pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Crônica: Paraíso dos Irerês


 
José Luiz Gomes
 
Os leitores mais familiarizados com as nossas crônicas sobre Jampa já devem saber que há muitos anos atrás, onde hoje foi erguido o Parque Solon de Lucena, era uma grande área alagada, um pântano, que deixava nossa querida João Pessoa espremida naquela colina, assoreada pelo rio Sanhauá, do seu lado esquerdo, e a Lagoa dos Irerês, do seu lado direito, não permitindo que ela se expandisse. Intervenções substantivas tiveram que ser feitas naquela área alagada, tornando possível a abertura de avenidas que permitiram a expansão da cidade para o litoral. As autoridades públicas, em nome da civilização, tiveram que intervir no paraíso dos irerês, marrecos muito abundantes naquela região, que para ali se dirigiam para se alimentarem e procriarem. 

Em 1940, na gestão go governador Solon de Lucena, foram iniciadas as obras de saneamentio e construção de um parque, que contou com a assinatura do paisagista Burle Marx. De sua prancheta, saíram os famosos ipês amarelos, as acácias, os pau-brasis, os bambuzais entre outras espécies de árvores da mata atlântica. O parque ocupa uma área extensa - são 15 quilômetros de área, incluindo a lagoa, bares, restaurantes, equipamentos de lazer e ginástica - contornado por uma área de intenso comércio, onde se encontram lojas, resturantes e um shopping popular mais recentemente inaugurada, já como resultado da última intervenção, com o intuito de disciplinar a atuação do comércio ambulante nas suas imediações. Esta última intervenção é mais recente, do ano de 2013, onde até mesmo uma via de transporte foi sacrificada para se permitir mais tranquilidade aos frequentadores do parque, que antes precisavam atravessar a via para ter acesso à lagoa. 

A lagoa conta hoje com um mirante, mas sempre muito vigiado, em razão de uma tragédia ali ocorrida. No ano de 1975, 39 pessoas morreram no local, depois de uma acidente náutico, entre as quais, 29 crianças. Salvo melhor juízo, comemorava-se algo alusivo ao regime militar implantado no país depois do golpe civil-militar de 1964. O parque tem seus encantos naturais. A extensa lagoa sem dúvida é um deles. Nada se compara, no entanto, à florado dos ipês, entre os meses de Outubro e Novembro, que deixa o parque revestido de um tapete cor de amarelo. É de uma beleza estonteante, atraindo não apemas abelhas e beija-flores, mas uma multidão de aficionados nessas árvores. O cronista aqui é um deles. Não raro, deixamos o sossego de Jacumã apenas para apreciar essas floradas. No Recife existem muitos ipês amarelos, principalmente na avenida Agamenon Magalhães, mas as floradas não se comparam às de Jampa. É Primavera, comendador. Vamos organizar a agenda da confraria. 

Rancière: "A política tem sempre uma dimensão estética"

                                           
Gabriela Longman e Diego Viana
                                                                                

Rancière: ‘A política tem sempre uma dimensão estética’


O filósofo francês Jacques Rancière (Divulgação)

