto da obra de Graciliano Ramos. Para ele, os confinamentos/aprisionamentos do sujeito (dimensão individual e coletiva) não se limitam aos emparedamentos dos hábitos convencionais. Constituem também uma condição necessária para o exercício da atividade de escritor. Um horizonte mais amplo, que não se limita, pois, à particularidade de Luís da Silva.
A situação narrativa de Luís da Silva é similar à de outras personagens dos romances de Graciliano Ramos que vivenciam estados passageiros de anomia. Em Caetés, João Valério perturba-se pela paixão amorosa. Poderia ter outra paixão: escrever um livro, mas pondera que isso não ficaria bem em um comerciante. De mediador artístico comprometido com a verdade (condição da verdadeira literatura, de acordo com a enunciação), desloca-se para mediador de mercadorias, isto é, produtos sociais que sofreram o processo de alienação, em face das inter-relações estruturais que os subordinam.
A vinculação sociológica do alheamento psicológico torna-se mais enfática em S. Bernardo: a paixão de Paulo Honório por Madalena pode ser comutada pela paixão pela fazenda. Sua visão reduzida, que tudo subordina à ótica de uma espécie de “capitalismo selvagem” (Florestan Fernandes teorizaria uma década depois), segue a falsa consciência da redução correlata própria do seu pragmatismo. Paulo Honório, ao contrário das personagens protagonistas de Caetés e Angústia, conseguiu terminar o seu romance. Começou a escrevê-lo equivocadamente, pretendendo transformá-lo em uma mercadoria. A construção da narrativa de sua vida, em termos de autenticidade, exigia uma práxis mais de sentido totalizador e não aquela a que se habituara: a divisão social do trabalho, por meio da qual se apropriaria da produção alheia. As tensões provenientes de suas carências individuais compeliram-no a um processo de maior conscientização, através das interações contraditórias entre as vozes da personagem e do narrador-personagem, que problematizam sua vida/escrita.
Casa onde nasceu Graciliano, em Quebrangulo, Alagoas, 1892 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-040)
Casa onde nasceu Graciliano, em Quebrangulo, Alagoas, 1892 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-040)
Prefeitura de Palmeiras dos Índios, 1960. Após uma série de reviravoltas, Graciliano elegeu-se prefeito do município interiorano, em 1927 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-020)
Prefeitura de Palmeiras dos Índios, 1960; após uma série de reviravoltas, Graciliano elegeu-se prefeito do município interiorano, em 1927 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-020)
A alienação da escrita-realidade dos narradores dos romances de Graciliano Ramos percorre setores sociais típicos: o burguês fazendeiro, o burocrata e o comerciante citadinos. Em Vidas secas, Fabiano, personagem proletária, não consegue “apropriar-se” da linguagem. Ela lhe foi alienada pela adversidade econômico-social. A perspectiva de Fabiano é lutar para que ela seja restituída pelo menos a seus filhos. Dominar a linguagem, para essa personagem, é uma forma de capital simbólico e de poder social.
A linguagem, modelada pela práxis social, desempenha uma função cumulativa: ela traz na simbolização de suas formas o conhecimento “acumulado” pela humanidade. Reduzida a condições subumanas, os filhos de Fabiano (o Menino mais Velho e o Mais Novo: não aparecem com nomes próprios) colocam-se diante dos objetos como se estivessem no início desse processo histórico ainda impregnado de pensamento mágico.
O palavrório dos bacharéis em direito, por outro lado, é marcado criticamente em todos os romances de Graciliano Ramos. Corresponde a um registro de linguagem estereotipado e que encobre a realidade dos fatos vivos. Como Julião Tavares (Angústia), são invariavelmente “reacionários e católicos” e, ao escrever, têm “linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensamento nenhum”.
