Num regime democrático, essas nossas despedidas de final de ano sempre se caracterizaram pela procura de respostas às incertezas do ano anterior. As incertezas, como observava o cientista político polonês, Adam Przeworski são inerentes aos regimes democráticos. Se o ator político não a coloca em sua agenda, ele não pode ser definido como um democrata. No simulacro de democracia que experimentamos no país, a incerteza sobre o resultado do jogo democrático não consta do horizonte de nossa elite política e econômica. As consequências dessa "indisposição" são por demais conhecidas, praticamente inviabilizando a existência e consolidação de um regime democrático entre nós. Se, em anos anteriores, nos inquietavam as incertezas que em nada contribuíam para uma convivência, digamos assim, sob as regras de um jogo democrático - mesmo que apenas formal e de baixa intensidade - hoje nos incomodam profundamente as certezas que estão vislumbradas para o ano de 2019, já perfeitamente sinalizadas ainda no fechamento das cortinas de 2018. O blog entra em recesso, retomando suas atividades em fevereiro de 2019.
quinta-feira, 27 de dezembro de 2018
segunda-feira, 24 de dezembro de 2018
sexta-feira, 21 de dezembro de 2018
Ensaio: CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais
José Luiz Gomes
Em 1959, cumpria um
auto-exílio na Bahia o antropólogo português George Agostinho da Silva, que
propôs ao então reitor da Universidade Federal da Bahia, a criação de um Centro
de Estudos Afro-Orientais, com o propósito de aprofundar os estudos sobre a
presença dos escravos africanos naquele Estado. A Bahia já contava com uma galeria
de grandes estudiosos desse tema, como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson
Carneiro, Pierre Verger, Luiz Viana Filho. O que sugeria Goerge Agostinho, na
realidade, é que esses estudos fossem retomados, de preferência de forma mais
sistemática, com um crivo acadêmico. A proposta foi aceita pela reitoria da
UFBA e foi criado o CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais - que ficou
diretamente subordinada àquela reitoria.
Desde então, o CEAO vem
realizando uma série de estudos sobre a presença africana no Brasil, em
particular no Estado da Bahia, tratadas sob vários aspectos, que envolvem
personagens, fluxos migratórios, rituais religiosos, costumes, trocas
linguística, antropologia gastronômica, entre outros. O CEAO tornou-se uma
grande referência quando se discute a presença africana na Bahia. Não à toa, se
diz que outras grandes agências vinculadas ao tema passaram, antes,
inexoravelmente, pelo CEAO. O Museu Afro-Brasileiro é um bom exemplo do que estamos
afirmando. Outro dado que caracteriza bastante o CEAO é o seu perfil plural,
filosoficamente democrático e agregador, características que remontam às suas
origens, de acordo com o professor Waldir de Freitas Oliveira, que esteve entre
o grupo que fundou o CEAO e foi um dos seus primeiros diretores.
Isso se verifica, por
exemplo, quando da ocasião em que era discutida a proposta de criação de um
museu sobre o negro na Bahia. Em princípio – como pensava alguns participantes
da roda de discussão - seria apenas o Museu do Negro. Waldir de Freitas,
naquele momento se contrapôs, afirmando que, para ser justo e coerente com os
princípios norteadores do centro, se vamos criar o Museu do Negro, se faz
necessário, igualmente, que seja criado, também, o Museu do Caboclo. No final,
prevaleceu o bom senso e foi criado o Museu Afro-Brasileiro, cuja concepção
expositiva foi concebida pelo CEAO, com um link com outras esferas acadêmicas
da UFBA, entidades da sociedade civil e o Ministério das Relações Exteriores,
que passou a observar no Mafro um órgão que podia dar suporte às relações do Brasil
com o continente africano.
No contexto desta
pesquisa, muito nos impressionou este vínculo do Mafro com as entidades
representativas da sociedade civil, traduzida, por exemplo, numa exposição
temporária, organizada por uma ONG, sobre a violência contra adolescentes
negros na periferia de Salvador. Nem tanto pelos dados apresentados, tampouco
pelas cenas impactantes, mas, sobretudo, pela capacidade de diálogo e
articulação daquela entidade com a sociedade civil, como podemos observar em
outros eventos logo após essa visita técnica, com o propósito de realização da
pesquisa: “ O Discurso Expositivo Acerca da Raça Negra no Museu do Homem do
Nordeste”, do Programa Institucional P-II, Educação e Relações Étnico-Raciais,
do projeto: A Produção da Fundação Joaquim Nabuco sobre Relações
Étnico-Raciais.