Para Jacques Rancière, política e arte têm uma origem comum. Em suas obras, o filósofo francês desenvolve uma teoria em torno da “partilha do sensível”, conceito que descreve a formação da comunidade política com base no encontro discordante das percepções individuais. A política, para ele, é essencialmente estética, ou seja, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão artística. Por isso, um regime político só pode ser democrático se incentivar a multiplicidade de manifestações dentro da comunidade.
Recém-lançado na França, seu último livro, Le spectateur émancipé (O espectador emancipado – ainda inédito no Brasil),  debate a recepção da arte e a importância – ética e política – da posição do espectador. O volume é uma compilação de conferências realizadas por ele nos últimos anos, uma delas no Sesc, em São Paulo. Em 2002, uma de suas principais obras, O mestre ignorante, foi traduzida e distribuída gratuitamente entre professores em formação no Rio de Janeiro. Trata-se da história de Joseph Jacotot, que, no século 19, ensinou a língua francesa a jovens holandeses da classe operária. Detalhe: nem mesmo o professor conhecia o idioma de Zola.
Originalmente discípulo do filósofo marxista Louis Althusser e coautor de Ler O capital, de 1965, Rancière afastou-se do pensamento do mestre nos anos 1970. Rejeitou a ortodoxia marxista da época, mas jamais deixou de se considerar um homem de esquerda. Até se aposentar em 2000, foi professor da Universidade Paris 8, fundada para acolher formas de pensamento que não encotravam espaço no ambiente da Sorbonne. Sua ligação com o Brasil é antiga. Sua esposa, Danielle Ancier, era professora de filosofia na USP em 1968. Eles se conheceram quando ele esteve no país para uma conferência sobre Ler O capital.
O filósofo nos recebeu em seu apartamento no nono arrondissement parisiense. Perto de completar 70 anos, afirma que “o presente não é muito alegre”, mas critica as visões saudosistas de parte da esquerda. Defensor do ativismo social, ele comenta a ascensão dos ecologistas e questiona a ideia de um mundo dominado por imagens. Convidado para um colóquio no Rio de Janeiro pelo Ano da França no Brasil, ele recusou em função de um conflito de agenda, mas concedeu a seguinte entrevista para a CULT.
CULT – Seu último livro, Le spectateur émancipé, menciona o teatro, as artes performáticas, a fotografia, as artes visuais e o cinema, mas não fala de TV. O espectador de TV também é ativo?
Jacques Rancière – No meu livro, eu tentei reinterpretar a relação das pessoas com o espetáculo sem me interessar tanto pela questão das mídias. Mas me centrei mais na ideia, tão comum, de que “agora não há nada mais além da TV… não há mais arte, não há mais cultura, não há mais literatura, nada”.
Há casos em que o espectador está na frente da TV mudando de canal sem prestar atenção ao que está vendo. Eu me preocupei mais com o cinema, as artes plásticas, nos quais uma relação forte do olhar está pressuposta. A TV, de modo geral, não pressupõe um olhar forte, mas um olhar alienado ou distraído.
No espetáculo, o espectador de teatro é levado a trabalhar, porque aquilo que ele tem à sua frente o obriga a um trabalho de síntese. É preciso sair de uma peça, de uma exposição ou do cinema com certa ideia na cabeça, o que não necessariamente é o caso da televisão, em que as coisas podem simplesmente passar.
Já um lugar onde os espectadores se encontram, para as artes performáticas, por exemplo, implica um recorte fechado no tempo. Não é uma questão de suporte, mas do tipo de atitude e de atenção criadas. Podemos nos colocar na frente de um filme de TV com a postura de quem está no cinema. Nesse momento, nós agimos como o espectador de cinema.
O senhor rejeita a ideia de estetização da política que encontramos em Walter Benjamin. Como podemos interpretar a manipulação das sensações dentro do campo político? Por exemplo, o incentivo ao medo do terrorismo, a apresentação de políticos como mercadorias não seriam maneiras de estetizar a relação das pessoas com o poder político?
Penso que a política tem sempre uma dimensão estética, o que é verdade também para o exercício das formas de poder. De certa maneira, não há uma mudança qualitativa entre o discurso em torno do terrorismo hoje e o discurso midiático contra os trabalhadores no século 19, que dizia que os operários contestadores cortavam pessoas em pedaços. Sempre houve, digamos, uma série de discursos organizados pelo poder. Eventualmente, eles serviram como forma de ilustração.
Não há novidade radical. A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos. Para mim, é um dado permanente. É diferente da ideia benjaminiana de que o exercício do poder teria se estetizado num momento específico. Benjamin é sensível às formas e manifestações do Terceiro Reich, mas é preciso dizer que o poder sempre funcionou com manifestações espetaculares, seja na Grécia clássica, seja nas monarquias modernas.
Há um momento em que é preciso distinguir duas coisas: de um lado, a adoção de certas formas espetaculares de mise-en-scène do poder e da comunidade. De outro, a ideia mesma de comunidade. É preciso saber se pensamos a comunidade política simplesmente como um grupo de indivíduos governados por um poder ou se a pensamos como um organismo animado.
Na imaginação das comunidades há sempre esse jogo, essa oscilação entre a representação jurídica e uma representação estética. Mas não creio que se possa definir um momento preciso de estetização da comunidade.
Por exemplo, o nazismo, que é usado frequentemente como exemplo de política estetizada, na verdade também recuperou a estética de seu tempo. Pense nas demostrações dos grupos de ginástica em Praga nos anos 1930. Eram associações apolíticas ou absolutamente democráticas, com a mesma estética que encontramos no nazismo.
Para mim, é preciso tomar distância da ideia de um momento totalitário da história marcado especialmente pela estetização política, como se pudéssemos inscrever isso num momento de anti-história das formas estéticas da política e das formas de espetacularização do poder.
Uma das críticas mais frequentes à arte contemporânea é a impossibilidade de definir o que é uma obra de arte e o que não é. O senhor escreve que, “para que uma maneira de fazer técnica seja qualificada como artística, primeiro é preciso que seu tema o seja”. Como definir a obra de arte ou a arte em si?
Não definimos a obra de arte como “obra”. O que eu digo, no fundo, é que uma forma de arte é sempre ligada à dignidade dos temas.
O romance torna-se grande arte quando a vida de qualquer um se tranforma em arte. A fotografia no cinema não é só uma forma de mostrar o visível, mas mostra que uma cena de rua ou a vida de qualquer pessoa tem direito de ser citada na arte.
A partir do momento em que tudo é representável, não há mais especificidade. A especificidade não será dada, enfim, pela técnica em particular, mas pelos códigos de apresentação. Mais uma vez, não creio que haja uma radicalidade nova.
Há algumas décadas, as análises de Arthur Danto vieram dizer que somente a instituição é quem faz a obra de arte. De certa maneira, isso sempre foi verdadeiro. A “representação da representação” ligada a certo tipo de procedimento ou de instituição sempre foi necessária para identificar uma coisa como pertencente ao universo da arte.
Mas, hoje, mesmo uma grande parte do público questiona o fato de estar vendo “arte”. Não há uma maior distância entre a apresentação e a recepção?
Vivemos hoje em dia a contradição máxima, qualquer coisa pode entrar na esfera da arte. Mais do que nunca, a arte, hoje, se constitui como uma esfera à parte, com as pessoas que a produzem, com as instituições que a fazem circular, seus críticos.
Numa época em que os afrescos de uma igreja eram o que se considerava arte, essa questão simplesmente não se colocava, porque a arte não existia como instituição. É a contradição constitutiva do regime estético.
A última Bienal de São Paulo tinha um andar inteiramente vazio, simbolizando o vazio na arte. Como podemos interpretar esse vazio? O senhor fala do fim da arte utópica. O vazio seria a arte “atópica”?
Podemos fazer o vazio significar várias coisas. Há artistas que organizam retrospectivas de suas obras, e o que vemos? Nada. Há apenas guias que falam. Há muitas possibilidades. Podemos conceber uma exposição sobre o tema do vazio no modernismo duro. Ou então imaginar uma exposição pós-moderna desencantada “mostrando o vazio porque a arte contemporânea é vazia”. Ou ainda criar uma exposição em termos conceituais, em que efetivamente substituímos as obras pelo discurso sobre as obras, e assim por diante.
Mas a verdade é que eu nunca estou muito interessado por esse tipo de estratégia. Se partimos da ideia de que não há nada, é preciso mostrar que não há nada, e mostrar que o que há não vale nada, e assim por diante.
São estratégias eficazes, mas não tão interessantes. Quando não sabemos muito bem como qualificar algo, sempre podemos fazer uso do “vazio”. Eu me lembro da Bienal de Veneza de dois anos atrás, em que havia uma multiplicidade de obras neo-naïf, neoexpressionistas, como iconografia provocante. Há multiplas estratégias.
O senhor critica muitas vezes a separação a priori entre atividade e passividade. Nesse contexto, como analisa as tecnologias colaborativas que estão surgindo na atividade artística?
O que digo não é especialmente ligado à arte colaborativa. Em primeiro lugar, toda atividade comporta também uma posição de espectador. Agimos sempre, também, como espectadores do mundo.
Em segundo lugar, toda posição de espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que desvia o sentido do espetáculo. É minha tese global, que não está ligada só a uma arte interativa.
Todas as obras que se propõem como interativas, de certa maneira, definem as regras do jogo. Então, esse tipo de obra pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que está diante do espectador e com a qual ele pode fazer o que bem entender.
Podemos dizer, então, que as obras estão no museu, na galeria, na internet, e o espectador é convidado a colaborar. Mas isso é só mais uma forma de participação, e não necessariamente a mais interessante.
O senhor recupera o lado político da literatura, graças a seu poder de reconfigurar os modos de existência, e evoca a passagem de Aristóteles em que ele diz que o ser humano é político porque possui o logos, ou seja, é capaz de fazer discursos. Hoje, os meios de publicação tradicionais, jornais, editoras etc. estão ameaçados por formas como blogs e redes sociais. Que tipo de mudanças podemos esperar na vida política com essas novas formas?
Isso depende de até que ponto a internet define uma escritura específica. Para mim, na verdade, a internet define essencialmente apenas um modo específico de circulação da informação, que não nega as formas anteriores da escrita. Dá para consultar, numa infinidade de sites, as obras clássicas da literatura e da filosofia, ao mesmo tempo em que existe a linguagem SMS.
Tudo circula, cada vez mais rápido e com mais facilidade: da linguagem minimalista dos SMS aos livros todos, digitalizados pelas grandes bibliotecas. Muitas vezes, recuperam-se livros que não podem mais ser encontrados no papel. Desconfio sempre desse discurso de que o Google vai matar o livro. Não há motivo, porque podemos ler livros no Google.
Para pensar essa questão da política e da literatura na era da internet, precisamos primeiro pensar nas relações entre tipos de mensagem. A internet é, para mim, um suporte que não vem associado a um tipo de mensagem particular. Portanto, não deve causar grandes mudanças.
