terça-feira, 24 de novembro de 2020
segunda-feira, 23 de novembro de 2020
Crônica: Não fechem Jampa, por favor! ( somente se for estritamente necessário)
Como sou um apaixonado por Jampa, costumo acompanhar o que ocorre naquela cidade, com regularidade, sobretudo em momentos decisivos como este, de eleições. O interesse tornou-se ainda maior, depois das náuseas provacadas pelo baixo nível da campanha eleitoral do Recife. Ainda hoje, conversei com o comendador sobre as eleições do segundo turno, naquela cidade, depois de acompanhar o debate entre os candidatos Cícero Lucena(PP) e Nilvan Ferreira(MDB), veiculado pelo Sistema Correio de Comunicação. Infelizmente, o candidato do comendador já está fora do páreo e ele não demonstrou grande entusiasmo sobre o resultado desse pleito. Ou seja, não tem preferência por este ou aquele candidato.
Gostaria de registrar aqui, inclusive, uma inovação no formato do programa, antes com regras tão rígidas que tornaram esses debates burocráticos e enfadonhos. Num dos blocos, abre-se um espaço de tempo de 10 minutos para cada candidato apresentar suas propostas ao eleitorado, com a possibiolidade de ser interrompido pelo oponente. Mesmo assim, 10 minutos de televisão é uma eternidade e, se o candidato estiver realmente preparado, pode passar o seu recado ao eleitorado, discutindo, de fato, suas propostas com mais desenvoltura, demonstrando ou não o domínio sobre o seu programa de governo, os reais problemas da cidade, assim como sua espetise sobre como enfrentá-los. Isso é muito importante para o eleitorado que está em casa, acompanhado o debate, fazer suas escolhas de forma consciente, que seria o objetivo principal desses encontros.
Hoje, aliás, depois dessa longa conversa com o comendador, fiquei triste com a possibilidade de um possível lockdown em Jampa novamente, a partir dos próximos dias, em razão da segunda onda desta maldita Covid-19. Até entendo as razões - irei respeitá-las - mas como ficar privado das frutas do mercado de Tambaú? jacas, mangas rosas e espadas dessa época do ano? Das postas de camorim e do camarão fresco da peixaria da beira-mar? Do sorvete de chocolate africano da sorveteria Friberg, a melhor de Jampa? Dos almoços no Mangai, com sua culinária tradicional acompanhada das jarras de sucos tropicais? Dos passeios na orla, aos finais de tarde, alugando uma daquelas bicicletas familiares? Das trilhas na Bica, nos manhãs frequinhas dos domingos de janeiro? Com sorte, ainda encontramos por ali um sorvete caseiro produzido na cidade de Pilar, terra do grande escritor José Lins do Rego. E o espetáculo da florada dos Ipês do Parque Solon de Lucena?
Muito triste com tudo isso. Nosso projeto de um registro dos lugares românticos e bucólicos de Jampa ficam sensivelmente comprometido. Como o comendador irá nos guiar por aqueles recantos que ele conhece como ninguém? Mais um lockdown e não sabemos quando possamos concluir esse trabalho, que já foi profundamente afetado pelas primei ras medidas restritivas. Agora, então, além do trabalho do livro, ainda ficaremos privados das comidas caseiras dos redutos tradicionais de Jampa, dos becos e vielas que não teríamos a chance de conhecer sozinho. - Zé, hoje vou levar você a um boteco onde é servido o melhor sarapetel da cidade. Depois vou te mostrar a antiga casa de pensão de Nininha, hoje transformada numa casa de bons constumes. E, assim, aos poucos, bairro por bairro, rua por rua, fomos conhecendo a cidade. Claro que, de forma consciente, vamos entender as razões sanitárias e de saúde pública que sugerem um novo lockdown. Países europeus já começaram a adotar essas medidas. No Brasil, há um avanço de casos e mortes pela Covid-19. Entendo, sim, as razões e irei respeitá-las. Mas que vou sentir muita falta, ah isso vou!
José Luiz Gomes
O voto feminista é revolucionário
Manifestação 8M em Belo Horizonte, 2020 (Foto: Catarina Barbosa)
O voto feminista emancipa as mulheres de forma arrebatadora. É um romper de silêncios profundos, do esmagamento cotidiano, do quase não existir. É a possibilidade de escrever de próprio punho o projeto de vida (de rua, de cidade, de país) onde a justiça social seja meta primeira e a agenda sócio-político-econômica tenha um sentido concreto na vida das mulheres, especialmente as mais vulneráveis, mas não somente elas; que seja palpável na realidade cotidiana de todas as pessoas. Da megalópole à cidadezinha mais distante.
