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domingo, 22 de novembro de 2020

Guia de Guimarães Rosa, vaqueiro narra viagem que inspirou "Grande Sertão: Veredas"

 


Guia de Guimarães Rosa, vaqueiro narra viagem que inspirou ‘Grande Sertão: Veredas’
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Guimarães Rosa, no Sertão de Minas Gerais, 1952 (Foto: Eugênio Silva/ O Cruzeiro)

 

Da viagem que Guimarães Rosa fez pelo sertão mineiro, em maio de 1952, ficaram algumas lembranças na memória dos oito vaqueiros que acompanharam o escritor. Com a morte de Manuelzão, em 1997, acreditava-se que o legado da viagem havia se perdido por completo. Engano. A Cult viajou até a cidade de Três Marias, a 230 quilômetros de Belo Horizonte, e obteve o depoimento de João Henrique Ribeiro, o seu Zito, vaqueiro que acompanhou o escritor em sua viagem por mais de 40 léguas sertão adentro.

Pesquisando os arquivos de Rosa, surpreendentemente, o que se descobre é que Zito foi a grande fonte do escritor, sendo citado em suas anotações como o mais esperto dos vaqueiros que conheceu durante a viagem. Guia e cozinheiro da tropa, Zito ia à frente e era quem conversava com o escritor durante quase todo o tempo, dedicando boa parte de suas horas às indagações e dúvidas de Rosa.

Todas as noites, encerrado o trabalho dos vaqueiros, Zito sentava-se à beira da fogueira e escrevia versos que narravam o que havia acontecido durante o decorrer do dia. Esses versos foram registrados nas cadernetas de viagem de Guimarães Rosa, que se encontram atualmente arquivadas no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP), em São Paulo. Aos 74 anos, morando numa casa muito simples no interior de Minas Gerais, Zito guarda com orgulho os jornais da época, os quais trazem sua foto ainda jovem ao lado do escritor. Com memória e inteligência assustadoras, seu Zito conta alguns trechos da viagem que marcou a obra do escritor e que está repleta de muitas outras histórias.

CULT – O senhor se lembra do dia em que o Rosa chegou para a viagem?

Seu Zito – Lembro, foi em 16 de maio de 1952. Foi aquela grande confusão. Foi muita gente ver. O povo achava que o Rosa era Cristo. Ele chegou lá uma tarde e no dia seguinte o padre chegou também. A fazenda era do primo dele, o Francisco Moreira. Eu saí da Sirga (fazenda localizada no município de Três Marias), fui em Araçaí e busquei a besta que ele tá montado na foto que saiu no jornal, que chamava Balalaica. O arreio também foi eu que busquei. Eu trouxe umas vinte rês, uma novilha e essa besta. O Rosa veio num jipe de lá de Araçaí. Ele veio pra Belo Horizonte, pra Sete Lagoas, lá pegaram esse jipe e ele veio mais um compadre de Chico Moreira. Ele chegou três dias antes de sair a boiada pra conhecer um pouco mais.

Lá na Sirga mesmo, tinha um lugar em que a água ia batendo no barranco, tem até hoje esse lugar, só que fizeram uma ponte. E lá tinha um sabiá cantando e o Rosa ficou encantado. “Que qué isso São Pedro? Cadê a chuva? Que que há São Pedro?”. [imita o passarinho cantando]. O sabiá tava pedindo chuva, ele falava direitinho. Sabiá é aquele marronzinho. O Rosa ficou entusiasmado com aquilo. Aí, nós seguimos e encontramos com uma dona, ela era muito bonitinha, era uma comadre minha, tava mais nova, vestindo uma sainha muito curtinha. E Rosa ficou olhando pro lado dela e eu falei: “Rosa, isso não é da sua conta não”. (risos) Aí ele brincou, deu risada, e tudo. Tinha umas cachacinhas, mas ele não tomou não, ele não gostava. Eu tomei. Aí subimos e fomos pra casa, passando por uma capelinha. Tinha um horror de gente já arrumando ela, que ia ter que levantar o mastro da festa.

Então houve uma festa antes da saída da boiada?

Teve sim uma festa, no outro dia. À tardinha nós fomos embora. Saímos e fomos nos gerais. É lá que falam que teve uma garrafa com biscoito. Não teve garrafa com biscoito nenhum, eu que estava com ele. Quando foi no outro dia, o padre chegou e teve a missa e ele foi à missa. Eu fiquei ocupado com a festa e não lembro com quem que ele saiu depois. Quando foi no dia seguinte, teve a festa, ele dançou e gostou. Ele fazia tudo quanto há, fazia direitinho. Tinha de tudo, nós dançamos, o Rosa dançou, tinha comida, o padre era muito bom, teve missa, levantou o mastro, era procissão. Nessa época aí era um festão, era só isso que tinha.

E havia sempre essa festa?

Essa festa começou logo que a mãe do Manuelzão morreu. Fazia todo ano, naquela casa que tinha uma cagaiteira (árvore típica do cerrado). Primeiro era só a missa. Lá onde o Manuelzão construiu a capelinha, onde tá enterrada a mãe e a primeira esposa dele. Lá tem um cruzeirão grande, fui eu que mandei fazer, com um compadre meu, o Chico Barbosa. O Rosa gostava muito dele também, que ele tocava rabeca. Tudo isso era uma coisa que ninguém pensava. Passou muito tempo sem ninguém mexer nessas histórias. Sempre lembro de muita coisa, mas às vezes esqueço de tudo.

E aí quando foi no outro dia, terminou tudo. Foi no dia 19 que nós saímos pra viagem. Eu juntei o gado e fui apartar. Tem um lugar na história que fala: “na apartação do gado tinha um velho Santana”. Ele tomou um coice, tinha um boi muito bravo, ele chegou o ferrão no boi e o boi deu um coice e ele caiu. Aí eu falei: “traz um pouco de vinagre com rapadura”. Isso tá escrito no jornal e nos cadernos do Rosa. Ele tomou o chá e melhorou. Não tinha remédio, era tudo inventado aqui. Papaconha, cidreira… esses eram os remédios. Até hoje a gente toma, contra gripe.

Tudo é por Deus, não por homem, eu, você, a moça não. É por Deus. Deus é que criou isso tudo. Aqui tem um outro remédio chamado tiú. Só acha ele na sexta-feira da Paixão. Você pode andar o campo inteiro e você não acha não. Na sexta-feira ele amanhece todo cheio de folha. É uma batatinha assim ó. É um ótimo remédio pra gripe, pra dor por dentro. É o remédio que a gente tinha pra curar. Você arranca ele e faz um chá. Aqui não tem não, é só na Sirga que tem, nas veredas, e só lá que eu conheço.

Quais eram as fazendas e como foi a passagem por elas?

Na saída da boiada tinham dezessete vaqueiros, porque a boiada sai brava, correndo, é pra evitar uma ribada. Quando chegou perto de uma ponte, lá em cima, saindo da Sirga, voltaram oito e seguimos em nove. Saiu da Sirga mesmo. Lá era a casa do Manuelzão. Ele era funcionário do Chico Moreira. Nós que construímos tudo aquilo. De lá fomos pra Tolda, uma fazenda bonita, onde passa um riachinho dentro da cozinha. Na Tolda dormimos na casa de uma senhora chamada Iara Tancredo. Tem a casa até hoje, e onde era o quarto hoje é uma sala.

Depois da Tolda, indo pra Andrequicé, tinha uma vereda. Aí o Rosa viu uns passarinhos e de brincadeira pediu pra eu dar um tiro de revólver. Isso tem no livro Tutaméia. Lá em Andrequicé, na casa de Pedro Mendes, ele dançou de novo. Era uma casa de assoalho velho, uma casa velha, um curral bonito e tinha uma vitrolinha de corda. O Rosa gostou muito. Depois fomos pro Catatau e eu pedi pra arrumar uma cama pra ele, e ele dormiu melhor. Era colchão de palha, tudo feito na roça, no chão. Saímos do Catatau e fomos pro Riacho das vacas. Também ia dando cama.

Depois do Catatau nós fomos no Meleiro. Lá o velho falou: “Cê vai jantar comigo”. Tinha frango, nós comemos arroz, feijão, carne. Não tinha mais nada. Ah, tinha também um angu de muitos dias, descascava e comia aquilo. Mas o Rosa não quis comer não. “Se eu comer angu que mosquito passeou, barata…”, ele disse. Ele até inventava muita coisa. Aí fomos pro Barreiro do Mato. Lá o Rosa dormiu dentro de uma forma de rapadura. Depois passamos na fazenda do Juvenal, na Fazenda Ventania, Riacho da Areia, que era de um paulista. O Rosa jantou bem. Lá tem até hoje o prato em que o Rosa comeu. Você pede pra Dona Antonieta, mulher do Juvenal, e ela tem o prato, o garfo, a colher, tem a cama, tudo guardado. E o Rosa ficou satisfeito demais. Comeu, comeu.

Juvenal tinha um filho chamado Geraldo, que mora em Mascarenhas (pequeno distrito da região de Curvelo), tava doente, de cama mesmo. E aí o Rosa falou: “Deixa eu ver ele”; e falou: “Ele tá com febre, ele tá com sarampo. Você pega umas folhas de laranja e faz um chá”. O Rosa olhou no bolso da camisa, tinha um Melhoral e deu pra ele. Tomou, em dois dias cortou a febre e o rapaz amanheceu bom. O sarampo saiu. Chá de folha de laranjeira. Isso tudo tá escrito.