Como a pesquisa
concentra-se numa análise acerca da representação da raça negra no Museu do
Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco, onde, com base nos pressupostos
teóricos de autores como Stuart Hall e Thomaz Tadeu da Silva, observa-se uma
sobreposição do conceito de identidade sobre o conceito de diferença -
traduzidas em fraturas expositivas ou silenciamentos institucionais que não
contribuem para fomentar posturas problematizadoras ou atitudes cidadã e
emancipatórias - procuramos, junto aos pesquisadores do CEAO, Cláudio e
Jefferson Baltar, provocar uma discussão que suscitasse aproximações de
respostas à pergunta dessa pesquisa, ou seja, como essa questão da identidade e
da diferença era posta em outras instituições museológicas congênere, ou seja,
quando está em jogo o conceito expositivo acerca da raça negra.
Embora O CEAO seja um
centro de estudos e pesquisa - que, a rigor, não possui um conceito expositivo
- como já informamos antes, o órgão esteve envolvidos em estudos de concepções
expositivas, inclusive a do Mafro. Aliás, nas palavras do pesquisador Cláudio Pereira,
o CEAO é a mãe de todas as agências que pensaram a cultura afro-brasileira no
Brasil. Sobre essa questão de identidade e diferença, observa ainda Cláudio, à
guiza de exemplo, ele observou um museu baiano que se propôs a ser um centro de
representação do índio. Com um detalhe: índios do Xingu. Nenhuma referência aos
índios da Bahia ou de outras regiões do Nordeste. Com o
exemplo, quis o pesquisador enfatizar os problemas relacionados às fraturas
expositivas ou silenciamentos institucionais são frequentes – por inúmeras
razões – e não se restringem, unicamente, à representação da raça negra nos
museus brasileiros.
Quando se discute, por
exemplo, o estudo dos povos africanos que chegaram ao Brasil – assim como as
manifestações religiosas – de acordo com o pesquisador Jefferson Baltar, existe
um problema de “camadas”. “A explicação é
que eles foram os últimos. Outra causa: os intelectuais daqui se interessaram
pelos mais “puros”. Eles achavam que os mais puros eram os candomblés Jejes e
Nagôs. Vieram também pessoas com prestígio internacional, que contribuíram para
essa “nagolização”.”
Ainda sobre essa questão,
reforçando a opinião de Jefferson Baltar, o pesquisador Cláudio Pereira observa: “Mas é assim no Brasil todo. Eu acho que esse
conceito ao qual o Jefferson se reporta, que é o conceito de pureza, na
realidade, ele balizou todo o desenvolvimento de pesquisas. Só eram estudados
determinados grupos religiosos. Mas hoje, por exemplo, você tem o estudo do
candomblé de caboclo, que não corresponde a nenhuma daquelas nações
tradicionais puras. Os Jejes, por exemplo, que tinham sido abandonados, que
tinham sido vinculados ao nagoísmo.”
Para o pesquisador
Jefferson Baltar, o conceito de diferença vem se impondo sobre o conceito de
identidade – nas pesquisas e possivelmente com possibilidade de reverberação
nos conceitos expositivos de instituições museológicas. Ele cita, inclusive, os
pesquisadores Nicolau Barise e Lísia Castilho, que estão nos Estados Unidos
realizando pesquisas sobre o assunto. “Essa
diferença está cada vez mais forte, do que uma identidade, uma homogeinização
plena, unificadora.”
Como uma de nossas
preocupações é o problema das fraturas expositivas observadas no Museu do Homem
do Nordeste – e, neste sentido, as revoltas negras é uma das mais evidentes –
instigamos os pesquisadores a se pronunciarem acerca da Revolta dos Malês,
ocorrido na Bahia, um dos movimentos revoltosos mais emblemáticos na luta contra
a escravidão. São poucas as referências sobre o assunto – exceto um trabalho de
pesquisa realizado pelo pesquisador João José Reis, também dos quadros do CEAO,
publicado em livro. Na realidade, depois da Revolta, os malês foram
praticamente dizimados. Até referências históricas – como a possibilidade de
Luisa Mahim ter liderado a Revolta dos Malês foi posta em dúvida pelos
pesquisadores do CEAO. Sobre o assunto, observa Jefferson Baltar: “João José Reis, que é um pesquisador sério,
não encontrou um só documento que provasse a existência de Luisa Mahim na
sociedade baiana. Maria Felipa foi outra invenção de Ubiratan Castro.”
