pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A herança de Mestre Vitalino 🏜️

Crônica: Não fechem Jampa, por favor! ( somente se for estritamente necessário)



Como sou um apaixonado por Jampa, costumo acompanhar o que ocorre naquela cidade, com regularidade, sobretudo em momentos decisivos como este, de eleições. O interesse tornou-se ainda maior, depois das náuseas provacadas pelo baixo nível da campanha eleitoral do Recife.  Ainda hoje, conversei com o comendador sobre as eleições do segundo turno, naquela cidade, depois de acompanhar o debate entre os candidatos Cícero Lucena(PP) e Nilvan Ferreira(MDB), veiculado pelo Sistema Correio de Comunicação. Infelizmente, o candidato do comendador já está fora do páreo e ele não demonstrou grande entusiasmo sobre o resultado desse pleito. Ou seja, não tem preferência por este ou aquele candidato. 

Gostaria de registrar aqui, inclusive, uma inovação no formato do programa, antes com regras tão rígidas que tornaram esses debates burocráticos e enfadonhos. Num dos blocos, abre-se um espaço de tempo de 10 minutos para cada candidato apresentar suas propostas ao eleitorado, com a possibiolidade de ser interrompido pelo oponente. Mesmo assim, 10 minutos de televisão é uma eternidade e, se o candidato estiver realmente preparado, pode passar o seu recado ao eleitorado, discutindo, de fato, suas propostas com mais desenvoltura, demonstrando ou não o domínio sobre o seu programa de governo,  os reais problemas da cidade, assim como sua espetise sobre como enfrentá-los. Isso é muito importante para o eleitorado que está em casa, acompanhado o debate, fazer suas escolhas de forma consciente, que seria o objetivo principal desses encontros. 

Hoje, aliás, depois dessa longa conversa com o comendador, fiquei triste com a possibilidade de um possível lockdown em Jampa novamente, a partir dos próximos dias, em razão da segunda onda desta maldita Covid-19. Até entendo as razões - irei respeitá-las - mas como ficar privado das frutas do mercado de Tambaú? jacas, mangas rosas e espadas dessa época do ano? Das postas de camorim e do camarão fresco da peixaria da beira-mar? Do sorvete de chocolate africano da sorveteria Friberg, a melhor de Jampa? Dos almoços no Mangai, com sua culinária tradicional acompanhada das jarras de sucos tropicais? Dos passeios na orla, aos finais de tarde, alugando uma daquelas bicicletas familiares? Das trilhas na Bica, nos manhãs frequinhas dos domingos de janeiro? Com sorte, ainda encontramos por ali um sorvete caseiro produzido na cidade de Pilar, terra do grande escritor José Lins do Rego. E o espetáculo da florada dos Ipês do Parque Solon de Lucena? 

Muito triste com tudo isso. Nosso projeto de um registro dos lugares românticos e bucólicos de Jampa ficam sensivelmente comprometido. Como o comendador irá nos guiar por aqueles recantos que ele conhece como ninguém? Mais um lockdown e não sabemos quando possamos concluir esse trabalho, que já foi profundamente afetado pelas primei ras medidas restritivas. Agora, então, além do trabalho do livro, ainda ficaremos privados das comidas caseiras dos redutos tradicionais de Jampa, dos becos e vielas que não teríamos  a chance de conhecer sozinho. - Zé, hoje vou levar você a um boteco onde é servido o melhor sarapetel da cidade. Depois vou te mostrar a antiga casa de pensão de Nininha, hoje transformada numa casa de bons constumes. E, assim, aos poucos, bairro por bairro, rua por rua, fomos conhecendo a cidade. Claro que, de forma consciente, vamos entender as razões sanitárias e de saúde pública que sugerem um novo lockdown. Países europeus já começaram a adotar essas medidas. No Brasil, há um avanço de casos e mortes pela Covid-19. Entendo, sim, as razões e irei respeitá-las. Mas que vou sentir muita falta, ah isso vou! 


José Luiz Gomes

 

O voto feminista é revolucionário

 


O voto feminista é revolucionário
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Manifestação 8M em Belo Horizonte, 2020 (Foto: Catarina Barbosa)

 

O voto feminista emancipa as mulheres de forma arrebatadora. É um romper de silêncios profundos, do esmagamento cotidiano, do quase não existir. É a possibilidade de escrever de próprio punho o projeto de vida (de rua, de cidade, de país) onde a justiça social seja meta primeira e a agenda sócio-político-econômica tenha um sentido concreto na vida das mulheres, especialmente as mais vulneráveis, mas não somente elas; que seja palpável na realidade cotidiana de todas as pessoas. Da megalópole à cidadezinha mais distante.

Em 23% das câmaras municipais não houve vereadoras eleitas em 2016, segundo dados do TSE. É um dano social gigantesco, que penaliza ainda mais as mulheres e todo o seu entorno. O exemplo da creche é simbólico, pois ela altera imediatamente a vida da mulher e das crianças. A médio prazo, mexe na vida de toda a rua, e por fim, da cidade inteira. Com creche qualificada, uma mulher pode trabalhar, conquistar o valioso tempo da reflexão, aumentar sua renda, estudar, fazer circular a economia do bairro. A criança, bem cuidada, aprende mais, melhor, cria raízes positivas na comunidade e chega na escola com muito mais preparo, desfazendo uma desigualdade que era quase destino. Pois bem, a quem interessam as creches? Quem vai mais lutar por elas?

A força do voto das mulheres pode ser medida pela resistência a ele. Somente em 1932 o Congresso brasileiro aprovou o voto feminino, nos primeiros anos ainda parcial, com a inaceitável exigência de autorização do marido ou do pai. Hoje, em 2020, toda mulher é livre na cabine eleitoral. Não é um pormenor. Ali, de cara com a urna, talvez mais do que em qualquer outro momento da vida cotidiana, o poder, o sonho e a autonomia ocupam a mesma frase, o mesmo espaço. É revolucionário o poder de poder!

Ainda há mulheres que chegam no dia das eleições com o voto determinado, no “cabresto”, pela ala masculina da família ou das relações sociais, como se estivéssemos nos anos 1920, quando ao universo feminino só cabia obedecer, executar e silenciar. É um tempo passado que é presente, e essas mulheres merecem toda a acolhida… sabemos o quanto as violências paralisam.

A elas, dois lembretes: 1. na cabine eleitoral transformamos números na esperança de ser livre também fora dela. 2. Lutamos pela emancipação de todas, incluindo as que nem nasceram, as que ainda não conseguem, as que não querem – pois no fundo entendemos que esse “não querer” é um provável desejo ensinado para sustentar o estado de coisas. Como sentencia Rebecca Solnit: “o que chamamos de boa educação, muitas vezes significa aprender que o bem-estar alheio é mais importante”.

Todas serão feministas, é só uma questão de tempo. O processo de conscientização sobre as injustiças, no entanto, é dolorido e exige maturação. Do tempo da troca e da reflexão – quando a dor individual e moralizante se mostra coletiva e politizada; e do tempo contínuo, do assentamento dos saberes, da transformação interna na nova pessoa que nasce ressignificando o corpo, a narrativa e o contexto que anteriormente existiam. A tomada de consciência – semente do feminismo –, tal qual uma nova alfabetização sobre a nossa existência no mundo, é irreversível e avassaladora. Nos move contra o curso do rio, impelidas a construir uma estrutura social que seja mais justa e democrática. Que nos caiba, que nos enxergue.

E é possível. Pesquisas mostram que, onde há prefeitas, é menor o número de mortes de crianças, pois a atenção a políticas voltadas à primeira infância é mais consistente. As mulheres conseguem captar mais recursos, fazer mais parcerias. Estudos também mostram que em gestões femininas há menos corrupção e processos por fraude. São gestões competentes, de superação, da busca por soluções criativas, dialogadas. Claro, o gênero não determina a boa gestão ou o caráter. O que os números indicam é que não há motivos para não eleger prefeitas e vereadoras.

 

Essa explosão de vontade
consciente, coordenada,
compromissada e qualificada
emoldura o voto feminista.

 

 

Um voto que está na urna, mas principalmente fora dela, na ação política do cotidiano, de resistência em várias frentes pela emancipação de todas, superando o bem-viver para chegar no que a ativista feminista boliviana Julieta Paredes prefere chamar de viver bem, fazendo com maestria uso da semântica como estratégia política para narrar o mundo como o queremos:

“Dizemos viver bem pois primeiro vem o viver, depois o bem. O ‘viver’ envolve a água, o pão, a tapioca, como dizem aqui. Primeiro é necessário cuidar da vida. E depois, construir o ‘bem’, que é com todos e com todas, não somente com a humanidade, mas também com a mãe e irmã natureza. E não é o “Viver Bem” de uma pessoa. Você não pode viver bem se ao seu lado tiver uma comunidade, um vizinho, um irmão ou pessoas na rua passando fome”.