Aí quando saiu no outro dia eu fui na frente da fazenda de um outro primo dele, o doutor José Saturnino, já chegando em Cordisburgo (cidade natal do escritor). Quando você passa a igrejinha do Rosário você vira à esquerda, antes da entrada que vai pra Gruta do Maquiné. Cheguei na fazenda, chamei, saiu a dona lá. Eu falei: “Tô aqui pra arrumar a pousada, que o Rosa vem aí” “Ah! Mas eu não quero, não estamos interessados, estamos com muito boi”, a dona falou. Era mentira. Eles tinham medo de “afetosa”. E olha só: dali ele podia ter ido pra casa do avô dele, ali pertinho, mas não quis. Tomava um banho, tudo direitinho… Dormia. Mas ele não quis fazer isso, não foi embora, acompanhou a gente todo dia.Aí eu fui na frente outra vez. Cheguei numa fazenda e pedi um frango. “Frango não tem, eu tenho só uma galinha velha”, disse a dona. A dona pegou pra limpar, arrumou tudo, pois pra cozinhar, sentamos pra comer, mas tava muito duro. O Rosa tomou só o caldo. Dormimos, saímos no outro dia e chegamos num lugar que chama Toca do Urubu; tem uma pedreira de muitos metros de altura, e lá mora urubu direto. Chegando nesse lugar, encontramos com o pessoal do Cruzeiro (Álvares Dias e Eugênio Silva . repórter e fotógrafo, respectivamente, do jornal O Cruzeiro que registraram parte da viagem de Rosa pelo sertão). Fizeram foto minha com o berrante e tudo.

O senhor era bom de berrante?

Ah, eu era bom. Batia, todo mundo suspirava. Às vezes eu batia o berrante e dizia. “Eh, não suspira não que eu vou e volto”.

Depois de Araçaí, o Rosa foi embora?

Entregou a boiada em Araçaí, numa fazenda pertinho de onde hoje é a cidade. Tinha uns currais, nós tiramos mais retratos com ele no curral, eu lacei uma vaca, peguei ela e passei a corda pelo pescoço e amarrei no rabo. Fazia tudo pontuadinho, porque tinha esperteza, tinha ligeireza. Eu cantava verso, tudo direitinho. Poesia é pra ser poeta, poeta não. Deus dá o dom pra pessoa, aquele dom ninguém pode tomar. Só agora com a doença. Ia na lapa do Bom Jesus e via um livro e comprava, comprava outro e guardava. Lia e aprendia. Se eu lesse duas vezes, eu já guardava. Depois, chegando em Araçaí eu fui pra casa do meu pai; eu, o seu Manuel (Manuelzão) e o Bindóia (morto em 98). Dormiram e noutro dia ele pegou um jipe com a carreta e foi embora.

O senhor era o guia da tropa. Qual a função do guia?

O guia vai na frente, que ele sabe da distância. Ele sabe quando é descida, dá sinal pro detrás que e pro boi não correr. Se você sabe que tem um córrego, você dá sinal pra afinar o gado e ele passar na água e não sujar demais pros que vêm atrás poder tomar. O guia fica avisando o que vai acontecer. Você é motorista, quando vai fazer uma curva você já dá um sinal, só que com o gado é com a mão. E o gado acostuma. Chega numa porteira, faz um sinal e o outro já sabe que ali é uma porteira. Tudo que você faz é com a mão, tudo sem gritar. O guia vai na frente, quando o gado chega já está o pasto arrumado, o fogo tá aceso. Já vê se a cerca tá boa, se não tem buraco.

O senhor também era cozinheiro, além de guia. O guia é sempre o cozinheiro?

Não são todas as pessoas, mas eu, durante o tempo que eu viajei com gado, em muitas boiadas eu fui cozinheiro. Eu fazia aquele entalagato. Foi o Rosa que colocou esse nome. Dizia que era comida ruim.

Então ele não gostou da comida do senhor?

Não, aquilo era só pra fazer graça. Mas não tinha nada. Só tinha arroz, feijão e carne. Frango alguma vez. Mas sempre era carne seca, carne de jabá. Eram nove pessoas, eram nove pedaços de toucinho e nove de carne. E tinha também farinha.

Qual era o nome dos outros vaqueiros que acompanharam a viagem?

Era o Tião Leite, o Santana, o Sebastião de Jesus, o Gregório, o Manuelzão, o Bindóia, eu e o João Rosa. Tem o Aquiles também, um bom violeiro. Ah, e um rapazinho que não é falado. Ele não saiu na reportagem, era menino, mas acompanhou todos os dias, devia ter saído. Tinha uns doze anos. Falado são sempre os oito, nove com o Rosa. Nós levamos trezentos e sessenta bois. Só boi grande. Eu batia o berrante e eles seguiam.

Era o senhor que ia conversando com o Rosa?

Conversei durante o tempo todo.

Sobre o que o senhor ia conversando com ele?

Falava tudo quanto era bobagem. Inventava as coisas muito bem pra conversar com ele. Às vezes não tinha mais assunto. Falava de mulher, de moça bonita. Falei muita bobagem pro Rosa e ele escrevia tudo. Eu lia muito livro, sabia tudo de cor, mas não sei mais nada. Sabia tudo quanto é bestagem.

O Rosa foi anotando tudo isso?

Tudo, ele escreveu tudo. A sucupira ele anotou, era uma baita de uma árvore. Tinha a flor roxa e a flor amarelada; ele anotou qual a diferença que tem. A diferença da madeira. Tudo tá escrito na caderneta dele.

E os versos que o senhor fez? Eram feitos quando?

Era feito durante a viagem, de noite. O que passava no dia, eu escrevia de noite.

Que tipo de história o Rosa gostava mais?

Verso, ele gostava muito de verso. Mas não aprendia nada… (risos). Eu sabia tudo de cor. Ele anotava tudo. Depois que eu adoeci, a memória ficou fraca e esqueci tudo. Depois que eu adoeci, esqueci quase tudo.

Como era o Rosa, seu Zito?

Era uma pessoa excelente, brincalhão. Ele era tão simples que ele veio do Rio e não trouxe nem gilete, nem estojo. Naquele tempo não tinha “prestibarba”, era estojo. Durante todos os dias ficou sem fazer a barba. Eu tinha, mas ele não falou nada e eu não levei. Até hoje a minha barba é pouca. Pra quem tirava a barba toda manhã, ficar dez dias sem tirar, né? A cara ficou vermelha. Mas ele era mesmo muito simples. E na viagem não podia chamar ele de Dr. João. Era Rosa, vaqueiro Rosa.

E ele sofreu muito durante a viagem?

Não tinha garrafa térmica, coava café no bule, tomava ali, e copo de vidro quase não tinha e ele não trouxe. Na beira da estrada não tinha nada, você chegava assim pra comprar um frango, pra limpar, pra picar, mas precisava ter um vasilha. Ele comeu muitos dias feijão de manhã, feijão com carne seca cozida no meio e toucinho. Separava o da janta e tomava um gole de café. À tarde comia outra vez. Se ele tivesse pensado, podia ter trazido uma garrafa, deixava na garupa dele, ué. Podia ter trazido uma marmita. Também não tinha banheiro por aqui. De tarde a gente ia tomar banho no córrego. A água era longe, dormia às vezes sem tomar banho. Não tinha água, que banho todo dia não tinha jeito. Fazenda nenhuma tinha um banheiro. A comida era um pouco pesada pra ele que não tinha costume. Mas o que ele queria era aquilo…

E na hora de dormir?

Tirava sela, lavava o cavalo, jogava ela no chão e era a cama. Forrava ela no chão, põe o pelego, a coberta, a capoteira, você punha a roupa e virava o travesseiro. Era tudo bem arrumado.

Como o Rosa dormia, era assim?

Mesma coisa, ele deitava em qualquer lugar. Dormiu até em cima de espiga de milho. E ainda que à noite ele gemeu… “Você deita igual às galinha quando tá botando ovo”, eu disse. Ele não sabia, amanheceu com um caroço na costela. Dormiu também na tábua de rapadura. Tirava os trem até dar o tamanho dele, botei capim, tudo foi eu que fiz. Chegava na casa de Dona Benedita, na casa da Dona Rita, eu pedia cama pra ele. Eu tinha entusiasmo com o povo. Não deixavam eu sair de manhã sem fazer um engrossado, que é um ovo que você frita na água, sem gordura, põe a farinha, cebola e come. Aquele trem é forte. Comia, ficava bem o dia todo.

Rosa comentou alguma coisa sobre o que faria com o material da viagem, sobre o Grande sertão: Veredas, por exemplo?

Aquele livro não foi escrito com o assunto dessa viagem. Aquele livro foi uma viagem que ele fez pra Fortaleza, numa saída de boiada. Foi na saída. E aquele Riobaldo foi alguém que contou pra ele e o resto ele inventou. Vou te contar uma coisa, você põe uma coisa que você acha que dá certo naquela história, então inventa o resto. É assim que o Rosa fez. O que Rosa escreveu foi dito por nós. Ele não sabia daquilo. O Rosa saiu de Cordisburgo rapaz novo, foi fazer medicina, participou daquela revolução de 32 e abandonou a medicina pra ir pro exterior. Aí quando ele morreu, vieram outras pessoas pra confirmar onde o Rosa passou. Mas ele inventou o resto.

