pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Uma outra história da República

                               
                                                                                                                                                                                                                                                                                             Richard Miskolci
                                                                            

Uma outra história da República                 
Independência ou Morte’, de Pedro Américo / Museu Paulista da Universidade de São Paulo (Arte Andreia Freire)

Quinze de novembro de 1889 oficializou um movimento histórico que não se consolidara: a construção de uma república brasileira. Imaginada por nossas elites políticas, econômicas e intelectuais que – a despeito das divergências – tinham em comum o sonho de criar uma civilização nos trópicos, a República era menos conquista do que projeto a impor. Daí não ser mero acaso que tenha sido proclamada por militares, homens que escolheram a divisa positivista que figuraria em nossa bandeira: amor, ordem e progresso. Claro que – como viris representantes da ordem – começaram por suprimir o amor do mote de Auguste Comte. Supressão até hoje desconhecida da maioria dos brasileiros, mas reveladora do intuito de apagar qualquer traço do desejo no novo regime político.
O desejo era temido como incontrolável e ameaçador para o almejado progresso. Mas, afinal, o que seria o progresso até hoje impresso em nossa bandeira? De acordo com as fontes da época, seria o caminho trilhado por medidas que dirigiriam o Brasil para o modelo da civilização que nossas elites projetavam na Europa e nos Estados Unidos. Era um ideal baseado em uma fantasia das classes superiores, as quais não apenas se imaginavam brancas como consideravam a branquitude um atributo de superioridade moral que as colocava em claro contraste com o povo, no qual projetavam o atraso e a negritude. Viam o povo como uma massa heterogênea sob ameaça degenerativa a esperar pelo branqueamento para poder se tornar digna de ser reconhecida como nação.
Ordem e progresso era um mote que afirmava o papel assumido pelas elites de guiar o Brasil em direção ao branqueamento. A imigração europeia acelerada se dava em meio a revoltas que ameaçavam o novo regime político. A ordem não era apenas mantida pelas forças policiais já militarizadas desde o império e que lidavam com o povo como inimigo, herança até hoje não superada. Ela estava também em algo menos óbvio, ainda que não menos importante: uma ordenação do desejo. O agenciamento da sexualidade para a reprodução branqueadora mostra que a “ideologia” do branqueamento não permaneceu no campo das ideias, também permeou práticas sociais.
A maior parte de nosso pensamento social presumiu o desejo como heterossexual e reprodutivo assim como deixou de problematizar as incertezas de nossas elites, seus fantasmas. Segundo Benedict Anderson, as fronteiras da nação são delimitadas pela imaginação das elites. Explorar as fantasias de branquitude das classes superiores brasileiras exige lidar também com seus fantasmas, dentre os quais se destaca o temor de que o desejo escape ao seu controle. Seu próprio desejo, mas ainda mais o desejo da população vista como “primitiva” ou carente de autocontrole.
O projeto branqueador demandava a imigração de europeus, mas tinha na miscigenação, portanto na reprodução sob o controle dos homens brancos, seu principal vetor. Nação e reprodução tornaram-se sinônimos e raramente pesquisadores se interrogaram sobre os limites de tal simplificação: seriam todos os desejos reprodutivos? Dirigir-se-iam os desejos necessariamente a pessoas do sexo oposto? Tornar-se-iam mães todas as mulheres? Afinal, por que a nação não foi completamente desnaturalizada e encarada como um construto histórico e político?
Há uma outra história da nação a ser contada.
Se a história oficial tendeu a apagar as resistências aos intuitos da República Velha, as alternativas tenderam a ignorá-las porque ambas, apesar de tudo o que as distingue, foram pouco afeitas aos vestígios das experiências que não costumam ter registro em documentos oficiais. Onde estariam, então, as pistas desse passado que sobreviveu mais pela memória do que pela história? Nas lacunas dos arquivos, nos documentos que foram considerados irrelevantes ou secundários e na literatura da época.
A literatura, em fins do 19, além de ser um discurso muito mais poderoso do que em nossos dias, era meio de expressão da vida da época fora dos enquadramentos estritos da ciência, religião ou política institucionalizadas.
Segundo a socióloga Avery Gordon, a literatura é um meio privilegiado para acessar os fantasmas de uma época. A experiência de ser assombrado é reveladora também sobre as fantasias que guiam as ações de certos estratos sociais. Em O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX (2012), selecionei três narrativas escritas entre 1888 e 1900 para compreender a passagem da Monarquia à República não pela já conhecida ênfase na passagem do trabalho escravo ao livre tampouco nas disputas políticas intraelite, antes pela emergência de um novo ideal de nação que congregou forças em um projeto autoritário de transformar nosso povo em uma nação à imagem das classes superiores brancas. Os romances selecionados foram O ateneu (1888) de Raul Pompeia, Bom crioulo (1895) de Adolfo Caminha e Dom Casmurro (1900) de Machado de Assis, relatos sobre o passado, memórias a assombrar o presente republicano em seu conturbado e sangrento período de consolidação.
A aprovação do serviço militar obrigatório em 1916 alçou de vez o soldado ao topo do imaginário nacional tornando modelares aqueles que proclamaram a República. Também criou um ponto de passagem obrigatório para todos os jovens brasileiros até nossos dias.
Progressivamente, todos os rapazes, no ano em que completam dezoito anos, passaram a se alistar passando por um exame admissional que inclui a suspeita sobre seu desejo, sobretudo se homossexual.
Muito antes do serviço militar ter se tornado obrigatório e abranger todo o território nacional, durante a Guerra do Paraguai um médico publicou um manual que propunha guiar a seleção dos recrutas. Seu principal conselho era o de selecionar apenas os de “virilidade assaz visível” e recusar os “efeminados”. A seleção era uma triagem que recusava os claramente femininos, o que nunca equivaleu a criar um contexto puramente heterossexual. O ambiente das forças armadas visava criar uma masculinidade disciplinada, uma forma culturalizada da branquitude a ser estendida aos homens do povo quer fossem negros, pobres ou mestiços.
O fato é que o serviço militar gerava um desejo pela própria masculinidade que buscava criar. A instituição-espelho dos proclamadores da República terminou por ser um dos vetores de disseminação do desejo que ela mais temia. Diferentemente de explicações intelectualistas sobre a origem histórica da homossexualidade em textos científicos ou posteriores diagnósticos e práticas de internamento psiquiátrico, revela-se factível a hipótese de que o alistamento militar foi prática social a disseminar a informação sobre a existência de um outro desejo assim como a de uma identidade homossexual.
O desejo homossexual masculino passaria a ser perscrutado no alistamento militar assim como a manutenção do feminino sob o controle dos homens contaria com a criminalização do aborto. Homens e mulheres direcionados à reprodução passavam a construir a nação dentro do possível, se não branca, ao menos miscigenada, mas mantendo o desejo sob a ordem política branca e heterossexual.
Percebe-se, portanto, como a República do projeto branqueador pôde ser reformada pela do discurso da democracia racial, o qual permearia a fantasia de um a sociedade sem conflitos e divergências durante o último regime militar (1964-1985). Tal sociedade se assentou na cidadania plena reservada aos brancos e heterossexuais, resultado de práticas sociais que a racializaram e heterossexualizaram relegando à subcidadania os não brancos e não heterossexuais.
Somos descendentes desse processo histórico autoritário e injusto que começou a ser contestado com o retorno à democracia na década de 1980. Conquistas democráticas recentes como as ações afirmativas, ao contrário do que afirmam seus pálidos críticos, configuram demanda meritória pela desracialização da cidadania assim como as demandas LGBT clamam por sua des-heterossexualização. O desejo da nação tem se libertado de sua amarra secular que o vinculava ao projeto hegemônico de uma elite que se fantasiava como branca e heterossexual.
O desejo homossexual ainda causa temores entre alguns setores de nossa sociedade, como os religiosos fundamentalistas, não por razões puramente racionalizáveis tampouco puramente emocionais. O medo dos conservadores em relação ao desejo homossexual é herdeiro de uma concepção de sociedade baseada na hegemonia hétero e sua aura de respeitabilidade moral. No fundo, um temor engendrado historicamente por práticas sociais instituídas no alvorecer da Primeira República.
Não deixa de ser revelador o que leva os conservadores a desviarem o foco do autoritarismo do qual ainda somos herdeiros para projetar nos homossexuais uma suposta ameaça: o monopólio heterossexual da cidadania denunciado neste texto foi aceito em parte das classes populares como ordem natural (ou religiosa) das coisas.
Salvo engano, atualmente o desejo homossexual parece ser um fantasma maior entre os mais pobres enquanto o reconhecimento da negritude continua a ser negado pelas elites apegadas a um discurso de mérito que mal encobre seu privilégio racial e de classe.
A visibilidade recente dos conflitos entre demandas de reconhecimento e resistência à transformação social e política é um sinal de avanço democrático. No Brasil contemporâneo, a novidade é que velhos fantasmas começam a dissipar algumas das fantasias que guiaram nossa história política. Quiçá estejamos assistindo à (re)invenção da República, dessa vez feita a partir dos desejos ignorados ou esquecidos nas narrativas ainda hegemônicas sobre a nação brasileira. 