É diferente do que aconteceu com a chegada do cinema, por exemplo. Podemos constatar que a literatura não tem hoje o papel que tinha no século 19. Apesar do número enorme de romances publicados, poucos são os que remodelam a imagem do indivíduo e da comunidade. Esse papel foi assumido pelo cinema. A literatura oferecia uma capacidade de alargar as formas de percepção do mundo e da comunidade, ela agia sobre a visão e o sentimento de praticamente qualquer um. Hoje, quem faz isso é o cinema, a televisão, a internet.
Jacques Rancière
Jacques Rancière recebeu a CULT em seu apartamento no nono arrondissement parisiense (Foto: Divulgação)
Até há pouco tempo, havia Bush e Dick Cheney de um lado e, de outro, a Europa como uma espécie de guardiã do “bom senso” na política. Agora, os norte-americanos elegeram Obama e os europeus escolheram Sarkozy e Berlusconi, acompanhados por um fortalecimento geral dos partidos conservadores. Falando das eleições de 2002, o senhor disse que não se pode vencer a extrema direita associando-se ao consenso e às oligarquias. O ano de 2009 é a conclusão do que começou em 2002?
Não acho que podemos comparar. Em 2009, foram eleições europeias. Se tomamos o caso da França, em 2005 houve o referendo da Constitição Europeia e a União triunfou.
Em 2007, Sarkozy chegou ao poder e renegociou os poderes dessa Constituição. Ele decidiu que não se submeteria ao referendo pois, segundo ele, havia questões importantes de Estado envolvidas. Esse é um primeiro ponto. É preciso dizer que falamos de 40% do eleitorado que votou e é preciso pensar nos 60% que não votou.
A mudança entre 2002 e 2009 é que a parte do corpo eleitoral que não votou está mais à esquerda. A vitória da direita está ligada mais ao fato de que o eleitorado de esquerda não se reconhece nos partidos de esquerda, do que numa conversão da população inteira ao sarkozismo. O eleitorado de direita está contente com o que tem, está contente com Sarkozy e Berlusconi.
O eleitorado de esquerda não está satisfeito nem com os homens que estão poder, como Gordon Brown, nem com os que estão na oposição, e o melhor exemplo é a oposição socialista na França. Não acho que haja um crescimento extraordinário da direita e da extrema direita, mas sim um desencanto da esquerda.
Mas a crise gerou nos Estados Unidos um abandono da direita, representada por Bush…
Houve uma mobilização enorme em torno das eleições norte-americanas. Uma série de pessoas que nunca tinham votado foi votar pela primeira vez, especialmente os negros.
No caso da Europa, foi o contrário. Há países onde apenas 20% dos eleitores votaram, e só 40% na França. Não acho que esse contraponto deva ser pensado em relação direta com a crise financeira.
O resultado foi precipitado por ela, mas a ideia de Obama contra Bush remete a uma insatisfação anterior e mais fundamental do que a mera reação à crise econômica.
Os desinteresses pela política e pela arte seriam duas vertentes da mesma situação?
Não tenho certeza, até porque o desinteresse pela política não é tão claro assim. Muita gente votou nas eleições presidenciais há dois anos. Nas eleições europeias, aparentemente muitas pessoas que normalmente votam não votaram, e muita gente que não costuma votar saiu de casa porque queria salvar o planeta. Esse é um primeiro aspecto.
O segundo é que não creio que haja um desinteresse pela estética, pela arte. As pessoas ainda vão ver Jeff Koons em Versalhes. O interesse pelos artistas ainda é muito importante. É verdade que de vez em quando há coisas desastrosas, teve La force de l’art no Grand Palais e estava sempre deserto, mas as pessoas se davam cotoveladas para ver Picasso.
Se a mudança do mundo passa por reconfigurações da maneira de pensar e entender a realidade, então ela não passa pelas revoluções como as conhecemos?
Podemos pensar nisso baseados nas revoluções que já aconteceram. Em primeiro lugar, uma revolução é uma ruptura na ordem do que é visível, pensável, realizável, o universo do possível. Os movimentos de revolução sempre tiveram a forma de bolas de neve.
A partir do momento em que um poder legítimo se encontra deslegitimizado, parece que não está em condições de reinar pela força, porque caíram todas as estruturas que legitimam a força. Criam-se cenas inéditas, aparecem pessoas que não eram visíveis, pessoas na rua, nas barricadas. As instituições perdem a legitimidade, aparecem novos modos de palavra, novos meios de fazer circular a informação, novas formas da economia, e assim por diante. É uma ruptura do universo sensível que cria uma miríade de possibilidades.
Não penso as revoluções, nenhuma delas, como etapas de um processo histórico, ascensão de uma classe, triunfo de um partido, e assim por diante. Não há teoria da revolução que diga como ela nasce e como conduzi-la, porque, cada vez que ela começa, o que existia antes já não é válido.
Existe uma carta interessante de Marx, um pouco após 1848, quando os socialistas pensavam que as estruturas seriam abaladas mais uma vez. Ele diz que as revoluções não funcionam como os fenômenos científicos normais, são mais como os fenômenos imprevisíveis, os terremotos. Não sabemos como elas vão se comportar. Todas as teorias científicas, estratégicas, das revoluções demonstram isso.
Não podemos antecipá-las…
Podemos prepará-las, mas não antecipá-las. A temporalidade autônoma de uma revolução, os espaços que elas criam não correspondem jamais ao quadro conceitual que temos no início.
A estratégia da esquerda tradicional é o confronto aberto, o que se opõe à sua teoria de reconfiguração estética da vida política…
Temos de pensar na estética em sentido largo, como modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos constroem
o mundo. É um processo estético que cria o novo, ou seja, desloca os dados do problema.
Os universos de percepção não compreendem mais os mesmos objetos, nem os mesmos sujeitos, não funcionam mais nas mesmas regras, então instauram possibilidades inéditas. Não é simplesmente que as revoluções caiam do céu, mas os processos de emancipação que funcionam são aqueles que tornam as pessoas capazes de inventar práticas que não existiam ainda.
Não sou contra processos cumulativos, claro: se imigrantes ilegais têm capacidade de fazer greves e manifestações em condições perigosas para eles mesmos, isso define um alargamento não só do poder e das capacidades que temos, mas também do mundo no qual inscrevemos nossas ações e nosso pensamento.
A transformação dos mundos vividos é completamente diferente da elaboração de estratégias para a tomada do poder. Se há um movimento de emancipação, há uma transformação do universo dos possíveis, da percepção e da ação, então podemos imaginar como consequência também um movimento de tipo revolucionário, de tomada do poder. É claro que estamos falando do passado, porque o presente não é muito alegre.
Por que “o presente não é muito alegre”?
O presente não é alegre porque não há esperanças fortes, digamos assim, que sustentem os movimentos existentes.
Por exemplo, a recente greve das universidades, que criou algumas formas de manifestação, digamos, particulares: cursos na rua, no metrô, invenções para deslocar para o campo da sociedade como um todo o problema que atinge o ensino superior francês.
Mas todas essas inovações foram completamente isoladas do ponto de vista da informação. O ano de 1968 existiu em parte porque o rádio cobria profundamente o movimento estudantil, sabia-se tudo que acontecia, havia uma geração de jovens repórteres de rádio que fez circular as informações.
Agora, aconteceu o contrário. A mídia aprisionou o movimento universitário numa espécie de paisagem hostil, gente que não entendia, que dizia coisas alucinantes. O partido majoritário de direita (UMP) criou associações de pais de estudantes exigindo o reembolso das inscrições porque os estudantes não tiveram aula. Isso era impensável há dez anos.
As forças da dominação e da exploração aumentaram consideravelmente seus meios de ação. Diante da crise financeira, não vimos nenhum discurso forte e sério contra o capitalismo, só esses pequenos grupos e partidos anticapitalistas com as mesmas ideias de décadas atrás. Nada que trouxesse esperança, movimentos com ideias alternativas a uma concepção hegemônica confrontada com suas próprias contradições.
O presente não é muito alegre porque as forças da dominação e da exploração fizeram progressos consideráveis. Estudei, por exemplo, o movimento operário do século 19, que criou novas formas de associação e de visão do mundo e que resultou em movimentos políticos que, como sabemos, falharam. Mas é certo que o universo dos possíveis foi amplamente reformulado. O povo em manifestação podia algo que não podia antes, diante da realeza.
No mesmo sentido, o operariado adquiriu novos poderes e direitos face aos patrões. As formas de comunicação se comunicam entre elas e criam um universo de circulação de energia, ideias, vontades. Foi muito marcante, em 1968, vermos surgirem de repente, em diversos lugares ao mesmo tempo, formas de contestação e de ação.
É claro que tudo isso caiu com o movimento, mas foi um momento em que os estudantes viram que podiam fazer o mesmo que os operários, e vice-versa. Criaram-se formas de ação completamente imprevistas. O que se transmite são aberturas do campo do possível, não do campo estratégico.
No interior de sua distinção entre política e polícia, como podemos interpretar o crescimento da vigilância e do controle? Por que fizemos essa escolha, em vez do encontro político?
É a lógica do funcionamento dos Estados como instâncias de administração, e dos sistemas midiáticos: trocar a política pela identificação de problemas que precisam ser solucionados. Se não é o conflito que é motor, o motor é uma espécie de patologia da vida política que a administração se propõe a remediar. É o modo de funcionamento do Estado moderno.
De um lado, há uma pretensão ao objetivismo, identificar os problemas e as imperfeições da sociedade, e, de outro lado, precisamente essa espécie de objetivismo idealizado é, essencialmente, uma questão de gestão das opiniões.
Tomando a questão da segurança, qual é o balanço da gestão de Sarkozy, primeiro como ministro do Interior, depois como presidente da República? Um desastre. Estamos muito menos seguros do que antes. O que está em funcionamento é a gestão da insegurança como um sentimento para agregar as pessoas em torno de um poder que gerencia a segurança.
Resisto muito às teorias paranoicas de “sociedade de controle” que dizem que “somos observados e controlados em todo canto”. No 11 de Setembro, vimos como as pessoas podem passar tranquilamente diante das câmeras de segurança e fazer seu atentado sem serem molestadas. Acredito muito mais na ideia de uma administração ideológica, no sentido tradicional, dos sentimentos, particularmente no que diz respeito à segurança.
Criamos um sentimento de que vivemos na insegurança e precisamos de gestores de segurança. Isso cria uma legitimação de decisões autoritárias que podem se estender a praticamente tudo. No fim, a segurança acaba significando qualquer coisa. A pobreza dos subúrbios, a saúde dos idosos, os “países terroristas” pelo mundo, os poluidores, qualquer coisa.
A segurança vira um sentimento de perigo onipresente, extrapolando a ideia da proteção das “pessoas de bem” contra os maus de qualquer tipo. Isso cria estruturas de gestão estatais e interestatais, que não são necessariamente da ordem do controle minucioso ou do terror, mas de um sentimento flutuante.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Observar a democracia com as lentes de Bobbio