E a história de que o Rosa conversava com os bois?

Ele conversava com o boi mesmo. Conversava toda a tarde. Quando chegava no pouso, eu que já tinha coado café, já tinha desarreado a besta dele, o meu burro, tudo já estava arrumado. Então ele vinha e falava: “meu boizinho tá cansado, tá com a barriga vazia…” Todo dia ele conversava, o boi era mansinho. Foi tirado retrato dele passando a mão no boi, lá no curral da fazenda. Mas eu nunca vi nenhum. Era Tarzan e Cabocla. Cabocla era uma vaca preta que eu furei o nariz dela. Ah… Se o boi falasse, a gente morria. Ele só entende o nome. O boi entendia e olhava pra ele.

Ter encontrado o Rosa mudou a vida do senhor?

Vem sempre um povo aqui pra conversar, eu converso. Mas eu não lembro muita coisa. Se for uma pessoa que eu gosto, eu lembro, se não for, eu não tô lembrado de nada. Mas eu gosto de falar do Rosa. Ele queria me levar pro Rio de Janeiro, ele dava lugar pra eu morar, ele pagava meu estudo. Mas na época eu preferi não ir, queria era ser vaqueiro.

O senhor fica orgulhoso quando alguém o procura?

Sinto muito orgulho, é uma coisa muito bonita. Eu sinto alegria em falar das coisas do Rosa. Em maio eu vou pra Sete Lagoas e vou mandar fazer outro óculos pra mim e aí eu vou voltar a ler de novo os livros dele, do Guimarães Rosa.


JOÃO CORREIA FILHO é fotojornalista especializado em Jornalismo Literário.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: A luta entre civilização ou barbárie chega à Guatemala


No dia de ontem, sábado, milhares de manifestantes saíram às ruas da Guatemala para protestar contra algumas medidas aprovadas pelo congresso daquele país, que incluem cortes orçamentários para setores importantes, como saúde, educação e direitos humanos. Acintosamente, os parlamentares também aprovaram, neste mesmo momento, medidas que ampliam seus benefícios, numa profunda indiferença às dificuldades enfrentadas pela população. Num dia de congresso vazio, alguns desses manifestantes se dirigiram àquela casa legislativa e atearam fogo em suas dependências. O que acontece neste país da América Central é reflexo da adoção do receituário ultraliberal, potencialmente danoso aos interesses dos segmentos sociais mais fragilizados, perifericamente inseridos na dinâmica econômica, sem assistência à saude, com aposentadorias comprometidas, alijados do consumo de bens, submetidos às condições precárias de subsistência. Isso não fosse o bastante, o país também sofre as consequências de desastres naturais, que atingem não apenas o país, mas seu vizinho, como a Nicarágua.  

Num contexto como este - de absoluto desprezo pela democracia substantiva - a democracia política fica sensivelmente comprometida, daí esses arranjos autoritários que estão se proliferando pelo mundo, em particular no continente latino-americano, onde a democracia política sempre esteve sob constantes solavancos, vitima frequente de lideranças políticas populistas ou oligárquicas. Alejandro Giammattei foi eleito com uma plataforma política ultraliberal, alinhavado com o presidente norte-americano Donald Trump. Em seu primeiro pronunciamento após os protestos, prometeu que usará de todo o rigor legal para punir os infratores, numa demonstração inequívoco que está disposto a endurecer o regime.  

Os protestos na Guatemala juntam-se a outros tantos que estão ocorrendo no mundo, em contraposição a esta política autoritária e suicída, que depõe contra a civilização e a própria vida. A racionalidade ultraliberal é sinônimo de barbárie. Tudo indica que chegamos à fase mais cruel do capitalismo. Não por acaso, pensadores sociais mais consequentes estão formulando um conjunto de alternativas a este estágio infame, propondo uma alternativa pós-capitalista, que preserve a vida, o planeta, as sociabilidades, a sensibilidade, a subjetividade solidária, as possibilidade de convivência, pois, neste terreno pantanoso, estão sendo cevadas as sementes do fascismo, com sua plataforma racista, intolerante, mentirosa, destrutiva da alteridade. Tratamos aqui de uma patologia política, que só precisa desses "incentivos" para prosperarem.

Depois de dormir  sono político que produziu o monstro, finalmente, a humanidade parere ter se dado conta da gravidade deste momento politico que atravessamos. Um conjunto de ações insurgentes estão produzindo alguns resultados alvissareiros, como a derrota de Donald Trump nas eleições americanas; a decisão soberana do povo chileno, que, através de um plebiscito, decidiu pela formulação de uma nova constituição para o país; a vitoria de Luis Arce nas eleições bolivianas e, agora, os protestos pacíficos na Guatemala.    

    

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo


 

sábado, 21 de novembro de 2020

Michel Zaidan Filho: Teses equivocadas sobre as eleições municipais

Primeiro, transformar as eleições municipais em "fora Bolsonaro" e nacionalizar o discurso político do pleito". Isso chama-se oportunismo político e confunde ou quer instrumentalizar uma eleição para uma Prefeitura municipal em meio de fazer oposição aberta e franca a Bolsonaro. A agenda dessa eleição são os problemas comuns do cotidiano da população recifense: transporte público, educação púbica, saneamento e saúde pública, habitação, segurança etc. Se o candidato não tem propostas viáveis e factíveis para resolver esses problemas (mesmo que isso passe pela oposição à agenda de Bolsonaro), ele não está habilitado para exercer o mandato. mais ainda de uma prefeitura como a do Recife. Segundo, o programa politico-administrativo do candidato não pode ser uma mera colcha de retalhos (um bric-a-brac) das demandas dos movimentos sociais, por mais urgentes e importantes que seja. Este programa deve se constituir de uma linha comum das questões do cotidiano da população. Questões gerais e universalizantes. Isso não quer dizer que não haja espaço na agenda para questões específicas dos movimentos. Quarto, essa questão das demandas específicas e outras não se relacionam diretamente com as alianças para a conquista do mandato. Se faz eleição com santos, fiéis, irmãos , se faz com cidadãos e cidadãs de carne e osso. A questão são os compromissos assumidos pelo candidato, públicos e não tão públicos, que possam comprometer a agenda de mudança. Mas aí pesam os partidários e militantes da candidatura para garantir a fiel obediência ao programa estabelecido. Quinto, a tese de que a eleição municipal é uma prévia da eleição estadual ou nacional. Depende. Dado o caráter federativo do país, as alianças mudam, em cada nível de governo, as questões são diferentes e a própria conjuntura muda. Não se pode querer fazer dessa eleição municipal uma prévia da eleição estadual ou federal. Lembrar que das 3, a menos politizada é a municipal. A mais politizada (e plebscitarizada) é a federal. Não confundir as esferas. Vamos arregaçar as mangas e consolidar o que já conseguimos, ao invés de pré-julgar, sectariamente, o que sequer ainda é real e consolidado. É cômodo censurar um processo político em curso, urdido com tanta dificuldade. É mais fácil erguer uma igreja e fazer um movimento messiânico, com os irmãos e irmãs. Mas a política não é assim. Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.

Editorial: Casos de infecção e mortes por Covid-19 voltam a subir no Brasil.