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

O despertar da palavra

                                     
Horácio Costa
                                                                                

O despertar da palavra
O escritor José Saramago (Divulgação)

A entrevista que segue teve lugar em fevereiro passado, em Madri. O Instituto do México, na Espanha, organizou, no primeiro trimestre deste ano, um ciclo de conferências: Portugal desde México. A diretora do Instituto, Luz del Amo, que tivera a idéia de organizar o ciclo algo inédito, ou pelo menos pouco usual no mundo hispânico, onde via de regra Portugal, ainda mais do que o Brasil, sofre de uma espécie singular de obnubilação programada , tinha-me pedido que convidasse Saramago; ele aceitou, sem cobrar cachê. Pediu para ficar no mesmo hotel de sempre (o Suécia), a trezentos metros do Prado. Não é o primeiro favor que me faz e espero que não seja o último. Já anteriormente me brindara com muitas informações e respondera às muitíssimas questões que lhe apresentei, enquanto escrevia minha tese para Yale, José Saramago, o período formativo. A presente entrevista, portanto, não é, latu sensu, a primeira que me deu.
Há catorze anos, quando completei trinta, recebi de presente de minha amiga e ex-professora Renina Katz, uma leitora inveterada, o romance Memorial do convento. O entusiasmo com o qual Renina me recomendou a leitura, uma vez feita e já de volta aos Estados Unidos, transferi para Emir Rodríguez-Monegal. Naqueles meses, eu andava atrás de um tema de tese; numa tarde do verão de 1985, a caminho do teatro em Hartford, pude conversar longamente sobre Saramago com Emir, que recentemente estivera com ele durante um congresso de escritores, e que seria o meu orientador, se tudo desse certo (não deu: a Monegal sobravam poucos meses de vida).
Por meu lado, perguntava-lhe como era o homem em pessoa; pelo seu, e muito menos afoitamente, Emir me interrogava sobre a radicação de Saramago na literatura portuguesa contemporânea. Não é necessário dizer que ele soube responder às minhas perguntas, traçando-me o perfil de um cavalheiro lusitano de humor mordente, de viés irônico, que Emir comparava ao de Borges, a quem tinha conhecido tão bem; entretanto, à medida que o crítico uruguaio aumentava em agudeza as suas questões, crescentemente eu me dava conta do pouquíssimo que sabia, e que de fato era então conhecido, sobre o autor português. Eu já me dedicara, em Yale, a pesquisar sobre esse escritor que me chegara às mãos sem nenhum antecedente; ainda que a Biblioteca Sterling seja uma das maiores e melhores do mundo, eu me decepcionara com o pouco que nela havia sobre Saramago.
O que tínhamos em mãos era apenas o Memorial. Portanto, qualquer consideração crítica que podíamos fazer se limitava ao tipo de escritura que Saramago nele adotava. Diante dela, e assumindo como base o realismo maravilhoso em versão hispano-americana, concluímos que a qualidade do imaginário de Saramago dele diferia em um ponto básico: estava prenhe de lirismo e escapava dos padrões de alegorização mais óbvios e tão freqüentes neste. Havia pontos evidentes de contato para começar, o fascínio pelo barroco, que na narração reverberava temática e linguisticamente , mas o tônus geral do relato não apontava para as terras americanas.
Anos mais tarde, em Portugal, pesquisando sobre o Memorial, terminei por assegurar-me disto: se muito da postura de um Carpentier ou de um García Márquez se fazia notar (principalmente, no nível do anedótico, na pesquisa de fontes da época e por aí), a base era diferente. A velha cultura portuguesa, às vezes excepcional quando representada por um Fernão Lopes, um Camões ou um Vieira , mas frequentemente marginal à Europa dos grandes debates, ainda que muitas vezes ironizada pelo escritor, se impunha com uma clareza meridiana. Aí estava, e está, o quid de Saramago. Não só de estilemas individualizadores vive um grande escritor: nunca é demais lembrá-lo, ele ou ela via de regra (há exceções) pisam o terreno conhecido que lhe dá a sua própria cultura, a sua própria língua. Naquela tarde, disse a Emir que eu pesquisaria mais sobre o romancista e que, em função do que encontrasse, talvez escolhesse a sua obra como objeto da minha tese de doutorado. À época, muito pouca gente entendeu que eu escolhesse Saramago, então um escritor com alguma bagagem (o melhor viria depois), e menos ainda que me dedicasse a sua obra menor. Optei por estudar o período de formação do escritor por duas razões: primeiro, por jamais ter ele recebido atenção crítica (uma importante estudiosa italiana da literatura portuguesa não há muito me dizia que Saramago tinha nascido feito, assim como se um Gulliver qualquer); segundo, porque estudar um período não canonizável de um escritor em vias de canonização (agora já plena, depois do Nobel) pode colocar uma série de questões críticas de interesse, entre elas a de discutir como o cânone funciona para canonizar os seus eleitos, como a crítica procede para eleger os seus objetos de estudo.
Se Saramago, ao longo de suas décadas de experimentação ou deriva entre vários gêneros literários, apresentou uma notável distância, ou mesmo, defasagem, perante as estéticas dominantes à época no contexto português (apesar da dicção neorealista fundamental em sua produção política, afinada com uma vertente da poesia portuguesa dos anos 40 e 50 porém usada por ele vinte anos depois!), um discurso crítico que procurasse acercar essa obra de exceção (frente aos modismos, às oposições quase sempre conjunturais que caracterizam o processo literário) teria que, de alguma maneira, sê-lo também, abandonando as interpretações mais circunstanciais de análise. Ir até uma obra que se divide entre fraca e forte, ignorada e estudada (e in e out , boa e ruim), foi o que eu tentei, centrando sempre as minhas interpretações no sinuoso processo de trabalho de José Saramago, antes que em seu melhor resultado, aparentemente para sempre canonizado.
A entrevista que segue constantemente refere-se a essa injunção e a essa preferência crítica minha. Pensei que valesse a pena alertar o leitor sobre a razão das perguntas que nela fiz. Agora, definir o que possam as respostas a elas esclarecê-lo sobre a obra e o indivíduo José Saramago é coisa sua.
Horácio Costa – Eu queria que você dissesse o que ficou da experiência dos gêneros que você praticou ao longo de várias décadas crônica, poesia, ensaio, teatro antes da publicação do Manual de pintura e caligrafia. Por que você acha que demorou vinte anos para escrever um segundo romance? Há um primeiro, uma tentativa pouco madura nos anos 40, mas a sua primeira obra em prosa de ficção sólida é esse Manual.
José Saramago- Em primeiro lugar, quando se pergunta o que ficou de uma obra, que supostamente pertence a um tempo passado, pressupõe-se uma dúvida, se alguma coisa terá ficado. Porque, se não existisse essa dúvida, então a pergunta não teria sentido. Quando se começa a escrever muito jovem, corre-se o risco e, afinal, isso me aconteceu, porque aos 25 anos publiquei um romance. Romance que ficou por aí, que foi reeditado apenas em 1997 porque o editor achou que se o romance fazia 50 anos, desde a primeira publicação, tinha que ser novamente publicado e então temos uma edição nova de um romance que se chama, perdoem, Terra do pecado. Eu não tenho culpa de o romance ter esse título, a culpa é do editor. O romance se chamava A viúva. Um jovem de 25 anos, que era o que eu tinha, não sabia muito de pecados, e menos de viúvas… Mas eu percebi que não tinha tanta coisa para dizer, nada importante. E me calei, me calei por vinte anos praticamente.
Isso não é verdade, porque escrevi um outro romance que se chama Clarabóia, que permaneceu inédito e, esse sim, permanecerá inédito. Não o destruí porque não devo destruir as coisas que faço; se não posso destruir todas, por que vou destruir algumas? Se eu pudesse apagar todas as coisas ruins e agora não estou falando do livro, estou falando de coisas ruins que a gente faz na vida , eu as apagaria. Mas como Terra do pecado, apesar de tudo, não é a pior coisa que eu fiz na vida, então que fique aí; e Clarabóia ficará, mas com a condição de não ser publicado enquanto eu viver.
Até 1966, quando eu tinha 44 anos, não escrevi nada. Salvo no período imediatamente anterior a 1966, que foi quando escrevi um livro de poesia chamado Os poemas possíveis. E por que eu o escrevi? Bom, a resposta é sempre a mesma, ou quase sempre: porque me apaixonei. E eu já havia feito uns quantos sonetos e coisas assim no tempo que fazíamos sonetos, aos dezoito anos. Acho que os jovens de hoje já não sabem o que é escrever sonetos e as meninas não têm a felicidade de receber um soneto dos garotos. Isso acabou, que pena! Bom, então eu me apaixonei nessa época e daí saiu o livro. Confesso que, quatro anos depois, me apaixonei de novo e saiu outro livro de poemas que se chama. Provavelmente alegria. E então acabou-se a história de publicar pelo fato de me apaixonar [risos].
A partir de 1966, por circunstâncias da vida, me encontrei mais próximo do mundo literário porque trabalhava numa editora desde os anos 50 e durante quase 15 anos. Eu tive uma vida que não tinha nada a ver com a literatura. Eu fui várias coisas na vida: trabalhei numa oficina mecânica, fui desenhista, funcionário da saúde pública, depois não sei o quê, depois editor, e era assim. Então, eu não me preparei para ser escritor. Sou escritor por um acaso. E que acaso é esse? É que chegou um momento em que eu, além de me apaixonar e por isso pôr sobre a mesa livros de poesia, comecei a colaborar em jornais, escrevendo crônicas. De 1966 até 1977, houve onze anos de publicação: publiquei três livros de poesia e o terceiro não tem nada a ver com minhas paixões, crônicas, ensaios políticos, que no fundo eram editoriais de jornal, de um jornal que já não existe, chamado Diário de Notícias, e acho que tudo começa aí. Quando, em novembro de 1975, ocorreu a contra-revolução, o que se chamava o processo contra-revolucionário e talvez algumas pessoas não estejam de acordo com a qualificação ou com a classificação , eu fiquei na rua, sem emprego, sem salário, sem trabalho e sem possibilidade de encontrar outro facilmente, porque o jornal estava com a revolução.
Aí eu tomei a decisão definitiva da minha vida, que era a de não procurar trabalho, e me dizia: você tem sete ou oito livros escritos, que são dignos, sérios, honestos, mas por aí você não vai chegar a lugar nenhum. Se você está pensando na história da literatura, então, resigne-se a que digam (se disserem) que o senhor fulano nasceu nessa data, morreu numa outra, publicou alguns livros e ponto. Uma linha, duas linhas e nada mais. Não que eu aspirasse a um capítulo completo da história da literatura, não é isso. A decisão de não procurar trabalho era enfrentar essa idéia de que, talvez, eu seria um escritor, mas faltava uma prova, porque aqueles livros não eram na minha opinião suficientes para tal. Isso foi o que depois levou a toda essa série de livros, romances, obras de teatro, diários que caracterizam esses últimos 20 anos. Isso é o que me leva a dizer que eu sou um jovem escritor, que eu sou um velho escritor da nova geração porque a verdade é que eu estou escrevendo obras mais sólidas não há cinqüenta, mas há vinte anos; portanto, supondo que se começa, talvez, a escrever e publicar aos 20, 23 anos, então, agora, literariamente, eu não tenho mais do que 45 anos. Sou um menino… [risos]
O que ficou do que ficou para trás? Eu diria que ficou tudo. E ficou tudo em que sentido? Eu muitas vezes digo que se alguém quiser entender bem o que eu estou dizendo nos romances que estou escrevendo é preciso ir às crônicas que escrevi nos jornais e que estão em dois livros: Deste mundo e do outro e A bagagem do viajante. Quase todos os temas que estão agora nos romances, certos pontos de vista, visão de mundo, obsessões e preocupações de ordem não apenas literária, preocupações de ordem política, de ordem civil, tudo isso se encontra nesses pequenos textos publicados em jornais, e quem se interesse pelo que eu faço além dos romances que têm maior reputação, dos quais se fala, que saem na crítica, que estão nas livrarias e tudo isso tem que ir a esses pequenos textos porque eu mesmo, quando por algum motivo tenho que voltar a esses textos, me reencontro.
Nessas crônicas há muito de ficção, e sobretudo há o trabalho sobre a memória, a memória da infância, da adolescência, a memória dos adultos, dos avós, das coisas vistas e esse, se eu chegar a escrevê-lo, será o conteúdo de um livro que já tem título, mas que ainda não está escrito e que se chamará O livro das tentações. Já estou me antecipando, mas uma coisa chama a outra. É uma autobiografia minha. Eu sou tão vaidoso que inclusive vou escrever a minha biografia. Mas é uma autobiografia um pouco estranha, porque termina aos catorze anos de idade. O que eu quero fazer é isso, recordar o menino que eu fui. Tentar saber quem era esse menino. Porque a verdade é que nós pensamos que toda a nossa vida está aí para que nos tornemos adultos. E, quando somos adultos, nos comportamos como se olhássemos para nós como algo que saiu do estado de crisálida, imaginando que a infância e a primeira adolescência é a crisálida, e que depois da crisálida saiu o inseto adulto com todo o seu esplendor, as suas cores, com toda a sua beleza. Nos casos em que têm esplendor e que são belos, claro; há insetos que deveriam ter ficado na crisálida e não sair.
Eu não penso assim. Para dar-lhes uma ideia do que eu penso nesse sentido: não sei se o meu leitor percebeu que eu ponho sempre epígrafes; a epígrafe de Todos os nomes, para falar do último romance publicado, é Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens, é uma citação de um livro chamado Livro das evidências, que não existe, como em outro romance, História do cerco de Lisboa, há uma outra epígrafe que foi tirada do Livro dos conselhos, que também não existe. E isso é um pouco borgeano, e se isso continuar, não terei mais remédio do que escrever o Livro das evidências e o Livro dos conselhos. E, então, a epígrafe que terá o Livro das tentações e com isso, acho que terei explicado tudo o que tentei explicar até agora é a seguinte: Deixa-te levar pelo menino que foste. Porque, na verdade, de nada eu gostaria mais ou de poucas coisas eu gostaria tanto do que poder passear pela rua, não levando pela mão o menino que fui, mas sendo levado pela mão desse menino. Se eu pudesse recuperá-lo, tê-lo agora mesmo, quanto eu gostaria. Vocês podem pensar: mas que ideia estranha essa, você é ele e ele é você. Não, eu sou ele, mas ele não sou eu. Um deles não conhece o outro; e o fato de que um deles não conheça o outro me perturba. E por isso eu digo: deixa-te levar pelo menino que foste. Talvez o menino, supondo que os meninos não são maus alguns são péssimos, claro , fosse capaz de, na hora que vamos fazer uma coisa errada, de puxar pela nossa roupa e dizer: não faça isso.