O pesquisador Cláudio
Pereira observa que existe estórias inventadas, criação de mitos, que ganham contorno
de verdade junto à população. A Escrava Anastácia, por exemplo, observa
Cláudio, é uma dessas “invenções”,
invenção criada por um padre do Rio de Janeiro, que resolveu criar um museu
depois do incêndio ocorrido na Igreja do Rosário dos Pretos. Encontrou aquela
pintura, no Arquivo Nacional, realizada por um pintor francês, que a retrata
com aquele instrumento de tamponamento dos lábios, até hoje entendido como um
instrumento de tortura. Na realidade, tal instrumento tinha como finalidade
evitar que o escravo comesse terra, adoecesse e representasse uma perda para o
seu dono.
segunda-feira, 17 de dezembro de 2018
Ensaio: Irmandade da Boa Morte
Na cidade de Cachoeira,
na região do Recôncavo Baiano, mais precisamente na Rua 13 de maio, encontra-se
a sede de uma das irmandades mais festejadas do país, a Irmandade da Boa Morte.
O espaço é composto de uma pequena exposição, uma loja de souvenir e uma
capela, onde é possível observar algumas gravuras sacras e a imagem da Nossa
Senhora da Boa Morte, a mesma que participa dos concorridos cortejos que
acontecem em meados do mês de agosto, todos os anos, nas ruas estreitas daquela cidade. Um visitante atento, antes
de buscar as informações sobre a Irmandade nas mais diversas fontes disponíveis
nas redes sociais -algumas delas pouco confiáveis - ali se depara com uma
auto-definição, possivelmente construída num consenso entre as 21 senhoras que
integram a Irmandade: “Organização privativa de mulheres com vínculo
étnicos, religiosos e sociais, também unidas por parentescos consanguíneos ou
de fé, deixando fluir a maneira afro-brasileira de ser.”
Existem muitas narrativas
discursivas em torno da Irmandade da Boa Morte, que vão, de sua origem, ao
sincretismo religioso adotado, assim como de suas relações com a Igreja
Católica. Fontes documentais, no entanto, são escassas, uma vez que a Irmandade
teria iniciado suas atividades em Salvador, pelos idos de 1820, na Igreja da
Barroquinha, que sofreu um incêndio num determinado momento. Dois livros de
apontamentos, apesar de resgatados do incêndio, foram queimados por uma
integrante da Irmandade, acredita-se que, possivelmente, num momento de surto
psicótico. Restou aos historiadores e cientistas sociais tentarem recontar essa
história através de fatos correlatos ou através da história oral, uma fonte
primária das mais importantes para o resgate do legado da Irmandade.
A rigor, a rigor, como
observa o historiador João José Reis, a constituição de irmandades eram muito
comuns no período colonial, sobretudo como uma forma de a Coroa gerar
expedientes administrativos que pudessem suprir determinadas carências de
amplos setores da população nos países colonizados. Um bom exemplo do que
estamos falando talvez seja a Santa Casa de Misericórdia, uma Irmandade, já
naquela época “globalizada”, que desenvolve até hoje uma série de trabalhos
assistenciais, como administração de hospitais e cemitérios. Aqui no Recife,
por exemplo, boa parte dos cemitérios pertencem a essa ordem e o poder público
precisa pagar para utilizá-los. Em Bairros como o de São José, por exemplo, algumas
casas comerciais ali existentes pagam aluguéis à Santa Casa de Misericórdia.
O historiador João José
Reis define as irmandades “Como associações corporativas, no interior das
quais se teciam solidariedades fundadas nas hierarquias sociais. Essas
irmandades representavam a defesa, representação social e mesmo a política dos
interesses dos adeptos.’ No Brasil Colônia, como já afirmamos
anteriormente, proliferaram irmandades, de várias categorias, raças, nações,
dos ricos, dos pobres, dos pretos, dos brancos, raramente de mulheres, como
ocorre com a Irmandade da Boa Morte.
De acordo com o
historiador João José Reis, a devoção da Irmandade da Boa Morte deve ter se
iniciado em 1820, em Salvador, na Igreja da Barroquinha, com a nação Jejes. Em
1850, possivelmente, depois de uma intensa perseguição na Bahia aos cultos
afros - e um crescente processo de intervenções urbanas de orientação
higienística - somada à efervescência política e econômica então representada
pela cidade de Cachoeira, para lá elas se transferiram, estranhamente não
procurando acolhida em nenhuma igreja, mas numa casa residencial. O que não
faltam são templos católicos naquela cidade do Recôncavo Baiano.
Proporcionalmente, arrisco a dizer que se trata de uma das maiores densidades
de templos católicos do Brasil. Vejo aqui um ranço de rebeldia e altivez dessas
senhoras, que pareceu não se importarem muito com as formalidades legais
exigidas para a constituição de uma irmandade, ou seja, uma igreja que as
acolhessem e um estatuto aprovado por uma autoridade eclesiástica.