Novos reconhecimentos sobre a realidade exigem uma nova linguagem, uma outra postura. Um voto feminista. A linguagem-ação do corpo, da prática política, das estratégias de luta, o poder em disputa, tudo precisa ser essencialmente diferente para mover a pesada engrenagem cultural. Sem uma vigorosa agenda antissistêmica, o pouco que sai do lugar é empurrado de volta.

Votar com convicção numa mulher feminista, acreditando em seu compromisso, na sua competência e no projeto político que ela carrega é empurrar a pedra com toda a força. Imagina a engrenagem sendo empurrada milímetro a milímetro em cada voto feminista! O impacto cumulativo é de uma potência inigualável.

É uma jornada inconclusa, em curso, fundada na experiência feminista que vem de longe e nos transcende, convocando à ação. Por todas e por cada uma, pela radicalidade – da raiz – sem intransigência. Para que as mulheres, em toda a sua diversidade, negras, LBTQI+, brancas, latinas, com deficiência, periféricas sejam atrizes múltiplas da política: como eleitoras, candidatas eleitas, cidadãs, profissionais, ativistas. Para que todas possam comandar a gestão de uma sociedade mais justa, democrática e livre.

 

O voto feminista é uma rasteira
nas certezas cristalizadas como
leis da natureza. É nó em pingo
d’água para desconstruir o castelo
de superioridades descabidas.

 

 

Não haverá vida digna sem o enfrentamento dessas desigualdades, que tendem a se perpetuar até que a tomada de consciência seja amplamente coletiva e o voto feminista alcance a massa crítica, que é aquele número mínimo a ser atingido para que grupos desfavorecidos consigam somar uma força capaz de se manter e ampliar suas condições de disputa

Com 30% de mulheres diversas eleitas para as câmaras municipais e as prefeituras (e em todas as esferas de poder) é possível alterar a correlação de forças, ainda em bastante desvantagem, porém não mais em desamparo ou exclusão. A onda do voto feminista nessas eleições pode acelerar o lento crescimento feminino nos poderes executivo e legislativo.

De 1995, quando tiveram início as frágeis iniciativas institucionais para reduzir a assustadora disparidade de gênero na política, chegamos à exigência de preenchimento do mínimo de 30% e máximo de 70% de candidaturas de cada gênero, além das determinações para direcionamento de 30% do fundo de campanhas, do tempo de TV e rádio, e a recente definição pela distribuição de recursos com base na proporcionalidade racial. São avanços vindos de muita luta dos movimentos de mulheres e organizações sociais diversas, mas, ainda assim, os dados nos chocam: em 2016 foram eleitas apenas 11,5% de mulheres para as prefeituras e 13,5% para as câmaras municipais.

Sabemos o que fazer: “tá na hora de reagir, entender que somos gigantes, ocupar o nosso lugar. Acolher nossas almas”, canta, contundente, Flaira Ferro. O voto feminista é capaz de reduzir as violências do processo eleitoral para as mulheres, especialmente as negras e periféricas, que pela série de exclusões são as mais desconhecidas e distantes do mínimo apoio.

O voto feminista é capaz de representar uma mensagem-repúdio aos partidos que fraudam o sistema eleitoral, burlam as cotas e desviam (ou barram) recursos para impedir a presença competitiva de mulheres e manter uma vantagem ilícita na disputa pelo poder. Votar nelas é uma reação pessoal, social e política contra as violências econômicas, partidárias e simbólicas que fraturam a democracia e excluem as mulheres dos espaços onde tudo sobre nossas vidas é decidido.

 

O voto feminista é capaz de eleger
mais vereadoras e prefeitas e com
elas remar para equilibrar corpos,
agendas e direitos na política.

 

 

Não é mágica e nem começou agora, mas no nosso tempo histórico podemos alavancar a retomada da verdadeira democracia feminista, que é para todas as pessoas.

É uma agenda de luta que de tão imensa parece (querem que pareça) abstrata. Mas não é. Está entrelaçada com todos os contextos do viver, num fio condutor irradiado pela política institucional, que por sua vez está relacionada ao voto de domingo (e a todos os que já demos), à postura do guarda de trânsito, ao contrato de aluguel, à definição do orçamento público, ao livro indicado na sala de aula, à linguagem, ao preço do pão.

Está relacionada ao sucateamento da rede pública de saúde, ao assédio no transporte público (e fora dele), às pesquisas sobre células tronco, à falta de creche, à nossa aposentadoria, ao feminicídio, às mulheres na América Latina, ao poste na rua, à internet que usamos, à sentença de estupro culposo, à programação da TV, à água que não chega e até ao lamento do jogador Robinho pela existência do feminismo, numa lista simplesmente infinita.

A condução da cidade, lugar de vivência, experiência, dores e alegrias, precisa estar a serviço da democracia e do Estado de Direito. Garantir a viabilidade das pautas historicamente reivindicadas pelas mulheres, passando necessariamente pelo seu direito de escolha, pela autonomia sobre seu corpo e o direito à vida.

Vamos juntas nessa jornada? Vai ser com emoção, coração batendo forte e muita vontade de atingir a paridade ao lado das Hermanas da América Latina e construir um mundo novo.

Meu Voto Será Feminista

O projeto-ação Meu Voto Será Feminista potencializa lideranças feministas a atuarem nos espaços de poder de modo cada vez mais qualificado, coletivo, solidário e conectado às demandas sociais das mulheres. Funcionamos como uma mandala: incidência política – pesquisa – apoio e fortalecimento das eleitas – fomento ao debate sobre a participação política feminina – impulsionamento de campanhas. O círculo gira a cada processo eleitoral, num momento-pulsão para viabilizar a chegada ao poder de forma multiplicada, em soma às que já exercem a luta nos espaços institucionais, e ativando as demais ações do projeto.

Juliana Romão é jornalista, mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora da inclusão de gênero na linguagem, membra da PartidA e co-criadora do projeto Meu Voto Será Feminista.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Montanaro via Folha de São Paulo


 

domingo, 22 de novembro de 2020

Entrevista a Patricio Guzmán, documental como reconstructor de la memoria

Guia de Guimarães Rosa, vaqueiro narra viagem que inspirou "Grande Sertão: Veredas"

 


Guia de Guimarães Rosa, vaqueiro narra viagem que inspirou ‘Grande Sertão: Veredas’
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Guimarães Rosa, no Sertão de Minas Gerais, 1952 (Foto: Eugênio Silva/ O Cruzeiro)

 

Da viagem que Guimarães Rosa fez pelo sertão mineiro, em maio de 1952, ficaram algumas lembranças na memória dos oito vaqueiros que acompanharam o escritor. Com a morte de Manuelzão, em 1997, acreditava-se que o legado da viagem havia se perdido por completo. Engano. A Cult viajou até a cidade de Três Marias, a 230 quilômetros de Belo Horizonte, e obteve o depoimento de João Henrique Ribeiro, o seu Zito, vaqueiro que acompanhou o escritor em sua viagem por mais de 40 léguas sertão adentro.

Pesquisando os arquivos de Rosa, surpreendentemente, o que se descobre é que Zito foi a grande fonte do escritor, sendo citado em suas anotações como o mais esperto dos vaqueiros que conheceu durante a viagem. Guia e cozinheiro da tropa, Zito ia à frente e era quem conversava com o escritor durante quase todo o tempo, dedicando boa parte de suas horas às indagações e dúvidas de Rosa.

Todas as noites, encerrado o trabalho dos vaqueiros, Zito sentava-se à beira da fogueira e escrevia versos que narravam o que havia acontecido durante o decorrer do dia. Esses versos foram registrados nas cadernetas de viagem de Guimarães Rosa, que se encontram atualmente arquivadas no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP), em São Paulo. Aos 74 anos, morando numa casa muito simples no interior de Minas Gerais, Zito guarda com orgulho os jornais da época, os quais trazem sua foto ainda jovem ao lado do escritor. Com memória e inteligência assustadoras, seu Zito conta alguns trechos da viagem que marcou a obra do escritor e que está repleta de muitas outras histórias.

CULT – O senhor se lembra do dia em que o Rosa chegou para a viagem?