Os casos e mortes por Covid-19 estão aumentando sensivelmente no Brasil, o que significa dizer que entramos firmes na segunda onda da doença, realidade já então enfrentada por países europeus e pelos Estados Unidos. Em alguns desses países, voltaram a ser adotadas medidas preventivas rigorosas, como as restriçoes de contatos sociais. No Brasil, a adoção de medidas do gênero ainda não foram implantadas, segundo comenta-se, em razão da realização das eleições municipais, que só terminam no domingo 29, quando do término do segundo turno. O fato concreto é que fatores políticos e econômicos estão impedindo que os governos estaduais adotem medidas mais duras para o enfrentamento dessa segunda onda da doença. O mais preocupanete é que em algumas praças estão sendo observadas a incidência de casos mais graves da doença, exigindo cuidados mais complexos, quando não, significando a morte do paciente. O Brasil nunca foi um bom aluno do lockdown. Desde o início, nunca atingimos as metas que estavam sendo previstas, o que poderia, naquele momento, ter evitado a propagação da doença, diminuindo sensivelmente o número de mortes. Se, para alguns grupos sociais essa observação é procedente, para aqueles grupos sociais periféricos, empobrecidos e moradoress de favelas é preciso fazer as ponderações específicas, uma vez que as condições de vida dessa gente interditam a adoção de alguns cuidados básicos. Vivem confinados em pequenos espaços físicos, não recebem água em casa com regularidade - para a higiene das mãos com sabão amarelo - precisam trabalhar de manhã para comer à noite. Principalmente no Rio de Janeiro, contingentes expressivos da população já vivem sob o comando de grupos milicianos que, na realidade, é quem determina o que pode e o que não se pode fazer. Se, por um lado, o toque de recolher pode ter sido saudável, pois vai ao encontro das restrições de contato social, por outro lado isso representou o definhamento de uma das fontes de financiamento de grupos milicianos, como a extorsão aos comercientes. Alguns deles foram obrigados a pagar pedágio mesmo com o comércio fechado. Em outros casos, foram obrigados a abrir a porta dos seus estabelecimentos comerciais por imposição das milícias. O lockdown não é necessariamente uma unanimidade. Segundo alguns analistas, apenas restringir os contatos sociais - embora seja uma medida importante - não seria o suficiente para conter o avanço da doença se não acompanhada de outras medidas, como a ampliação das testagens, por exemplo. O fato é que medidas preventivas deverão ser ampliadas no próximo mês, em razão do preocupante avanço da doença em todos os quadrantes do país, com maior ou menor incidência. As vacinas estão chegando, mas ainda há muitas controvérsias em torno do assunto. Por outro lado, até atingirmos a sua democratização, muitas vidas ainda serão ceifadas. A Covid-19 provocou um desarranjo gigantesco na economia em sua primeira onda, o que leva comerciantes e empresários a se colocarem contra um outro procedimento de lockdown radical. Isso não ocorre apenas aqui, mas em países europeus, onde foram registrados inúmeros protestos contra as medidas resritivas, com os manifestantes sequer tomando um cuidado primário, como o uso das máscaras. Aqui em Pernambuco, quando sou obrigado a deixar a concha - por dever de ofício - costumo observar muita gente sem o uso das máscaras. De fato, seu uso causa um certo desconforto, mas, certamente, é um desconforto menor do que os procedimentos médicos adotados naqueles pacientes de Covid-19 em estágio grave, quando a doença costuma atingir a capacidade respiratória do indivíduo. Difícil saber como os nossos govenrnates sairão dessa saia justa. Mortes, hospitais abarrotados de gente doente, e as reticências naturais às medidas restritivas de contato social, seja por motivações culturais, seja por motivação econômicas. Este é o período do ano em que, normalmente, começam o planejamento para as festas de réveillon, seguida das férias de janeiro. Quem tiver a curiosidade de pesquisar os preços de hospedagem neste período em praças conhecidas - como Tambaú, Fortaleza, Rio de Janeiro - vai se deparar com a prática de valores que não indicam, de forma alguma, uma diminuição desses valores em razão da baixa procura. Os preços estão nas alturas. O mesmo se aplica aos valores de viagem de avião. Para esses setores parece que nada está acontecendo e, possivelmente, essas festas não serão proibidas em razão da pandemia, o que seria uma grande temeridade. Espero que prevaleça o bom-senso, mesmo a contragosto de alguns irresponsáveis ou negacionistas. Salvo melhor juízo, apenas o governo consequente da Bahia já teria anunciado a não realização do tradiconal carnaval.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Editorial: Eleições do Recife. Chamem o Przeworski.

Przeworski é um cientista político polonês especialista em estudos sobre a democracia. Por conseguinte, as motivações que definem o voto do eleitor está entre as suas preocupações. Até recentemente,lançou um livro muito interessante sobre os problemas enfrentados pelos regimes democráticos na atualidade, frequentemente assediados por expedientes autoritários e fascistas. Mas, interessa aqui, saber o que leva um eleitor a votar neste ou naquele candidato, consoante uma série de constrangimentos, seja de natureza pessoal, seja em relação aos fatores externos, que também podem influenciar suas decisões. Hoje o eleitor sofre uma influência forte do marketing político, das pesquisas de intenção de voto, da estratégia adotada pelos marqueteiros, dos gastos de campanha, qua variam dependendo da capacidade financeira do postulante, assim como dos apoios recebidos. Não à toa se diz que um candidato cujo partido já está na máquina administrativa possui maiores chances do que um outsider, por exemplo. Gosto muito dos exemplos. Dos bons exemplos, naturalmente. Przeworski cita um deles, apontando um eleitor pobre, evangélico, com projeto de implantar um pequeno negócio. Dentre essas condições, qual aquela que seria determinante para a sua escolha deste ou daquele candidato? Seria ele um pobre de "direita", votando num candidato completamente descompromissado de sua condição social? Seguiria as orientações do pastor de sua igreja, o que, aliás, possui um poder indutor nada desprezível? Ou apostaria naquele candidato que acenasse para um crédito para ele abrir seu pequeno negócio? Isso vem a propósito de um fato intrigante que está ocorrendo neste segundo turno das eleições do Recife. O que estaria levando parte do eleitorado de Mendonça Filho(DEM) ou da delegada Patrícia(PODEMOS)a esta tendência de votar em Marília Arraes, do Partido dos Trabalhadores. Confesso que, por algumas razões, creditava ao candidato João Campos, do PSB, maiores possibilidades de herdar esses votos. O PSB está na máquina do Estado há um bom tempo, alinhavou-se com forças políticas conservadoras para disputar as eleições desde o primeiro momento,e, em tese, para este eleitorado citado, seria um partido político mais confiável. Hoje,sobretudo pelas razões expostas no editorial do dia de ontem, é, no mínimo, duvidoso afirmar que o PSB é um partido de esquerda, embora essa condição possa ser creditada nos seus primórdios, quando contou com atores políticos identificados com este perfil. O PT, por seu turno, é um partido estigmatizado. Não entramos aqui nem na seara ideológica, mas o partido passou até recentemente por um processo de assassinato de reputação e a gente sabe que não se constitui numa tarefa das mais simples a recomposição de uma imagem. Certamente, depois dessas eleições,ao se confirmarem o que as pesquisas estão indicando, deveremos ter algumas lives de cientistas políticos e analistas sociais para tentar entender um pouco a motivação de um eleitorado - tradicional, conservador e refretário ao PT - migrar para sufragar o nome de Marília Arraes nas urnas. Há algo mais determinante, neste horizonte, do que a rejeição ao PT. Uma grande insatisfação com a gestão atual, que já completa dois mandatos? O peso de uma condução não necesariamente republicana da máquina? Equívocos na estratégia de campanha? A mocidade e a inexperiência do candidato socialista, que talvez não esteja conseguindo passar confiança à população? Hoje, pelas redes sociais, um internauta estava levantando a tese da ingratidão. De fato, o PT foi um dos grandes suportes políticos e financeiro para o êxito da gestão do ex-governador Eduardo Campos. Mas esse legado foi solenemente rejeitado pelo PSB, sobretudo neste momento de disputa. Marília, por sua vez, foi atacada duramente, inclusive em sua honra, ao deixar as hostes socialista. Este fato estaria repercutindo, agora, no resultado das pesquisas, que a aponta na dianteira da disputa, num indicador de solidariedade da população? Na época de Eduardo Campos, o PSB tinha um guru argentino especialista em pesquisas qualitativas. Eis aqui um excelente instrumento científico para se chegar a alguma conclusão sobre esse fenômeno.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Porque revoltas antirracistas espalham-se pelo mundo?