Há uma continuidade de pensamento e inclusive uma continuidade de sensibilidade no que estou fazendo agora e que vêm dos textos mais antigos. Como os textos não nascem do nada, nascem de alguém que está vivendo, mesmo que não esteja escrevendo, então tudo é uma relação que vai pelo interior da vida e que une tudo a tudo. O que eu posso dizer, claro, é que há algumas coisas que fiz antes e que, se eu as fizesse agora, tentaria fazê-las melhor. Mas não se trata aqui de mais qualidade literária ou de menos qualidade literária, trata-se do que se está dizendo aqui.
A forma como se desenvolve sua carreira é bastante atípica, especialmente em relação ao que cada vez mais acontece no mundo literário, afetado por uma série de problemas externos, a questão do mercado, os prêmios literários etc… Num texto crítico dos anos 60, parte das suas colaborações para a Seara Nova, você escreveu: A literatura não é uma carreira. Aquele momento era especialmente significativo, porque então você era conhecido em Portugal como poeta. Você estava publicando o seu segundo livro de poesia, ou prestes a publicá-lo, e entrava na literatura ou na vida cultural lisboeta por meio da atividade poética. E você começa a escrever essas notas críticas numa publicação importante da literatura portuguesa contemporânea, a Seara Nova. Então, eu gostaria de que você desenvolvesse essa ideia de autor, naquele momento biologicamente já não muito jovem, nos anos 60, que tem consciência de que a literatura não é uma carreira; e como você vê isso agora, não só com relação ao mundo contemporâneo, mas também à luz da sua produção posterior.
Quando me convidaram para fazer crítica nessa revista, eu só havia publicado esse livro de poesia chamado Os poemas possíveis. Inclusive impus uma condição, a de que não faria crítica de livros de poesia. Porque me parecia que isso não teria muito sentido para mim, um jovem poeta, com apenas um livro, e que não era Rimbaud nem Fernando Pessoa. Pode-se perguntar: você não quis fazer crítica sobre livro de poesia, mas estava disposto a fazer sobre romances? Sim, do ponto de vista do leitor, como se eu fosse um leitor, já que no fundo o crítico é um leitor. No entanto, é um leitor que tem o direito de publicar a sua opinião. Essa é, suponho, a diferença mais visível que há entre um e outro.
E é verdade que numa dessas críticas eu escrevi que a literatura não é uma carreira. Depois de 30 anos, e com tudo o que aconteceu na minha vida, parece que há uma contradição entre a minha vida e essa afirmação, porque eu vivo do que escrevo. Mas não tenho os tipos de obrigações de um trabalho, não tenho ações, não tenho bens, não tenho nada senão o que pode ser posto sobre a mesa, o que escrevo. Eu nunca me lancei a isso que chamamos uma carreira de escritor. Entendo que uma pessoa se lance a uma carreira de advogado, médico, engenheiro ou algo parecido porque isso significa que se preparou para exercer uma atividade profissional e, portanto, está nisso e vai trabalhar nisso. Os médicos precisam de doentes, mas estão certos de que doentes sempre existirão, não? E, portanto, estão certos de que podem abrir o seu consultório para recebê-los. Esses, sim, podem falar de uma carreira.
De repente, amanhã pode ser que eu não tenha nenhuma ideia para um livro e se isso acontecer eu deixarei de escrever. E o fato de que eu esteja vivendo da literatura, porque é verdade, não significa que eu não escreva nada de que eu necessite escrever como homem. Isto é, eu não posso viver sendo duas pessoas em uma a pessoa corrente e normal, que, afinal, sou, e uma entidade, um pouco estranha, que se chama escritor. Esses dois não vivem lado a lado, são um apenas, estão fundidos um no outro. E se o homem não tem nada para dizer como homem, também não terá nada para dizer como escritor. Se isso acontecer, e eu já disse isso, me calarei. E poderia ter acontecido de eu me calar depois do Memorial do convento, do Ano da morte de Ricardo Reis, da História do cerco de Lisboa, ou do Evangelho segundo Jesus Cristo. Poderia não ter tido mais nenhuma ideia, e fim. E é verdade que, cada vez que eu termino um romance, não tenho nenhuma outra ideia e fico esperando para ver o que acontece. Pode levar um mês, dois, três, seis meses, até me ocorrer uma ideia. Eu acho que os que me leem perceberam que os meus livros não se repetem. Eles percebem que o autor é este pela forma de narrar, pelas preocupações que expressa, mas cada livro contém alguma coisa que aí se acaba. E isso tudo é o contrário do que se necessitaria para uma carreira. Para uma carreira, o conveniente seria explorar os filões encontrados para que ela pudesse se desenvolver, não? Mas eu fico assim, sem enredo, esperando para ver o que acontece.
Você disse que não teve uma educação formal em literatura, que foi um leitor. Mas eu lhe peço que comente a importância que tiveram a atividade crítica que você exerceu e a atividade de tradutor nesse período de formação, de autoaprendizagem.
É preciso dizer algo que ainda não foi dito e que deve ser considerado. Se eu, aos 20 e poucos anos, escrevi um romance, foi porque alguma coisa eu tinha lido. E tinha lido muitíssimo. Onde? Nas bibliotecas públicas. Entre 16 e 22 anos, eu fui um leitor noturno, porque tinha que trabalhar de dia, ia a uma biblioteca pública de uma cidade pequena e lia tudo o que encontrava. Às vezes, não entendia nada, ou quase nada, de alguns livros que lia; não tinha ninguém que me dissesse: esse agora não convém, é melhor que você leia esse outro. Mas, de qualquer modo, com todos disparates, erros e incompreensões, creio que pude ler uma gama bastante ampla de autores. Eu diria que Terra do pecado, por um lado, funcionou como uma sedimentação de leituras; pode-se dizer que não há nada de original ali, mas, se não somos Rimbaud, o que entendemos por original aos 20 e poucos anos?
Você pergunta se o fato de fazer traduções influiu em alguma coisa. Não, em nada, nada, nada… É muito diferente sentar-se para traduzir uma obra pelo desejo de traduzi-la, por vontade própria e, então, desfrutar do trabalho de tradução, buscando as funções mais adequadas e tudo isso… Mas eu não traduzi por gosto, por prazer; eu traduzi para ganhar a vida e traduzi de tudo: livros de política, de economia, de arte, romances, coisas tontas como uns livros de um senhor chamado Jivkov, que era búlgaro, secretário-geral do Partido Comunista da Bulgária e ao mesmo tempo presidente, e eu tive que traduzir coisas dessas. Com isso não aprendi nada. Mas claro que há outro tipo de aprendizagem. Quando tive que traduzir Bonnard, aprendi muito. Mas não aprendi a escrever e acho que quem tem que traduzir nas mesmas condições e circunstâncias que eu corre o risco de ter a sua escrita prejudicada pela variedade de estilos, de modos de narrar dos diferentes autores que tem que traduzir.
Então, posso dizer que não aprendi nada. Agora, acho que aprendi a escrever porque li muito. Sempre li muito, desde menino, desde adolescente, ia à biblioteca pública para ler, para ler e nada mais, e no dia seguinte tinha que me levantar cedíssimo para ir à oficina onde estava trabalhando. Não estou idealizando a minha vida, não estou fazendo romantismo barato e falso, estou falando de fatos e nada mais; sem cair na tentação de exagerar para uma vida extraordinária, senão o contrário. Eu comecei por esse romance, depois a poesia, depois a crônica, depois fiz um pouco de teatro. Mas o teatro não foi por uma iniciativa minha. Eu tenho quatro obras de teatro, todas elas foram representadas, e aparentemente eu poderia dizer: sou dramaturgo. Não, não sou, eu não me vejo como dramaturgo. Romancista, sim; mas depois de todas essas experiências e de tudo isso. Mas talvez o romancista que sou deva algo a uma circunstância que a que ver com uma obra da qual não se fala muito, e é uma pena que não se fale muito dela, que é esse romance que publiquei em 1980 e que se chama Levantado do chão. Em 1975, como disse, fiquei sem trabalho. Em 1976, eu estava no Alentejo, no sul de Portugal. Eu venho de uma família de camponeses pobres, sem terra, do norte de Lisboa, a uns 100 km, mais precisamente do nordeste; e, nessas alturas, quando eu estava com essas dúvida o que vou fazer da minha vida? escrevo, não escrevo? como? o quê? para quem? e com que meios? , veio-me a ideia de escrever algo sobre a minha gente avós, pais , que viveu no campo nas condições que os mais velhos aqui podem imaginar, se viveram no campo há 40, 50, 60, 70, 100 anos: saberão o que é isso. E eu soube, não muito profundamente, mas, de qualquer forma, soube. O estranho é que eu deveria ir diretamente aos meus lugares, à minha cidade, e ficar ali, mas, talvez porque eu conhecesse muito bem tudo isso, não queria escrever sobre isso. Então, fui ao Alentejo em 1976 e fiquei lá dois meses, falando com as pessoas, indo ao campo onde trabalhavam, comendo com eles, dormindo com eles. E voltei, depois, por mais algumas semanas. Portanto, juntei um quantidade de idéias, informações, histórias e tudo isso. E esse livro foi escrito em 1979 e publicado em 1980. Quer dizer, foram precisos três anos para que eu pudesse escrever esse romance.
Na verdade, durante esse tempo escrevi um livro de relatos curtos, Objeto quase, e publiquei o Manual de pintura e caligrafia. Portanto, estive fazendo algumas coisas. Mas não estava fazendo o que tinha de fazer agora sei disso, mas naquela época eu não sabia. Porque eu não sabia de uma coisa, muito mais importante do que às vezes se imagina: eu tinha uma história para contar, a história dessa gente, de três gerações de uma família de camponeses do Alentejo, com tudo: a fome, o desemprego, o latifúndio, a polícia, a igreja, tudo. Mas me faltava alguma coisa, me faltava saber como contar isso. Então eu descobri que o como tem tanta importância quanto o quê. Não se pode contar como se não há o que contar, mas pode acontecer de você ter o que e ficar paralisado porque não tem o como. O tema que eu tinha estava claríssimo, era um romance neo-realista, bastavam camponeses, fome, desemprego, luta, tudo isso. E modelos do romance neo-realista português, nós os temos, e grandes romances. Portanto, o molde eu já tinha e só precisava colocar nele a minha própria matéria e, então, já teria o romance. Mas, não, algo dentro de mim dizia: não, não e não; enquanto você não encontrar a sua própria forma, não poderá escrever. Claro que isso eu estou dizendo agora, com certeza vocês não estarão imaginando que naquela época eu conversasse dessa forma comigo mesmo: não, eu não conversava. Mas eu tinha uma barreira que me impedia de ir adiante. Quando eu voltava ao Alentejo e encontrava os amigos que eu tinha feito lá, gente de uma qualidade humana impressionante, eles me perguntavam: e o romance, quando você vai publicá-lo? Eu dizia: é que estou ocupado agora com outros assuntos e tal. Não, na verdade eu estava em pânico [risos]. Em pânico porque eu não tinha o como. Até que, em desespero de causa, pensei: isso não pode ficar assim e tenho de começar a escrever esse romance e comecei a escrevê-lo como um romance normalzinho. E quando eu digo romance normalzinho, e há grandíssimos romances normaizinhos, não estou dizendo nada contra, ao contrário: surpreende-me que numa forma quase canônica possam ser escritos romances magníficos, sem rupturas… Claro que há outros romances magníficos que o são por vários motivos, entre eles porque romperam com convenções e com tudo isso. E comecei a escrever com cada coisa no seu lugar: roteiro e tal… Mas eu não estava gostando nada do que estava fazendo.
Então, o que aconteceu? Na altura da página 24, 25, estava indo bem e por isso eu não estava gostando. E sem perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos os meus leitores hoje sabem que eu escrevo: sem pontuação. Sem nenhuma, sem essa parafernália de todos os sinais, de todos os sinais que vamos pondo aí. O que aconteceu? Não sei explicar. Ou, então, tenho uma explicação: se eu estivesse escrevendo um romance urbano, um romance com um tema qualquer de Lisboa, com personagens de Lisboa, isso não aconteceria. E tenho certeza de que hoje estaria escrevendo esses romances como todo mundo talvez bons, talvez não tão bons, mas estaria acatando respeitosamente toda a convenção do que se chama escritura. Mas alguma coisa aconteceu aí: eu havia estado com essa gente, ouvindo, escutando-os, estavam contando-me as suas vidas, o que tinha acontecido com eles. Então, eu acho que isso aconteceu porque, sem que eu percebesse, é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, só que agora narrando a eles o que eles me haviam narrado. Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu havia recebido deles. A minha maneira tão peculiar de narrar, se tiver uma raiz, penso que está aqui. Não estou certo de que seja a única, mas com certeza, essa conta. Quando esse romance foi publicado em Portugal, houve um reboliço porque as pessoas não entendiam nada, inclusive um amigo meu me chamou para dizer: olha, eu sou seu amigo, mas a verdade é que leio três páginas e me perco, eu não entendo o que você diz. E eu disse: você tem em casa um corredor comprido, não? Pois então, acenda a luz à noite e comece a andar de um lado para o outro no corredor, lendo em voz alta. Se você ler em voz alta, vai ver o que acontece. Da mesma forma que, quando nos comunicamos oralmente, não necessitamos nem de travessões, nem de pontinhos, nem nada do que parece necessário usar quando escrevemos, pois então, você, como leitor, colocará aí, não o que falta, porque não falta nada… A palavra