                                           
Michelangelo Bovero
                                                                                                                                                             

Observar a democracia com as lentes de Bobbio


O filósofo e historiador italiano Norberto Bobbio (Foto: Divulgação)

A tradição de pensamento que alguns estudiosos quiseram chamar de “escola de Turim” tem, entre seus temas principais de reflexão, e não apenas de preocupação intelectual, mas também de compromisso civil, o problema da democracia. Trata-se na realidade de um problema complexo, ou de um nó de problemas particularmente intricado, que deve ser enfrentado, sobretudo, com os instrumentos teóricos da análise conceitual.
A teoria analítica da democracia elaborada dentro da escola de Turim, acima de tudo e eminentemente na obra de Norberto Bobbio, é em primeiro lugar uma teoria jurídica, distinta das teorias políticas, como, por exemplo, as de Giovanni Sartori ou Robert A. Dahl, e das teorias economicistas como as de Anthony Downs, e também de Joseph Schumpeter. A teoria de Bobbio é geralmente considerada a versão mais pontual e madura da chamada “concepção processual” da democracia, que, ao longo do século 20, para superar as ambiguidades e os equívocos das concepções “substanciais”, concentrou a atenção sobre as “regras do jogo”. Nos últimos tempos voltou-se a refletir sobre este núcleo interno da concepção bobbiana, a teoria das regras constitutivas da democracia, na tentativa de reconstruí-la, reformulá-la e empregá-la como instrumento de diagnóstico para medir o grau de democracia dos regimes políticos contemporâneos.
A tabela bobbiana das regras democráticas
1 – Todos os cidadãos que alcançaram a maioridade, sem distinção de raça, religião, condição econômica e sexo, devem desfrutar dos direitos políticos, ou seja, todos têm o direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a exprima por eles;
2 – O voto de todos os cidadãos deve ter o mesmo peso;
3 – Todas as pessoas que desfrutam de direitos políticos devem ser livres para poder votar de acordo com sua própria opinião, formada com a maior liberdade possível por meio de uma concorrência livre entre grupos políticos organizados competindo entre si;
4 – Devem ser livres também no sentido de ter condição de escolher entre soluções diferentes, ou seja, entre partidos que têm programas diferentes e alternativos;
5 – Seja por eleições, seja por decisão coletiva, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de considerar eleito o candidato ou considerar válida a decisão obtida pelo maior número de votos;
6 – Nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições.
Essas seis regras são chamadas de “procedimentos universais”, ou seja, as normas que estabelecem, de acordo com as fórmulas simples e iluminadoras de Bobbio, o “quem” e o “como” da decisão política – e que se encontram em todos os regimes geralmente chamados democráticos.
Todas as regras enumeradas por Bobbio dizem respeito, direta ou indiretamente, à instituição que caracteriza a democracia representativa: as eleições. Hoje, e não sem bons argumentos, tende-se a não considerar indissolúvel o nexo entre eleições e democracia. Que as eleições são um indicador insuficiente da democracia de um sistema político é algo evidente, até mesmo banal. Mas isso não deve levar à atribuição de uma importância secundária à instituição das eleições, nem mesmo a negligenciá-la ou desacreditá-la, como às vezes tendem a fazer alguns promotores da (assim chamada) “teoria deliberativa da democracia” atualmente em voga. Um leitor de Bobbio poderia se limitar a confirmar outra obviedade banal: em uma coletividade de grandes dimensões, a autodeterminação democrática não pode se realizar a não ser sob a forma da democracia representativa, e esta não pode sobreviver sem as eleições. Há quem pense que as eleições podem ser abolidas e substituídas pelas formas difusas de “deliberação” (seja lá o que isso signifique). É verdade que uma democracia “apenas” eleitoral pode ser uma democracia aparente, mas também é verdade que, abolidas as eleições, não se teria mais nenhuma democracia, nem aparente nem real.
Critérios de democratização
A tabela bobbiana das seis regras não é a tradução sintética em normas, ou em princípios inspiradores de normas, da concepção processual da democracia. Assim, as seis regras são apenas a explicitação articulada de sua definição mínima “segundo a qual por regime democrático se entende principalmente um conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas, nas quais é prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados”. Também com o propósito de testar a validade e a fertilidade da teoria bobbiana, eu sugeri que esse “conjunto de regras” pode ser adotado e utilizado como um verdadeiro e apropriado critério de democratização, simplificado, mas eficaz, ou seja, como parâmetro essencial de um juízo que estabelece se este ou aquele regime político realmente merece o nome de democracia. Na perspectiva de Bobbio, na realidade, as “regras do jogo” valem como condições da democracia. Aplicando de um modo elementar e intuitivo a gramática do conceito de “condição”, pode-se dizer que, se essas regras encontrarem eco e aplicação real na vida política de uma coletividade, então essa coletividade pode se reconhecer e autodenominar democrática.
No capítulo da Teoria geral da política que assumi como texto de referência, Bobbio nos convida a considerar as seis regras como condições separadamente necessárias e apenas conjuntamente suficientes: “Não tenho dúvidas do fato de que basta a não observância de uma destas regras para que um governo não seja democrático”. Em outro texto, Bobbio parece muito mais flexível: “Nenhum regime histórico jamais observou completamente o conteúdo de todas estas regras; e por isso é lícito falar de regimes mais ou menos democráticos”.
Começo observando que Bobbio considera “graus diferentes de aproximação do modelo ideal”. Devemos esclarecer que o “modelo ideal” que ele menciona não é a soma das promessas e ilusões que a doutrina democrática moderna, de Rousseau em diante, associou à prefiguração da comunidade política ideal. Nesse sentido, Bobbio dizia que o distanciamento da prefiguração doutrinária e idealizada da sociedade democrática, verificada em todas as experiências concretas de “realização” da democracia, não foi a “de ‘transformar’ um regime democrático em um regime autocrático”. A fronteira entre os dois tipos de regime está no fato de que, e na medida em que, as regras do jogo democrático sejam respeitadas de alguma maneira e até certo grau.
O problema mais importante não é tanto o de definir o número de regras que devem ser respeitadas para que um regime concreto possa passar no teste da democracia, mas o da forma e do grau de sua aplicação. Então, adverte Bobbio, as regras do jogo são “aquelas listadas, simplíssimas, mas nada fáceis de aplicar corretamente”. Por isso, na análise de casos das democracias reais, “deve-se ter em mente o possível desvio entre a enunciação [das regras] de seu conteúdo e o modo pelo qual elas são aplicadas”. E isso permite reconhecer que há democracias reais mais democráticas ou menos democráticas. Mas em 1984 Bobbio não hesitava: “mesmo a mais distante do modelo”, ou seja, do paradigma de uma aplicação correta das regras do jogo, “não pode ser de modo algum confundida com um estado autocrático”. Então, afirmava ele, apesar das secas réplicas da história às promessas e ilusões da doutrina democrática moderna, “não se pode falar propriamente de uma ‘degeneração’ da democracia”.
Eu me pergunto: isso ainda é verdadeiro? Estamos dispostos a reconhecer essa afirmação, depois de 25 anos? Se mantivermos a formulação de Bobbio, que assumia como termo de comparação a “era das tiranias”, os totalitarismos do século 20, provavelmente sim. Porém, podemos nos perguntar: depois da análise de Bobbio, que outras transformações sofreu a democracia?
Vejamos: diante do problema dos imigrantes, hoje particularmente agudo na Europa – ou, em outras partes do mundo, como na América Latina, diante da interminável massa de cidadãos inexistentes, excluídos não apenas da vida pública, mas condenados a uma condição de existência miserável e sem resgate –, como fica a condição de inclusão posta como primeira regra da tabela de Bobbio? Diante dos efeitos distorcidos da representação política, produzidos por grande parte dos sistemas eleitorais atualmente em vigor nas democracias reais, como fica a condição de equivalência dos votos individuais definida pela segunda regra? Diante das grandes concentrações nas mídias, como fica a condição de pluralidade da informação exigida implícita mas claramente na terceira regra, para a livre formação das opiniões e das escolhas dos cidadãos? Diante da personalização da luta política e da administração do poder, da distorção das cúpulas e das “lideranças” da vida pública, das campanhas eleitorais reduzidas a duelos pela conquista monocrática dos cargos supremos, e do consequente empobrecimento das opções disponíveis, como ficam as condições de pluralismo político requeridas pela quarta regra? E diante da configuração da dialética política como um jogo de soma zero, no qual “quem ganha leva tudo”, não se poderia falar talvez de um abuso do princípio da maioria, postulado pela quinta regra como uma condição simples da eficiência da democracia? E, finalmente: diante das repetidas e difundidas violações dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos sociais, mas também dos direitos de liberdade, pelos mesmos governos das democracias reais nas mais recentes estações políticas, e diante das alterações na separação dos poderes, como ficam os “direitos das minorias” protegidos pela sexta regra como condição para a sobrevivência da democracia?
É supérfluo acrescentar que essas minhas considerações não pretendem de fato valer como uma crítica a Bobbio. Pelo contrário: elas pretendem mostrar a permanente validade, fertilidade e efetividade dos instrumentos conceituais que sua teoria da democracia nos oferece, mesmo se a aplicação desses instrumentos aos casos concretos da experiência política contemporânea nos cause uma preocupação, com relação aos destinos da democracia, maior do que aquela que o próprio Bobbio, o Bobbio “pessimista”, manifestava um quarto de século atrás.
Tolerância – debate livre – fraternidade
Pode parecer que uma teoria centrada nas regras do jogo seja a expressão de uma concepção puramente técnica da democracia, estranha a toda problemática ética, e distante do mundo dos valores. Não é assim. Bobbio sente a necessidade de responder a uma pergunta que ele mesmo reconhece como “fundamental”: “Se a democracia é principalmente um conjunto de regras de procedimento, como pode pretender contar com ‘cidadãos ativos’? Para que cidadãos ativos existam, não seria preciso que tivéssemos ideais? Certamente temos ideais. Mas como não se dar conta de quais grandes lutas ideais produziram essas regras?”. Em suma: Bobbio nos faz entender claramente que as mesmas técnicas processuais, “que tão frequentemente zombaram das regras formais da democracia”, são o fruto de escolhas de valores, e são postas como condições para a criação de uma forma de convivência desejável e aprovada com base em determinados valores.
Mas quais valores? Para simplificar, sugiro dividir o mundo dos valores que são relacionados à ideia de democracia, fazendo dela um ideal a ser buscado, em dois hemisférios. No primeiro encontramos os valores implícitos nas mesmas regras processuais da democracia como objetivos ideais que esta apenas permite perceber, e então como critérios que a tornam preferível às outras regras políticas. São os valores democráticos no sentido estrito. Bobbio enumera explicitamente quatro: tolerância, não violência, renovação da sociedade pelo debate livre, e fraternidade. Mas não é difícil ver que na tabela das seis regras do jogo democrático (sobretudo nas quatro primeiras) estão implícitos também os outros dois valores da tríade francesa clássica, ou seja, igualdade e liberdade. Não a igualdade e a liberdade em geral, em cada significado e especificação possível, mas sim determinados tipos delas. Corretamente democrático é o reconhecimento da dignidade política igualitária de todos os indivíduos, da qual decorre a distribuição igualitária do direito/poder de participar da formação das decisões coletivas. Do mesmo modo, corretamente democrática é a liberdade positiva, que é a liberdade como autonomia, a capacidade de determinar por si mesmo suas próprias opiniões e escolhas políticas, e de fazê-las valer na arena pública.