Por que revoltas antirracistas espalham-se pelo mundo Nem na morte de Luther King protestos foram tão imensos e globais. Agora, há dois caminhos. Entregar movimento a uma “vanguarda”, o que agradaria Trump; ou lançar, na esteira dos Panteras Negras, um programa de reformas estruturais OUTRASPALAVRAS DESCOLONIZAÇÕES por Italo Jardim Publicado 17/06/2020 às 16:37 - Atualizado 17/06/2020 às 16:53 Foram oito minutos e 46 segundos. Um episódio de tortura seguido do assassinato de George Floyd, de 46 anos, que trabalhava como segurança em um restaurante em Minneapolis, no estado de Minnesota, nos EUA. Ele foi abordado por policiais que responderam a uma chamada de suspeita de uso de cédulas de dinheiro falso na noite do último dia 25 de maio. Em seguida, um vídeo de 10 minutos, filmado por uma testemunha, mostra Floyd suplicando e dizendo repetidamente: “não consigo respirar”, para um policial branco. Ao ver as imagens da truculência e de abuso policial, é impossível não se indignar. A tragédia se soma a um rastro de sangue negro, derramado no decorrer da história. O assassinato de Floyd foi o ponto de ebulição para uma série de manifestações civis, marcadas por intensos e violentos confrontos entre revoltosos e a polícia americana, numa cidade que tem os maiores índices de disparidade socioeconômica entre negros e brancos nos EUA. São mais de 18 dias de protestos, mas nada disso começou agora. O histórico recente nos dá uma percepção. No dia 29 abril de 1992, um júri absolveu oficiais do Departamento de Polícia de Los Angeles, três brancos e um hispânico, acusados​​de agressão contra o motorista negro Rodney King, após uma perseguição em alta velocidade. A agressão dos policiais foi filmada. Milhares de pessoas na área de Los Angeles se revoltaram ao longo dos seis dias, após o veredito. Entre agosto e novembro de 2014, houve uma crise decorrente da violência racial. O policial que em agosto matou o jovem afro-americano desarmado Michael Brown, em Ferguson (Missouri), não enfrentou processo judicial. A decisão desencadeou uma nova onda de turbulência na cidade, incêndios, lançamentos de pedras e depredações de veículos. Michael Brown morreu no horário de almoço de um sábado, atingido por, pelo menos, seis disparos de Wilson, quando andava numa rua residencial com um amigo. A polícia afirma que houve uma luta entre os dois para pegar a arma, mas o amigo que acompanhava Brown diz que este ergueu os braços em sinal de rendição. Já em 19 de abril de 2015, o jovem negro Freddie Gray morreu sob custódia policial em Baltimore, Maryland, o que ocasionou um novo clamor contra os preconceitos e abusos da polícia dos Estados Unidos contra a população negra. As manifestações, que haviam começado de maneira pacífica, acabaram se transformando em fortes distúrbios por parte de um grupo de manifestantes, a sua maioria jovens. Nunca houve silêncio sobre os assassinatos e a truculência policial racista, embora essa violência contra negros seja permanente. Mas nunca se viu a propagação desses movimentos por todo o país e ao mesmo temp. Por tantos dias e com tendência a continuar crescendo. Algo mudou completamente, o assassinato de Floyd gerou uma insurreição que parece não ter hora para acabar. Algo que não se via em número, tamanho e expressão há mais de 50 anos. Aliás, muito maior que a manifestação após a morte do ativista político por direitos civis, Martin Luther King em 1969. Movimento ganha força meio à pandemia do novo coronavírus A crise social iniciada a partir do brutal assassinato de George Floyd acontece em meio à pandemia do novo coronavírus, no auge da disseminação do vírus, que já matou milhares de pessoas nos EUA e no mundo. A crise de saúde se soma à crise econômica, de características inéditas, que tende a se aprofundar nos próximos meses, e com toda a tensão política de um ano eleitoral norte-americano. O cenário é extremamente imprevisível do ponto de vista político. As manifestações foram crescendo dia a dia. Na terceira noite de protestos, quinta feira, 28 de maio, eles se concentraram na Terceira Delegacia de Minneapolis, que foi incendiada, espalhando-se por outras áreas da cidade. A revolta liderada pelos negros nas ruas de Minneapolis é alimentada pelo peso histórico de décadas de segregação e desigualdade. Apesar de sua reputação como um refúgio para a política progressista, Minneapolis é a área metropolitana mais segregada dos EUA. No domingo, 31 de maio, Trump passou pelo menos uma hora em um bunker subterrâneo durante os confrontos no lado de fora. O Exército patrulha as ruas na Califórnia. São mais de 40 cidades mobilizadas, ao menos 30 delas com toque de recolher e guarda nacional1 acionada (mecanismo utilizado somente durante a 2º guerra mundial). Depois de 11 dias seguidos, manifestantes ainda tomavam as ruas de muitas cidades e a Casa Branca tem sido um local de protestos diários. O clima de tensão diminuiu por alguns motivos, mas as manifestações são cada vez mais numerosas. Em um esforço permanente de combater o vandalismo e também uma mudança de postura das forças policiais no acompanhamento, que passaram a não intervir nas movimentações de forma direta, ao invés disso, policiais à paisana acompanham de longe, inclusive foram filmados episódios de solidariedade entre a polícia e os manifestantes. O impacto dos protestos no governo Trump O comportamento de Trump diante dos acontecimentos acirra ainda mais as relações políticas e causa a indignação de muitos. Em uma de suas declarações no Twitter, repete uma frase da década de 60, sugerindo atirar em manifestantes: “estes BANDIDOS estão desonrando a memória de George Floyd, e eu não deixarei que isso aconteça. Acabei de conversar com o governador Tim Waltz e disse que o Exército está com ele até o fim. Qualquer dificuldade e nós assumiremos o controle, mas quando começam os saques, começam os tiros”. A plataforma Twitter incluiu aviso de exaltação da violência na mensagem. Trump utiliza com rigor a tática da ultradireita em descrever os manifestantes como inimigos da nação. Em episódio inusitado, chegou a solicitar a retirada de manifestantes que estavam no entorno da Casa Branca para tirar uma foto na igreja, com a Bíblia estendida. Embora esse gesto sirva como performance orientada a sua base eleitoral conservadora, não parece estar surtindo efeito. Os manifestantes estão ganhando apoio popular durante os confrontos, aos gritos de “as ruas são nossas”. A tentativa de criminalização dos protestos, a exemplo de outros episódios da luta racial, desta vez teve dura resposta da sociedade americana. Pesquisas mostram que dois terços da população apoiam as manifestações. Algumas vitórias vêm ajudando o movimento a ganhar força e levar mais pessoas as ruas. No dia 4 de junho, o governador da cidade de Nova York suspendeu o toque de recolher. Disse que vai decretar um momento de silêncio em todo o estado, em memória de Floyd. Ele se mostrou preocupado com o avanço da pandemia do novo Coronavírus e pediu para que todas as pessoas que participam dos protestos façam teste para diagnosticar a Covid-19 e, para isso, ele vai aumentar a capacidade de testes em todo o estado. Além de tudo isso, Trump enfrenta dificuldades no próprio governo. Seu secretário de Defesa não concorda com a política de enfrentamento proposta pelo presidente. O chefe do Pentágono, Mark Esper, se distancia e rejeita o envio do Exército para conter protestos, afirmando que “medidas como essa devem ser usadas apenas como último recurso e nas situações mais urgentes e extremas”. É para além das fronteiras dos EUA A pandemia e a crise econômica desoladora que passa os EUA, que perdeu 20,5 milhões de postos de trabalho em abril e registra um índice de desemprego de 14,7%, o mais alto em mais de 70 anos, junto a ausência de respostas do Estado, geram respectivamente conclusões aos negros e os mais pobres, morrer de fome, doente ou pela bala da polícia. A partir da internacionalização dos protestos, como vem acontecendo em Paris e em algumas cidades do Brasil, por exemplo, são sintomas desse mesmo referencial de crise generalizada. Não são manifestações somente antirracistas, mas que também expressam o descontentamento com a maneira que se organiza a economia e a política mundialmente. Houve protesto antirracista, no dia 2, em Paris, na França, com confronto entre manifestantes e a polícia. O ato levou milhares de pessoas às ruas da capital. Outras cidades, como Marselha e Nantes, também tiveram protestos nas ruas. Os manifestantes se reuniram por cerca de duas horas em torno do tribunal de Paris em homenagem a George Floyd e a Adama Traoré, um homem negro francês que morreu sob custódia policial em 2016, segundo relato de seu irmão, suas últimas palavras foram as mesmas de George Floyd: “não consigo respirar”. Os jovens negros que se manifestam em Paris são filhos da imigração e do colonialismo francês, são também os que mais sofrem pela falta de condições e a desigualdade social. Na cidade canadense de Toronto, o protesto contra o racismo também foi em homenagem a Regis Korchinski-Paquet, um homem negro que morreu depois de cair de um prédio durante uma abordagem policial. Em Londres, o protesto pacífico foi no distrito de Peckham, na capital britânica. Os manifestantes gritavam “Justiça por George Floyd” e carregavam faixas e cartazes em sua homenagem. Em Berlim, na Alemanha, milhares de manifestantes se reuniram em frente à embaixada americana e espalharam a frase do movimento Black Lives Matter. No Brasil o efeito foi imediato. Protesto de comunidades e coletivos de favelas no palácio Guanabara no Rio de Janeiro e uma grande manifestação de torcidas organizadas pela democracia no MASP em São Paulo. Manifestações também em Curitiba e outras cidades. A solidariedade internacional ao movimento, a referência identitária do povo negro que se organiza e se manifesta em várias cidades e o descontentamento com a estrutura política e organizativa que mantém as desigualdades, são partes fundamentais da indignação que está em curso e começa a se espalhar pelo mundo. Seus impactos já são visíveis em muitos lugares. O debate sobre o racismo e os questionamentos políticos a procura de respostas aos antigos e novos problemas sociais ganham força nas ruas. A diáspora negra e a omissão de direitos à raça Não há forma responsável de iniciar uma reflexão