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Jaguar via Folha de São Paulo

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quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Michel Zaidan Filho: Quando é crime fazer oposição


 
Um dos aspectos mais salientes do Estado Moderno, segundo Max Weber, é a burocratização das organizações sociais e políticas. Seja a empresa capitalista, o partido ou o governo do Estado, a tendência a tratar administrativamente as questões sociais é inerente a este tipo de organização social. É sempre o lado técnico, supostamente neutro, do ponto de vista da ideologia e da política, que é ressaltado nas decisões tomadas pela administração pública. Mas podemos perguntar: existe gestão administrativa sem política ou sem ideologia, como querem os positivistas?

Mais grave é quando se pretende recobrir decisões administrativas de cunho meramente disciplinar, punitiva, como no caso da criminalização das atividades sindicais, estudantis ou partidárias. Como estamos no limiar da incerteza e da insegurança jurídicas, nesse precário estado de direito, é de se perguntar qual é o limite traçado entre o mero processo administrativo e o processo penal ou político, quando atividades legítimas de contestação a atos da administração pública, seja por entidades sindicais, partidos políticos ou mesmo a sociedade civil, são julgadas pelo governante de turno como crime, perturbação da ordem ou desobediência civil.

Essas observações vem à balia em razão dos inúmeros processos administrativos e disciplinares abertos contra o presidente do sindicato da Polícia Civil de Pernambuco (SINPOL), o comissário especial Áureo Cisneiro, pela Secretaria de Defesa Social (SDS), sob a alegação de contumácia, “quando o servidor transgride normas disciplinares de forma repetida”, segundo a nota de esclarecimento daquela secretaria especializada.

Ora o exercício da atividade sindical em defesa de melhores condições de trabalho e remuneração dos policiais civis de Pernambuco, que cumpre a importante função de polícia judiciária, não pode (e não é) ser confundida com o mero respeito e acatamento de normas pelo servidor em exercício. O funcionário público investido de função sindical tem a liberdade, garantida pela Constituição, de questionar as autoridades (inclusive superiores hierárquicos dentro da corporação), quando se colocar a necessidade da crítica e da responsabilização da administração pública, sob pena de prevaricação ou trair a sua missão ou seu mandato sindical. Nenhum governo ou gestor da coisa pública está acima da lei. Pelo contrário, pode e deve ser interpelado pelos servidores, as organizações sindicais ou os partidos políticos.
Todos estes atores estão legitimados a cobrar do gestor público. Não só o estrito cumprimento da lei, mas o atendimento de suas justas, necessárias e urgentes reivindicações. Quando deixa de fazê-lo – por qualquer motivo - é passível de crítica e responsabilização civil e penal por omissão ou comissão criminosa. É de lembrar que a atual administração foi associada mais de uma vez a fatos, denúncias e revelações da órbita policial. A última relacionada ao desvio de recursos enviados para os flagelados das enchentes da mata sul. E que o presidente do SINPOL foi um dos que tomou a iniciativa de solicitar à Assembleia Legislativa a averiguação das denúncias, sem prévio juízo de valor.