O catolicismo também está presente no conto “Um ladrão”, protagonizado por um indivíduo que vive na margem social e que busca, ironicamente, auxílio celeste para seu primeiro roubo à residência. No conto, Graciliano permeia a narrativa com a linguagem típica do mundo marginal, como o uso da expressão “caneta” (ferramenta para abrir fechaduras), respeitando o léxico dos indivíduos cujo universo procura retratar.
O sonho do protagonista do conto é tornar-se proprietário de um bar, em seu comércio não permitiria frequentadores do mundo marginal, apenas pessoas da ordem e da lei; dessa forma, a personagem não prevê a ausência de senhores e sim a necessidade de se tornar um deles; em conformidade com Eric Hobsbawm: “Nesse sentido, os bandidos sociais são reformadores e não revolucionários”. Como parte das personagens de Graciliano, o Ladrão finda na prisão, dessa vez concreta, mas antes já se podia notar seu aprisionamento, uma vez que seus sonhos eram modelados pela “falsa consciência” aqui já referida.
A ativação da linguagem dos romances de Graciliano Ramos pauta-se pela estratégia de desmascaramento, em nível do texto, das redes articulatórias cujos efeitos são a alienação do sujeito e do objeto. Esse método dos processos de efabulação atinge, de forma correlata, o leitor, implícito nesse trabalho prático de construção. Este leitor, implícito na própria codificação da narrativa, situado historicamente dentro das condições socioculturais brasileiras, identifica-se, por sua vez, com um leitor real, que deve trabalhar igualmente sobre o texto com consciência crítica. Graciliano Ramos não rejeita o código linguístico; ao contrário, procura vê-lo em processo de desenvolvimento, para aprofundá-lo. As transformações da linguagem são gradativas, pois as inovações dependem de um acordo social entre os falantes. Também sob esse aspecto a enunciação não se afasta da realidade. Ela parece suspeitar que uma violentação mais radical do código não teria efeitos sociais porque quebraria a cadeia comunicativa? Ou ele se vê, como nas Memórias do cárcere, preso inicialmente à gramática e depois noutra cadeia, a da polícia política?
As situações mais próximas da anomia ficam restritas, em seus romances, ao nível do enunciado, nos momentos de alta tensão das personagens. Ela não atinge a enunciação: Graciliano afasta-se dos excessos narrativos das formas dispostas para “Épater le bourgeois”. Talvez considerasse que aqueles que costumam gritar muito alto muitas vezes procuram encobrir os seus próprios escrúpulos.
Sua opção é por um compromisso com os objetos da realidade social. Procura vê-los como os da criação cultural, em especial a linguagem, num problemático e áspero processo de desenvolvimento, no momento histórico em que se efetiva a comunicação literária. Não procura recursos artísticos que poderiam ser interpretados como “modismos”, afeitos ao mundo das mercadorias, mas a efetiva busca do “novo”, isto é, aqueles procedimentos que sua práxis de escritor evidencia como eficazes para produzir efeitos controlados por sua consciência social.
Benjamin Abdala Junior é professor titular da USP, autor de Graciliano Ramos: Muros sociais e aberturas artísticas (Record, 2017)
Luzia Barros
é doutora em Estudos Comparados pela USP
(Puublicado originalmente no site da Revista Cult)
quarta-feira, 4 de novembro de 2020
segunda-feira, 2 de novembro de 2020
Crônica: Quincas Berro D'Água no bairro do Pina.