Isso significa talvez que as liberdades (assim chamadas) negativas ou civis, de um lado, e as dimensões econômico-sociais da igualdade, de outro, não são valores, ou não têm nada a ver com a democracia? Não: elas são valores, e nós as encontramos no segundo hemisfério do mundo axiológico que permeia a ideia de democracia. Não valores democráticos no sentido estrito, que são analiticamente incluídos no conceito de democracia – tanto é verdade que por vezes têm sido assumidos e reivindicados mesmo sem e contra a democracia, respectivamente pelos movimentos liberais e socialistas. Contudo, são valores que devem ser reconhecidos como tais, e buscados para permitir a existência mesma da democracia e sua melhoria, e que por outro lado só a democracia permite realizar e garantir de formas não precárias ou distorcidas. Naturalmente, é preciso novamente distinguir e especificar: do ponto de vista democrático, nem toda forma de liberdade, nem toda forma de igualdade é um valor. Aquelas que Bobbio chama de “as quatro grandes liberdades dos modernos” – a liberdade pessoal, de opinião, de reunião e de associação – são valores de tradição liberal que um bom democrata deve fazer. As normas das constituições liberais que reconhecem essas liberdades como direitos fundamentais da pessoa, esclarece Bobbio, “não são propriamente regras do jogo: elas são regras preliminares que permitem a realização do jogo”. Poderíamos dizer que, se as regras do jogo são as condições da democracia, os quatro grandes direitos de liberdade negativa são suas pré-condições liberais. Mas devemos acrescentar que algumas dimensões não políticas da igualdade, também reivindicadas como direitos fundamentais das tradições socialistas, representam as pré-condições sociais das pré-condições liberais da democracia. Que sentido teriam os direitos de participação política se não fossem garantidos os direitos à livre manifestação do pensamento, à livre reunião e associação? Mas que sentido teria a liberdade de pensamento, de reunião, de associação, sem o direito à educação, de um lado, e às informações livres e plurais, do outro? Que valor têm os direitos de liberdade sem o poder concreto de fazer o que é permitido fazer? Para que têm valor esses direitos sem as condições materiais que colocam os indivíduos enquanto tais, todos os indivíduos, como livres?
Para retomar, simplificar ainda mais, e tentar fixar algum ponto principal de orientação teórica, proponho o seguinte esquema conceitual. Uma afirmação como “a democracia é o regime da igualdade e da liberdade política” deve ser considerada como um juízo analítico: o predicado deixa explícito qual é o conteúdo do (significado do) sujeito. Uma proposição (dupla) como “a democracia é o regime das liberdades individuais e/ou das igualdades sociais”, que à primeira vista pode parecer extravagante, contudo é diversamente reconduzida a algumas declinações históricas da noção de democracia. Tal proposição deve ser considerada, feitas as especificações oportunas, como um juízo sintético: a síntese entre a) liberdade e igualdade política, b) liberdades liberais e c) justiça social representa, de um lado, uma demanda imprescindível, já que diz respeito ao nexo entre as condições e pré-condições da democracia; por outro lado, constitui um horizonte normativo inesgotável para a melhoria contínua da democracia e a correção de seus defeitos.
A ideia de democracia também pode ser empreendida de uma perspectiva diferente, adotando o esquema conceitual da tríade daquilo que Bobbio chama de seus ideais: democracia, direitos do homem e paz. Esses três ideais estão interligados por um nexo de implicação recíproca que a história da segunda metade do século 20 revelou: “Os direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico”. Hoje podemos dizer que a necessidade daquele tríplice vínculo é confirmada, em negativo, também pelo “movimento contra-histórico” que estamos sofrendo logo depois do fim do século. Nas últimas duas décadas parece realmente que a história mudou de direção, que a corrente do movimento inverteu sua marcha, ou que aquilo que Bobbio chamava de “matéria bruta” do mundo opôs uma dura resistência aos ideais de democracia, dos direitos e da paz: não apenas freou sua afirmação, mas também provocou sua crise.
Crise da democracia
Que a democracia hoje esteja em crise, nos vários significados atribuídos a esta palavra, é uma afirmação banal, mas não por isso menos verdadeira. Como já tive ocasião de mencionar, um dos aspectos dessa crise consiste na difusão, em escala planetária, de certas formas de atuação política que alguns estudiosos batizaram com um neologismo: “antipolítica”. Mesmo que o conceito ainda seja nebuloso, o termo designa com uma boa aproximação a visão e a estratégia dos partidos e movimentos que buscam agregar consenso ao redor de fórmulas demagógicas neopopulistas, caracterizadas pela contraposição da vontade “verdadeira” do “povo” àquela expressa pelas culturas políticas sedimentadas no sistema de partidos e das instituições de representação. Na Europa muitos atores políticos de direita, expressões do “chauvinismo do bem-estar” produzido pela globalização, obtiveram notáveis sucessos com métodos antipolíticos. Na América Latina também há alguns sujeitos (com presunções e pretensões) de esquerda, que viram nas vítimas da globalização uma oportunidade para assumir os esquemas da antipolítica. Com efeito: para designar ambos, os de direita e de pseudoesquerda, eu seria tentado a adotar, em vez do neologismo “antipolítica”, o termo mais explícito “antidemocracia”; também para sugerir que, apesar do consenso eleitoral obtido por esses atores políticos, trata-se de uma caricatura, de uma imitação de democracia: de uma democracia aparente que reveste e disfarça formas incipientes de autocracia eletiva.
A noção de antidemocracia contém um potencial explicativo maior. Em uma série de artigos dedicados à história política italiana, Bobbio elaborou um modelo conceitual baseado na dupla equação entre fascismo e antidemocracia, e entre democracia e antifascismo. A argumentação na qual esse esquema se desenvolve permite revelar a essencial negatividade lógica e axiológica do fascismo, cuja identidade se resolve na negação total da democracia. Sugiro que hoje isso pode, uma vez mais, revelar-se fértil para atingir esse modelo conceitual construído por Bobbio sobre a história italiana, para iluminar alguns dos derivados mais perigosos da política contemporânea.
Facismo pós-moderno
Ao risco de fazer tremer os historiadores de profissão, que já mal suportam o uso extenso do termo fascismo para designar realidades históricas distintas daquela originária da Itália, e se opõem decididamente à acepção genérica desse mesmo termo, que abrange vários tipos de regimes ditatoriais ou autoritários, eu proporia caracterizar as diversas manifestações da “antidemocracia” que estamos observando em muitas partes do mundo, embora em graus e formas diversas, como fascismo pós-moderno: que a mistura entre repressão violenta e ilusão demagógica própria do fascismo histórico privilegia (até agora?) o segundo ingrediente; que fomenta a hiperpersonalização da política e às vezes expressa figuras grotescas de poder carismático; que busca o fortalecimento do Executivo (depois de ter sido conquistado) debilitando vínculos e controles; que age de maneiras potencialmente (mas às vezes claramente) subversivas da ordem consolidada nas arquiteturas constitucionais. Um exemplo? Nos últimos anos de sua vida ativa, o próprio Bobbio sublinhou a analogia entre o Partido Fascista e a Forza Italia, o partido pessoal inventado por Berlusconi, mostrando a natureza essencialmente “subversiva” de ambos.
Em um dos artigos sobre a história italiana que acabo de mencionar, escrito em 1983, depois de lembrar o juízo irônico de Marx, de acordo com o qual certos fenômenos históricos ocorrem duas vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa, Bobbio observava que o fascismo era ao mesmo tempo tragédia e farsa. A dimensão trágica não precisa ser ilustrada: basta mencionar a feroz repressão da oposição política e de toda forma de dissensão, e a miserável guerra ao lado da Alemanha nazista. Com relação à dimensão farsesca, da qual Bobbio naquele texto oferece vários exemplos, me limito a recomendar (sobretudo para os mais jovens, que talvez não a conheçam) a visão de certas imagens dos “jornais cinematográficos” da época, que nos passavam a figura do “líder” Mussolini na sacada do Palazzo Venezia, com os punhos na cintura e o maxilar levantado, enquanto se dirigia à multidão da “massa oceânica”: eu asseguro que elas são muito mais grotescas que a famosa sequência do filme de Charlie Chaplin na qual Hitler joga bola com o mapa-múndi. Portanto, como tragédia e farsa foram perfeitamente fundidas no regime de Mussolini, Bobbio conclui então que o fascismo não teria podido se repetir. Hoje, um observador desencantado com a realidade não hesitaria muito para julgar aquela conclusão como precipitada. E, se fosse particularmente pessimista, adiantaria a hipótese de que talvez um novo ciclo de tragédias e farsas se abriu, ainda que com termos invertidos: em resumo, levantaria a questão de que muitos episódios políticos ridículos do fascismo pós-moderno, dos quais somos em diversas medidas (e não apenas na Itália) os espectadores não divertidos, poderiam preceder novas tragédias.
Um escritor do século 19, Vincenzo Gioberti, dedicou uma obra para glorificar a primazia moral e cívica dos italianos. Nas mais recentes estações políticas, frequentemente fui tentado a reverter a retórica giobertiana, denunciando a primazia imoral e anticívica dos italianos, que ofereceram ao mundo o modelo do fascismo desde o início do século 20 e, não satisfeitos, antes do fim do milênio, quase como uma grotesca prefiguração do apocalipse, colocaram em cena uma variação inédita da antidemocracia baseada na idiotização dos cidadãos pela mídia. Bobbio se acostumou a repetir que a Itália é um laboratório político. Permito-me acrescentar: às vezes se assemelha ao laboratório de Frankenstein. Produz monstros. E como muitos produtos made in Italy demonstraram ser muito bem-sucedidos, eu recomendo a todos continuar observando atentamente aquilo que sai de nosso laboratório.
Tanto para o mal quanto para o bem. Nós também produzimos coisas boas. Acima de tudo – e não me canso de repetir –, a Constituição da República Italiana de 1948, que foi a primeira a ser elaborada no período imediato do pós-guerra, como fruto de uma assembleia constituinte eleita por sufrágio universal e pelo método proporcional, e que também pode ser considerada, a seu modo, como exemplar. Tanto é verdade que foi tomada como um ponto de referência, e sob muitos aspectos como um modelo mesmo, a exemplo dos redatores da Constituição espanhola pós-franquista. E então de muitos produtos da cultura, não apenas artística, mas também propriamente política: a necessidade de enfrentar tantas calamidades afia o talento. Aqui, como conclusão, só posso recomendar, inclusive como um meio de formarmos anticorpos contra o risco de uma nova forma de antidemocracia travestida de democracia eleitoral, e contra os perigos de um fascismo pós-moderno, a leitura atenta da obra de Norberto Bobbio: um produto da melhor cultura italiana. Tradução: BTS – Business Translation Services