O comissário especial da Polícia Civil, Áureo Cisneiro, é um servidor exemplar e como sindicalista deu mostras de como é possível dignificar o trabalho de sua corporação pelo programa do SINPOL, “polícia cidadã”, polícia republicana, democrática, a favor dos direitos humanos, inclusive das minorias – hoje tão ameaçados pelo clima fascistizante que tomou conta do país nesses últimos tempos. E não é só isso. Áureo Cisneiro é filiado a um dos partidos mais democráticos e republicanos do país: o PSOL, pelo qual foi candidato a deputado estadual nas últimas eleições. Ou seja, além de dirigente sindical autônomo e independente, ele é um cidadão comprometido com a defesa das melhores causas.

Ainda é tempo da tal comissão de delegados nomeada pelo Secretaria de Defesa Social rever o seu posicionamento equivocado de confundir a atuação sindical legítima, democrática e republicana, exercida por um servidor exemplar, com o crime de contumácia, como diz o relatório. Em situações dúbias como a que vivemos hoje em dia no país é muito fácil condenar pessoas, movimentos e atividades associativas ou mesmo políticas, usando casuística ou sofisticamente o texto da lei. Primeiro, apresenta-se o vezo persecutório, criminalizante ou meramente repressivo. Depois, o uso torto da lei.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais,  Partidários e da Democracia.












terça-feira, 13 de novembro de 2018

Roland Barthes e o prazer da palavra

                                          
Leyla Perrone-Moisés
                                                                                                                                                                 

Roland Barthes e o prazer da palavra


O filósofo, sociólogo, crítico literário e escritor francês Roland Barthes (Foto: Divulgação)

Quem foi, afinal, Roland Barthes? Um teórico da literatura? Um crítico literário, teatral, cultural? Um semiólogo, analista das imagens e da moda? Um teórico da fotografia? Um filósofo? Um conselheiro sentimental? Em que corrente intelectual situá-lo? Foi um marxista? Um estruturalista? Um subjetivista? A que gênero pertencem seus escritos? Jornalístico, ensaístico, romanesco, didático? A que período: clássico, moderno, pós-moderno? Barthes foi tudo isso, sucessiva ou concomitantemente, e acima de tudo um notável escritor que continua a fascinar os mais variados leitores, por sua inteligência e seu poder de sedução.
Barthes nasceu em Cherbourg, na França, em 1915. Sua carreira intelectual foi atípica. Tendo sofrido de tuberculose com várias recaídas, começou sua carreira como professor no estrangeiro e passou parte do tempo da Segunda Guerra em sanatórios. Somente nos anos de 1950 começou a ser notado como ensaísta literário originalíssimo (O grau zero da escrita), crítico de teatro e autor de crônicas ferinas em que analisava os mitos da sociedade francesa contemporânea (Mitologias). Nos anos de 1960, tornou-se orientador de pesquisas na École Pratique des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, onde se notabilizou como um dos representantes mais famosos do estruturalismo (Elementos de semiologia, Crítica e verdade, Sistema da moda).
Na década de 1970, com O prazer do texto, Roland Barthes por Roland Barthes e S/Z, abandonou o projeto semiológico e iniciou uma fase de escrita vincadamente pessoal, caracterizada pela aliança da inteligência crítica com a sensualidade verbal. Fragmentos de um discurso amoroso, em 1977, surpreendeu como um inesperado best-seller. No mesmo ano, Roland Barthes ingressou no Collège de France, honraria raramente concedida a um autor “impuro” (como ele mesmo se qualificou), que não ilustrava nenhuma ciência ou gênero literário preciso e nunca concluira sua tese de doutorado (cuja preparação resultou, mais tarde, no livro Sistema da moda). No Collège de France, ministrou quatro cursos anuais (Como viver junto, O neutro e A preparação do romance 1 e 2). Sua aula inaugural (Aula), defendendo e ilustrando “o saber com sabor”, fôra concebida como um novo projeto de vida, mas foi, na verdade, seu testamento intelectual. No auge da fama, Barthes foi atropelado por uma caminhonete, na frente do Collège de France, e faleceu em março de 1980. Seu último livro, A câmara clara (ensaio sobre a fotografia) foi publicado postumamente, naquele mesmo ano.
A publicação de suas Obras completas, primeiramente em três volumes luxuosos (Paris, Seuil, 1993) e depois em uma edição corrente em cinco volumes (Paris, Seuil, 2002), revelou uma grande quantidade de textos inéditos. São textos que se encontravam dispersos em revistas, jornais, enciclopédias e publicações estrangeiras de difícil acesso. Esses inéditos não mudam a visão que tínhamos dele, mas acrescentam e iluminam muitos pontos de sua obra. Os inéditos revelam tanto as mutações de Barthes ao longo dos anos (seus “deslocamentos”, como ele preferia dizer) quanto seus temas permanentes e recorrentes. Alguns já preocupavam o jovem autor das Mitologias e do Grau zero da escrita, nos anos de 1950, e continuaram sendo objeto de suas reflexões, até serem sintetizados na Aula, e desenvolvidos em seus quatro últimos cursos, de 1977 a 1980.
Os primeiros textos, datados de 1947 a 1959, revelam um Barthes fortemente politizado, ancorado na sociologia. Em meados dos anos de 1950, Barthes assinalava o aparecimento de novos tipos de crítica literária, representados por Gaston Bachelard, Lucien Goldmann, o Sartre de Baudelaire, Poulet e J. P. Richard. Elogiava a crítica praticada por L. Goldmann, “crítica histórica” que define “de modo rigorosamente materialista” o elo que une a História à consciência corporal do escritor, e propunha uma conciliação desta com a crítica psicológica, pois a crítica histórica coloca o autor entre parênteses e a crítica psicanalítica nada diz da significação histórica. A tarefa da crítica, segundo ele, seria reconciliar essas tendências. A partir dessa data, evidencia-se em sua própria crítica uma informação psicanalítica, acrescentada à base teórica marxista anterior. Seu livro Sobre Racine, em 1963, provocará a ira de um catedrático da Sorbonne e ocasionará a polêmica da “nova crítica”, da qual ele seria o maior representante. A “nova crítica” era aquela que se apoiava nas ciências humanas, abandonando o biografismo positivista e a “explicação de texto” acadêmica.
Uma questão que perpassa por toda a obra barthesiana é a do “realismo”, isto é, da possibilidade e das condições da representação da realidade na arte, sobretudo na arte verbal, a literatura. Já em 1956, Barthes publicara um artigo intitulado “Novos problemas do realismo”. Dizia ele, aí, que “o realismo é uma idéia moral”, na medida em que é uma escolha do escritor quanto ao modo de representar o real. Sua preferência se encaminhava, desde então, para aqueles escritores que se recusam a espelhar a sociedade como ela deseja se ver, que “desarranjam” essa imagem, rompendo o contrato com o público burguês: Baudelaire, Flaubert, Zola. Não por acaso, dizia ele, esses três escritores sofreram processos judiciais. Na mesma década de 1950, a descoberta do teatro de Bertold Brecht (1898-1956), e de sua teoria do “distanciamento”, foi decisiva para sua rejeição de todo “naturalismo”. Finalmente, diria ele mais tarde, encontrara um marxista sensível aos signos.
Nessa ótica, Barthes rejeitava o “realismo socialista”, porque a ideia de “justeza política” contém o perigo do moralismo, e porque esse tipo de realismo é “progressista na intenção e hiperburguês na forma, ao mesmo tempo realista e acadêmica”. O contraponto do romance socialista seria o romance do “absurdo” e o nouveau roman. Haveria, pois, naquele momento, dois segmentos de realismo: um realismo socialista na estrutura, e burguês na forma, contraposto a um realismo de superfície, livre na forma, mas apolítico, portanto burguês na estrutura. Barthes propunha a união desses dois segmentos para chegar a um “realismo total”. O realismo seria, assim, um “mito provisório e necessário para despertar o escritor para uma literatura socialista total”. Mais tarde, em 1976, ele dirá que a linguagem nunca é realista, porque entre o signo e o referente há a significação. Essas considerações sobre o realismo literário encontrariam sua melhor formulação na Aula inaugural do Collège de France, no ano seguinte. Diz ele, aí: “O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura.”
Em meados dos anos de 1960, Barthes entra numa nova fase, a fase semiológica. Naquela década, a linguística foi promovida a “ciência piloto” das ciências humanas. Seus companheiros de reflexão serão, então, os integrantes do grupo Tel Quel, igualmente fascinados pela descoberta da linguística de Saussure, pela semiótica russa e tcheca, pelo estruturalismo que seria um desenvolvimento daquelas propostas. Barthes escreve, nesse período, artigos que tratam de Lévi-Strauss, Roman Jakobson (1896-1982) e Mikhail Bakhtin (1895-1975), seus novos inspiradores teóricos.
Ao mesmo tempo em que vemos, nos textos teóricos dos anos de 1960, o entusiasmo de Barthes pela contribuição da lingüística aos estudos literários, encontramos também aí as ressalvas e as precauções que anunciam o abandono do estruturalismo por ele, na década de 1970. Já então ele dizia que não se devia ser incondicionalmente fiel à lingüística, nem praticar uma “interdisciplinaridade” convencional, porque, ao praticar essas duas disciplinas, o importante seria subverter a imagem que temos da lingüística e da literatura. Numa “Conversa” de 1966, ele manifestava o receio de que a ciência se fetichizasse. O estruturalismo, dizia ele, quer “desfetichizar” os saberes antigos. Mas se ele “pegar”, se fetichizará. Como foi o que realmente aconteceu, Barthes deslocou-se do estruturalismo e da semiologia para a fase seguinte.
É o surgimento da “teoria do texto” ou “teoria da escritura”, que ocuparia intensamente Barthes e o grupo Tel Quel no início dos anos de 1970. O “texto escritural” de vanguarda substituiria a velha “literatura”. Importante, nesse período, foi a contribuição de Jacques Derrida (1930-2004) aos debates, na medida em que o filósofo, também próximo de Tel Quel naquele momento, jogou água fria nos entusiasmos lingüísticos e semiológicos, mostrando o idealismo do signo saussuriano e das práticas decorrentes. Também fundamental foi a influência de Jacques Lacan, cuja teoria do inconsciente como linguagem convinha à antiga reivindicação de uma crítica literária que não ignorasse a psicologia.
A reflexão sobre o sujeito da nova escritura, sobre a intertextualidade (de Bakhtin a Julia Kristeva), e a já antiga reivindicação do corpo do escritor na escrita, desembocariam em O prazer do texto, de 1973, verdadeira ruptura de Barthes com o projeto semiológico anterior, chamado por ele, mais tarde, de “delírio científico”. Da mesma forma em S/Z, de 1970, ele rompera com a “análise estrutural das narrativas”, defendida por ele mesmo em plena euforia semiológica, e propusera um novo tipo de análise, mais fina e mais aberta à história cultural do que as análises mecânicas e pretensamente universais da fase estruturalista.
Em sua última fase, Barthes manifestou um interesse crescente pelas culturas orientais. De fato, além de ter escrito um livro magnífico sobre o Japão (O império dos signos, 1970), em 1979 ele ministrou um curso sobre o haicai japonês (A preparação do romance 1), forma de anotação breve e concreta que via com admiração. Na época, respondendo a um entrevistador, Barthes dizia: “O que consigo perceber do pensamento oriental, por reflexos muito distantes, me permite respirar.” Porque o pensamento oriental, que ele não pretendia conhecer em profundidade, fornecia-lhe “fantasias pessoais de suavidade, repouso, paz, ausência de agressividade”. Este é o Barthes final, que continuava tendo como inimigos o senso comum (a doxa), a arrogância intelectual, o dogmatismo científico ou político e, como objetivos a alcançar, a “palavra calma”, a prática do Neutro (tema de outro curso) e o prazer do texto.
O “texto” deixara então de ser, para ele, apenas o texto de vanguarda, experimental e desestabilizador do sujeito, para englobar toda a grande literatura do passado, que ele amava com paixão, no próprio momento em que a sentia ameaçada de desaparecimento. A esse respeito, em uma de suas últimas aulas ele dizia: “A ameaça de definhamento ou de extinção que pode pesar sobre a literatura soa como um extermínio de espécie, uma forma de genocídio espiritual.” O mundo pós-moderno que começava a se evidenciar, mercantil e brutal, provocava nesse Barthes maduro uma tendência melancólica muito diversa do ânimo revolucionário de sua juventude. Em seus últimos cursos, ao mesmo tempo em que sua inteligência sempre aguda o encaminha a temas que se tornarão candentes nas décadas seguintes – como o “viver junto”, ou a (im)possibilidade do grande romance contemporâneo –, multiplicam-se as confidências pessoais relativas ao luto e à nostalgia de tempos mais propícios à cultura e à arte.
A teoria barthesiana é, portanto, uma teoria mutante, que evolui e se transforma ao longo dos anos. Por isso é impróprio chamar Barthes de crítico marxista sociológico ou de semiólogo, porque essas denominações corresponderiam apenas a determinadas fases de sua carreira. Embora sempre em transformação, o teórico Barthes conservou as lições das fases abandonadas. Mesmo sendo cada vez mais avesso ao dogmatismo marxista, a fundamentação principal de sua teoria será sempre ética e politicamente de esquerda. E, apesar de ter abandonado os esquemas rígidos do estruturalismo, suas análises aproveitarão sempre, numa primeira abordagem dos textos, os princípios ordenadores da análise estrutural. Presenças constantes em seus textos, dos primeiros até os últimos, são as palavras “história” e “crítica”, que ele tentará, incansavelmente, aliar às palavras “corpo”, “desejo” e “prazer”. Esta última palavra talvez explique a adesão de sucessivas gerações de leitores a seus textos, para além das modas teóricas e ideológicas. Porque o prazer do texto, em Barthes, nunca é mero diletantismo, mas a experiência cognitiva dos mais diversos objetos culturais, corporificada numa linguagem sensível, marcada pelo humor e pelo afeto.

Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ensaísta e tradutora de várias obras de Barthes. Publicou, entre outros livros, Altas literaturas (Companhia das Letras, 1998) e Inútil poesia (Companhia das Letras, 2000).

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Crônica: Paraíso dos Irerês


 
José Luiz Gomes
 
Os leitores mais familiarizados com as nossas crônicas sobre Jampa já devem saber que há muitos anos atrás, onde hoje foi erguido o Parque Solon de Lucena, era uma grande área alagada, um pântano, que deixava nossa querida João Pessoa espremida naquela colina, assoreada pelo rio Sanhauá, do seu lado esquerdo, e a Lagoa dos Irerês, do seu lado direito, não permitindo que ela se expandisse. Intervenções substantivas tiveram que ser feitas naquela área alagada, tornando possível a abertura de avenidas que permitiram a expansão da cidade para o litoral. As autoridades públicas, em nome da civilização, tiveram que intervir no paraíso dos irerês, marrecos muito abundantes naquela região, que para ali se dirigiam para se alimentarem e procriarem. 

Em 1940, na gestão go governador Solon de Lucena, foram iniciadas as obras de saneamentio e construção de um parque, que contou com a assinatura do paisagista Burle Marx. De sua prancheta, saíram os famosos ipês amarelos, as acácias, os pau-brasis, os bambuzais entre outras espécies de árvores da mata atlântica. O parque ocupa uma área extensa - são 15 quilômetros de área, incluindo a lagoa, bares, restaurantes, equipamentos de lazer e ginástica - contornado por uma área de intenso comércio, onde se encontram lojas, resturantes e um shopping popular mais recentemente inaugurada, já como resultado da última intervenção, com o intuito de disciplinar a atuação do comércio ambulante nas suas imediações. Esta última intervenção é mais recente, do ano de 2013, onde até mesmo uma via de transporte foi sacrificada para se permitir mais tranquilidade aos frequentadores do parque, que antes precisavam atravessar a via para ter acesso à lagoa. 

A lagoa conta hoje com um mirante, mas sempre muito vigiado, em razão de uma tragédia ali ocorrida. No ano de 1975, 39 pessoas morreram no local, depois de uma acidente náutico, entre as quais, 29 crianças. Salvo melhor juízo, comemorava-se algo alusivo ao regime militar implantado no país depois do golpe civil-militar de 1964. O parque tem seus encantos naturais. A extensa lagoa sem dúvida é um deles. Nada se compara, no entanto, à florado dos ipês, entre os meses de Outubro e Novembro, que deixa o parque revestido de um tapete cor de amarelo. É de uma beleza estonteante, atraindo não apemas abelhas e beija-flores, mas uma multidão de aficionados nessas árvores. O cronista aqui é um deles. Não raro, deixamos o sossego de Jacumã apenas para apreciar essas floradas. No Recife existem muitos ipês amarelos, principalmente na avenida Agamenon Magalhães, mas as floradas não se comparam às de Jampa. É Primavera, comendador. Vamos organizar a agenda da confraria. 

Rancière: "A política tem sempre uma dimensão estética"

                                           
Gabriela Longman e Diego Viana
                                                                                

Rancière: ‘A política tem sempre uma dimensão estética’


O filósofo francês Jacques Rancière (Divulgação)