sobre a importância das vidas negras e a jornada de manifestações que acontecem nos últimos dias nos EUA, sem compreendermos, ainda que brevemente, três elementos fundamentais que contextualizam historicamente a identidade negra em todo o planeta: a diáspora africana, o distintivo racial da negritude e a condição socioeconômica decorrente desse histórico de omissão de direitos. A diáspora africana, ou negra, como também é conhecida, se caracteriza pelo fenômeno de imigração de africanos, durante o tráfico transatlântico de escravizados. Junto com seres humanos, nestes fluxos forçados, embarcavam modos de vida, culturas, práticas religiosas, línguas e formas de organização política que acabaram por influenciar na construção das sociedades às quais os africanos escravizados tiveram como destino. Estima-se que, durante todo período do tráfico negreiro, aproximadamente 11 milhões de africanos foram transportados para as Américas. A condição socioeconômica dos negros nas Américas guarda peculiaridades de acordo com cada país, seu processo de libertação dos escravos e a política posterior aplicada. Nos EUA, por exemplo, como forma de manter a mão de obra e de dar um destino econômico à população negra – liberta, mas não socialmente incluída – foi adotada uma estratégia de criminalização da raça. Isso ocorria tanto por meio da comunicação – exibindo vídeos e propagandas nas quais negros configuravam como animais e estupradores – como no âmbito da justiça, pelo qual eram presos por motivos insignificantes. Uma vez presos, voltavam a servir como trabalhadores sem custo, praticamente voltando a ser escravos. Até hoje, as diferenças são gritantes entre negros e brancos, da condição salarial ao acesso à educação, passando pelos índices de violência. O privilégio branco está diretamente ligado à condição do negro na sociedade capitalista atual. Aquilo que nos identifica racialmente é fundamental para entender como as diferenças sociológicas se manifestam na realidade concreta. Por motivos óbvios, essa distinção pode ser relativizada por uma série de questões e negada por segmentos sociais historicamente privilegiados nessa relação. No entanto, é impossível não considerar que, a cor da pele nos remete imediatamente a alguma conformação identitária. Como disse W.E.B. Du Bois o líder mais importante nos primeiros anos do movimento norte-americano pelos direitos civis, no início do século XX: “mesmo as características físicas incluindo a cor da pele, são resultados diretos, em medida considerável, do ambiente físico e social. Além disso, são indefinidos e fugazes demais”. Baseado nisso, em autobiografia, o autor abandona a definição científica de raça em prol do fato de que ele escreve sobre africanos, e que africanos e afrodescendentes têm o que chama de ancestralidade racial em comum, porque: — é importante notá-lo — “têm uma história em comum, sofreram um mesmo desastre e têm uma única e longa memória de desastre”. Porque a cor, embora pouco significativa em si, é importante — Du Bois afirma — “como distintivo da herança social da escravidão, da disseminação e do insulto dessa experiência.” Um distintivo, uma insígnia, uma marca. Aqui está a ideia de que raça é um significante, em outras palavras, o significado racial da negritude se encontra na memória e na realidade vivida da sua história, dos acontecimentos e seus resultantes no tempo presente. O mesmo distintivo social que liga George Floyd de Minneapolis a João Pedro em São Gonçalo, é a identidade que orienta também todo o povo negro das Américas. A luta por direitos civis nas décadas de 1950 e 1960 O Movimento pelos Direitos Civis é o nome que se dá à luta dos negros norte-americanos por esses direitos, especialmente nas décadas de 1950 e 1960. Nos Estados Unidos, os direitos civis de muitos negros foram negados em sua totalidade por quase cem anos após o fim da escravidão. Revisitar esse período de destaque do movimento Negro dos EUA, é parte da tarefa desafiadora, de compreender a história de luta do povo negro e sua trajetória incansável por igualdade racial. Alguns dos episódios de uma extensa cronologia do Movimento por Direitos Civis nos Estados Unidos nesse período2: 1955 – Rosa Parks lançou a bem-sucedida Campanha de Boicote de ônibus em Montgomery, Alabama. 1961 – Um grupo chamado Congresso da Igualdade Racial organizou uma Viagem de Liberdade, transportando 500 brancos e negros do Norte em ônibus para, simbolicamente, quebrar a segregação no transporte público. A polícia local e brancos racistas responderam com violência brutal. 1963 – Em agosto, CORE, NAACP, SNCC, SCLC e vários sindicatos organizaram a Marcha por Emprego e Liberdade de 200 mil pessoas em Washington em frente ao Memorial a Lincoln. 1964 – O Congresso e o Senado aprovaram a Lei dos Direitos Civis proibindo segregação em educação e serviços públicos. Entre 1964-1969 ocorrem 341 rebeliões urbanas em 265 cidades deixando 221 mortos, em grande parte, negros. No mesmo ano Luther King ganhou o Prêmio Nobel de Paz. 1965 – O Congresso e Senado aprovaram a Lei do Direito de Voto proibindo discriminação no processo eleitoral. Malcolm X foi assassinado em Nova York. O Movimento pela Liberdade em Chicago foi lançado pela SCLC e Luther King para acabar com discriminação em habitação e emprego dos negros nas cidades nortistas. Luther King critica o governo de Lyndon Johnson sobre a guerra no Vietnã. 1966 – O Partido dos Panteras Negras foi fundado na Califórnia e o movimento “Black Power” começa eclipsar o convencional movimento por direitos civis liderado por Luther King. 1968 – Luther King foi assassinado em Memphis. Capítulo importante da História do Movimento negro americano foi a criação do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa, conhecido como o Partido dos Panteras Negras, fundado em 1966, por Huey Newton e Bobby Seale que criaram essa organização nacional como forma de combater coletivamente a opressão dos brancos. A violência policial com os negros era recorrente na revista por todo o país. Os Panteras Negras sintetizaram seus objetivos em um programa com 10 pontos que incluíaliberdade, terra, habitação, emprego e educação. Sua contribuição influenciou enormemente as movimentações em vários países do mundo e foi decisiva para a conformação do movimento negro e seu caráter estético, político e cultural até os dias de hoje. O mar da História está agitado A diáspora negra começa a se levantar e está mais viva hoje do que em qualquer dia do passado. George Floyd não está mais entre nós, mas a memória de luta do povo negro encontrou um novo ponto humanitário e simbólico de unidade, que canaliza a indignação social diante de toda essa violência. Este é certamente um novo capítulo da história do movimento negro que pode transbordar as relações sociais e étnicorraciais por mudanças estruturais em todo o globo. São muitos os casos como o de George Floyd pelo mundo, no Brasil o último com visibilidade foi adolescente João Pedro, de 14 anos, que teve sua casa crivada com mais de 70 balas de fuzil na cidade de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro. O caso Marielle, conhecido mundialmente segue sem justiça há mais de 2 anos. Imagens dos EUA mostram uma palavra de ordem nas ruas das capitais: No Just, no Peace, que em tradução livre significa “Sem Justiça, sem paz”. A luta antirracista precisa ver respostas e, ao que tudo indica, seguirá nas ruas enquanto não as conseguir. Ainda que os poderosos quisessem verdadeiramente ajudar na resolução dos problemas sociais, sobretudo na desigualdade racial, não se trata apenas de uma vontade política, Trump representa a manutenção dos resultados políticos e econômicos, fruto das contradições e da desesperança por uma vida melhor. É a revolta e o ódio organizado por um programa conservador, que em nada se preocupa com negros, latinos ou imigrantes. Mas a dinâmica não para por aí. As instituições têm um limite até mesmo na perspectiva de atender as demandas antirracistas, pois comprometeria a estrutura capitalista do Estado, que se alimenta e mantém essa desigualdade porque lucra com isso. Há um embate inevitável com o comitê gestor do capitalismo e a essência excludente do sistema. Uma chave parece estar virando, ao menos dentro do coração do imperialismo. Abre-se um novo tempo de possibilidades e lutas pelo mundo. O caráter antirracista, combinado a indignação do povo com questionamentos sobre as formas de organização política e econômica começam a tomar conta dos debates cotidianos, ganhando forma e potencial de transformação. Na medida em que a crise econômica se aprofunda, diante de tanta desigualdade potencializada pela situação crítica que passa o mundo, somente a organização do povo poderá arrancar vitórias expressivas e salvar vidas. Há dois caminhos para a rebelião negra norte-americana. Perder força social para os substitucionistas – os que tentam substituir as maiorias por suas supostas vanguardas –, transformando as ruas em um campo de guerra. Isso justificaria a já anunciada política de Donald Trump em fazer um combate aberto, criminalizando os protestos e tratando os manifestantes como bandidos. Esse cenário poderia fortalecer Trump repetindo, guardadas as devidas proporções, o ano de 1969, no qual, após o assassinato de Martin Luther King, foi acionada a Lei de Insurreição – criada em 1807 e que prevê o recurso ao Exército em casos de extrema gravidade e ameaça de ordem pública. Após esse acontecimento histórico, os EUA elegeram Richard Nixon como presidente sob o lema “lei e ordem”. A outra via é apostar na organização do povo e no diálogo com as massas. Ampliar as manifestações de rua, vencer a tentativa de substitucionismo da pauta, combatendo os infiltrados, como vêm fazendo, para atingir maioria social capaz de emparedar o governo. E a partir da construção de um programa de exigências, como deixou de legado o Partido dos Panteras Negras e seus 10 pontos, arrancar reformas estruturais, elevando o nível de consciência, enviando uma mensagem a toda diáspora negra e ao povo explorado e oprimido pelo mundo. 1 A guarda nacional possui 13 mil soldados (Uma força convocada em situações excepcionais) Minnesota foi ativada com a justificativa de conter os “anfifas” infiltrados. 2 http://anphlac.fflch.usp.br/direitos-civis-eua-cronologia (PUblicado originalmente no site Outras Palavras)