Em 23% das câmaras municipais não houve vereadoras eleitas em 2016, segundo dados do TSE. É um dano social gigantesco, que penaliza ainda mais as mulheres e todo o seu entorno. O exemplo da creche é simbólico, pois ela altera imediatamente a vida da mulher e das crianças. A médio prazo, mexe na vida de toda a rua, e por fim, da cidade inteira. Com creche qualificada, uma mulher pode trabalhar, conquistar o valioso tempo da reflexão, aumentar sua renda, estudar, fazer circular a economia do bairro. A criança, bem cuidada, aprende mais, melhor, cria raízes positivas na comunidade e chega na escola com muito mais preparo, desfazendo uma desigualdade que era quase destino. Pois bem, a quem interessam as creches? Quem vai mais lutar por elas?
A força do voto das mulheres pode ser medida pela resistência a ele. Somente em 1932 o Congresso brasileiro aprovou o voto feminino, nos primeiros anos ainda parcial, com a inaceitável exigência de autorização do marido ou do pai. Hoje, em 2020, toda mulher é livre na cabine eleitoral. Não é um pormenor. Ali, de cara com a urna, talvez mais do que em qualquer outro momento da vida cotidiana, o poder, o sonho e a autonomia ocupam a mesma frase, o mesmo espaço. É revolucionário o poder de poder!
Ainda há mulheres que chegam no dia das eleições com o voto determinado, no “cabresto”, pela ala masculina da família ou das relações sociais, como se estivéssemos nos anos 1920, quando ao universo feminino só cabia obedecer, executar e silenciar. É um tempo passado que é presente, e essas mulheres merecem toda a acolhida… sabemos o quanto as violências paralisam.
A elas, dois lembretes: 1. na cabine eleitoral transformamos números na esperança de ser livre também fora dela. 2. Lutamos pela emancipação de todas, incluindo as que nem nasceram, as que ainda não conseguem, as que não querem – pois no fundo entendemos que esse “não querer” é um provável desejo ensinado para sustentar o estado de coisas. Como sentencia Rebecca Solnit: “o que chamamos de boa educação, muitas vezes significa aprender que o bem-estar alheio é mais importante”.
Todas serão feministas, é só uma questão de tempo. O processo de conscientização sobre as injustiças, no entanto, é dolorido e exige maturação. Do tempo da troca e da reflexão – quando a dor individual e moralizante se mostra coletiva e politizada; e do tempo contínuo, do assentamento dos saberes, da transformação interna na nova pessoa que nasce ressignificando o corpo, a narrativa e o contexto que anteriormente existiam. A tomada de consciência – semente do feminismo –, tal qual uma nova alfabetização sobre a nossa existência no mundo, é irreversível e avassaladora. Nos move contra o curso do rio, impelidas a construir uma estrutura social que seja mais justa e democrática. Que nos caiba, que nos enxergue.
E é possível. Pesquisas mostram que, onde há prefeitas, é menor o número de mortes de crianças, pois a atenção a políticas voltadas à primeira infância é mais consistente. As mulheres conseguem captar mais recursos, fazer mais parcerias. Estudos também mostram que em gestões femininas há menos corrupção e processos por fraude. São gestões competentes, de superação, da busca por soluções criativas, dialogadas. Claro, o gênero não determina a boa gestão ou o caráter. O que os números indicam é que não há motivos para não eleger prefeitas e vereadoras.
Essa explosão de vontade
consciente, coordenada,
compromissada e qualificada
emoldura o voto feminista.
Um voto que está na urna, mas principalmente fora dela, na ação política do cotidiano, de resistência em várias frentes pela emancipação de todas, superando o bem-viver para chegar no que a ativista feminista boliviana Julieta Paredes prefere chamar de viver bem, fazendo com maestria uso da semântica como estratégia política para narrar o mundo como o queremos:
“Dizemos viver bem pois primeiro vem o viver, depois o bem. O ‘viver’ envolve a água, o pão, a tapioca, como dizem aqui. Primeiro é necessário cuidar da vida. E depois, construir o ‘bem’, que é com todos e com todas, não somente com a humanidade, mas também com a mãe e irmã natureza. E não é o “Viver Bem” de uma pessoa. Você não pode viver bem se ao seu lado tiver uma comunidade, um vizinho, um irmão ou pessoas na rua passando fome”.
Novos reconhecimentos sobre a realidade exigem uma nova linguagem, uma outra postura. Um voto feminista. A linguagem-ação do corpo, da prática política, das estratégias de luta, o poder em disputa, tudo precisa ser essencialmente diferente para mover a pesada engrenagem cultural. Sem uma vigorosa agenda antissistêmica, o pouco que sai do lugar é empurrado de volta.