Michelangelo Bovero é filósofo e escritor, assistente e colaborador de Norberto Bobbio. Professor de Filosofia Política na Universidade de Turim

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Charge! Duke via O Dia

O que é fascismo?

                               

    Vladimir Safatle 
                                                                                                                                                                 

O que é fascismo?

FacebookTwitterEmailPinterestAddthisO fascismo é a implosão da possibilidade de solidariedade genérica (Arte Andreia Freire/Revista CULT)

Nesta eleição, o termo “fascista” foi usado várias vezes para descrever formas de discurso e posições políticas. Mas infelizmente o termo não foi discutido naquilo que ele realmente significa. Como nós podemos identificar claramente um discurso fascista, uma forma fascista de vida?
Há quatro elementos que definem uma forma de vida fascista. O primeiro deles é o culto à violência. Trata-se de acreditar que a impotência da vida ordinária e da espoliação será vencida através da força individual daqueles que enfim teriam o direito de sair armado, sair às ruas de camisas negras, falar o quiser sem se preocupar com o que chamam de ditadura do politicamente correto. O fascismo, nesse sentido, oferece uma forma de liberdade. O fascismo sempre se construiu a partir da vampirização da revolta. Há uma anarquia bruta, um carnaval sempre liberado pelo fascismo.
Mas essa liberdade se transforma em liberação de violência por aqueles que já não aguentam mais ser violentados. O carnaval não é a reversão da ordem, mas a conjugação entre a ordem e a desordem. É a desordem com a fantasia da ordem. É o governo forte que me permite esfolar refugiado, atirar em comunista, falar para uma uma mulher “eu só não te estupro porque você não merece”, brutalizar toda e qualquer relação social. Esse vai ser sempre um dos piores efeitos de um governo fascista: criar uma sociedade à sua imagem e semelhança. Como lembra Freud, não são exatamente os povos que criam seus governos, mas os governos que criam seus povos.
O segundo traço do fascismo é o fato de não haver fascismo sem a ressurreição do Estado Nação em sua versão paranoica. Porque alguém tem que cuidar das nossas fronteiras completamente porosas. Alguém tem que ensinar educação moral e cívica para as nossas crianças para que elas tenham orgulho dessa pátria construída através do genocídio dos índios e da escravidão dos negros. Alguém tem que impedir que sejamos invadidos por mais uma leva de refugiados. O Estado Nação se mostra, aqui, como o último refúgio do que é meu, do que me é próprio. O meu território, o meu país, a minha língua, os meus costumes. Mas é também a minha miséria, a minha violência, é o meu sufocamento. Uma comunidade nacional que é o  avesso do comum. É apenas a figura alargada de uma propriedade que aparece como a expressão básica do medo como afeto político central.

O terceiro elemento do fascismo é que ele será sempre solidário à insensibilidade absoluta em relação à violência com classes vulneráveis e historicamente marcadas pela opressão. É a implosão da possibilidade de solidariedade genérica. Essa insensibilidade expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade da vida social não sejam transformadas. Porque toda política é uma questão de circuitos de afetos e estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode nos afetar, com qual intensidade, através de qual velocidade. E, para tanto, há de se gerir a gramática do visível, a forma com que as existências são reconhecidas. Na vida social, ser reconhecido é existir. O que não é reconhecido não existe. Mas ser reconhecido não significa apenas uma recognição do que já existia. Todo reconhecimento exige que aquele que reconhece mude também, porque ele passa a habitar um mundo com corpos que antes não o afetavam. E isso é o que aparece para alguns como insuportável.
E, por fim, o fascismo sempre será baseado na deposição da força popular em prol de uma liderança fora da lei. Ele é a colonização do desejo anti-institucional pela própria ordem. Esse desejo contra as instituições, quando é realmente liberado, poderia criar poderes que voltam às mãos do povo, democracias que abandonam a representação para transferir a deliberação e a gestão para a imanência do povo. Mas o fascismo faz dessa anti-institucionalidade um clamor pela mão-forte do governo. Expressa uma liderança que parece estar acima da lei, que parece poder falar o que quiser sem culpa, expor os seus piores sentimentos sem preocupação alguma com os efeitos, demonstrar desejos mais baixos de violência como expressão de maior liberdade conquistada. Por isso é necessário que esses líderes sejam cômicos, uma mistura de militar e palhaço de circo. Porque só assim, através dessa ironização, essas proposições podem circular com baixa fricção. Afinal, não é para levar a sério tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve levar, então, exatamente a sério? O que é real e o que é apenas uma bravata? Ninguém sabe a não ser eles mesmos. Isso se chama misturar ordem e desordem, lei e anomia. Isso é fascismo.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 16 de outubro de 2018

A distopia 2019

                                          
Além da lei
                                                                                                                                                                 

A distopia 2019


Cena da série 'O conto da aia', baseada em romance da escritora Margaret Atwood (Divulgação)