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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O pacto de morte do racismo

Em entrevista, Cida Bento compartilha reflexões sobre a questão racial e sua produção acadêmica e atuação na sociedade civil Carine Nascimento 12nov2020 06h10 (17nov2020 12h18) articles-zIClOuebFQ52Ibw Na versão mais conhecida do mito grego, Narciso é um rapaz que, ao se banhar em um lago, vê sua imagem refletida na água e se apaixona por ela. Para não abandonar a figura amada, o rapaz passa dias a fio ao lado do lago, definhando sem alimento, até que, em uma tentativa de alcançar a criatura, ele se lança ao lago e morre, afogado. É nessa figura mitológica e no estudo que Freud fez sobre ela que se fundamenta o conceito de “pactos narcísicos no racismo", elaborado por Maria Aparecida Bento, doutora em psicologia e diretora-executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Mais conhecida como Cida Bento, ela fundou essa organização ao lado de Hédio Silva Jr., doutor em direito e advogado das Religiões Afro-brasileiras no Supremo Tribunal Federal (STF), e de Ivair Augusto Alves dos Santos, doutor em sociologia. Ao lado de Robin DiAngelo, pesquisadora estadunidense e autora do livro Não basta não ser racista: sejamos antirracistas (Faro Editorial, 2020), Cida Bento foi uma das participantes da mesa de abertura do encontro Branquitude: racismo e antirracismo, realizado pelo Instituto Ibirapitanga nos dias 26, 27 e 28 de outubro. Durante sua fala, Bento abordou os pactos narcísicos no racismo, conceito desenvolvido em sua tese de doutorado, defendida em 2002. Por ocasião do evento, ela concedeu entrevista à Quatro Cinco Um, na qual explica como esse conceito contribui para compreender a questão racial no Brasil. O que são os pactos narcísicos e como eles operam? O racismo institucional vai se entranhando nas regras e processos, até que estes automaticamente excluam os não brancos, pois quem pensa esses processos são os brancos. Eles são as grandes lideranças de qualquer instituição, seja ela pública, privada, do terceiro setor, revolucionária do movimento sindical ou de empregadores. Os homens brancos são maioria na direção dessas instituições que não são neutras, funcionam a partir da perspectiva de quem as lidera. Então o Judiciário, o Executivo, o Legislativo, é tudo de gente branca; o sujeito pode ser muito racista, ou nada racista, mas a manutenção dos privilégios para assegurar a sua perspectiva de mundo está colocada. Eu sempre digo, branquitude não é transparência, é posicionamento, é visão de mundo - então nas instituições e na sociedade civil se estabelecem regras a partir de uma perspectiva branca. O pacto narcísico é essa perspectiva que favorece, que fortalece, que protege, que assegura privilégios para o branco à medida que reserva os melhores espaços institucionais para ele, independente da intencionalidade. Se uma pessoa branca que faz uma seleção para cargo de direção ou para estagiário, por exemplo, tiver cinco candidatos ao final de um processo, a tendência dela é confiar mais nas pessoas brancas que estão nessa etapa. Ele [o pacto] não é uma coisa instintiva, mas fala de uma grande cumplicidade, que faz com que o branco acredite no outro branco, ache que o outro branco é realmente mais bonito, que aquele cabelo é o que funciona bem dentro de instituições, que aquela pessoa branca vai seguir as regras, vai assegurar que tudo funcione direito. Por isso esta confiabilidade no branco e essa tendência a trazer outros iguais para o seu entorno, para lugares onde a competência, segundo o conceito da instituição, precisa estar assegurada. Então o pacto narcísico é fortalecimento, é proteção, é assegurar lugar de privilégio para os iguais. E nesse conceito de iguais, ele é pacto de morte. Quando você estuda Freud, você tem o narcisismo de morte, porque o que é igual e monolítico não é gerador de vida, de energia criativa, de inventividade, é sempre mais do mesmo. Esse pacto de morte é tipicamente o que estamos vendo na sociedade: um monte de cabeças masculinas brancas pensando tudo, que leva o país a ser um dos que mais tem mortes pela Covid-19, o país que mais mata negros, o país do genocídio da juventude negra, que tem um grande percentual de morte de mulheres e de indígenas. Então, tudo o que não é masculino e branco fica mais fragilizado, porque não tem voz nenhuma. Nosso país é uma árvore torta na qual só um lado define tudo. A partir desta sua análise, é possível dizer que quando a gente mata a juventude negra, mata também a possibilidade de outras soluções para o país? Exatamente. Eu trabalho com o conceito de personalidade autoritária e de medo que está naquele segmento que concebeu apenas um tipo jeito de ser bem-sucedido. Quando eu estou em grandes corporações, entro em espaços em que os homens nem precisam afrouxar a gravata, tão bem climatizado é o escritório em que as janelas não abrem, e você não ouve as pessoas caminhando, tão bem colocado está o carpete; e o conceito de sucesso é passar dias, semanas, meses e anos inteiros naquele ambiente fechado, onde o ar nem chega. Então, esse conceito exige um grande aprisionamento de tudo o que não está morto, de tudo o que tem vida ainda e de tudo o que desvia deste padrão: a sexualidade, a agressividade, a inventividade. Tudo que está em outra dimensão está aprisionado, e quem tem isso preso em si próprio fica muito desconfortável em ver o outro que, mesmo sem nada, andando descalço na favela, está cheio de dúvida, tem um corpo que umedece, que sua e que tem toda a sua vivacidade - aquilo desconforta porque o sujeito prendeu tudo o que ele tinha, tudo o que ele pôde, e a sexualidade dele acaba aparecendo na perversidade ou na repetição de todo dia. Por outro lado, temos aquela mulher, aquele homem, que ainda ama a natureza, que cuida da natureza, que batalha pela preservação, que não acha que tem que matar um monte de gente para ser bem-sucedido, que tem outra perspectiva. Então, o segmento que tem essa visão de buscar “assegurar os bons costumes” — que é da direita, da extrema direita e dos conservadores, na qual as armas são usadas em nome da Bíblia —, fica muito incomodado com a vida que se manifesta em quem não tem esse conceito de desenvolvimento, de sociedade, de sucesso, de mundo. Mulheres negras incomodam, mulheres indígenas incomodam, esses cabelos revoltos, vermelhos, essas roupas coloridas, tudo vai incomodar quem concebeu o mundo bem-sucedido aprisionando tudo que saia desses conformes. Que aproximações você enxerga entre o termo “fragilidade branca”, da Robin DiAngelo, e o conceito de pactos narcísicos? Enxergo muitas aproximações. Como eu disse, trabalho com o conceito de personalidade autoritária, que é um conceito que a partir da psicologia estuda as ideologias políticas, e nele tem uma frase que diz o seguinte: “Mata-se o outro porque o outro representa o que é nosso e que não podemos suportar dentro de nós”, o outro é assassinado porque é insuportável ver aquilo que é nosso, e que está dentro de nós, se explicitar no outro. Então, onde está a fragilidade branca? A fragilidade branca está na dificuldade de entrar em contato com a sua condição humana. Quando você tem a branquitude e o conceito de supremacismo branco, que impede aquele segmento de entrar em contato com a sua fragilidade porque ele prega a supremacia branca, essas pessoas não veem seus pés de barro ou não percebem a sua condição humana. Então é difícil entrar em contato com a sua dúvida, com a sua fraqueza, com a sua sensibilidade, com a sua reflexão sobre o mundo. Tudo isso vira “mimimi”, “vamos ser pragmáticos, buscar dinheiro, tempo é dinheiro”, a fragilidade vem pela dificuldade de entrar em contato com a sua condição humana. O supremacismo faz isso. Ciclo de debates discute o papel e os limites dos brancos na luta contra o racismo A DiAngelo traz essa questão, com a qual eu me deparo frequentemente quando estou com os brancos antirracistas. Neste momento, nós estamos simultaneamente em 25 instituições, eu trabalho frequentemente com pessoas brancas que querem transformar suas instituições em instituições mais plurais e diversas, e não há nenhum passo anterior àquele que é a pessoa reconhecer o diferencial que é ser branco, objetivamente, nas estatísticas, na condição econômica, financeira, no lugar de privilégio, mas também reconhecer o desconforto do branco com o negro, com a negra, com o indígena que ainda está pautado em outros valores, em outro conceito de sociedade, de desenvolvimento, em outra relação com os corpos e com a natureza. A fragilidade branca é o pensamento único sobre tudo e ela é irmã de primeira hora do fascismo; este conceito que está no coração da personalidade autoritária, que é matar tudo aquilo que não é “o que nós somos e para onde queremos levar a nossa sociedade”. Então a pergunta que não cala é: por que homens brancos com mais de cinquenta anos, que são as grandes lideranças das instituições brasileiras, contribuem ativamente para o assassinato da juventude negra, dos indígenas, das mulheres, das mulheres negras, se omitem diante disso? Por exemplo, geralmente quando uma mulher é assassinada é porque o seu ex quer voltar, mas ela não. Porque ela, muitas vezes sem ter nada, sem saber como vai construir sua vida, sem ter recursos, já disse: “eu não vou mais ficar com você”. O homem pensa: “como assim não vai mais ficar comigo?”, e ela responde novamente: “não vou, estou indo embora”. Ele não concebe isso, se pergunta “como assim ela escolheu ser livre, independente, muitas vezes sem ter nada, sem ter segurança?” Então o enfrentamento da condição humana, o reconhecimento de seus desafios, muitas vezes está por trás da fragilidade branca. O CEERT foi fundado em 1990, e você defendeu sua tese de doutorado em 2002. Como a sua atuação no Centro ajudou você na concepção desse trabalho? Ao falar disso é importante lembrar que trinta anos não são pouca coisa. Três lideranças de áreas diferentes, mas vinculadas ao mercado de trabalho, se juntaram no CEERT: eu, que vinha da área de recursos humanos de empresas; Hédio Silva Jr., que era liderança sindical; e Ivair Augusto Alves dos Santos, que vinha da área de políticas públicas. Então esse tripé – movimento sindical, empresa e poder público – é fundamental para pensar o trabalho do Centro. Nós trabalhávamos no Conselho da Comunidade Negra de São Paulo, que foi o primeiro, depois dele vieram centenas pelo país inteiro. Nessa época, eu estava