Votar com convicção numa mulher feminista, acreditando em seu compromisso, na sua competência e no projeto político que ela carrega é empurrar a pedra com toda a força. Imagina a engrenagem sendo empurrada milímetro a milímetro em cada voto feminista! O impacto cumulativo é de uma potência inigualável.
É uma jornada inconclusa, em curso, fundada na experiência feminista que vem de longe e nos transcende, convocando à ação. Por todas e por cada uma, pela radicalidade – da raiz – sem intransigência. Para que as mulheres, em toda a sua diversidade, negras, LBTQI+, brancas, latinas, com deficiência, periféricas sejam atrizes múltiplas da política: como eleitoras, candidatas eleitas, cidadãs, profissionais, ativistas. Para que todas possam comandar a gestão de uma sociedade mais justa, democrática e livre.
O voto feminista é uma rasteira
nas certezas cristalizadas como
leis da natureza. É nó em pingo
d’água para desconstruir o castelo
de superioridades descabidas.
Não haverá vida digna sem o enfrentamento dessas desigualdades, que tendem a se perpetuar até que a tomada de consciência seja amplamente coletiva e o voto feminista alcance a massa crítica, que é aquele número mínimo a ser atingido para que grupos desfavorecidos consigam somar uma força capaz de se manter e ampliar suas condições de disputa
Com 30% de mulheres diversas eleitas para as câmaras municipais e as prefeituras (e em todas as esferas de poder) é possível alterar a correlação de forças, ainda em bastante desvantagem, porém não mais em desamparo ou exclusão. A onda do voto feminista nessas eleições pode acelerar o lento crescimento feminino nos poderes executivo e legislativo.
De 1995, quando tiveram início as frágeis iniciativas institucionais para reduzir a assustadora disparidade de gênero na política, chegamos à exigência de preenchimento do mínimo de 30% e máximo de 70% de candidaturas de cada gênero, além das determinações para direcionamento de 30% do fundo de campanhas, do tempo de TV e rádio, e a recente definição pela distribuição de recursos com base na proporcionalidade racial. São avanços vindos de muita luta dos movimentos de mulheres e organizações sociais diversas, mas, ainda assim, os dados nos chocam: em 2016 foram eleitas apenas 11,5% de mulheres para as prefeituras e 13,5% para as câmaras municipais.
Sabemos o que fazer: “tá na hora de reagir, entender que somos gigantes, ocupar o nosso lugar. Acolher nossas almas”, canta, contundente, Flaira Ferro. O voto feminista é capaz de reduzir as violências do processo eleitoral para as mulheres, especialmente as negras e periféricas, que pela série de exclusões são as mais desconhecidas e distantes do mínimo apoio.
O voto feminista é capaz de representar uma mensagem-repúdio aos partidos que fraudam o sistema eleitoral, burlam as cotas e desviam (ou barram) recursos para impedir a presença competitiva de mulheres e manter uma vantagem ilícita na disputa pelo poder. Votar nelas é uma reação pessoal, social e política contra as violências econômicas, partidárias e simbólicas que fraturam a democracia e excluem as mulheres dos espaços onde tudo sobre nossas vidas é decidido.
O voto feminista é capaz de eleger
mais vereadoras e prefeitas e com
elas remar para equilibrar corpos,
agendas e direitos na política.
Não é mágica e nem começou agora, mas no nosso tempo histórico podemos alavancar a retomada da verdadeira democracia feminista, que é para todas as pessoas.
É uma agenda de luta que de tão imensa parece (querem que pareça) abstrata. Mas não é. Está entrelaçada com todos os contextos do viver, num fio condutor irradiado pela política institucional, que por sua vez está relacionada ao voto de domingo (e a todos os que já demos), à postura do guarda de trânsito, ao contrato de aluguel, à definição do orçamento público, ao livro indicado na sala de aula, à linguagem, ao preço do pão.
Está relacionada ao sucateamento da rede pública de saúde, ao assédio no transporte público (e fora dele), às pesquisas sobre células tronco, à falta de creche, à nossa aposentadoria, ao feminicídio, às mulheres na América Latina, ao poste na rua, à internet que usamos, à sentença de estupro culposo, à programação da TV, à água que não chega e até ao lamento do jogador Robinho pela existência do feminismo, numa lista simplesmente infinita.
A condução da cidade, lugar de vivência, experiência, dores e alegrias, precisa estar a serviço da democracia e do Estado de Direito. Garantir a viabilidade das pautas historicamente reivindicadas pelas mulheres, passando necessariamente pelo seu direito de escolha, pela autonomia sobre seu corpo e o direito à vida.
Vamos juntas nessa jornada? Vai ser com emoção, coração batendo forte e muita vontade de atingir a paridade ao lado das Hermanas da América Latina e construir um mundo novo.