Não sei se o leitor já passou por uma experiência do tipo, mas ontem, depois da leitura de Quincas Berro D'Água, acordei, durante a noite, sobressaltado com a expressão utilizada pelo Quincas, quando lhe ofereceram água, em vez de pinga. Não é a primeira vez que isso ocorre, o que passou a me preocupar, sobretudo em razão de manter, como livros de cabeceira, as obras do escritor theco Franz Kafka, consultadas com regularidade, em razão de um romance em construção, bem ao estilo kafkiano. Soma-se a isso os recorrentes assédios dos quais somos vítima hoje, como consequência desse momento insano e fascista que estamos presenciando no país. Basta ser um democrata, defender o Estado Democrático de Direito, colocar-se contra o fascismo para tornar-se alvo preferencial de uma trupe doente, pervertida, abjeta, incapaz de uma convivência civilizada e humanizada. O fascismo é destrutivo. Destrói as pessoas, as instituições, o meio-ambiente, o diálogo,o argumento, a razão, já que eles se dizem sempre os únicos donos dela. Nesta querentena imposta pela Covid-19, aproveitei o momento para me aprofundar sobre a origem dessa patologia política - profundamente relacionada ao romantismo alemão - suas estratégias, sua propaganda, seu programa. O fascismo tem tudo isso muito bem definido. O projeto de poder da ultradireita é muito claro, algo que parece ter sido substimado pelas forças do campo progressista.
Num país como o nosso, onde as pessoas acreditam em perna cabeluda ou, como no passado, quando os agricultores eram convencidos a vir trabalhar em Paulista aos apelos dos aliciadores da Companhia de Tecido, afirmando que, no então distrito, eles encontrariam torneiras que jorravam leite, montanhas de cuzcus e paredes de rapadura, é bem possível dimensionar os efeitos maléficos de uma fake news, nesses tempos bicudos de pós-verdade.
Jorge Amado viveu em Salvador, mais precisamente residindo nas ladeiras do Pelourinho, 68, ainda em sua juventude. Alí, convivendo com personagens locais, Jorge produziu um dos seus romances mais festejados: Suor, ainda sob forte influência do realismo socialista, quando o autor de Gabriela Cravo e Canela era uma espécie de seu representante aqui no país, ao lado do alagoano Gracilaino Ramos, autor de Vidas Secas. Quando deixou o local para residir no bairro do Rio Vermelho, sua residência foi transformada na Casa Museu Jorge Amado, que guarda alguns objetos pessoais do escritor. Como disse, Suor é um dos melhores textos de Jorge. Na minha modesta opinião e na opinião do escritor alagoano, Graciliano Ramos, cujo nível de exigência dispensaria maiores considerações. Uma das grandes sacadas deste texto de Jorge - assim como em Capitães da Areia - é a descrição fidedigna do cotidiano dos seus vizinhos de bairro, descrevendo, em minúcias, suas adversidades, sua luta diária pela sobrevivência, a promiscuidade, os embates frequentes dos seus moradores, o odor de inhaca dos cortiços.
Até recentemente, um conhecido escritor pernambucano voltou a demonstrar um enorme entusiasmo por essa fase de arte engajada do escritor, sobretudo sobre seus reflexos na linguagem literária. Passada a refrega da experiência do socialismo real, o próprio escritor renegaria esse período, onde, segundo ele mesmo, ficava preso numa camisa de força, incapaz de desenvolver sua liberdade de escrever como gostaria, em razão dos limites impostos pela ideologia. O tema é tão polêmico que o dito escrritor resolveu programar uma de suas famosas oficinas para discutir o assunto. Ressalto aqui que, hoje, tem sido recorrente essa literatura, invocando problemas sociais, de violência de gênero, violência policial nas favelas.
Mas, voltemos à Quincas Berro Dágua. A primeira vez que li este texto estava no ensino médio, por recomendação de um professor. Foi uma leitura de um fôlego só, assim como sua escrita. Amado teria escrito o texto em dois dias. Como já havia lido Suor, literalmente, voltei a Salvador do Pelourinho, seu casario, suas ruelas estreitas, seus monumentos tombados, a Baixa do Sapateiro, a rua da Baixinha, a Praça Castro Alves, suas pensões, seus tipos, como prostitutas, travestis e maconheiros. Mas recentemente, entretanto, fiquei surpreso com a informação de que Quincas Berro Dágua não seria um morador típico de Salvador, mas um pernambucano do bairro do Pina, aqui no Recife.