fazendo meu mestrado, estava ouvindo trabalhadores e trabalhadoras negras dentro de instituições para saber como se operacionalizava a discriminação. Depois do mestrado, ouvi chefes e profissionais de RH, mas dentro de um mesmo projeto; primeiro eu ouvi os trabalhadores sobre como era a discriminação no recrutamento, na seleção, na promoção, na demissão, e depois ouvi os brancos, chefes de recursos humanos e chefias intermediárias. A ideia foi construída desse jeito. Os trabalhos do CEERT, que começaram no conselho da comunidade, foram um suporte fundamental para esse conceito, pois quando você vai trabalhar com o movimento sindical, mesmo de esquerda, você está falando com brancos que também têm uma perspectiva que não considera a branquitude. Quando você vai falar com o Estado, você tem uma perspectiva de que as políticas para pobres já contemplam políticas para negros. As empresas tinham um discurso muito embrionário, mas o primeiro encontro que nós três fizemos com elas foi antes da década de 1990; já naquele período, com essas três forças, a gente discutia o perfil da força de trabalho, as diferenças de cargo, de salário, de oportunidade, e tivemos muitas ações de impacto. Denunciar o Brasil em 1992 foi uma ação bem importante, porque a denúncia apresentada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e preparada por nós, junto com outras centrais sindicais e organizações do movimento negro, deflagrou vários processos. O governo brasileiro, através do Ministério do Trabalho [extinto em 2019], desenvolve uma série de ações para implementar a Convenção 111, por exemplo, que se referia à equidade na ocupação de empregos. Isso vem deste tempo, e foram criados núcleos em vários estados brasileiros, nas delegacias regionais do trabalho, para poder lidar com essa questão da diversidade e da equidade. Além disso, naquela época havia a pressão para se colocar o dado por raça na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que são de preenchimento obrigatório pelas empresas, mas nós não tínhamos esse dado. No movimento sindical, esses debates ajudaram a deflagrar a formação de núcleos que trabalhavam com este tema em todo o país, em várias categorias. Nós fizemos a primeira cláusula de promoção da equidade racial assinada nos acordos coletivos de trabalho, depois ela originou outras ações e cláusulas, mas ainda é muito pouco. Em 1996, começou o trabalho dentro das empresas, de fazer diagnóstico com censo de diversidade, fazer o trabalho com as lideranças e com as áreas estratégicas para mudar processos e programas, ou seja, mudar a instituição por dentro, verificar onde ela pode alterar seus processos para ficar mais equitativa. No campo da educação, produzimos muitos programas de formação de professores e lançamos o Prêmio Educar para a Igualdade Racial um ano antes da lei nº 10.639/2003 [que inclui no currículo escolar a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira], e dá outras providências. Começamos a coletar práticas pedagógicas e de gestão de professores que trabalhavam a questão racial em sala de aula, que veio perpassando a nossa história; ao longo dos anos, chegamos a coletar mais de 3 mil práticas de 1.100 municípios brasileiros. Durante todo esse processo, fomos aprendendo sobre o lugar diferente de branco, porque quando você está trabalhando em um instituição, seja ela o MEC (Ministério da Educação), seja uma empresa, seja um sindicato, você sempre está falando com lideranças brancas, e elas sempre têm uma maneira de reagir àquilo que você está trazendo. Neste momento, em que há uma demanda pelo debate racial, você acredita que as pessoas estão buscando ser antirracistas sem romper com esse pacto? Algumas sim, não todas. Tem muita gente neste processo, em diferentes graus, em diferentes níveis e em diferentes ritmos. Mas eu acredito nessa mudança, não acho que estamos vivendo um modismo, de jeito nenhum. Trabalhando com grandes instituições há muitos anos, consigo perceber que nelas eu sempre encontro pessoas que não querem trabalhar esse tema, mas também encontro pessoas brancas que querem sim, só que muitas vezes ainda não se veem preparadas nem para reconhecer o seu privilégio. Por isso, acho que o trabalho institucional não é essa coisa de fazer um diagnóstico, uma palestra, um curso na melhor instituição do país sobre racismo, não se trata disso. Ajuda, mas o que você precisa fazer é exercitar com a pessoa, no espaço em que ela está, pensar uma atitude antirracista. É exercício dela, porque ela precisa se deparar com seus próprios conceitos de que aquilo que ela vive não é só resultado de mérito próprio, há uma história que faz homens brancos serem as principais lideranças das instituições brasileiras. A filósofa Djamila Ribeiro aponta caminhos construtivos para uma sociedade menos desigual Então, esse repensar “claro que eu tive mérito, eu lutei, eu estudava até de madrugada, para conseguir entrar na melhor universidade do país”… Bom, mas muitas vezes uma mulher ou um jovem negro, que também ficou estudando até de madrugada, não conseguiu aquele melhor emprego. Existe algo além do mérito, existe uma história que jogou cada grupo em seu lugar. O grande desafio é trazer o branco para dentro da história, porque ele foi pensado para “ver se dá uma forcinha para essa negrada, faminta, empobrecida”, como se ele não fizesse parte dessa história. Sempre digo que tudo começou para mim quando eu estava com o movimento sindical e as lideranças revolucionárias falavam: “A situação dos trabalhadores e trabalhadoras negras é uma decorrência da escravidão”, e a pergunta era “Qual é decorrência para os brancos? qual é a sua herança da escravidão?”. A resposta que recebíamos era: “Eu não fui escravocrata”. Bem, eu dizia que também não fui escravizada, mas que herança o meu segmento traz disso e o seu segmento traz disso? É preciso colocar o branco na história. Falamos muito do legado da escravatura para os negros. Existe um legado da escravatura para os brancos? A condição de superioridade, que está liderando todas as organizações brasileiras, públicas e privadas. Ter tido mais acesso à terra, ao trabalho, ao acolhimento, se pensarmos nos imigrantes – que, embora trabalhassem, tiveram um tipo de recepção pelo país que foi um empurrãozinho da meritocracia. Assim como a condição dos negros hoje tem a ver não só com o racismo de hoje, mas com a história do país, a situação do branco hoje tem a ver não só com o que ele é hoje, mas também com o que seus antepassados brancos vivenciaram e acumularam simbólica e concretamente. É sempre importante lembrar que o pacto narcísico é um instrumento de dominação, porque às vezes as pessoas pensam que ele se refere “a um monte de grupo de iguais”, como as mulheres negras, por exemplo, como se fosse algo relacionado a um pacto de igualdade. No entanto, o pacto narcísico diz respeito a quem tem um mundo construído para si, que atende a si próprio e que perpetua seu segmento numa condição de dominação. Por isso ele tem similaridades com a masculinidade, com a cisgeneridade, porque a sociedade funciona como se só existissem esses segmentos e os demais têm de ficar pressionando para serem considerados parte da sociedade; eles são parte, mas tudo caminha como se apenas os segmentos-padrão fossem os segmentos sociais. Vejamos como exemplo uma pessoa com deficiência, pense em um cadeirante. Imagine que eu estou num ônibus, ele para — e eu estava com pressa —, o motorista desce, opera o elevador, sobe com o cadeirante, vai até o espaço adequado, coloca o cinto de segurança nesse cadeirante e só depois ele volta a dirigir. Quem estava ali com pressa sabia que isso era possível, mas quem está numa sociedade onde a pessoa com deficiência não tem lugar, pensa “Nossa! Que demora, para que isso?”. Isto acontece porque a pessoa está acostumada com um mundo que funciona só para ela, é esse o conceito da branquitude e da masculinidade neste lugar em que o mundo funciona para atendê-los, porque eles estão na liderança e constroem tudo desse jeito. Por que você faz essa leitura de que o que estamos testemunhando não é um modismo? Porque não vem de agora e porque, com todos os desafios que estão colocados, esse movimento vem de muita luta, em uma conquista consistente; nós temos que mudar o país e não o estamos mudando apenas para nós, mas para toda a sociedade, tornando-o mais democrático. Quando vem esse tipo de debate, sobre como as instituições são bolhas brancas em um país tão diverso, podemos entender que a gente está dando passos muito concretos e esses debates não param. Além disso, há uma reação branca que não para de crescer, porque eles estão desesperados que nós estamos explicitando a apropriação e a dominação que eles praticaram por mais de quinhentos anos. Isso não quer dizer que todo branco é dominador, mas todos os dominadores foram ou são brancos. [Achille] Mbembe e [Frantz] Fanon já falavam que os brancos têm consciência da expropriação que foi feita com os negros, então quando a voz negra cresce, começa a apontar e a estar nos mesmos lugares, há um sentimento de ameaça muito grande, que eles respondem armando mais a polícia e resistindo à entrada negra nas instituições, de todas as formas possíveis. Você acha que essa onda conservadora que estamos vivenciando tem relação com isso? Tem. Ao mesmo tempo, crescem as vozes brancas em todo o país que buscam se juntar às vozes negras para enfrentar a mudança que a sociedade brasileira precisa fazer. Então, não significa que tivemos uma sensibilizada geral repentina, isso é reflexo da ação do movimento negro de muito tempo, é uma impaciência que está na voz das mulheres negras, da juventude negra, das pessoas que têm uma longa trajetória no movimento. Está todo mundo muito impaciente, todos se perguntam: “Quando é que vocês vão se mexer? Até quando vamos ficar nessa situação?” Cresce também o número de instituições que se sentem desconfortáveis em serem hegemonicamente brancas. Assim, eu não tenho dúvidas que isso veio para ficar. Existe um debate e uma tensão que não vão voltar atrás agora, para que os brancos fiquem todos sossegados e os pretos esqueçam tudo, isso não existe; podemos vivenciar momentos de mais tensão, momentos de recuo, mas o processo está em andamento, e eu vejo isso em muitas instituições por onde passo. Há um tensionamento, uma discordância, mas elas não param de caminhar. (Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)

No terreiro da Bodega - Conversa com Dona Lia