Meu Voto Será Feminista
O projeto-ação Meu Voto Será Feminista potencializa lideranças feministas a atuarem nos espaços de poder de modo cada vez mais qualificado, coletivo, solidário e conectado às demandas sociais das mulheres. Funcionamos como uma mandala: incidência política – pesquisa – apoio e fortalecimento das eleitas – fomento ao debate sobre a participação política feminina – impulsionamento de campanhas. O círculo gira a cada processo eleitoral, num momento-pulsão para viabilizar a chegada ao poder de forma multiplicada, em soma às que já exercem a luta nos espaços institucionais, e ativando as demais ações do projeto.
Juliana Romão é jornalista, mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora da inclusão de gênero na linguagem, membra da PartidA e co-criadora do projeto Meu Voto Será Feminista.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
domingo, 22 de novembro de 2020
Guia de Guimarães Rosa, vaqueiro narra viagem que inspirou "Grande Sertão: Veredas"
Guimarães Rosa, no Sertão de Minas Gerais, 1952 (Foto: Eugênio Silva/ O Cruzeiro)
Da viagem que Guimarães Rosa fez pelo sertão mineiro, em maio de 1952, ficaram algumas lembranças na memória dos oito vaqueiros que acompanharam o escritor. Com a morte de Manuelzão, em 1997, acreditava-se que o legado da viagem havia se perdido por completo. Engano. A Cult viajou até a cidade de Três Marias, a 230 quilômetros de Belo Horizonte, e obteve o depoimento de João Henrique Ribeiro, o seu Zito, vaqueiro que acompanhou o escritor em sua viagem por mais de 40 léguas sertão adentro.
Pesquisando os arquivos de Rosa, surpreendentemente, o que se descobre é que Zito foi a grande fonte do escritor, sendo citado em suas anotações como o mais esperto dos vaqueiros que conheceu durante a viagem. Guia e cozinheiro da tropa, Zito ia à frente e era quem conversava com o escritor durante quase todo o tempo, dedicando boa parte de suas horas às indagações e dúvidas de Rosa.
Todas as noites, encerrado o trabalho dos vaqueiros, Zito sentava-se à beira da fogueira e escrevia versos que narravam o que havia acontecido durante o decorrer do dia. Esses versos foram registrados nas cadernetas de viagem de Guimarães Rosa, que se encontram atualmente arquivadas no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP), em São Paulo. Aos 74 anos, morando numa casa muito simples no interior de Minas Gerais, Zito guarda com orgulho os jornais da época, os quais trazem sua foto ainda jovem ao lado do escritor. Com memória e inteligência assustadoras, seu Zito conta alguns trechos da viagem que marcou a obra do escritor e que está repleta de muitas outras histórias.
CULT – O senhor se lembra do dia em que o Rosa chegou para a viagem?
Seu Zito – Lembro, foi em 16 de maio de 1952. Foi aquela grande confusão. Foi muita gente ver. O povo achava que o Rosa era Cristo. Ele chegou lá uma tarde e no dia seguinte o padre chegou também. A fazenda era do primo dele, o Francisco Moreira. Eu saí da Sirga (fazenda localizada no município de Três Marias), fui em Araçaí e busquei a besta que ele tá montado na foto que saiu no jornal, que chamava Balalaica. O arreio também foi eu que busquei. Eu trouxe umas vinte rês, uma novilha e essa besta. O Rosa veio num jipe de lá de Araçaí. Ele veio pra Belo Horizonte, pra Sete Lagoas, lá pegaram esse jipe e ele veio mais um compadre de Chico Moreira. Ele chegou três dias antes de sair a boiada pra conhecer um pouco mais.
Lá na Sirga mesmo, tinha um lugar em que a água ia batendo no barranco, tem até hoje esse lugar, só que fizeram uma ponte. E lá tinha um sabiá cantando e o Rosa ficou encantado. “Que qué isso São Pedro? Cadê a chuva? Que que há São Pedro?”. [imita o passarinho cantando]. O sabiá tava pedindo chuva, ele falava direitinho. Sabiá é aquele marronzinho. O Rosa ficou entusiasmado com aquilo. Aí, nós seguimos e encontramos com uma dona, ela era muito bonitinha, era uma comadre minha, tava mais nova, vestindo uma sainha muito curtinha. E Rosa ficou olhando pro lado dela e eu falei: “Rosa, isso não é da sua conta não”. (risos) Aí ele brincou, deu risada, e tudo. Tinha umas cachacinhas, mas ele não tomou não, ele não gostava. Eu tomei. Aí subimos e fomos pra casa, passando por uma capelinha. Tinha um horror de gente já arrumando ela, que ia ter que levantar o mastro da festa.