Para Jacques Rancière, política e arte têm uma origem comum. Em suas obras, o filósofo francês desenvolve uma teoria em torno da “partilha do sensível”, conceito que descreve a formação da comunidade política com base no encontro discordante das percepções individuais. A política, para ele, é essencialmente estética, ou seja, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão artística. Por isso, um regime político só pode ser democrático se incentivar a multiplicidade de manifestações dentro da comunidade.
Recém-lançado na França, seu último livro, Le spectateur émancipé (O espectador emancipado – ainda inédito no Brasil),  debate a recepção da arte e a importância – ética e política – da posição do espectador. O volume é uma compilação de conferências realizadas por ele nos últimos anos, uma delas no Sesc, em São Paulo. Em 2002, uma de suas principais obras, O mestre ignorante, foi traduzida e distribuída gratuitamente entre professores em formação no Rio de Janeiro. Trata-se da história de Joseph Jacotot, que, no século 19, ensinou a língua francesa a jovens holandeses da classe operária. Detalhe: nem mesmo o professor conhecia o idioma de Zola.
Originalmente discípulo do filósofo marxista Louis Althusser e coautor de Ler O capital, de 1965, Rancière afastou-se do pensamento do mestre nos anos 1970. Rejeitou a ortodoxia marxista da época, mas jamais deixou de se considerar um homem de esquerda. Até se aposentar em 2000, foi professor da Universidade Paris 8, fundada para acolher formas de pensamento que não encotravam espaço no ambiente da Sorbonne. Sua ligação com o Brasil é antiga. Sua esposa, Danielle Ancier, era professora de filosofia na USP em 1968. Eles se conheceram quando ele esteve no país para uma conferência sobre Ler O capital.
O filósofo nos recebeu em seu apartamento no nono arrondissement parisiense. Perto de completar 70 anos, afirma que “o presente não é muito alegre”, mas critica as visões saudosistas de parte da esquerda. Defensor do ativismo social, ele comenta a ascensão dos ecologistas e questiona a ideia de um mundo dominado por imagens. Convidado para um colóquio no Rio de Janeiro pelo Ano da França no Brasil, ele recusou em função de um conflito de agenda, mas concedeu a seguinte entrevista para a CULT.
CULT – Seu último livro, Le spectateur émancipé, menciona o teatro, as artes performáticas, a fotografia, as artes visuais e o cinema, mas não fala de TV. O espectador de TV também é ativo?
Jacques Rancière – No meu livro, eu tentei reinterpretar a relação das pessoas com o espetáculo sem me interessar tanto pela questão das mídias. Mas me centrei mais na ideia, tão comum, de que “agora não há nada mais além da TV… não há mais arte, não há mais cultura, não há mais literatura, nada”.
Há casos em que o espectador está na frente da TV mudando de canal sem prestar atenção ao que está vendo. Eu me preocupei mais com o cinema, as artes plásticas, nos quais uma relação forte do olhar está pressuposta. A TV, de modo geral, não pressupõe um olhar forte, mas um olhar alienado ou distraído.
No espetáculo, o espectador de teatro é levado a trabalhar, porque aquilo que ele tem à sua frente o obriga a um trabalho de síntese. É preciso sair de uma peça, de uma exposição ou do cinema com certa ideia na cabeça, o que não necessariamente é o caso da televisão, em que as coisas podem simplesmente passar.
Já um lugar onde os espectadores se encontram, para as artes performáticas, por exemplo, implica um recorte fechado no tempo. Não é uma questão de suporte, mas do tipo de atitude e de atenção criadas. Podemos nos colocar na frente de um filme de TV com a postura de quem está no cinema. Nesse momento, nós agimos como o espectador de cinema.
O senhor rejeita a ideia de estetização da política que encontramos em Walter Benjamin. Como podemos interpretar a manipulação das sensações dentro do campo político? Por exemplo, o incentivo ao medo do terrorismo, a apresentação de políticos como mercadorias não seriam maneiras de estetizar a relação das pessoas com o poder político?
Penso que a política tem sempre uma dimensão estética, o que é verdade também para o exercício das formas de poder. De certa maneira, não há uma mudança qualitativa entre o discurso em torno do terrorismo hoje e o discurso midiático contra os trabalhadores no século 19, que dizia que os operários contestadores cortavam pessoas em pedaços. Sempre houve, digamos, uma série de discursos organizados pelo poder. Eventualmente, eles serviram como forma de ilustração.
Não há novidade radical. A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos. Para mim, é um dado permanente. É diferente da ideia benjaminiana de que o exercício do poder teria se estetizado num momento específico. Benjamin é sensível às formas e manifestações do Terceiro Reich, mas é preciso dizer que o poder sempre funcionou com manifestações espetaculares, seja na Grécia clássica, seja nas monarquias modernas.
Há um momento em que é preciso distinguir duas coisas: de um lado, a adoção de certas formas espetaculares de mise-en-scène do poder e da comunidade. De outro, a ideia mesma de comunidade. É preciso saber se pensamos a comunidade política simplesmente como um grupo de indivíduos governados por um poder ou se a pensamos como um organismo animado.
Na imaginação das comunidades há sempre esse jogo, essa oscilação entre a representação jurídica e uma representação estética. Mas não creio que se possa definir um momento preciso de estetização da comunidade.
Por exemplo, o nazismo, que é usado frequentemente como exemplo de política estetizada, na verdade também recuperou a estética de seu tempo. Pense nas demostrações dos grupos de ginástica em Praga nos anos 1930. Eram associações apolíticas ou absolutamente democráticas, com a mesma estética que encontramos no nazismo.
Para mim, é preciso tomar distância da ideia de um momento totalitário da história marcado especialmente pela estetização política, como se pudéssemos inscrever isso num momento de anti-história das formas estéticas da política e das formas de espetacularização do poder.
Uma das críticas mais frequentes à arte contemporânea é a impossibilidade de definir o que é uma obra de arte e o que não é. O senhor escreve que, “para que uma maneira de fazer técnica seja qualificada como artística, primeiro é preciso que seu tema o seja”. Como definir a obra de arte ou a arte em si?
Não definimos a obra de arte como “obra”. O que eu digo, no fundo, é que uma forma de arte é sempre ligada à dignidade dos temas.
O romance torna-se grande arte quando a vida de qualquer um se tranforma em arte. A fotografia no cinema não é só uma forma de mostrar o visível, mas mostra que uma cena de rua ou a vida de qualquer pessoa tem direito de ser citada na arte.
A partir do momento em que tudo é representável, não há mais especificidade. A especificidade não será dada, enfim, pela técnica em particular, mas pelos códigos de apresentação. Mais uma vez, não creio que haja uma radicalidade nova.
Há algumas décadas, as análises de Arthur Danto vieram dizer que somente a instituição é quem faz a obra de arte. De certa maneira, isso sempre foi verdadeiro. A “representação da representação” ligada a certo tipo de procedimento ou de instituição sempre foi necessária para identificar uma coisa como pertencente ao universo da arte.
Mas, hoje, mesmo uma grande parte do público questiona o fato de estar vendo “arte”. Não há uma maior distância entre a apresentação e a recepção?
Vivemos hoje em dia a contradição máxima, qualquer coisa pode entrar na esfera da arte. Mais do que nunca, a arte, hoje, se constitui como uma esfera à parte, com as pessoas que a produzem, com as instituições que a fazem circular, seus críticos.
Numa época em que os afrescos de uma igreja eram o que se considerava arte, essa questão simplesmente não se colocava, porque a arte não existia como instituição. É a contradição constitutiva do regime estético.
A última Bienal de São Paulo tinha um andar inteiramente vazio, simbolizando o vazio na arte. Como podemos interpretar esse vazio? O senhor fala do fim da arte utópica. O vazio seria a arte “atópica”?
Podemos fazer o vazio significar várias coisas. Há artistas que organizam retrospectivas de suas obras, e o que vemos? Nada. Há apenas guias que falam. Há muitas possibilidades. Podemos conceber uma exposição sobre o tema do vazio no modernismo duro. Ou então imaginar uma exposição pós-moderna desencantada “mostrando o vazio porque a arte contemporânea é vazia”. Ou ainda criar uma exposição em termos conceituais, em que efetivamente substituímos as obras pelo discurso sobre as obras, e assim por diante.
Mas a verdade é que eu nunca estou muito interessado por esse tipo de estratégia. Se partimos da ideia de que não há nada, é preciso mostrar que não há nada, e mostrar que o que há não vale nada, e assim por diante.
São estratégias eficazes, mas não tão interessantes. Quando não sabemos muito bem como qualificar algo, sempre podemos fazer uso do “vazio”. Eu me lembro da Bienal de Veneza de dois anos atrás, em que havia uma multiplicidade de obras neo-naïf, neoexpressionistas, como iconografia provocante. Há multiplas estratégias.
O senhor critica muitas vezes a separação a priori entre atividade e passividade. Nesse contexto, como analisa as tecnologias colaborativas que estão surgindo na atividade artística?
O que digo não é especialmente ligado à arte colaborativa. Em primeiro lugar, toda atividade comporta também uma posição de espectador. Agimos sempre, também, como espectadores do mundo.
Em segundo lugar, toda posição de espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que desvia o sentido do espetáculo. É minha tese global, que não está ligada só a uma arte interativa.
Todas as obras que se propõem como interativas, de certa maneira, definem as regras do jogo. Então, esse tipo de obra pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que está diante do espectador e com a qual ele pode fazer o que bem entender.
Podemos dizer, então, que as obras estão no museu, na galeria, na internet, e o espectador é convidado a colaborar. Mas isso é só mais uma forma de participação, e não necessariamente a mais interessante.
O senhor recupera o lado político da literatura, graças a seu poder de reconfigurar os modos de existência, e evoca a passagem de Aristóteles em que ele diz que o ser humano é político porque possui o logos, ou seja, é capaz de fazer discursos. Hoje, os meios de publicação tradicionais, jornais, editoras etc. estão ameaçados por formas como blogs e redes sociais. Que tipo de mudanças podemos esperar na vida política com essas novas formas?
Isso depende de até que ponto a internet define uma escritura específica. Para mim, na verdade, a internet define essencialmente apenas um modo específico de circulação da informação, que não nega as formas anteriores da escrita. Dá para consultar, numa infinidade de sites, as obras clássicas da literatura e da filosofia, ao mesmo tempo em que existe a linguagem SMS.
Tudo circula, cada vez mais rápido e com mais facilidade: da linguagem minimalista dos SMS aos livros todos, digitalizados pelas grandes bibliotecas. Muitas vezes, recuperam-se livros que não podem mais ser encontrados no papel. Desconfio sempre desse discurso de que o Google vai matar o livro. Não há motivo, porque podemos ler livros no Google.
Para pensar essa questão da política e da literatura na era da internet, precisamos primeiro pensar nas relações entre tipos de mensagem. A internet é, para mim, um suporte que não vem associado a um tipo de mensagem particular. Portanto, não deve causar grandes mudanças.