Seu Zito – Lembro, foi em 16 de maio de 1952. Foi aquela grande confusão. Foi muita gente ver. O povo achava que o Rosa era Cristo. Ele chegou lá uma tarde e no dia seguinte o padre chegou também. A fazenda era do primo dele, o Francisco Moreira. Eu saí da Sirga (fazenda localizada no município de Três Marias), fui em Araçaí e busquei a besta que ele tá montado na foto que saiu no jornal, que chamava Balalaica. O arreio também foi eu que busquei. Eu trouxe umas vinte rês, uma novilha e essa besta. O Rosa veio num jipe de lá de Araçaí. Ele veio pra Belo Horizonte, pra Sete Lagoas, lá pegaram esse jipe e ele veio mais um compadre de Chico Moreira. Ele chegou três dias antes de sair a boiada pra conhecer um pouco mais.

Lá na Sirga mesmo, tinha um lugar em que a água ia batendo no barranco, tem até hoje esse lugar, só que fizeram uma ponte. E lá tinha um sabiá cantando e o Rosa ficou encantado. “Que qué isso São Pedro? Cadê a chuva? Que que há São Pedro?”. [imita o passarinho cantando]. O sabiá tava pedindo chuva, ele falava direitinho. Sabiá é aquele marronzinho. O Rosa ficou entusiasmado com aquilo. Aí, nós seguimos e encontramos com uma dona, ela era muito bonitinha, era uma comadre minha, tava mais nova, vestindo uma sainha muito curtinha. E Rosa ficou olhando pro lado dela e eu falei: “Rosa, isso não é da sua conta não”. (risos) Aí ele brincou, deu risada, e tudo. Tinha umas cachacinhas, mas ele não tomou não, ele não gostava. Eu tomei. Aí subimos e fomos pra casa, passando por uma capelinha. Tinha um horror de gente já arrumando ela, que ia ter que levantar o mastro da festa.

Então houve uma festa antes da saída da boiada?

Teve sim uma festa, no outro dia. À tardinha nós fomos embora. Saímos e fomos nos gerais. É lá que falam que teve uma garrafa com biscoito. Não teve garrafa com biscoito nenhum, eu que estava com ele. Quando foi no outro dia, o padre chegou e teve a missa e ele foi à missa. Eu fiquei ocupado com a festa e não lembro com quem que ele saiu depois. Quando foi no dia seguinte, teve a festa, ele dançou e gostou. Ele fazia tudo quanto há, fazia direitinho. Tinha de tudo, nós dançamos, o Rosa dançou, tinha comida, o padre era muito bom, teve missa, levantou o mastro, era procissão. Nessa época aí era um festão, era só isso que tinha.

E havia sempre essa festa?

Essa festa começou logo que a mãe do Manuelzão morreu. Fazia todo ano, naquela casa que tinha uma cagaiteira (árvore típica do cerrado). Primeiro era só a missa. Lá onde o Manuelzão construiu a capelinha, onde tá enterrada a mãe e a primeira esposa dele. Lá tem um cruzeirão grande, fui eu que mandei fazer, com um compadre meu, o Chico Barbosa. O Rosa gostava muito dele também, que ele tocava rabeca. Tudo isso era uma coisa que ninguém pensava. Passou muito tempo sem ninguém mexer nessas histórias. Sempre lembro de muita coisa, mas às vezes esqueço de tudo.

E aí quando foi no outro dia, terminou tudo. Foi no dia 19 que nós saímos pra viagem. Eu juntei o gado e fui apartar. Tem um lugar na história que fala: “na apartação do gado tinha um velho Santana”. Ele tomou um coice, tinha um boi muito bravo, ele chegou o ferrão no boi e o boi deu um coice e ele caiu. Aí eu falei: “traz um pouco de vinagre com rapadura”. Isso tá escrito no jornal e nos cadernos do Rosa. Ele tomou o chá e melhorou. Não tinha remédio, era tudo inventado aqui. Papaconha, cidreira… esses eram os remédios. Até hoje a gente toma, contra gripe.

Tudo é por Deus, não por homem, eu, você, a moça não. É por Deus. Deus é que criou isso tudo. Aqui tem um outro remédio chamado tiú. Só acha ele na sexta-feira da Paixão. Você pode andar o campo inteiro e você não acha não. Na sexta-feira ele amanhece todo cheio de folha. É uma batatinha assim ó. É um ótimo remédio pra gripe, pra dor por dentro. É o remédio que a gente tinha pra curar. Você arranca ele e faz um chá. Aqui não tem não, é só na Sirga que tem, nas veredas, e só lá que eu conheço.

Quais eram as fazendas e como foi a passagem por elas?

Na saída da boiada tinham dezessete vaqueiros, porque a boiada sai brava, correndo, é pra evitar uma ribada. Quando chegou perto de uma ponte, lá em cima, saindo da Sirga, voltaram oito e seguimos em nove. Saiu da Sirga mesmo. Lá era a casa do Manuelzão. Ele era funcionário do Chico Moreira. Nós que construímos tudo aquilo. De lá fomos pra Tolda, uma fazenda bonita, onde passa um riachinho dentro da cozinha. Na Tolda dormimos na casa de uma senhora chamada Iara Tancredo. Tem a casa até hoje, e onde era o quarto hoje é uma sala.

Depois da Tolda, indo pra Andrequicé, tinha uma vereda. Aí o Rosa viu uns passarinhos e de brincadeira pediu pra eu dar um tiro de revólver. Isso tem no livro Tutaméia. Lá em Andrequicé, na casa de Pedro Mendes, ele dançou de novo. Era uma casa de assoalho velho, uma casa velha, um curral bonito e tinha uma vitrolinha de corda. O Rosa gostou muito. Depois fomos pro Catatau e eu pedi pra arrumar uma cama pra ele, e ele dormiu melhor. Era colchão de palha, tudo feito na roça, no chão. Saímos do Catatau e fomos pro Riacho das vacas. Também ia dando cama.

Depois do Catatau nós fomos no Meleiro. Lá o velho falou: “Cê vai jantar comigo”. Tinha frango, nós comemos arroz, feijão, carne. Não tinha mais nada. Ah, tinha também um angu de muitos dias, descascava e comia aquilo. Mas o Rosa não quis comer não. “Se eu comer angu que mosquito passeou, barata…”, ele disse. Ele até inventava muita coisa. Aí fomos pro Barreiro do Mato. Lá o Rosa dormiu dentro de uma forma de rapadura. Depois passamos na fazenda do Juvenal, na Fazenda Ventania, Riacho da Areia, que era de um paulista. O Rosa jantou bem. Lá tem até hoje o prato em que o Rosa comeu. Você pede pra Dona Antonieta, mulher do Juvenal, e ela tem o prato, o garfo, a colher, tem a cama, tudo guardado. E o Rosa ficou satisfeito demais. Comeu, comeu.

Juvenal tinha um filho chamado Geraldo, que mora em Mascarenhas (pequeno distrito da região de Curvelo), tava doente, de cama mesmo. E aí o Rosa falou: “Deixa eu ver ele”; e falou: “Ele tá com febre, ele tá com sarampo. Você pega umas folhas de laranja e faz um chá”. O Rosa olhou no bolso da camisa, tinha um Melhoral e deu pra ele. Tomou, em dois dias cortou a febre e o rapaz amanheceu bom. O sarampo saiu. Chá de folha de laranjeira. Isso tudo tá escrito.

Aí quando saiu no outro dia eu fui na frente da fazenda de um outro primo dele, o doutor José Saturnino, já chegando em Cordisburgo (cidade natal do escritor). Quando você passa a igrejinha do Rosário você vira à esquerda, antes da entrada que vai pra Gruta do Maquiné. Cheguei na fazenda, chamei, saiu a dona lá. Eu falei: “Tô aqui pra arrumar a pousada, que o Rosa vem aí” “Ah! Mas eu não quero, não estamos interessados, estamos com muito boi”, a dona falou. Era mentira. Eles tinham medo de “afetosa”. E olha só: dali ele podia ter ido pra casa do avô dele, ali pertinho, mas não quis. Tomava um banho, tudo direitinho… Dormia. Mas ele não quis fazer isso, não foi embora, acompanhou a gente todo dia.Aí eu fui na frente outra vez. Cheguei numa fazenda e pedi um frango. “Frango não tem, eu tenho só uma galinha velha”, disse a dona. A dona pegou pra limpar, arrumou tudo, pois pra cozinhar, sentamos pra comer, mas tava muito duro. O Rosa tomou só o caldo. Dormimos, saímos no outro dia e chegamos num lugar que chama Toca do Urubu; tem uma pedreira de muitos metros de altura, e lá mora urubu direto. Chegando nesse lugar, encontramos com o pessoal do Cruzeiro (Álvares Dias e Eugênio Silva . repórter e fotógrafo, respectivamente, do jornal O Cruzeiro que registraram parte da viagem de Rosa pelo sertão). Fizeram foto minha com o berrante e tudo.

O senhor era bom de berrante?