Então houve uma festa antes da saída da boiada?
Teve sim uma festa, no outro dia. À tardinha nós fomos embora. Saímos e fomos nos gerais. É lá que falam que teve uma garrafa com biscoito. Não teve garrafa com biscoito nenhum, eu que estava com ele. Quando foi no outro dia, o padre chegou e teve a missa e ele foi à missa. Eu fiquei ocupado com a festa e não lembro com quem que ele saiu depois. Quando foi no dia seguinte, teve a festa, ele dançou e gostou. Ele fazia tudo quanto há, fazia direitinho. Tinha de tudo, nós dançamos, o Rosa dançou, tinha comida, o padre era muito bom, teve missa, levantou o mastro, era procissão. Nessa época aí era um festão, era só isso que tinha.
E havia sempre essa festa?
Essa festa começou logo que a mãe do Manuelzão morreu. Fazia todo ano, naquela casa que tinha uma cagaiteira (árvore típica do cerrado). Primeiro era só a missa. Lá onde o Manuelzão construiu a capelinha, onde tá enterrada a mãe e a primeira esposa dele. Lá tem um cruzeirão grande, fui eu que mandei fazer, com um compadre meu, o Chico Barbosa. O Rosa gostava muito dele também, que ele tocava rabeca. Tudo isso era uma coisa que ninguém pensava. Passou muito tempo sem ninguém mexer nessas histórias. Sempre lembro de muita coisa, mas às vezes esqueço de tudo.
E aí quando foi no outro dia, terminou tudo. Foi no dia 19 que nós saímos pra viagem. Eu juntei o gado e fui apartar. Tem um lugar na história que fala: “na apartação do gado tinha um velho Santana”. Ele tomou um coice, tinha um boi muito bravo, ele chegou o ferrão no boi e o boi deu um coice e ele caiu. Aí eu falei: “traz um pouco de vinagre com rapadura”. Isso tá escrito no jornal e nos cadernos do Rosa. Ele tomou o chá e melhorou. Não tinha remédio, era tudo inventado aqui. Papaconha, cidreira… esses eram os remédios. Até hoje a gente toma, contra gripe.
Tudo é por Deus, não por homem, eu, você, a moça não. É por Deus. Deus é que criou isso tudo. Aqui tem um outro remédio chamado tiú. Só acha ele na sexta-feira da Paixão. Você pode andar o campo inteiro e você não acha não. Na sexta-feira ele amanhece todo cheio de folha. É uma batatinha assim ó. É um ótimo remédio pra gripe, pra dor por dentro. É o remédio que a gente tinha pra curar. Você arranca ele e faz um chá. Aqui não tem não, é só na Sirga que tem, nas veredas, e só lá que eu conheço.
Quais eram as fazendas e como foi a passagem por elas?
Na saída da boiada tinham dezessete vaqueiros, porque a boiada sai brava, correndo, é pra evitar uma ribada. Quando chegou perto de uma ponte, lá em cima, saindo da Sirga, voltaram oito e seguimos em nove. Saiu da Sirga mesmo. Lá era a casa do Manuelzão. Ele era funcionário do Chico Moreira. Nós que construímos tudo aquilo. De lá fomos pra Tolda, uma fazenda bonita, onde passa um riachinho dentro da cozinha. Na Tolda dormimos na casa de uma senhora chamada Iara Tancredo. Tem a casa até hoje, e onde era o quarto hoje é uma sala.
Depois da Tolda, indo pra Andrequicé, tinha uma vereda. Aí o Rosa viu uns passarinhos e de brincadeira pediu pra eu dar um tiro de revólver. Isso tem no livro Tutaméia. Lá em Andrequicé, na casa de Pedro Mendes, ele dançou de novo. Era uma casa de assoalho velho, uma casa velha, um curral bonito e tinha uma vitrolinha de corda. O Rosa gostou muito. Depois fomos pro Catatau e eu pedi pra arrumar uma cama pra ele, e ele dormiu melhor. Era colchão de palha, tudo feito na roça, no chão. Saímos do Catatau e fomos pro Riacho das vacas. Também ia dando cama.
Depois do Catatau nós fomos no Meleiro. Lá o velho falou: “Cê vai jantar comigo”. Tinha frango, nós comemos arroz, feijão, carne. Não tinha mais nada. Ah, tinha também um angu de muitos dias, descascava e comia aquilo. Mas o Rosa não quis comer não. “Se eu comer angu que mosquito passeou, barata…”, ele disse. Ele até inventava muita coisa. Aí fomos pro Barreiro do Mato. Lá o Rosa dormiu dentro de uma forma de rapadura. Depois passamos na fazenda do Juvenal, na Fazenda Ventania, Riacho da Areia, que era de um paulista. O Rosa jantou bem. Lá tem até hoje o prato em que o Rosa comeu. Você pede pra Dona Antonieta, mulher do Juvenal, e ela tem o prato, o garfo, a colher, tem a cama, tudo guardado. E o Rosa ficou satisfeito demais. Comeu, comeu.