Em suas férias, Jorge Amado costumava frequentar a província pernambucana, onde ficava hospedado na casa de um amigo, não deixando de apreciar seus encantos e recantos, como o restaurante Leite e a Praia de Maria Farinha, já na região metropolitana do Recife, na cidade de Paulista.Zélia relembra das frondosas mangueiras dessa residência, com seus frutos deliciosos. Jorge,possivelmente, experimentou o famoso licor de pitangas, no bucólico bairro de Apipucos, já que o sociólogo Gilberto Freyre era um habitué daquele restaurante, chegando a dar nome a um dos seus pratos: Medalhão à Gilberto Freyre. Numa dessas andanças, Jorge Amado teria ouvido o relato de um cidadão com tais características, que residia no bairro do Pina. A confissão teria sido feita pelo poeta Carlos Pena Filho. Quem poderia imaginar que Quincas Berro Dágua não seria um legítimo soteropolitano, dos becos e ruelas do Pelourinho, mas um pernambucano da gema, do bairro rebelde e alagado do Pina, frequentador dos seus bares, apreciador das belas bundas expostas ao sol, que tanto chamou a atenção do filósofo francês Michel Foucault quando esteve aqui na província? Mas este já é assunto para uma outra crônica, que compartilharei com vocês depois.
José Luiz Gomes
Hegel como pensador do colonialismo?
Klaus Viewegdisse:
29 de outubro de 2020
Hegel como pensador do colonialismo?
37
Friedrich Hegel: para biógrafo, filósofo era 'tudo menos um colonialista eurocêntrico' (Foto: Reprodução)
O absurdo da acusação de que Hegel seja um pensador colonialista começa pelo fato de que são usados, contra ele, princípios e padrões que ele mesmo defendia, dentre eles o universalismo, direitos humanos, liberdade e igualdade. Passa muitas vezes despercebido que a rejeição hegeliana a toda injustiça não é de maneira alguma condicionada cultural, ética ou geograficamente. A desumanidade, direcionada contra a razão e a liberdade, é atacada e deslegitimada independentemente do seu “lugar” de ocorrência – a escravidão na Grécia antiga e África pré-colonial, estruturas de clã na Europa bem como o sistema de castas indiano, a subjugação de outros povos e comunidades na África antiga ou Europa moderna.
Tendo em vista o discurso hegeliano de que o “Pré ou Extra-histórico” representam déficits históricos, que existem em determinadas épocas, então estes são estágios do desenvolvimento a serem superados rumo à liberdade e ao direito, em qualquer continente e também qualquer cultura. Hegel se refere a estruturas políticas e estatais ainda não desenvolvidas e à sua relevância para o progresso da história mundial. Assim, na modernidade, devido à internacionalização e globalização, todos os povos, sociedades e culturas devem ser entendidos como atores da história mundial, essenciais à conquista da liberdade para todos.
Que Hegel era tudo menos um colonialista eurocêntrico pode ser demonstrado, em termos bastante concretos, a partir de um dos mais famosos ensinamentos de sua filosofia: a temática do “senhor e do escravo”, unida à justificativa para superar essa relação através da “luta por reconhecimento”. Uma forma dessa estrutura de senhorio-escravidão reside no colonialismo moderno, discursivamente ligado à relação entre “metrópole e colônia”, entre “Estado-senhor e Estado-escravo”. O Estado-senhor possui uma estrutura política subordinada fora do seu próprio território nacional.
De maneira alguma Hegel
defende a legitimação dessa
estrutura de submissão, e
sim provê o oposto dessa
justificação: porque essa
estrutura não tem acordo
com a razão, ela deve ser
destruída.