É diferente do que aconteceu com a chegada do cinema, por exemplo. Podemos constatar que a literatura não tem hoje o papel que tinha no século 19. Apesar do número enorme de romances publicados, poucos são os que remodelam a imagem do indivíduo e da comunidade. Esse papel foi assumido pelo cinema. A literatura oferecia uma capacidade de alargar as formas de percepção do mundo e da comunidade, ela agia sobre a visão e o sentimento de praticamente qualquer um. Hoje, quem faz isso é o cinema, a televisão, a internet.
Jacques Rancière
Jacques Rancière recebeu a CULT em seu apartamento no nono arrondissement parisiense (Foto: Divulgação)
Até há pouco tempo, havia Bush e Dick Cheney de um lado e, de outro, a Europa como uma espécie de guardiã do “bom senso” na política. Agora, os norte-americanos elegeram Obama e os europeus escolheram Sarkozy e Berlusconi, acompanhados por um fortalecimento geral dos partidos conservadores. Falando das eleições de 2002, o senhor disse que não se pode vencer a extrema direita associando-se ao consenso e às oligarquias. O ano de 2009 é a conclusão do que começou em 2002?
Não acho que podemos comparar. Em 2009, foram eleições europeias. Se tomamos o caso da França, em 2005 houve o referendo da Constitição Europeia e a União triunfou.
Em 2007, Sarkozy chegou ao poder e renegociou os poderes dessa Constituição. Ele decidiu que não se submeteria ao referendo pois, segundo ele, havia questões importantes de Estado envolvidas. Esse é um primeiro ponto. É preciso dizer que falamos de 40% do eleitorado que votou e é preciso pensar nos 60% que não votou.
A mudança entre 2002 e 2009 é que a parte do corpo eleitoral que não votou está mais à esquerda. A vitória da direita está ligada mais ao fato de que o eleitorado de esquerda não se reconhece nos partidos de esquerda, do que numa conversão da população inteira ao sarkozismo. O eleitorado de direita está contente com o que tem, está contente com Sarkozy e Berlusconi.
O eleitorado de esquerda não está satisfeito nem com os homens que estão poder, como Gordon Brown, nem com os que estão na oposição, e o melhor exemplo é a oposição socialista na França. Não acho que haja um crescimento extraordinário da direita e da extrema direita, mas sim um desencanto da esquerda.
Mas a crise gerou nos Estados Unidos um abandono da direita, representada por Bush…
Houve uma mobilização enorme em torno das eleições norte-americanas. Uma série de pessoas que nunca tinham votado foi votar pela primeira vez, especialmente os negros.
No caso da Europa, foi o contrário. Há países onde apenas 20% dos eleitores votaram, e só 40% na França. Não acho que esse contraponto deva ser pensado em relação direta com a crise financeira.
O resultado foi precipitado por ela, mas a ideia de Obama contra Bush remete a uma insatisfação anterior e mais fundamental do que a mera reação à crise econômica.
Os desinteresses pela política e pela arte seriam duas vertentes da mesma situação?
Não tenho certeza, até porque o desinteresse pela política não é tão claro assim. Muita gente votou nas eleições presidenciais há dois anos. Nas eleições europeias, aparentemente muitas pessoas que normalmente votam não votaram, e muita gente que não costuma votar saiu de casa porque queria salvar o planeta. Esse é um primeiro aspecto.
O segundo é que não creio que haja um desinteresse pela estética, pela arte. As pessoas ainda vão ver Jeff Koons em Versalhes. O interesse pelos artistas ainda é muito importante. É verdade que de vez em quando há coisas desastrosas, teve La force de l’art no Grand Palais e estava sempre deserto, mas as pessoas se davam cotoveladas para ver Picasso.
Se a mudança do mundo passa por reconfigurações da maneira de pensar e entender a realidade, então ela não passa pelas revoluções como as conhecemos?
Podemos pensar nisso baseados nas revoluções que já aconteceram. Em primeiro lugar, uma revolução é uma ruptura na ordem do que é visível, pensável, realizável, o universo do possível. Os movimentos de revolução sempre tiveram a forma de bolas de neve.
A partir do momento em que um poder legítimo se encontra deslegitimizado, parece que não está em condições de reinar pela força, porque caíram todas as estruturas que legitimam a força. Criam-se cenas inéditas, aparecem pessoas que não eram visíveis, pessoas na rua, nas barricadas. As instituições perdem a legitimidade, aparecem novos modos de palavra, novos meios de fazer circular a informação, novas formas da economia, e assim por diante. É uma ruptura do universo sensível que cria uma miríade de possibilidades.
Não penso as revoluções, nenhuma delas, como etapas de um processo histórico, ascensão de uma classe, triunfo de um partido, e assim por diante. Não há teoria da revolução que diga como ela nasce e como conduzi-la, porque, cada vez que ela começa, o que existia antes já não é válido.
Existe uma carta interessante de Marx, um pouco após 1848, quando os socialistas pensavam que as estruturas seriam abaladas mais uma vez. Ele diz que as revoluções não funcionam como os fenômenos científicos normais, são mais como os fenômenos imprevisíveis, os terremotos. Não sabemos como elas vão se comportar. Todas as teorias científicas, estratégicas, das revoluções demonstram isso.
Não podemos antecipá-las…
Podemos prepará-las, mas não antecipá-las. A temporalidade autônoma de uma revolução, os espaços que elas criam não correspondem jamais ao quadro conceitual que temos no início.
A estratégia da esquerda tradicional é o confronto aberto, o que se opõe à sua teoria de reconfiguração estética da vida política…
Temos de pensar na estética em sentido largo, como modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos constroem
o mundo. É um processo estético que cria o novo, ou seja, desloca os dados do problema.
Os universos de percepção não compreendem mais os mesmos objetos, nem os mesmos sujeitos, não funcionam mais nas mesmas regras, então instauram possibilidades inéditas. Não é simplesmente que as revoluções caiam do céu, mas os processos de emancipação que funcionam são aqueles que tornam as pessoas capazes de inventar práticas que não existiam ainda.
Não sou contra processos cumulativos, claro: se imigrantes ilegais têm capacidade de fazer greves e manifestações em condições perigosas para eles mesmos, isso define um alargamento não só do poder e das capacidades que temos, mas também do mundo no qual inscrevemos nossas ações e nosso pensamento.
A transformação dos mundos vividos é completamente diferente da elaboração de estratégias para a tomada do poder. Se há um movimento de emancipação, há uma transformação do universo dos possíveis, da percepção e da ação, então podemos imaginar como consequência também um movimento de tipo revolucionário, de tomada do poder. É claro que estamos falando do passado, porque o presente não é muito alegre.
Por que “o presente não é muito alegre”?
O presente não é alegre porque não há esperanças fortes, digamos assim, que sustentem os movimentos existentes.
Por exemplo, a recente greve das universidades, que criou algumas formas de manifestação, digamos, particulares: cursos na rua, no metrô, invenções para deslocar para o campo da sociedade como um todo o problema que atinge o ensino superior francês.
Mas todas essas inovações foram completamente isoladas do ponto de vista da informação. O ano de 1968 existiu em parte porque o rádio cobria profundamente o movimento estudantil, sabia-se tudo que acontecia, havia uma geração de jovens repórteres de rádio que fez circular as informações.
Agora, aconteceu o contrário. A mídia aprisionou o movimento universitário numa espécie de paisagem hostil, gente que não entendia, que dizia coisas alucinantes. O partido majoritário de direita (UMP) criou associações de pais de estudantes exigindo o reembolso das inscrições porque os estudantes não tiveram aula. Isso era impensável há dez anos.
As forças da dominação e da exploração aumentaram consideravelmente seus meios de ação. Diante da crise financeira, não vimos nenhum discurso forte e sério contra o capitalismo, só esses pequenos grupos e partidos anticapitalistas com as mesmas ideias de décadas atrás. Nada que trouxesse esperança, movimentos com ideias alternativas a uma concepção hegemônica confrontada com suas próprias contradições.
O presente não é muito alegre porque as forças da dominação e da exploração fizeram progressos consideráveis. Estudei, por exemplo, o movimento operário do século 19, que criou novas formas de associação e de visão do mundo e que resultou em movimentos políticos que, como sabemos, falharam. Mas é certo que o universo dos possíveis foi amplamente reformulado. O povo em manifestação podia algo que não podia antes, diante da realeza.
No mesmo sentido, o operariado adquiriu novos poderes e direitos face aos patrões. As formas de comunicação se comunicam entre elas e criam um universo de circulação de energia, ideias, vontades. Foi muito marcante, em 1968, vermos surgirem de repente, em diversos lugares ao mesmo tempo, formas de contestação e de ação.
É claro que tudo isso caiu com o movimento, mas foi um momento em que os estudantes viram que podiam fazer o mesmo que os operários, e vice-versa. Criaram-se formas de ação completamente imprevistas. O que se transmite são aberturas do campo do possível, não do campo estratégico.
No interior de sua distinção entre política e polícia, como podemos interpretar o crescimento da vigilância e do controle? Por que fizemos essa escolha, em vez do encontro político?
É a lógica do funcionamento dos Estados como instâncias de administração, e dos sistemas midiáticos: trocar a política pela identificação de problemas que precisam ser solucionados. Se não é o conflito que é motor, o motor é uma espécie de patologia da vida política que a administração se propõe a remediar. É o modo de funcionamento do Estado moderno.
De um lado, há uma pretensão ao objetivismo, identificar os problemas e as imperfeições da sociedade, e, de outro lado, precisamente essa espécie de objetivismo idealizado é, essencialmente, uma questão de gestão das opiniões.
Tomando a questão da segurança, qual é o balanço da gestão de Sarkozy, primeiro como ministro do Interior, depois como presidente da República? Um desastre. Estamos muito menos seguros do que antes. O que está em funcionamento é a gestão da insegurança como um sentimento para agregar as pessoas em torno de um poder que gerencia a segurança.
Resisto muito às teorias paranoicas de “sociedade de controle” que dizem que “somos observados e controlados em todo canto”. No 11 de Setembro, vimos como as pessoas podem passar tranquilamente diante das câmeras de segurança e fazer seu atentado sem serem molestadas. Acredito muito mais na ideia de uma administração ideológica, no sentido tradicional, dos sentimentos, particularmente no que diz respeito à segurança.
Criamos um sentimento de que vivemos na insegurança e precisamos de gestores de segurança. Isso cria uma legitimação de decisões autoritárias que podem se estender a praticamente tudo. No fim, a segurança acaba significando qualquer coisa. A pobreza dos subúrbios, a saúde dos idosos, os “países terroristas” pelo mundo, os poluidores, qualquer coisa.
A segurança vira um sentimento de perigo onipresente, extrapolando a ideia da proteção das “pessoas de bem” contra os maus de qualquer tipo. Isso cria estruturas de gestão estatais e interestatais, que não são necessariamente da ordem do controle minucioso ou do terror, mas de um sentimento flutuante.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)