Juvenal tinha um filho chamado Geraldo, que mora em Mascarenhas (pequeno distrito da região de Curvelo), tava doente, de cama mesmo. E aí o Rosa falou: “Deixa eu ver ele”; e falou: “Ele tá com febre, ele tá com sarampo. Você pega umas folhas de laranja e faz um chá”. O Rosa olhou no bolso da camisa, tinha um Melhoral e deu pra ele. Tomou, em dois dias cortou a febre e o rapaz amanheceu bom. O sarampo saiu. Chá de folha de laranjeira. Isso tudo tá escrito.
Aí quando saiu no outro dia eu fui na frente da fazenda de um outro primo dele, o doutor José Saturnino, já chegando em Cordisburgo (cidade natal do escritor). Quando você passa a igrejinha do Rosário você vira à esquerda, antes da entrada que vai pra Gruta do Maquiné. Cheguei na fazenda, chamei, saiu a dona lá. Eu falei: “Tô aqui pra arrumar a pousada, que o Rosa vem aí” “Ah! Mas eu não quero, não estamos interessados, estamos com muito boi”, a dona falou. Era mentira. Eles tinham medo de “afetosa”. E olha só: dali ele podia ter ido pra casa do avô dele, ali pertinho, mas não quis. Tomava um banho, tudo direitinho… Dormia. Mas ele não quis fazer isso, não foi embora, acompanhou a gente todo dia.Aí eu fui na frente outra vez. Cheguei numa fazenda e pedi um frango. “Frango não tem, eu tenho só uma galinha velha”, disse a dona. A dona pegou pra limpar, arrumou tudo, pois pra cozinhar, sentamos pra comer, mas tava muito duro. O Rosa tomou só o caldo. Dormimos, saímos no outro dia e chegamos num lugar que chama Toca do Urubu; tem uma pedreira de muitos metros de altura, e lá mora urubu direto. Chegando nesse lugar, encontramos com o pessoal do Cruzeiro (Álvares Dias e Eugênio Silva . repórter e fotógrafo, respectivamente, do jornal O Cruzeiro que registraram parte da viagem de Rosa pelo sertão). Fizeram foto minha com o berrante e tudo.
O senhor era bom de berrante?
Ah, eu era bom. Batia, todo mundo suspirava. Às vezes eu batia o berrante e dizia. “Eh, não suspira não que eu vou e volto”.
Depois de Araçaí, o Rosa foi embora?
Entregou a boiada em Araçaí, numa fazenda pertinho de onde hoje é a cidade. Tinha uns currais, nós tiramos mais retratos com ele no curral, eu lacei uma vaca, peguei ela e passei a corda pelo pescoço e amarrei no rabo. Fazia tudo pontuadinho, porque tinha esperteza, tinha ligeireza. Eu cantava verso, tudo direitinho. Poesia é pra ser poeta, poeta não. Deus dá o dom pra pessoa, aquele dom ninguém pode tomar. Só agora com a doença. Ia na lapa do Bom Jesus e via um livro e comprava, comprava outro e guardava. Lia e aprendia. Se eu lesse duas vezes, eu já guardava. Depois, chegando em Araçaí eu fui pra casa do meu pai; eu, o seu Manuel (Manuelzão) e o Bindóia (morto em 98). Dormiram e noutro dia ele pegou um jipe com a carreta e foi embora.
O senhor era o guia da tropa. Qual a função do guia?
O guia vai na frente, que ele sabe da distância. Ele sabe quando é descida, dá sinal pro detrás que e pro boi não correr. Se você sabe que tem um córrego, você dá sinal pra afinar o gado e ele passar na água e não sujar demais pros que vêm atrás poder tomar. O guia fica avisando o que vai acontecer. Você é motorista, quando vai fazer uma curva você já dá um sinal, só que com o gado é com a mão. E o gado acostuma. Chega numa porteira, faz um sinal e o outro já sabe que ali é uma porteira. Tudo que você faz é com a mão, tudo sem gritar. O guia vai na frente, quando o gado chega já está o pasto arrumado, o fogo tá aceso. Já vê se a cerca tá boa, se não tem buraco.
O senhor também era cozinheiro, além de guia. O guia é sempre o cozinheiro?
Não são todas as pessoas, mas eu, durante o tempo que eu viajei com gado, em muitas boiadas eu fui cozinheiro. Eu fazia aquele entalagato. Foi o Rosa que colocou esse nome. Dizia que era comida ruim.