Tanto “escravo”, e o “Estado-escravo”, quanto o “senhor”, e o “Estado-senhor”, não são livres, mas estão ambos na mesma relação de não-liberdade, por meio de quê um não é mais livre do que seu diferente, o outro. A escravidão pode então ser considerada positiva em épocas históricas determinadas, e constituir um direito por lei, mas nunca um direito por razão. A estrutura do senhor-e-escravo representa uma extensiva perda de direitos que viola fundamentalmente e é contrária ao conceito do homem como um ser livre.
Do mesmo modo, reside na estrutura do senhor-e-escravo ou na existência de Estados-escravos uma violação do conceito do Estado livre. Nenhuma dessas organizações políticas – o Estado-senhor e o Estado-escravo – possui legitimação ou soberania suficientes. Assim, pela perspectiva de Hegel, o colonialismo moderno não pode ser considerado racional. Ele é, como a antiga escravidão ou o posterior sistema de servidão, apenas direito positivo, que inclui a extensa perda de direitos humanos e opressão inumana de muitos atores.
Nas palavras de Hegel: sob a cruz dos espanhóis, muitas gerações e povos da América foram assassinados; os ingleses cantaram músicas de agradecimento em ocasião da devastação da Índia; todos “crimes pavorosos”. A escravidão é “algo histórico – i.e., enquadra-se, pertence a um momento anterior à razão”. Em seu status de escravo, o homem não é reconhecido “em seus ‘valores infinitos’ e seus ‘direitos infinitos’”. Ele tem, por isso, o direito de, a qualquer momento, quebrar suas correntes.
A fundamentação teórica dessa argumentação hegeliana reside em pensar o reconhecimento dos Estados especiais no âmbito do direito internacional – na terminologia de Hegel: direito constitucional externo, de que trata nos Princípios da Filosofia do Direito §§331-339. Seria decisivo aqui, particularmente, o §547 da Enciclopédia de Hegel e o discurso do “mútuo reconhecimento dos povos livres”, bem como a referência, localizada em um parêntese no §430 da Enciclopédia (e nos subsequentes §§432-437), do “princípio de mútuo reconhecimento”. Isso inclui o tratamento da questão da colonização (§248 da Filosofia do Direito): a sociedade burguesa tem, em si mesma, a dinâmica do lucro, e é incapaz de resolver internamente os seus problemas substanciais, especialmente o crescente vão entre riqueza e pobreza, sendo por isso “impulsionada para fora de si”. Uma forma disso se dar é a colonização operada “sistematicamente” pelos Estados, em decorrência de quê as colônias, enquanto Estados-escravos, não possuem os mesmos direitos que o Estado-senhor.
É isto que Hegel vê como o fundamento para as guerras de libertação e emancipação serem entendidas como formas de “luta por reconhecimento”. O processo de reconhecimento é decisivo: “A libertação das colônias se comprova como sendo da maior vantagem para a metrópole, assim como a libertação dos escravos é da maior vantagem para o senhor”. Assim, a acusação de que Hegel seria colonialista demonstra-se sem fundamento. tradução Nina Auras
Klaus Vieweg é professor da Universidade de Jena e autor de Pensamento da liberdade: linhas fundamentais da Filosofia do Direito (EDUSP)
(Publicado originalmente no site da revista Cult)
domingo, 1 de novembro de 2020
Exclusão crônica
Paulo Roberto
A caminho de casa, o cronista para num bar. “Na realidade estou adiando o momento de escrever”, confidencia ele, íntimo do leitor. “Gostaria de estar inspirado”, lamenta-se, numa das habituais e charmosas digressões de um gênero que ele mesmo define, linhas depois, como “perseguição do acidental”. Pensa no Manuel Bandeira de “O último poema” e, resignado, entrega os pontos: “Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica”.
“A última crônica” saiu na Manchete em janeiro de 1963. Criada dez anos antes para concorrer com a Cruzeiro, a revista misturava imagens exuberantes, pitadas de sensacionalismo e, ingrediente indispensável à época, um respeitável time de cronistas. Fernando Sabino, nosso torturado autor, era parte de um elenco que incluía ainda Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Henrique Pongetti. E, naquele dia sem inspiração, deixou que seu olhar pousasse realmente fora do que era familiar a ele e seus companheiros de ofício: “Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se”, escreve, encontrando seu “assunto” numa mesa em que também está “uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre”.