Em O conto da aia, romance da escritora canadense Margaret Atwood lançado em 1985, um golpe de uma facção fundamentalista institui nos Estados Unidos a República de Gilead, uma ditadura violenta em que a religião é usada como estratagema para subtração dos direitos civis, e o corpo da mulher se torna propriedade de uma elite hipócrita e corrompida. A distopia de Atwood parece ganhar ares de premonição quando se atenta para o contexto mundial e do nosso próprio país.
No cenário internacional, impera a implosão dos organismos internacionais como espaços de distensionamento, diálogo e reafirmação dos princípios de direitos humanos e das relações entre os países. Práticas de exclusão e preconceito contra imigrantes, construção de muros e fechamento de fronteiras tem sido a tônica da política externa de muitos países. O outro é visto como ameaça ao emprego e à vida das pessoas. Se fosse para escolher um retrato perfeito do abismo em que estamos, este seria materializado em um barco à deriva cheio de imigrantes.
Em junho deste ano, a embarcação Aquarius, de uma instituição de caridade, resgatou 629 imigrantes ilegais que tentavam cruzar o Mediterrâneo, vindo da costa da Líbia. Entre os imigrantes, havia 123 menores desacompanhados, outras 11 crianças com famílias e sete mulheres grávidas. Eles são de 26 nacionalidades diferentes, sendo 23 africanas e três asiáticas (Afeganistão, Bangladesh e Paquistão). A Itália, país que estava mais próxima da embarcação proibiu que ela atracasse em seus portos. A Espanha acabou acolhendo.
Sob as regras do direito internacional, qualquer navio que receba pedido de ajuda no mar deve prestar auxílio, e o país responsável pela área deve fazer o resgate. No caso, Itália e Malta tinham os portos mais próximos ao Aquarius. Às favas as regras do direito internacional.
Ou seja, cada vez mais, regras, documentos normativos e acordos internacionais valem pouco ou quase nada. Os esforços de construção de grandes pactos e acordos normativos do pós-guerra entre os países se esfarelam sob a batuta de líderes irresponsáveis e do populismo de caráter autoritário.
Por aqui, desde o golpe de 2016, tem feito mais sentido falar em distopia do que em utopia. A desesperança, o rebaixamento do debate público, a ascensão de grupos políticos fundamentalistas, o incremento a níveis absurdos do medo, a banalização da violência contra o outro, a ausência de alteridade, a dessacralização da vida, a pilhagem do patrimônio público por décadas e o abandono paulatino da tentativa de construção de um país mais justo sendo substituído pela ideia da ordem, faz com que um abatimento profundo atinja as forças progressistas.
O julgamento e deposição de uma presidente legitimamente eleita mediante uma farsa jurídica, as ilegalidades e as violências praticadas por operações que a pretexto de combater a corrupção se tornaram o local privilegiado da quebra de direitos individuais e da naturalização de ilegalidades, e a reprodução nauseante desses fatos contribuíram para disseminação do caos e da desesperança.
A canalização desses movimentos políticos, somado a uma profunda crise econômica, social e ambiental acabou se tornando o substrato para o atual quadro político. Para as forças de esquerda, primeiro foram cortes drásticos na esperança com derrotas seguidas no campo jurídico, depois veio a incredulidade e, na sequência, a angústia fruto do questionamento sobre o que será do futuro.
Não há outra palavra para descrever a distopia de 2019 do que crise. Crise econômica porque a política não será a de geração de empregos, industrialização e desenvolvimento, mas sim aprofundamento da cartilha neoliberal com a venda de “todas as estatais” ou da maior parte delas para conter a dívida pública. Na questão ambiental, o Brasil poderá assistir a uma das maiores catástrofes da sua história com a entrega de órgãos de controle, como IBAMA e CNTbio, para ruralistas. E, no campo social e das relações humanas, a consolidação da barbárie.
A crescente militarização da vida cotidiana, com guardas municipais ganhando cada vez mais status de polícia e agindo como se assim o fosse – Dória inclusive tentou mudar o nome em São Paulo -, o empoderamento das polícias pelo discurso que prega uma política de extermínio, aumentará ainda mais os números da letalidade policial nos Estados, notadamente nas regiões mais pobres. Acrescente a esse trágico enredo a liberação do uso de armas indiscriminadamente para a população civil.
A alteração de leis como o Estatuto do Desarmamento, da Criança e do Adolescente, Lei das Execuções Penais e a condução das propostas de alteração de códigos em tramitação no Parlamento elevará os patamares de recrudescimento penal a níveis ainda mais desumanos e teratológicos. Progressão de regime, ressocialização, penas alternativas, serão palavras de museu. O saldo será o Brasil próximo de se tornar o país que mais encarcera no mundo e o custo se traduzirá em palavras como dor, injustiça, sofrimento, atentados diários e constantes à dignidade da pessoa presa e da sua família.
Diante da incapacidade de gerir uma nação como o Brasil, se apostará nessas para desviar a atenção da população. Somado a isso, haverá um avanço preocupante das pautas relativas ao corpo da mulher, sua saúde e sua autonomia de decidir. Da mesma forma, no campo dos direitos civis e da livre orientação sobre o amor.
E, infelizmente, não se esgota aqui a projeção de cenários no caso de vitória do candidato que lidera as pesquisas. Ao tentar realizar esse tenebroso exercício de visualizar o que pode ser do futuro, tem-se como ainda mais imperdoável a covardia de lideranças políticas, intelectuais e artistas que simplesmente lavam as mãos, muitas vezes bem distante do próprio país, pensando em 2022, como se ele pudesse existir depois do que se desenha para 2019.
Neste contexto, não há outra saída que não recolocar a utopia no centro da ação política, no sentido de recuperar a esperança de um rearranjo e ruptura num curto prazo, pois se há algo que ainda não nos retiraram é a capacidade de sonhar e projetar um mundo melhor, ainda que isso pareça tão distante dos nossos dias. Ainda que a insanidade do tempo presente cubra de névoas, quase ao ponto de cegar, a nossa própria visão.

PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Poder e fé






 
     É visível o crescimento dos chamados “evangélicos” na política nacional. Vale salientar, que a relação entre religião e política não é de hoje e muito menos algo restrito ao Brasil. Ao longo da história, as questões da fé sempre foram utilizadas como um apêndice para chegar-se ao poder.

     A falta de credibilidade da chamada classe política tem proporcionado a uma parcela do eleitor, adotar como ponto de partida para escolha do candidato, quem corrobora da fé ou pelo menos se diz ter uma agenda que se assemelha aos seus ideais. Há até aqueles que desejam que o Estado seja uma extensão do que ele acredita ser sagrado. Com efeito, o que se deve perguntar, é qual tem sido a contribuição dada pelos que se dizem cristãos  ao país? O fato de escolher candidatos alinhados ao pensamento cristão significa ser suficiente para solução dos problemas nacionais? Se a resposta for sim, então se deve eleger apenas líderes religiosos alinhados ao cristianismo. Acontece que, o fato de alguém se apresentar como seguidor de alguma Igreja, não deve ser ponto inquestionável para receber a adesão a sua candidatura.

     O Brasil vive um verdadeiro comércio da fé, praticamente em cada esquina existe um local onde um grupo se reúne por convicções religiosas e principalmente por questões de identificação “doutrinária”. Em um cenário tão dividido em que vive o Brasil, engana-se quem acredita que não se tem um debate acirrado entre os religiosos. Em momentos assim, a responsabilidade aumenta. Daí, acreditarmos que é possível se ter cautela com o critério da escolha dos representantes nas esferas públicas. Para tanto, é necessário que se tenha cuidado para que os membros das igrejas não venham sofrer do mesmo problema da frente parlamentar evangélica no Congresso Nacional, onde o corporativismo tem ditado à conduta de boa parte dos representantes. Como por exemplo, não utilizar o voto como moeda de troca para beneficiar a si ou a igreja que pertence; entender que o Estado deve ser democrático de direito e não teocrático.

P.S. Este artigo é um resumo da palestra proferida na IBC em Jaboatão dos Guararapes.

 

Hely Ferreira é cientista político.

 

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Le Monde Diplomatique: Violência, subjetividades e projeto de vida e cidadania no Brasil

Mesmo diante das evidências dos limites dessa política, alguns candidatos seguem prometendo mais do mesmo remédio-veneno. Defendem só construir prisões e endurecer as penas; defendem e louvam a violência como resposta à violência, em uma vendeta que parece longe de acabar
Nas salas de aula do ensino médio da rede pública, professores costumam reclamar dos desafios para prender a atenção dos jovens. Numa mistura de ceticismo e fatalismo, muitos alunos preferem abandonar a escola para ganhar dinheiro e se sustentar, como se soubessem dos obstáculos que teriam para escapar do futuro insosso que os espera. É como se as escolas não fossem capazes de despertar em muitos jovens a capacidade de sonhar; não fossem capazes de interagir com múltiplas moralidades e estimular um novo padrão ético pautado na cidadania e na vida como valor público supremo.
Escolas que poderiam servir como portas de entrada da rede de acolhimento, atendimento social e cidadania isolam-se em seus edifícios cada vez mais vilipendiados e ameaçados pelo crime, que parece seduzir principalmente as subjetividades masculinas em formação, oferecendo a possibilidade de uma vida de aventura, insubmissão, consumo, satisfações desenfreada das pulsões e desejos, e luta contra um sistema que oprime e humilha, mesmo que ao preço de morrer jovem ou de perder a liberdade numa prisão lotada.