Então ele não gostou da comida do senhor?
Não, aquilo era só pra fazer graça. Mas não tinha nada. Só tinha arroz, feijão e carne. Frango alguma vez. Mas sempre era carne seca, carne de jabá. Eram nove pessoas, eram nove pedaços de toucinho e nove de carne. E tinha também farinha.
Qual era o nome dos outros vaqueiros que acompanharam a viagem?
Era o Tião Leite, o Santana, o Sebastião de Jesus, o Gregório, o Manuelzão, o Bindóia, eu e o João Rosa. Tem o Aquiles também, um bom violeiro. Ah, e um rapazinho que não é falado. Ele não saiu na reportagem, era menino, mas acompanhou todos os dias, devia ter saído. Tinha uns doze anos. Falado são sempre os oito, nove com o Rosa. Nós levamos trezentos e sessenta bois. Só boi grande. Eu batia o berrante e eles seguiam.
Era o senhor que ia conversando com o Rosa?
Conversei durante o tempo todo.
Sobre o que o senhor ia conversando com ele?
Falava tudo quanto era bobagem. Inventava as coisas muito bem pra conversar com ele. Às vezes não tinha mais assunto. Falava de mulher, de moça bonita. Falei muita bobagem pro Rosa e ele escrevia tudo. Eu lia muito livro, sabia tudo de cor, mas não sei mais nada. Sabia tudo quanto é bestagem.
O Rosa foi anotando tudo isso?
Tudo, ele escreveu tudo. A sucupira ele anotou, era uma baita de uma árvore. Tinha a flor roxa e a flor amarelada; ele anotou qual a diferença que tem. A diferença da madeira. Tudo tá escrito na caderneta dele.
E os versos que o senhor fez? Eram feitos quando?
Era feito durante a viagem, de noite. O que passava no dia, eu escrevia de noite.
Que tipo de história o Rosa gostava mais?
Verso, ele gostava muito de verso. Mas não aprendia nada… (risos). Eu sabia tudo de cor. Ele anotava tudo. Depois que eu adoeci, a memória ficou fraca e esqueci tudo. Depois que eu adoeci, esqueci quase tudo.
Como era o Rosa, seu Zito?
Era uma pessoa excelente, brincalhão. Ele era tão simples que ele veio do Rio e não trouxe nem gilete, nem estojo. Naquele tempo não tinha “prestibarba”, era estojo. Durante todos os dias ficou sem fazer a barba. Eu tinha, mas ele não falou nada e eu não levei. Até hoje a minha barba é pouca. Pra quem tirava a barba toda manhã, ficar dez dias sem tirar, né? A cara ficou vermelha. Mas ele era mesmo muito simples. E na viagem não podia chamar ele de Dr. João. Era Rosa, vaqueiro Rosa.
E ele sofreu muito durante a viagem?
Não tinha garrafa térmica, coava café no bule, tomava ali, e copo de vidro quase não tinha e ele não trouxe. Na beira da estrada não tinha nada, você chegava assim pra comprar um frango, pra limpar, pra picar, mas precisava ter um vasilha. Ele comeu muitos dias feijão de manhã, feijão com carne seca cozida no meio e toucinho. Separava o da janta e tomava um gole de café. À tarde comia outra vez. Se ele tivesse pensado, podia ter trazido uma garrafa, deixava na garupa dele, ué. Podia ter trazido uma marmita. Também não tinha banheiro por aqui. De tarde a gente ia tomar banho no córrego. A água era longe, dormia às vezes sem tomar banho. Não tinha água, que banho todo dia não tinha jeito. Fazenda nenhuma tinha um banheiro. A comida era um pouco pesada pra ele que não tinha costume. Mas o que ele queria era aquilo…
E na hora de dormir?
Tirava sela, lavava o cavalo, jogava ela no chão e era a cama. Forrava ela no chão, põe o pelego, a coberta, a capoteira, você punha a roupa e virava o travesseiro. Era tudo bem arrumado.
Como o Rosa dormia, era assim?
Mesma coisa, ele deitava em qualquer lugar. Dormiu até em cima de espiga de milho. E ainda que à noite ele gemeu… “Você deita igual às galinha quando tá botando ovo”, eu disse. Ele não sabia, amanheceu com um caroço na costela. Dormiu também na tábua de rapadura. Tirava os trem até dar o tamanho dele, botei capim, tudo foi eu que fiz. Chegava na casa de Dona Benedita, na casa da Dona Rita, eu pedia cama pra ele. Eu tinha entusiasmo com o povo. Não deixavam eu sair de manhã sem fazer um engrossado, que é um ovo que você frita na água, sem gordura, põe a farinha, cebola e come. Aquele trem é forte. Comia, ficava bem o dia todo.