Ah, eu era bom. Batia, todo mundo suspirava. Às vezes eu batia o berrante e dizia. “Eh, não suspira não que eu vou e volto”.

Depois de Araçaí, o Rosa foi embora?

Entregou a boiada em Araçaí, numa fazenda pertinho de onde hoje é a cidade. Tinha uns currais, nós tiramos mais retratos com ele no curral, eu lacei uma vaca, peguei ela e passei a corda pelo pescoço e amarrei no rabo. Fazia tudo pontuadinho, porque tinha esperteza, tinha ligeireza. Eu cantava verso, tudo direitinho. Poesia é pra ser poeta, poeta não. Deus dá o dom pra pessoa, aquele dom ninguém pode tomar. Só agora com a doença. Ia na lapa do Bom Jesus e via um livro e comprava, comprava outro e guardava. Lia e aprendia. Se eu lesse duas vezes, eu já guardava. Depois, chegando em Araçaí eu fui pra casa do meu pai; eu, o seu Manuel (Manuelzão) e o Bindóia (morto em 98). Dormiram e noutro dia ele pegou um jipe com a carreta e foi embora.

O senhor era o guia da tropa. Qual a função do guia?

O guia vai na frente, que ele sabe da distância. Ele sabe quando é descida, dá sinal pro detrás que e pro boi não correr. Se você sabe que tem um córrego, você dá sinal pra afinar o gado e ele passar na água e não sujar demais pros que vêm atrás poder tomar. O guia fica avisando o que vai acontecer. Você é motorista, quando vai fazer uma curva você já dá um sinal, só que com o gado é com a mão. E o gado acostuma. Chega numa porteira, faz um sinal e o outro já sabe que ali é uma porteira. Tudo que você faz é com a mão, tudo sem gritar. O guia vai na frente, quando o gado chega já está o pasto arrumado, o fogo tá aceso. Já vê se a cerca tá boa, se não tem buraco.

O senhor também era cozinheiro, além de guia. O guia é sempre o cozinheiro?

Não são todas as pessoas, mas eu, durante o tempo que eu viajei com gado, em muitas boiadas eu fui cozinheiro. Eu fazia aquele entalagato. Foi o Rosa que colocou esse nome. Dizia que era comida ruim.

Então ele não gostou da comida do senhor?

Não, aquilo era só pra fazer graça. Mas não tinha nada. Só tinha arroz, feijão e carne. Frango alguma vez. Mas sempre era carne seca, carne de jabá. Eram nove pessoas, eram nove pedaços de toucinho e nove de carne. E tinha também farinha.

Qual era o nome dos outros vaqueiros que acompanharam a viagem?

Era o Tião Leite, o Santana, o Sebastião de Jesus, o Gregório, o Manuelzão, o Bindóia, eu e o João Rosa. Tem o Aquiles também, um bom violeiro. Ah, e um rapazinho que não é falado. Ele não saiu na reportagem, era menino, mas acompanhou todos os dias, devia ter saído. Tinha uns doze anos. Falado são sempre os oito, nove com o Rosa. Nós levamos trezentos e sessenta bois. Só boi grande. Eu batia o berrante e eles seguiam.

Era o senhor que ia conversando com o Rosa?

Conversei durante o tempo todo.

Sobre o que o senhor ia conversando com ele?

Falava tudo quanto era bobagem. Inventava as coisas muito bem pra conversar com ele. Às vezes não tinha mais assunto. Falava de mulher, de moça bonita. Falei muita bobagem pro Rosa e ele escrevia tudo. Eu lia muito livro, sabia tudo de cor, mas não sei mais nada. Sabia tudo quanto é bestagem.

O Rosa foi anotando tudo isso?

Tudo, ele escreveu tudo. A sucupira ele anotou, era uma baita de uma árvore. Tinha a flor roxa e a flor amarelada; ele anotou qual a diferença que tem. A diferença da madeira. Tudo tá escrito na caderneta dele.

E os versos que o senhor fez? Eram feitos quando?

Era feito durante a viagem, de noite. O que passava no dia, eu escrevia de noite.

Que tipo de história o Rosa gostava mais?

Verso, ele gostava muito de verso. Mas não aprendia nada… (risos). Eu sabia tudo de cor. Ele anotava tudo. Depois que eu adoeci, a memória ficou fraca e esqueci tudo. Depois que eu adoeci, esqueci quase tudo.

Como era o Rosa, seu Zito?

Era uma pessoa excelente, brincalhão. Ele era tão simples que ele veio do Rio e não trouxe nem gilete, nem estojo. Naquele tempo não tinha “prestibarba”, era estojo. Durante todos os dias ficou sem fazer a barba. Eu tinha, mas ele não falou nada e eu não levei. Até hoje a minha barba é pouca. Pra quem tirava a barba toda manhã, ficar dez dias sem tirar, né? A cara ficou vermelha. Mas ele era mesmo muito simples. E na viagem não podia chamar ele de Dr. João. Era Rosa, vaqueiro Rosa.

E ele sofreu muito durante a viagem?

Não tinha garrafa térmica, coava café no bule, tomava ali, e copo de vidro quase não tinha e ele não trouxe. Na beira da estrada não tinha nada, você chegava assim pra comprar um frango, pra limpar, pra picar, mas precisava ter um vasilha. Ele comeu muitos dias feijão de manhã, feijão com carne seca cozida no meio e toucinho. Separava o da janta e tomava um gole de café. À tarde comia outra vez. Se ele tivesse pensado, podia ter trazido uma garrafa, deixava na garupa dele, ué. Podia ter trazido uma marmita. Também não tinha banheiro por aqui. De tarde a gente ia tomar banho no córrego. A água era longe, dormia às vezes sem tomar banho. Não tinha água, que banho todo dia não tinha jeito. Fazenda nenhuma tinha um banheiro. A comida era um pouco pesada pra ele que não tinha costume. Mas o que ele queria era aquilo…

E na hora de dormir?

Tirava sela, lavava o cavalo, jogava ela no chão e era a cama. Forrava ela no chão, põe o pelego, a coberta, a capoteira, você punha a roupa e virava o travesseiro. Era tudo bem arrumado.

Como o Rosa dormia, era assim?

Mesma coisa, ele deitava em qualquer lugar. Dormiu até em cima de espiga de milho. E ainda que à noite ele gemeu… “Você deita igual às galinha quando tá botando ovo”, eu disse. Ele não sabia, amanheceu com um caroço na costela. Dormiu também na tábua de rapadura. Tirava os trem até dar o tamanho dele, botei capim, tudo foi eu que fiz. Chegava na casa de Dona Benedita, na casa da Dona Rita, eu pedia cama pra ele. Eu tinha entusiasmo com o povo. Não deixavam eu sair de manhã sem fazer um engrossado, que é um ovo que você frita na água, sem gordura, põe a farinha, cebola e come. Aquele trem é forte. Comia, ficava bem o dia todo.

Rosa comentou alguma coisa sobre o que faria com o material da viagem, sobre o Grande sertão: Veredas, por exemplo?

Aquele livro não foi escrito com o assunto dessa viagem. Aquele livro foi uma viagem que ele fez pra Fortaleza, numa saída de boiada. Foi na saída. E aquele Riobaldo foi alguém que contou pra ele e o resto ele inventou. Vou te contar uma coisa, você põe uma coisa que você acha que dá certo naquela história, então inventa o resto. É assim que o Rosa fez. O que Rosa escreveu foi dito por nós. Ele não sabia daquilo. O Rosa saiu de Cordisburgo rapaz novo, foi fazer medicina, participou daquela revolução de 32 e abandonou a medicina pra ir pro exterior. Aí quando ele morreu, vieram outras pessoas pra confirmar onde o Rosa passou. Mas ele inventou o resto.

E a história de que o Rosa conversava com os bois?

Ele conversava com o boi mesmo. Conversava toda a tarde. Quando chegava no pouso, eu que já tinha coado café, já tinha desarreado a besta dele, o meu burro, tudo já estava arrumado. Então ele vinha e falava: “meu boizinho tá cansado, tá com a barriga vazia…” Todo dia ele conversava, o boi era mansinho. Foi tirado retrato dele passando a mão no boi, lá no curral da fazenda. Mas eu nunca vi nenhum. Era Tarzan e Cabocla. Cabocla era uma vaca preta que eu furei o nariz dela. Ah… Se o boi falasse, a gente morria. Ele só entende o nome. O boi entendia e olhava pra ele.

Ter encontrado o Rosa mudou a vida do senhor?

Vem sempre um povo aqui pra conversar, eu converso. Mas eu não lembro muita coisa. Se for uma pessoa que eu gosto, eu lembro, se não for, eu não tô lembrado de nada. Mas eu gosto de falar do Rosa. Ele queria me levar pro Rio de Janeiro, ele dava lugar pra eu morar, ele pagava meu estudo. Mas na época eu preferi não ir, queria era ser vaqueiro.