A família dos “três seres esquivos” está desconfortável. A mulher “suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali”, e espera o pedido “vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom”. Em torno de uma fatia de bolo e um refrigerante, os três balbuciam um “parabéns pra você” e a criança sopra três velinhas usadas, trazidas pela mãe. “A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo”, observa. “A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo.”
Depois de um tempo, cruzam-se o olhar do cronista e o do homem negro. “Ele se perturba, constrangido”, escreve Sabino, “vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso”. E aí o cronista faz seu milagre cotidiano, eternizando um efêmero sem arestas: “assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso”.
Espelho
Sob a rubrica “Aventura do cotidiano”, Sabino registra como extraordinária, digna portanto de seu olhar, a presença de negros onde não se supunha estarem e o fato de lá estarem à toa, como qualquer outro frequentador, preparando-se para “algo mais que matar a fome”. Deslocada no bar da Zona Sul carioca, a família também o é na crônica. O gênero que costuma ser festejado como uma das melhores expressões de um Brasil otimista e pacificado das décadas de 1950 e 1960 faz jus à fama pelo que mostra — e pelo que ignora. A crônica é sem dúvida espelho dessa sociedade, mas também é um dos tijolos que a sustentam, é reflexo e argamassa de uma divisão social implacável em que ao negro é permitido o protagonismo eventual na música, no esporte ou em um ou outro concurso de beleza. Na literatura, nem pensar.
Em abril de 1950, ano eleitoral que terminaria com Getúlio Vargas no Catete, Emanuel Vão Gôgo declarava nas páginas do Cruzeiro sua plataforma política. Além de garantir o direito de greve e da prisão perpétua dos grevistas, a criatura mais célebre de Millôr Fernandes promete avanços: “será incrementado o racismo, à semelhança do que se faz em países muito mais adiantados”. Quando abordava o tema, a revista mais vendida do Brasil em geral tratava-o como problema dos outros — e, como sugere o sarcasmo de Millôr, o que vinha de fora costumava ser sinônimo de progresso num país que acreditava viver seus golden years.
Entre os conselhos pedestres de Maria Teresa e as teses de Freyre, a crônica funcionou como anestesia para as dores da classe média branca
Ainda nas páginas da Cruzeiro, Maria Teresa, titular da coluna “Da mulher para a mulher”, declara no consultório sentimental a opinião cristalina dos que se julgavam livres de preconceito. Respondendo à singela angústia de Sidney — “Não consigo uma namorada” —, fala-nos um pouco mais do consulente. “Você está com complexo de inferioridade por causa da cor”, observa ela. “Não diga que é moreno. É um pouco mais do que isso. Admita essa verdade como ponto de partida”. Citando Machado de Assis e José do Patrocínio como exemplos de homens que brilharam por mérito próprio, conclui: “E esqueça esta questão de raça. Estamos num país onde não há racismo. E nem poderia haver, pois todo bom brasileiro deve orgulhar-se de ser o que é, isto é, descendente de brancos, pretos e índios”.
A atualidade de “Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos
Entre 1948 e 1967, sempre que era possível, Gilberto Freyre fazia da coluna “Pessoas, coisas e animais” uma tribuna de defesa de sua tese da “democracia racial”. Incluindo-se entre “velhos adversários do preconceito racial”, Rachel de Queiroz vira e mexe voltava ao tema em sua prestigiada “Última página”. Em 1961, a cronista que tanto exaltava a Lei Afonso Arinos, que criminalizava o racismo, tinha entre suas aflições as atitudes afirmativas que resultavam no improvável “racismo reverso”. “Numa verdadeira democracia racial”, escreve ela em “A cor”, “não há como a gente se preocupar com a cor ou a origem racial de qualquer concidadão; formar grupos separados de negros é tão errado quanto admitir grupos isolados de brancos. Ninguém é branco nem ninguém é preto, tudo é brasileiro.”