Rosa comentou alguma coisa sobre o que faria com o material da viagem, sobre o Grande sertão: Veredas, por exemplo?
Aquele livro não foi escrito com o assunto dessa viagem. Aquele livro foi uma viagem que ele fez pra Fortaleza, numa saída de boiada. Foi na saída. E aquele Riobaldo foi alguém que contou pra ele e o resto ele inventou. Vou te contar uma coisa, você põe uma coisa que você acha que dá certo naquela história, então inventa o resto. É assim que o Rosa fez. O que Rosa escreveu foi dito por nós. Ele não sabia daquilo. O Rosa saiu de Cordisburgo rapaz novo, foi fazer medicina, participou daquela revolução de 32 e abandonou a medicina pra ir pro exterior. Aí quando ele morreu, vieram outras pessoas pra confirmar onde o Rosa passou. Mas ele inventou o resto.
E a história de que o Rosa conversava com os bois?
Ele conversava com o boi mesmo. Conversava toda a tarde. Quando chegava no pouso, eu que já tinha coado café, já tinha desarreado a besta dele, o meu burro, tudo já estava arrumado. Então ele vinha e falava: “meu boizinho tá cansado, tá com a barriga vazia…” Todo dia ele conversava, o boi era mansinho. Foi tirado retrato dele passando a mão no boi, lá no curral da fazenda. Mas eu nunca vi nenhum. Era Tarzan e Cabocla. Cabocla era uma vaca preta que eu furei o nariz dela. Ah… Se o boi falasse, a gente morria. Ele só entende o nome. O boi entendia e olhava pra ele.
Ter encontrado o Rosa mudou a vida do senhor?
Vem sempre um povo aqui pra conversar, eu converso. Mas eu não lembro muita coisa. Se for uma pessoa que eu gosto, eu lembro, se não for, eu não tô lembrado de nada. Mas eu gosto de falar do Rosa. Ele queria me levar pro Rio de Janeiro, ele dava lugar pra eu morar, ele pagava meu estudo. Mas na época eu preferi não ir, queria era ser vaqueiro.
O senhor fica orgulhoso quando alguém o procura?
Sinto muito orgulho, é uma coisa muito bonita. Eu sinto alegria em falar das coisas do Rosa. Em maio eu vou pra Sete Lagoas e vou mandar fazer outro óculos pra mim e aí eu vou voltar a ler de novo os livros dele, do Guimarães Rosa.
JOÃO CORREIA FILHO é fotojornalista especializado em Jornalismo Literário.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
Editorial: A luta entre civilização ou barbárie chega à Guatemala
Num contexto como este - de absoluto desprezo pela democracia substantiva - a democracia política fica sensivelmente comprometida, daí esses arranjos autoritários que estão se proliferando pelo mundo, em particular no continente latino-americano, onde a democracia política sempre esteve sob constantes solavancos, vitima frequente de lideranças políticas populistas ou oligárquicas. Alejandro Giammattei foi eleito com uma plataforma política ultraliberal, alinhavado com o presidente norte-americano Donald Trump. Em seu primeiro pronunciamento após os protestos, prometeu que usará de todo o rigor legal para punir os infratores, numa demonstração inequívoco que está disposto a endurecer o regime.
Os protestos na Guatemala juntam-se a outros tantos que estão ocorrendo no mundo, em contraposição a esta política autoritária e suicída, que depõe contra a civilização e a própria vida. A racionalidade ultraliberal é sinônimo de barbárie. Tudo indica que chegamos à fase mais cruel do capitalismo. Não por acaso, pensadores sociais mais consequentes estão formulando um conjunto de alternativas a este estágio infame, propondo uma alternativa pós-capitalista, que preserve a vida, o planeta, as sociabilidades, a sensibilidade, a subjetividade solidária, as possibilidade de convivência, pois, neste terreno pantanoso, estão sendo cevadas as sementes do fascismo, com sua plataforma racista, intolerante, mentirosa, destrutiva da alteridade. Tratamos aqui de uma patologia política, que só precisa desses "incentivos" para prosperarem.
Depois de dormir sono político que produziu o monstro, finalmente, a humanidade parere ter se dado conta da gravidade deste momento politico que atravessamos. Um conjunto de ações insurgentes estão produzindo alguns resultados alvissareiros, como a derrota de Donald Trump nas eleições americanas; a decisão soberana do povo chileno, que, através de um plebiscito, decidiu pela formulação de uma nova constituição para o país; a vitoria de Luis Arce nas eleições bolivianas e, agora, os protestos pacíficos na Guatemala.