O senhor fica orgulhoso quando alguém o procura?

Sinto muito orgulho, é uma coisa muito bonita. Eu sinto alegria em falar das coisas do Rosa. Em maio eu vou pra Sete Lagoas e vou mandar fazer outro óculos pra mim e aí eu vou voltar a ler de novo os livros dele, do Guimarães Rosa.


JOÃO CORREIA FILHO é fotojornalista especializado em Jornalismo Literário.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: A luta entre civilização ou barbárie chega à Guatemala


No dia de ontem, sábado, milhares de manifestantes saíram às ruas da Guatemala para protestar contra algumas medidas aprovadas pelo congresso daquele país, que incluem cortes orçamentários para setores importantes, como saúde, educação e direitos humanos. Acintosamente, os parlamentares também aprovaram, neste mesmo momento, medidas que ampliam seus benefícios, numa profunda indiferença às dificuldades enfrentadas pela população. Num dia de congresso vazio, alguns desses manifestantes se dirigiram àquela casa legislativa e atearam fogo em suas dependências. O que acontece neste país da América Central é reflexo da adoção do receituário ultraliberal, potencialmente danoso aos interesses dos segmentos sociais mais fragilizados, perifericamente inseridos na dinâmica econômica, sem assistência à saude, com aposentadorias comprometidas, alijados do consumo de bens, submetidos às condições precárias de subsistência. Isso não fosse o bastante, o país também sofre as consequências de desastres naturais, que atingem não apenas o país, mas seu vizinho, como a Nicarágua.  

Num contexto como este - de absoluto desprezo pela democracia substantiva - a democracia política fica sensivelmente comprometida, daí esses arranjos autoritários que estão se proliferando pelo mundo, em particular no continente latino-americano, onde a democracia política sempre esteve sob constantes solavancos, vitima frequente de lideranças políticas populistas ou oligárquicas. Alejandro Giammattei foi eleito com uma plataforma política ultraliberal, alinhavado com o presidente norte-americano Donald Trump. Em seu primeiro pronunciamento após os protestos, prometeu que usará de todo o rigor legal para punir os infratores, numa demonstração inequívoco que está disposto a endurecer o regime.  

Os protestos na Guatemala juntam-se a outros tantos que estão ocorrendo no mundo, em contraposição a esta política autoritária e suicída, que depõe contra a civilização e a própria vida. A racionalidade ultraliberal é sinônimo de barbárie. Tudo indica que chegamos à fase mais cruel do capitalismo. Não por acaso, pensadores sociais mais consequentes estão formulando um conjunto de alternativas a este estágio infame, propondo uma alternativa pós-capitalista, que preserve a vida, o planeta, as sociabilidades, a sensibilidade, a subjetividade solidária, as possibilidade de convivência, pois, neste terreno pantanoso, estão sendo cevadas as sementes do fascismo, com sua plataforma racista, intolerante, mentirosa, destrutiva da alteridade. Tratamos aqui de uma patologia política, que só precisa desses "incentivos" para prosperarem.

Depois de dormir  sono político que produziu o monstro, finalmente, a humanidade parere ter se dado conta da gravidade deste momento politico que atravessamos. Um conjunto de ações insurgentes estão produzindo alguns resultados alvissareiros, como a derrota de Donald Trump nas eleições americanas; a decisão soberana do povo chileno, que, através de um plebiscito, decidiu pela formulação de uma nova constituição para o país; a vitoria de Luis Arce nas eleições bolivianas e, agora, os protestos pacíficos na Guatemala.    

    

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo


 

sábado, 21 de novembro de 2020

Michel Zaidan Filho: Teses equivocadas sobre as eleições municipais

Primeiro, transformar as eleições municipais em "fora Bolsonaro" e nacionalizar o discurso político do pleito". Isso chama-se oportunismo político e confunde ou quer instrumentalizar uma eleição para uma Prefeitura municipal em meio de fazer oposição aberta e franca a Bolsonaro. A agenda dessa eleição são os problemas comuns do cotidiano da população recifense: transporte público, educação púbica, saneamento e saúde pública, habitação, segurança etc. Se o candidato não tem propostas viáveis e factíveis para resolver esses problemas (mesmo que isso passe pela oposição à agenda de Bolsonaro), ele não está habilitado para exercer o mandato. mais ainda de uma prefeitura como a do Recife. Segundo, o programa politico-administrativo do candidato não pode ser uma mera colcha de retalhos (um bric-a-brac) das demandas dos movimentos sociais, por mais urgentes e importantes que seja. Este programa deve se constituir de uma linha comum das questões do cotidiano da população. Questões gerais e universalizantes. Isso não quer dizer que não haja espaço na agenda para questões específicas dos movimentos. Quarto, essa questão das demandas específicas e outras não se relacionam diretamente com as alianças para a conquista do mandato. Se faz eleição com santos, fiéis, irmãos , se faz com cidadãos e cidadãs de carne e osso. A questão são os compromissos assumidos pelo candidato, públicos e não tão públicos, que possam comprometer a agenda de mudança. Mas aí pesam os partidários e militantes da candidatura para garantir a fiel obediência ao programa estabelecido. Quinto, a tese de que a eleição municipal é uma prévia da eleição estadual ou nacional. Depende. Dado o caráter federativo do país, as alianças mudam, em cada nível de governo, as questões são diferentes e a própria conjuntura muda. Não se pode querer fazer dessa eleição municipal uma prévia da eleição estadual ou federal. Lembrar que das 3, a menos politizada é a municipal. A mais politizada (e plebscitarizada) é a federal. Não confundir as esferas. Vamos arregaçar as mangas e consolidar o que já conseguimos, ao invés de pré-julgar, sectariamente, o que sequer ainda é real e consolidado. É cômodo censurar um processo político em curso, urdido com tanta dificuldade. É mais fácil erguer uma igreja e fazer um movimento messiânico, com os irmãos e irmãs. Mas a política não é assim. Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.

Editorial: Casos de infecção e mortes por Covid-19 voltam a subir no Brasil.

Os casos e mortes por Covid-19 estão aumentando sensivelmente no Brasil, o que significa dizer que entramos firmes na segunda onda da doença, realidade já então enfrentada por países europeus e pelos Estados Unidos. Em alguns desses países, voltaram a ser adotadas medidas preventivas rigorosas, como as restriçoes de contatos sociais. No Brasil, a adoção de medidas do gênero ainda não foram implantadas, segundo comenta-se, em razão da realização das eleições municipais, que só terminam no domingo 29, quando do término do segundo turno. O fato concreto é que fatores políticos e econômicos estão impedindo que os governos estaduais adotem medidas mais duras para o enfrentamento dessa segunda onda da doença. O mais preocupanete é que em algumas praças estão sendo observadas a incidência de casos mais graves da doença, exigindo cuidados mais complexos, quando não, significando a morte do paciente. O Brasil nunca foi um bom aluno do lockdown. Desde o início, nunca atingimos as metas que estavam sendo previstas, o que poderia, naquele momento, ter evitado a propagação da doença, diminuindo sensivelmente o número de mortes. Se, para alguns grupos sociais essa observação é procedente, para aqueles grupos sociais periféricos, empobrecidos e moradoress de favelas é preciso fazer as ponderações específicas, uma vez que as condições de vida dessa gente interditam a adoção de alguns cuidados básicos. Vivem confinados em pequenos espaços físicos, não recebem água em casa com regularidade - para a higiene das mãos com sabão amarelo - precisam trabalhar de manhã para comer à noite. Principalmente no Rio de Janeiro, contingentes expressivos da população já vivem sob o comando de grupos milicianos que, na realidade, é quem determina o que pode e o que não se pode fazer. Se, por um lado, o toque de recolher pode ter sido saudável, pois vai ao encontro das restrições de contato social, por outro lado isso representou o definhamento de uma das fontes de financiamento de grupos milicianos, como a extorsão aos comercientes. Alguns deles foram obrigados a pagar pedágio mesmo com o comércio fechado. Em outros casos, foram obrigados a abrir a porta dos seus estabelecimentos comerciais por imposição das milícias. O lockdown não é necessariamente uma unanimidade. Segundo alguns analistas, apenas restringir os contatos sociais - embora seja uma medida importante - não seria o suficiente para conter o avanço da doença se não acompanhada de outras medidas, como a ampliação das testagens, por exemplo. O fato é que medidas preventivas deverão ser ampliadas no próximo mês, em razão do preocupante avanço da doença em todos os quadrantes do país, com maior ou menor incidência. As vacinas estão chegando, mas ainda há muitas controvérsias em torno do assunto. Por outro lado, até atingirmos a sua democratização, muitas vidas ainda serão ceifadas. A Covid-19 provocou um desarranjo gigantesco na economia em sua primeira onda, o que leva comerciantes e empresários a se colocarem contra um outro procedimento de lockdown radical. Isso não ocorre apenas aqui, mas em países europeus, onde foram registrados inúmeros protestos contra as medidas resritivas, com os manifestantes sequer tomando um cuidado primário, como o uso das máscaras. Aqui em Pernambuco, quando sou obrigado a deixar a concha - por dever de ofício - costumo observar muita gente sem o uso das máscaras. De fato, seu uso causa um certo desconforto, mas, certamente, é um desconforto menor do que os procedimentos médicos adotados naqueles pacientes de Covid-19 em estágio grave, quando a doença costuma atingir a capacidade respiratória do indivíduo. Difícil saber como os nossos govenrnates sairão dessa saia justa. Mortes, hospitais abarrotados de gente doente, e as reticências naturais às medidas restritivas de contato social, seja por motivações culturais, seja por motivação econômicas. Este é o período do ano em que, normalmente, começam o planejamento para as festas de réveillon, seguida das férias de janeiro. Quem tiver a curiosidade de pesquisar os preços de hospedagem neste período em praças conhecidas - como Tambaú, Fortaleza, Rio de Janeiro - vai se deparar com a prática de valores que não indicam, de forma alguma, uma diminuição desses valores em razão da baixa procura. Os preços estão nas alturas. O mesmo se aplica aos valores de viagem de avião. Para esses setores parece que nada está acontecendo e, possivelmente, essas festas não serão proibidas em razão da pandemia, o que seria uma grande temeridade. Espero que prevaleça o bom-senso, mesmo a contragosto de alguns irresponsáveis ou negacionistas. Salvo melhor juízo, apenas o governo consequente da Bahia já teria anunciado a não realização do tradiconal carnaval.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Editorial: Eleições do Recife. Chamem o Przeworski.