Entre os conselhos pedestres de Maria Teresa e as teses de Freyre, a crônica funcionou, e muito bem, como anestesia para as dores da classe média branca. Em “Cores do preconceito”, publicado em agosto último no Portal da Crônica Brasileira, Humberto Werneck, editor do site e também editor sênior desta Quatro Cinco Um, faz um apanhado de como o racismo figurou nos textos de Rubem Braga, Otto Lara Resende e, é claro, Rachel. Todos eles intelectuais humanistas, sensíveis às causas sociais, em algum momento se pronunciaram sem rodeios em defesa da população negra, ainda que as dores do racismo sejam tematizadas mais na clave da empatia do que da emancipação.
Não é à toa que, em 1953, numa sofisticada análise que remete às origens da crônica ao familiar essay inglês, Vinicius de Moraes imagina o corpo humano como metáfora do jornal, estando o “coração” reservado ao gênero que também praticava. “Matéria tácita de leitura que desfoca o leitor da tensão do jornal e lhe estimula um pouco a função do sonho”, a crônica é, portanto, cordial, pouco afeita às determinações frias da objetividade e infensa às discussões mais indigestas — o fígado, na mesma metáfora, é o lugar que caberia ao “artigo de fundo”. A promessa de felicidade de Vinicius encerra um princípio básico: as amargas, não.
Em seu auge, a crônica terminaria por cristalizar-se na fórmula que, décadas mais tarde, dela deduziria Antonio Candido: “um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia”. Ainda que envolto em fumos metafísicos e candidato à atemporalidade, o “fato miúdo” lembra que o Brasil dos cronistas é muito, muito pequeno. Não é diverso na geografia, no ponto de vista ou na raça. Com as exceções de Rachel, Dinah Silveira de Queiroz ou Clarice Lispector, a crônica é assunto de homem, de homem branco, que vive de frente para o mar, no conforto da classe média alta carioca. No lirismo de crepúsculos e paixões, o “brotinho” não é uma jovem negra, como negro não é aquele que, à beira da piscina, afoga as mágoas num gim. No clássico de Paulo Mendes Campos, o amor acaba em todos os lugares que se possa imaginar, sempre circunscritos ao exíguo perímetro social, imaginário e afetivo de seus protagonistas.
Sendo a crônica em geral um ramal auxiliar, o ganha-pão de romancistas e poetas com obras a zelar no mundo da “alta literatura” — Rubem Braga continua até hoje a exceção —, não espanta que o gênero se consolide alheio à autoria negra. João do Rio, um dos mais notáveis cronistas da história, morre em 1921; Lima Barreto, no ano seguinte. Ambos adentram a década de 1950 esquecidos — ainda que em 1956 Francisco de Assis Barbosa publique a obra completa de Lima, os dezessete volumes de capa dura asseguram ao autor de Os bruzundangas um lugar perto do cânone e longe do grande público.
Sendo a crônica o ganha-pão de romancistas com obras a zelar no mundo da “alta literatura”, não espanta que se consolide alheia à autoria negra
Na minuciosa pesquisa que resultou em Silêncios prEscritos — estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006) (Malê), Fernanda Miranda registra que entre 1923 e 1944 não se publicou romance de nenhuma autora ou autor negro, intervalo dramático e eloquente que se repetiria entre 1951 e 1963. Em 1960 Carolina Maria de Jesus entra em cena com Quarto de despejo, na melhor das hipóteses catalogado precariamente como “documento sociológico” e, na pior e mais corrente, relato de um mundo exótico e distante.