Como convencer os adolescentes a duvidar das ilusões e promessas da vida no crime? Como despertar nesses jovens sonhos de contribuir para o bem-estar coletivo do mundo em que vivem? Como gerar empatia diante de tantas injustiças e desigualdades? Como fazer frente ao imaginário social que divide a sociedade entre “cidadãos de bem” e “bandidos” e aceita que estes últimos sejam matáveis?
Em vez de despertarem sonhos e vocações, as instituições passaram a agir como se estivessem em conflito aberto contra os jovens pobres. Em 1990, o país tinha 90 mil presos, total que passou para 726 mil em 2016. Mesmo com a escalada vertiginosa de encarceramento, que dependeu também de investimentos crescentes no policiamento ostensivo militarizado nos bairros pobres, a situação degringolou.
A prisão passou a ser uma das poucas políticas públicas universais para os jovens brasileiros pobres e negros, independentemente de ela ser hoje o principal celeiro do crime e da violência no país. Vivemos em um transe, em que se acredita que o veneno que nos sufoca como nação democrática é o remédio para nossos males.
Em 2005, no primeiro levantamento feito pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o país tinha registrado 40.975 homicídios. Em 2017, foram 63.880 casos. Isso para não falar dos mais de 60 mil registros de estupros e das mais de 220 mil ocorrências de violência doméstica contra mulheres. As prisões superlotadas, em vez de controlarem o crime, se tornaram locais de articulação e formação de redes para as lideranças criminais. O rápido fortalecimento e espraiamento das facções dentro e fora dos presídios mudou a cena do crime no Brasil, ampliando o mercado de drogas e de armas em escala inédita.
Mesmo diante das evidências dos limites dessa política, alguns candidatos seguem prometendo mais do mesmo remédio-veneno. Defendem só construir prisões e endurecer as penas; defendem e louvam a violência como resposta à violência, em uma vendeta que parece longe de acabar. Poucos olham para os custos econômicos e sociais dessas opções político-ideológicas.
As incursões cotidianas das polícias militares nos bairros pobres, prendendo muitas vezes usuários de droga ou pequenos vendedores, geram violência desnecessária e excessiva. Um policial é morto todos os dias no país. Em sentido inverso, as polícias brasileiras mataram ao menos 14 pessoas por dia em 2017 e, mesmo que entre estas haja casos legítimos, pouco se divulga acerca das investigações e das razões que motivaram essas mortes. Em vez de controlar o crime e a violência, isso aumenta a sensação de raiva e de impotência daqueles que passam a se enxergar como inimigos.
Se a educação é a maior “arma” da cidadania, a frustração ajuda a sabotar a tarefa dos educadores de abrir portas para o futuro dos adolescentes. A segurança passa a ser vista como tema exclusivo das polícias e vira presa fácil de discursos pautados no medo e na exploração da desesperança e na falta de perspectivas. O mata-mata é estimulado pela covardia política e pela valentia retórica de quem se arvora porta-voz da virtude.
Nas prisões lotadas, as lideranças criminais se aproveitam para engrossar suas fileiras, criando um discurso sedutor. “O crime fortalece o crime” é um dos motes dos grupos criminosos. Como o sistema os enxerga como inimigos, sujeitos a serem exterminados ou trancafiados sem direitos, cabe se organizar para ganhar dinheiro no crime e “bater de frente” com o sistema.
Uma política de segurança precisa desmontar essa máquina de guerra e de encarceramento que ajudou a promover a expansão do crime e fortaleceu as facções. Para isso, as polícias devem agir com estratégia e foco, de forma inteligente, para fragilizar economicamente as tiranias armadas financiadas pelo dinheiro ilegal, que gera violência no tráfico de drogas, nas milícias e nos grupos de extermínio que matam e cobram para oferecer proteção, entre outras atividades.
A vitalidade de democracias modernas depende da capacidade do Estado de preservar o monopólio do uso legítimo da força. A engrenagem de guerra, além de produzir revolta nos jovens perseguidos, vem criando grupos paramilitares que, ao terem carta branca para matar, acabam se voltando contra o Estado em defesa de seus interesses financeiros e corporativos.
Mais do que o esforço brutal de prender em flagrante nos bairros pobres, os alicerces estratégicos e financeiros dessa atividade devem ser fragilizados. Isso depende do compartilhamento de informações entre as instituições policiais e de justiça desde Polícia Militar e Civil, passando pelo Ministério Público, secretarias de administração penitenciária, instituições de investigação econômica e penal, em âmbito estadual e federal.
Quem são os chefes e grandes financiadores, onde o dinheiro é depositado e lavado, de onde vêm as mercadorias ilegais, quais são as conexões com autoridades, onde compram armas. A capacidade de sedução das facções e quadrilhas vai diminuir com a queda do lucro gerado nessas atividades. Para tanto, a batalha urgente a ser travada é aquela para emperrar a engrenagem financeira do crime. Não precisamos de mais guerras para alimentar os senhores da morte, encarcerar e/ou exterminar jovens pobres e negros.
Mais importante, contudo, é a disputa das subjetividades masculinas na transição da adolescência para a vida adulta. O desafio é liderar e apontar caminhos para esses corações e essas mentes. Para construir sonhos e seduzir, as instituições do Estado devem abrir portas, estimular a vontade de compartilhar uma vida comum e solidária. Isso é feito com escola, arte, cultura, esporte, lazer, saúde de qualidade, debates, conversas, incluindo aqueles que um dia se iludiram com as promessas do crime até perceber que estavam sendo enganados. Enganam-se aqueles que acreditam que a autoridade e o poder são exercidos com o uso desmedido da violência. Conseguem liderar e fortalecer numa democracia aqueles que percebem que, na verdade, estão construindo sonhos e disputando o futuro.

*Bruno Paes Manso é doutor em Ciência Política pela USP, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP); Renato Sérgio de Lima é doutor em Sociologia pela USP, professor da FGV-Eaesp e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Samira Bueno é doutora em Administração Pública e Governo pela FGV-Eaesp e diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O que disseram as urnas

                                         
Tarso de Melo 
08                                                                                 

O que disseram as urnas                                                                            
(Arte Andreia Freire/ Revista CULT)

É difícil sair com alguma esperança após a leitura dos resultados das eleições do último domingo. Mesmo com vitórias pontuais e importantes de candidatos de esquerda para Executivo e Legislativo, o saldo geral é terrível: uma enxurrada de candidaturas conservadoras – ou pior que isso – levou a maior parte do eleitorado, colocando nas cadeiras de deputados e senadores algumas das figuras mais bisonhas que surgiram no cenário político brasileiro dos últimos anos, desde o “ator pornô em defesa da família” até a “advogada do impeachment”, passando pelos palhaços de sempre e uma infinidade de candidatos que ostentam credenciais militares e religiosas.
Nada muito novo nesse movimento das urnas, mas o sucesso eleitoral de figuras francamente antidemocráticas e a configuração do segundo turno presidencial deixam claro que estamos diante da escolha entre civilização e barbárie, de um modo bastante angustiante. É como se estivéssemos vivendo a estranha situação de decidir, nas urnas, se vamos continuar tendo uma democracia ou não. Como se fossemos chamados para decidir justamente sobre a destruição do nosso direito de decidir.
Nesse sentido, ao menos pelos votos válidos do primeiro turno, a indicação é de que a maioria dos brasileiros não quer mais – ou não faz tanta questão assim de – uma democracia, insinuando, ao contrário, que a identifica como causa dos problemas todos que nos assolam, nomeadamente a corrupção, a violência, a pobreza, entre outros, daí a decisão de usar seu voto para entregar o poder para candidatos que não escondem seu autoritarismo e a intenção de reduzir as mais diversas liberdades.
O ataque à democracia vem, assim, como uma espécie de salvação, como se dissessem que “a democracia nos trouxe até aqui, então é hora de voltar à ditadura”. No entanto, curiosamente, para fazê-lo por meio das urnas, a candidatura antidemocrática atribui à esquerda a pecha de autoritária, fazendo circular como convincente até mesmo uma “ameaça comunista” que em nada corresponde ao histórico do Partido dos Trabalhadores, muito menos aos governos petistas e à configuração atual da chapa presidencial. Mas o cotejo com a realidade não importa para um debate gelatinoso, que se alimenta do ódio e do medo (“filha do medo, a raiva é mãe da covardia”) e promove uma gritaria tremenda, capaz de abafar qualquer ponderação ou desmentido.
O que as urnas disseram, assim, foi um terrível cala-boca para quem insiste em defender a democracia como pré-condição para qualquer outro debate. Aliás, um cala-boca para quem diz o óbvio: que só há debate na democracia e que só há democracia se houver debate. Muito significativo, aliás, que os eleitores do candidato antidemocrático não tenham dado importância para a forma como ele se negou a participar dos debates com os demais candidatos, ainda antes da facada e depois da alta médica.
Parecem dizer, assim, seus eleitores, que os problemas do país vêm justamente dessa “coisa democrática” de debater, votar, protestar etc., dessa coisa de ter liberdade para se expressar, para viver como bem entende, para votar em quem bem entende. Não é por acaso que o candidato, ciente do perfil majoritário do seu eleitorado, rapidamente se pronunciou contra as urnas, que simbolizam a democracia, e prometeu, sem fazer rodeios, “botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil”.
Não é tão difícil imaginar o que ele quis dizer com “todos os ativismos”. Quem tem por objetivo tomar medidas econômicas que vão tornar ainda mais difícil a vida da maioria da população (não por acaso, estava bem ao seu lado, no pronunciamento após o resultado do primeiro turno, o economista que só abre a boca para bater nos direitos sociais) sabe que, antes de qualquer coisa, precisa tirar as condições de resistência de quem será atingido. Sem dúvida, um governo demolidor dos direitos sociais vai dar vazão a muitos “ativismos” e, portanto, coibi-los é constitutivo de sua proposta.
Essa combinação espúria entre liberdade econômica e autoritarismo político não é novidade alguma para quem conhece um pouco da história do capitalismo. Mas, no caso brasileiro, essas medidas “liberais” e antidemocráticas, que normalmente são barradas pela impopularidade, estão bem perto de serem chanceladas nas urnas. Parece-me que é algo inédito, mesmo na nossa estranha democracia, que tantos eleitores se atraiam por uma proposta de governo que diz, por exemplo, que os brasileiros terão que escolher entre ter emprego e ter direitos. E mais ainda: apoiem um candidato que diz abertamente que não vai tolerar quem não aceite suas propostas.
Até aqui, lamentavelmente, as urnas disseram que esse candidato pode vir a ser o presidente do país. A luta ainda não acabou e temos três semanas para convencer a maioria dos brasileiros de que esse não é o caminho que devemos seguir. O eleitorado brasileiro saiu desse domingo dividido em três grandes fatias na casa dos 40 milhões de votos: a primeira abraçada ao fascismo, a segunda dividida entre os demais candidatos e a terceira composta por votos em branco, nulos e abstenções. É daí que vai sair a decisão sobre nosso destino, não apenas para os próximos quatro anos. É daí que vamos ter que tirar urnas que digam que podemos continuar apostando na democracia e, com ela, construindo um país mais justo, mais livre, mais igual.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)