Przeworski é um cientista político polonês especialista em estudos sobre a democracia. Por conseguinte, as motivações que definem o voto do eleitor está entre as suas preocupações. Até recentemente,lançou um livro muito interessante sobre os problemas enfrentados pelos regimes democráticos na atualidade, frequentemente assediados por expedientes autoritários e fascistas. Mas, interessa aqui, saber o que leva um eleitor a votar neste ou naquele candidato, consoante uma série de constrangimentos, seja de natureza pessoal, seja em relação aos fatores externos, que também podem influenciar suas decisões. Hoje o eleitor sofre uma influência forte do marketing político, das pesquisas de intenção de voto, da estratégia adotada pelos marqueteiros, dos gastos de campanha, qua variam dependendo da capacidade financeira do postulante, assim como dos apoios recebidos. Não à toa se diz que um candidato cujo partido já está na máquina administrativa possui maiores chances do que um outsider, por exemplo. Gosto muito dos exemplos. Dos bons exemplos, naturalmente. Przeworski cita um deles, apontando um eleitor pobre, evangélico, com projeto de implantar um pequeno negócio. Dentre essas condições, qual aquela que seria determinante para a sua escolha deste ou daquele candidato? Seria ele um pobre de "direita", votando num candidato completamente descompromissado de sua condição social? Seguiria as orientações do pastor de sua igreja, o que, aliás, possui um poder indutor nada desprezível? Ou apostaria naquele candidato que acenasse para um crédito para ele abrir seu pequeno negócio? Isso vem a propósito de um fato intrigante que está ocorrendo neste segundo turno das eleições do Recife. O que estaria levando parte do eleitorado de Mendonça Filho(DEM) ou da delegada Patrícia(PODEMOS)a esta tendência de votar em Marília Arraes, do Partido dos Trabalhadores. Confesso que, por algumas razões, creditava ao candidato João Campos, do PSB, maiores possibilidades de herdar esses votos. O PSB está na máquina do Estado há um bom tempo, alinhavou-se com forças políticas conservadoras para disputar as eleições desde o primeiro momento,e, em tese, para este eleitorado citado, seria um partido político mais confiável. Hoje,sobretudo pelas razões expostas no editorial do dia de ontem, é, no mínimo, duvidoso afirmar que o PSB é um partido de esquerda, embora essa condição possa ser creditada nos seus primórdios, quando contou com atores políticos identificados com este perfil. O PT, por seu turno, é um partido estigmatizado. Não entramos aqui nem na seara ideológica, mas o partido passou até recentemente por um processo de assassinato de reputação e a gente sabe que não se constitui numa tarefa das mais simples a recomposição de uma imagem. Certamente, depois dessas eleições,ao se confirmarem o que as pesquisas estão indicando, deveremos ter algumas lives de cientistas políticos e analistas sociais para tentar entender um pouco a motivação de um eleitorado - tradicional, conservador e refretário ao PT - migrar para sufragar o nome de Marília Arraes nas urnas. Há algo mais determinante, neste horizonte, do que a rejeição ao PT. Uma grande insatisfação com a gestão atual, que já completa dois mandatos? O peso de uma condução não necesariamente republicana da máquina? Equívocos na estratégia de campanha? A mocidade e a inexperiência do candidato socialista, que talvez não esteja conseguindo passar confiança à população? Hoje, pelas redes sociais, um internauta estava levantando a tese da ingratidão. De fato, o PT foi um dos grandes suportes políticos e financeiro para o êxito da gestão do ex-governador Eduardo Campos. Mas esse legado foi solenemente rejeitado pelo PSB, sobretudo neste momento de disputa. Marília, por sua vez, foi atacada duramente, inclusive em sua honra, ao deixar as hostes socialista. Este fato estaria repercutindo, agora, no resultado das pesquisas, que a aponta na dianteira da disputa, num indicador de solidariedade da população? Na época de Eduardo Campos, o PSB tinha um guru argentino especialista em pesquisas qualitativas. Eis aqui um excelente instrumento científico para se chegar a alguma conclusão sobre esse fenômeno.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Porque revoltas antirracistas espalham-se pelo mundo?