Exceção
A exceção que por muito tempo passou batida é Antonio Maria. Em fins de 1964, quando morreu, aos 43 anos, ele não era identificado e tampouco se identificava como negro. Mais de uma vez, e com insistência, leituras nostálgicas desse Brasil dourado listam como características negativas de Maria a corpulência e a raça. Sempre suado, mal-ajambrado em ternos amarrotados, admira a certo tipo de narrador que o compositor e cronista tivesse sucesso com mulheres, por inconcebível que fosse um galã gordo e mulato, termo que destaco para marcar o caráter pejorativo da descrição. É esse o Antonio Maria que aparece na dissertação de mestrado recém-defendida pelo editor e pesquisador Guilherme Tauil na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (USP).
Vento vadio, título da pesquisa, homenageia o livro que Maria planejou e que, derrotado por sua insegurança e indisciplina, jamais publicaria. Dentre seus colegas de ofício, ele foi o único a não resgatar suas crônicas da efemeridade dos jornais e revistas. O sentimento de exclusão não era estranho ao autor de “Ninguém me ama”, que escreveu versos como “Sou uma coisa infeliz/ Que num copo de uísque disfarça alegria” ou “Ninguém é mais triste do que eu”. Na superfície, a história de Maria é a de um “cardisplicente”, sempre interessado em quem não gostava dele, sempre flertando com o abismo. Mas me pergunto se não estaríamos aí diante de uma história em que os padrões de infelicidade advêm da exclusão de diversas formas e se refletem uns nos outros: pernambucano pobre entre gente bem posta do Sudeste, gordo entre esbeltos, atrapalhado entre elegantes, radialista criado no esporte entre cronistas curtidos na literatura, cronista entre escritores reconhecidos, letrista de música popular entre poetas e romancistas. E, talvez à sua própria revelia, negro entre brancos.
Didier Eribon parte de sua trajetória para analisar a despolitização de um mundo
Em “Summer Jacket”, crônica pinçada na revista A noite ilustrada e inédita em livro, Tauil analisa um episódio exemplar. Numa festa de luxo em que o smoking era exigido, Maria aparece de summer jacket e, em seu paletó branco, é logo confundido com os garçons. “Sofria tanto aquele apoucamento, horas de lentos minutos, sem um pensamento ou lembrança na cabeça, gosto de passa velha na boca, suor na testa”, escreveu Maria, talvez por enxergar com uma nitidez mais comum em nossos dias que o mal-entendido não se devia apenas a uma transgressão do dress code.
Maria não é, no entanto, uma exceção virtuosa que confirma a regra da exclusão. Num outro achado da pesquisa, Tauil lembra que, em 1957, o cronista aparece de forma pouco lisonjeira na Introdução crítica à sociologia brasileira, de Alberto Guerreiro Ramos. No apêndice “Patologia social do ‘branco’ brasileiro”, o combativo intelectual negro analisa as formas como o racismo se entranha na sociedade. E cita a coluna “Mesa de pista”: “Nortista (sic) é também um inteligente redator de O Globo, jornal em que escreve diariamente uma crônica sobre a vida noturna do Rio. Na edição de 18/1/55 daquele jornal, o referido redator publica a fotografia de uma artista de night club, seguida desta legenda: ‘A moça de hoje — Esta é a bonita bailarina negra, Nilza, do elenco do Béguin. Bela de corpo e de cara. Dela se poderia dizer: ‘Isso em branco…’”.
Entre os jardins suspensos da mítica cobertura de Rubem Braga, em Ipanema, e as ruas em que Antonio Maria minerava personagens e casos do “Romance Policial de Copacabana”, a crônica cumpriu e muito bem a função de suavizar a dureza da notícia com apurado tempero literário. Nos anos 1970, o título de uma excepcional série de antologias publicada pela Ática definiu-a com precisão: trata-se de um gênero Para gostar de ler, mas que também merece atenção pelo que deixou de mostrar.
O colunista escreve quinzenalmente na revista dos livros.
(Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)
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