Por que revoltas antirracistas espalham-se pelo mundo Nem na morte de Luther King protestos foram tão imensos e globais. Agora, há dois caminhos. Entregar movimento a uma “vanguarda”, o que agradaria Trump; ou lançar, na esteira dos Panteras Negras, um programa de reformas estruturais OUTRASPALAVRAS DESCOLONIZAÇÕES por Italo Jardim Publicado 17/06/2020 às 16:37 - Atualizado 17/06/2020 às 16:53 Foram oito minutos e 46 segundos. Um episódio de tortura seguido do assassinato de George Floyd, de 46 anos, que trabalhava como segurança em um restaurante em Minneapolis, no estado de Minnesota, nos EUA. Ele foi abordado por policiais que responderam a uma chamada de suspeita de uso de cédulas de dinheiro falso na noite do último dia 25 de maio. Em seguida, um vídeo de 10 minutos, filmado por uma testemunha, mostra Floyd suplicando e dizendo repetidamente: “não consigo respirar”, para um policial branco. Ao ver as imagens da truculência e de abuso policial, é impossível não se indignar. A tragédia se soma a um rastro de sangue negro, derramado no decorrer da história. O assassinato de Floyd foi o ponto de ebulição para uma série de manifestações civis, marcadas por intensos e violentos confrontos entre revoltosos e a polícia americana, numa cidade que tem os maiores índices de disparidade socioeconômica entre negros e brancos nos EUA. São mais de 18 dias de protestos, mas nada disso começou agora. O histórico recente nos dá uma percepção. No dia 29 abril de 1992, um júri absolveu oficiais do Departamento de Polícia de Los Angeles, três brancos e um hispânico, acusados​​de agressão contra o motorista negro Rodney King, após uma perseguição em alta velocidade. A agressão dos policiais foi filmada. Milhares de pessoas na área de Los Angeles se revoltaram ao longo dos seis dias, após o veredito. Entre agosto e novembro de 2014, houve uma crise decorrente da violência racial. O policial que em agosto matou o jovem afro-americano desarmado Michael Brown, em Ferguson (Missouri), não enfrentou processo judicial. A decisão desencadeou uma nova onda de turbulência na cidade, incêndios, lançamentos de pedras e depredações de veículos. Michael Brown morreu no horário de almoço de um sábado, atingido por, pelo menos, seis disparos de Wilson, quando andava numa rua residencial com um amigo. A polícia afirma que houve uma luta entre os dois para pegar a arma, mas o amigo que acompanhava Brown diz que este ergueu os braços em sinal de rendição. Já em 19 de abril de 2015, o jovem negro Freddie Gray morreu sob custódia policial em Baltimore, Maryland, o que ocasionou um novo clamor contra os preconceitos e abusos da polícia dos Estados Unidos contra a população negra. As manifestações, que haviam começado de maneira pacífica, acabaram se transformando em fortes distúrbios por parte de um grupo de manifestantes, a sua maioria jovens. Nunca houve silêncio sobre os assassinatos e a truculência policial racista, embora essa violência contra negros seja permanente. Mas nunca se viu a propagação desses movimentos por todo o país e ao mesmo temp. Por tantos dias e com tendência a continuar crescendo. Algo mudou completamente, o assassinato de Floyd gerou uma insurreição que parece não ter hora para acabar. Algo que não se via em número, tamanho e expressão há mais de 50 anos. Aliás, muito maior que a manifestação após a morte do ativista político por direitos civis, Martin Luther King em 1969. Movimento ganha força meio à pandemia do novo coronavírus A crise social iniciada a partir do brutal assassinato de George Floyd acontece em meio à pandemia do novo coronavírus, no auge da disseminação do vírus, que já matou milhares de pessoas nos EUA e no mundo. A crise de saúde se soma à crise econômica, de características inéditas, que tende a se aprofundar nos próximos meses, e com toda a tensão política de um ano eleitoral norte-americano. O cenário é extremamente imprevisível do ponto de vista político. As manifestações foram crescendo dia a dia. Na terceira noite de protestos, quinta feira, 28 de maio, eles se concentraram na Terceira Delegacia de Minneapolis, que foi incendiada, espalhando-se por outras áreas da cidade. A revolta liderada pelos negros nas ruas de Minneapolis é alimentada pelo peso histórico de décadas de segregação e desigualdade. Apesar de sua reputação como um refúgio para a política progressista, Minneapolis é a área metropolitana mais segregada dos EUA. No domingo, 31 de maio, Trump passou pelo menos uma hora em um bunker subterrâneo durante os confrontos no lado de fora. O Exército patrulha as ruas na Califórnia. São mais de 40 cidades mobilizadas, ao menos 30 delas com toque de recolher e guarda nacional1 acionada (mecanismo utilizado somente durante a 2º guerra mundial). Depois de 11 dias seguidos, manifestantes ainda tomavam as ruas de muitas cidades e a Casa Branca tem sido um local de protestos diários. O clima de tensão diminuiu por alguns motivos, mas as manifestações são cada vez mais numerosas. Em um esforço permanente de combater o vandalismo e também uma mudança de postura das forças policiais no acompanhamento, que passaram a não intervir nas movimentações de forma direta, ao invés disso, policiais à paisana acompanham de longe, inclusive foram filmados episódios de solidariedade entre a polícia e os manifestantes. O impacto dos protestos no governo Trump O comportamento de Trump diante dos acontecimentos acirra ainda mais as relações políticas e causa a indignação de muitos. Em uma de suas declarações no Twitter, repete uma frase da década de 60, sugerindo atirar em manifestantes: “estes BANDIDOS estão desonrando a memória de George Floyd, e eu não deixarei que isso aconteça. Acabei de conversar com o governador Tim Waltz e disse que o Exército está com ele até o fim. Qualquer dificuldade e nós assumiremos o controle, mas quando começam os saques, começam os tiros”. A plataforma Twitter incluiu aviso de exaltação da violência na mensagem. Trump utiliza com rigor a tática da ultradireita em descrever os manifestantes como inimigos da nação. Em episódio inusitado, chegou a solicitar a retirada de manifestantes que estavam no entorno da Casa Branca para tirar uma foto na igreja, com a Bíblia estendida. Embora esse gesto sirva como performance orientada a sua base eleitoral conservadora, não parece estar surtindo efeito. Os manifestantes estão ganhando apoio popular durante os confrontos, aos gritos de “as ruas são nossas”. A tentativa de criminalização dos protestos, a exemplo de outros episódios da luta racial, desta vez teve dura resposta da sociedade americana. Pesquisas mostram que dois terços da população apoiam as manifestações. Algumas vitórias vêm ajudando o movimento a ganhar força e levar mais pessoas as ruas. No dia 4 de junho, o governador da cidade de Nova York suspendeu o toque de recolher. Disse que vai decretar um momento de silêncio em todo o estado, em memória de Floyd. Ele se mostrou preocupado com o avanço da pandemia do novo Coronavírus e pediu para que todas as pessoas que participam dos protestos façam teste para diagnosticar a Covid-19 e, para isso, ele vai aumentar a capacidade de testes em todo o estado. Além de tudo isso, Trump enfrenta dificuldades no próprio governo. Seu secretário de Defesa não concorda com a política de enfrentamento proposta pelo presidente. O chefe do Pentágono, Mark Esper, se distancia e rejeita o envio do Exército para conter protestos, afirmando que “medidas como essa devem ser usadas apenas como último recurso e nas situações mais urgentes e extremas”. É para além das fronteiras dos EUA A pandemia e a crise econômica desoladora que passa os EUA, que perdeu 20,5 milhões de postos de trabalho em abril e registra um índice de desemprego de 14,7%, o mais alto em mais de 70 anos, junto a ausência de respostas do Estado, geram respectivamente conclusões aos negros e os mais pobres, morrer de fome, doente ou pela bala da polícia. A partir da internacionalização dos protestos, como vem acontecendo em Paris e em algumas cidades do Brasil, por exemplo, são sintomas desse mesmo referencial de crise generalizada. Não são manifestações somente antirracistas, mas que também expressam o descontentamento com a maneira que se organiza a economia e a política mundialmente. Houve protesto antirracista, no dia 2, em Paris, na França, com confronto entre manifestantes e a polícia. O ato levou milhares de pessoas às ruas da capital. Outras cidades, como Marselha e Nantes, também tiveram protestos nas ruas. Os manifestantes se reuniram por cerca de duas horas em torno do tribunal de Paris em homenagem a George Floyd e a Adama Traoré, um homem negro francês que morreu sob custódia policial em 2016, segundo relato de seu irmão, suas últimas palavras foram as mesmas de George Floyd: “não consigo respirar”. Os jovens negros que se manifestam em Paris são filhos da imigração e do colonialismo francês, são também os que mais sofrem pela falta de condições e a desigualdade social. Na cidade canadense de Toronto, o protesto contra o racismo também foi em homenagem a Regis Korchinski-Paquet, um homem negro que morreu depois de cair de um prédio durante uma abordagem policial. Em Londres, o protesto pacífico foi no distrito de Peckham, na capital britânica. Os manifestantes gritavam “Justiça por George Floyd” e carregavam faixas e cartazes em sua homenagem. Em Berlim, na Alemanha, milhares de manifestantes se reuniram em frente à embaixada americana e espalharam a frase do movimento Black Lives Matter. No Brasil o efeito foi imediato. Protesto de comunidades e coletivos de favelas no palácio Guanabara no Rio de Janeiro e uma grande manifestação de torcidas organizadas pela democracia no MASP em São Paulo. Manifestações também em Curitiba e outras cidades. A solidariedade internacional ao movimento, a referência identitária do povo negro que se organiza e se manifesta em várias cidades e o descontentamento com a estrutura política e organizativa que mantém as desigualdades, são partes fundamentais da indignação que está em curso e começa a se espalhar pelo mundo. Seus impactos já são visíveis em muitos lugares. O debate sobre o racismo e os questionamentos políticos a procura de respostas aos antigos e novos problemas sociais ganham força nas ruas. A diáspora negra e a omissão de direitos à raça Não há forma responsável de iniciar uma reflexão sobre a importância das vidas negras e a jornada de manifestações que acontecem nos últimos dias nos EUA, sem compreendermos, ainda que brevemente, três elementos fundamentais que contextualizam historicamente a identidade negra em todo o planeta: a diáspora africana, o distintivo racial da negritude e a condição socioeconômica decorrente desse histórico de omissão de direitos. A diáspora africana, ou negra, como também é conhecida, se caracteriza pelo fenômeno de imigração de africanos, durante o tráfico transatlântico de escravizados. Junto com seres humanos, nestes fluxos forçados, embarcavam modos de vida, culturas, práticas religiosas, línguas e formas de organização política que acabaram por influenciar na construção das sociedades às quais os africanos escravizados tiveram como destino. Estima-se que, durante todo período do tráfico negreiro, aproximadamente 11 milhões de africanos foram transportados para as Américas. A condição socioeconômica dos negros nas Américas guarda peculiaridades de acordo com cada país, seu processo de libertação dos escravos e a política posterior aplicada. Nos EUA, por exemplo, como forma de manter a mão de obra e de dar um destino econômico à população negra – liberta, mas não socialmente incluída – foi adotada uma estratégia de criminalização da raça. Isso ocorria tanto por meio da comunicação – exibindo vídeos e propagandas nas quais negros configuravam como animais e estupradores – como no âmbito da justiça, pelo qual eram presos por motivos insignificantes. Uma vez presos, voltavam a servir como trabalhadores sem custo, praticamente voltando a ser escravos. Até hoje, as diferenças são gritantes entre negros e brancos, da condição salarial ao acesso à educação, passando pelos índices de violência. O privilégio branco está diretamente ligado à condição do negro na sociedade capitalista atual. Aquilo que nos identifica racialmente é fundamental para entender como as diferenças sociológicas se manifestam na realidade concreta. Por motivos óbvios, essa distinção pode ser relativizada por uma série de questões e negada por segmentos sociais historicamente privilegiados nessa relação. No entanto, é impossível não considerar que, a cor da pele nos remete imediatamente a alguma conformação identitária. Como disse W.E.B. Du Bois o líder mais importante nos primeiros anos do movimento norte-americano pelos direitos civis, no início do século XX: “mesmo as características físicas incluindo a cor da pele, são resultados diretos, em medida considerável, do ambiente físico e social. Além disso, são indefinidos e fugazes demais”. Baseado nisso, em autobiografia, o autor abandona a definição científica de raça em prol do fato de que ele escreve sobre africanos, e que africanos e afrodescendentes têm o que chama de ancestralidade racial em comum, porque: — é importante notá-lo — “têm uma história em comum, sofreram um mesmo desastre e têm uma única e longa memória de desastre”. Porque a cor, embora pouco significativa em si, é importante — Du Bois afirma — “como distintivo da herança social da escravidão, da disseminação e do insulto dessa experiência.” Um distintivo, uma insígnia, uma marca. Aqui está a ideia de que raça é um significante, em outras palavras, o significado racial da negritude se encontra na memória e na realidade vivida da sua história, dos acontecimentos e seus resultantes no tempo presente. O mesmo distintivo social que liga George Floyd de Minneapolis a João Pedro em São Gonçalo, é a identidade que orienta também todo o povo negro das Américas. A luta por direitos civis nas décadas de 1950 e 1960 O Movimento pelos Direitos Civis é o nome que se dá à luta dos negros norte-americanos por esses direitos, especialmente nas décadas de 1950 e 1960. Nos Estados Unidos, os direitos civis de muitos negros foram negados em sua totalidade por quase cem anos após o fim da escravidão. Revisitar esse período de destaque do movimento Negro dos EUA, é parte da tarefa desafiadora, de compreender a história de luta do povo negro e sua trajetória incansável por igualdade racial. Alguns dos episódios de uma extensa cronologia do Movimento por Direitos Civis nos Estados Unidos nesse período2: 1955 – Rosa Parks lançou a bem-sucedida Campanha de Boicote de ônibus em Montgomery, Alabama. 1961 – Um grupo chamado Congresso da Igualdade Racial organizou uma Viagem de Liberdade, transportando 500 brancos e negros do Norte em ônibus para, simbolicamente, quebrar a segregação no transporte público. A polícia local e brancos racistas responderam com violência brutal. 1963 – Em agosto, CORE, NAACP, SNCC, SCLC e vários sindicatos organizaram a Marcha por Emprego e Liberdade de 200 mil pessoas em Washington em frente ao Memorial a Lincoln. 1964 – O Congresso e o Senado aprovaram a Lei dos Direitos Civis proibindo segregação em educação e serviços públicos. Entre 1964-1969 ocorrem 341 rebeliões urbanas em 265 cidades deixando 221 mortos, em grande parte, negros. No mesmo ano Luther King ganhou o Prêmio Nobel de Paz. 1965 – O Congresso e Senado aprovaram a Lei do Direito de Voto proibindo discriminação no processo eleitoral. Malcolm X foi assassinado em Nova York. O Movimento pela Liberdade em Chicago foi lançado pela SCLC e Luther King para acabar com discriminação em habitação e emprego dos negros nas cidades nortistas. Luther King critica o governo de Lyndon Johnson sobre a guerra no Vietnã. 1966 – O Partido dos Panteras Negras foi fundado na Califórnia e o movimento “Black Power” começa eclipsar o convencional movimento por direitos civis liderado por Luther King. 1968 – Luther King foi assassinado em Memphis. Capítulo importante da História do Movimento negro americano foi a criação do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa, conhecido como o Partido dos Panteras Negras, fundado em 1966, por Huey Newton e Bobby Seale que criaram essa organização nacional como forma de combater coletivamente a opressão dos brancos. A violência policial com os negros era recorrente na revista por todo o país. Os Panteras Negras sintetizaram seus objetivos em um programa com 10 pontos que incluíaliberdade, terra, habitação, emprego e educação. Sua contribuição influenciou enormemente as movimentações em vários países do mundo e foi decisiva para a conformação do movimento negro e seu caráter estético, político e cultural até os dias de hoje. O mar da História está agitado A diáspora negra começa a se levantar e está mais viva hoje do que em qualquer dia do passado. George Floyd não está mais entre nós, mas a memória de luta do povo negro encontrou um novo ponto humanitário e simbólico de unidade, que canaliza a indignação social diante de toda essa violência. Este é certamente um novo capítulo da história do movimento negro que pode transbordar as relações sociais e étnicorraciais por mudanças estruturais em todo o globo. São muitos os casos como o de George Floyd pelo mundo, no Brasil o último com visibilidade foi adolescente João Pedro, de 14 anos, que teve sua casa crivada com mais de 70 balas de fuzil na cidade de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro. O caso Marielle, conhecido mundialmente segue sem justiça há mais de 2 anos. Imagens dos EUA mostram uma palavra de ordem nas ruas das capitais: No Just, no Peace, que em tradução livre significa “Sem Justiça, sem paz”. A luta antirracista precisa ver respostas e, ao que tudo indica, seguirá nas ruas enquanto não as conseguir. Ainda que os poderosos quisessem verdadeiramente ajudar na resolução dos problemas sociais, sobretudo na desigualdade racial, não se trata apenas de uma vontade política, Trump representa a manutenção dos resultados políticos e econômicos, fruto das contradições e da desesperança por uma vida melhor. É a revolta e o ódio organizado por um programa conservador, que em nada se preocupa com negros, latinos ou imigrantes. Mas a dinâmica não para por aí. As instituições têm um limite até mesmo na perspectiva de atender as demandas antirracistas, pois comprometeria a estrutura capitalista do Estado, que se alimenta e mantém essa desigualdade porque lucra com isso. Há um embate inevitável com o comitê gestor do capitalismo e a essência excludente do sistema. Uma chave parece estar virando, ao menos dentro do coração do imperialismo. Abre-se um novo tempo de possibilidades e lutas pelo mundo. O caráter antirracista, combinado a indignação do povo com questionamentos sobre as formas de organização política e econômica começam a tomar conta dos debates cotidianos, ganhando forma e potencial de transformação. Na medida em que a crise econômica se aprofunda, diante de tanta desigualdade potencializada pela situação crítica que passa o mundo, somente a organização do povo poderá arrancar vitórias expressivas e salvar vidas. Há dois caminhos para a rebelião negra norte-americana. Perder força social para os substitucionistas – os que tentam substituir as maiorias por suas supostas vanguardas –, transformando as ruas em um campo de guerra. Isso justificaria a já anunciada política de Donald Trump em fazer um combate aberto, criminalizando os protestos e tratando os manifestantes como bandidos. Esse cenário poderia fortalecer Trump repetindo, guardadas as devidas proporções, o ano de 1969, no qual, após o assassinato de Martin Luther King, foi acionada a Lei de Insurreição – criada em 1807 e que prevê o recurso ao Exército em casos de extrema gravidade e ameaça de ordem pública. Após esse acontecimento histórico, os EUA elegeram Richard Nixon como presidente sob o lema “lei e ordem”. A outra via é apostar na organização do povo e no diálogo com as massas. Ampliar as manifestações de rua, vencer a tentativa de substitucionismo da pauta, combatendo os infiltrados, como vêm fazendo, para atingir maioria social capaz de emparedar o governo. E a partir da construção de um programa de exigências, como deixou de legado o Partido dos Panteras Negras e seus 10 pontos, arrancar reformas estruturais, elevando o nível de consciência, enviando uma mensagem a toda diáspora negra e ao povo explorado e oprimido pelo mundo. 1 A guarda nacional possui 13 mil soldados (Uma força convocada em situações excepcionais) Minnesota foi ativada com a justificativa de conter os “anfifas” infiltrados. 2 http://anphlac.fflch.usp.br/direitos-civis-eua-cronologia (PUblicado originalmente no site Outras Palavras)