Ao estabelecermos um link
com a pesquisa ora em curso - que trata de identidade e diferença na
representação da raça negra no Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim
Nabuco - especificamente no que concerne à observação sobre como essa temática
se evidencia na composição e intercecção religiosa da Irmandade da Boa Morte, é
possível compreendermos que a questão da diferença é um dado bem
resolvido em relação a esta irmandade, tanto no que concerne à sua vinculação à
matriz dos povos africanos - Jejes, Ketu e Nagô - tanto no que concerne aos
ritos do Candomblé consorciado aos rituais da Igreja Católica, tudo ao seu
tempo, desde a missa no começo da manhã, às oferendas aos orixás e, claro, à
festa profana, cada vez mais concorrida, quer atrai turistas do Brasil e do
mundo. Segundo confidências de moradores locais, até os evangélicos participam dos rituais dos mais de 80 terreiros ali existentes.
Um dos aspectos mais
relevantes do diálogo mantido com os pesquisadores do CEAO - Centro de Estudos
Afro-Orientais - ainda no curso dessa pesquisa, foi, justamente, o processo de
criação de “mitos”. Sempre que nos debruçamos sobre as origens - ou mesmo
algumas particularidades sobre a Irmandade da Boa Morte - temos uma preocupação
com as narrativas discursivas em torno do assunto - que não são poucas -
notadamente no que concerne à tentativa de aproximar essas narrativas a uma
possível verdade, se é que isso é possível, Michel Foucault. Há, por exemplo, possíveis
evidências da participação da revolucionária Luísa Mahin na constituição dessa
irmandade - como o fato de ela ter fugido de Salvador para Cachoeira num
período próximo às atividades da Irmandade da Boa Morte naquela cidade do
Recôncavo Baiano, o que se presume aí pelos idos de 1850 - depois do massacre
infringido aos escravos de religião muçulmana - que ficou conhecido como A
Revolta dos Malês - uma rebelião contra a escravatura que a própria Luísa Mahin
teria liderado.
Se exista a possibilidade
da construção de um “mito” em torno do envolvimento ou não da revolucionária
Luísa Mahin nas atividades da Irmandade da Boa Morte, o fato concreto é que,
por outro lado, a presença muçulmana nos ritos, como os batuques e indumentária,
são inegáveis. O pesquisador Jefferson Baltar, do CEAO - Centro de Estudos
Afro-Orientais - alertou-nos sobre um estudo conduzido pelo historiador João
José Reis, que não teria encontrado nenhum registro oficial sobre a presença de
Luísa Mahin na Bahia. O que pode não querer dizer muita coisa, uma vez a
“História” é quase sempre escrita pelos vencedores, somado ao fato de que os
Malês foram completamente dizimados depois da Revolta. Exceto, quem sabe, Luísa
Mahin, que procurou refúgio na aprazível e rebelde cidade de Cachoeira, onde,
naquele momento, eram travadas batalhas em diversas frentes, seja contra a
Coroa, seja pela libertação dos escravos, luta com a qual ela tanto se identificava.
Nota do Editor: Este ensaio é parte integrante do relatório de visita técnica realizado pelo autor à Irmandade da Boa Morte, no curso do desenvolvimento da pesquisa institucional mencionada no texto.
Nota do Editor: Este ensaio é parte integrante do relatório de visita técnica realizado pelo autor à Irmandade da Boa Morte, no curso do desenvolvimento da pesquisa institucional mencionada no texto.
Chomsky, o mestre do contra
Marcia Tiburi
O linguista, filósofo e ativista político Noam Chomsky (Foto: Donna Coveney/Divulgação)
Dele, o jornal inglês The Guardian escreveu: “Noam Chomsky está ao lado de Marx, Shakespeare e a Bíblia como uma das dez mais citadas fontes nas ciências humanas— e é o único autor, entre eles, ainda vivo.” O The New York Times, com quem trava batalhas há décadas, chamou-o “o mais importante intelectual vivo.” Mas Noam Avram Chomsky dificilmente é uma unanimidade. Nem quer ser: a polêmica parece parte essencial desse linguista que abraçou o pensamento político e insistiu em teses tão provocativas como a defesa do regime sanguinário de Pol Pot na Camboja e a afirmativa de que os mortos do World Trade Center foram poucos em comparação com os provocados por governos americanos no Terceiro Mundo.
Chomsky nasceu em Filadélfia a 7 de dezembro de 1928. Na Universidade da Pensilvânia estudou linguística, matemática e filosofia.Desde 1955, é professor do Instituto de Tecnologia do Massachusetts ocupando uma cátedra de Língua Moderna e Lingüística. Casou-se com Carol Schatz, professora da Universidade de Harvard, em 1949, e tem dois filhos.
Fez sua reputação inicial na linguística, tendo aprendido alguns dos seus princípios históricos com o pai,um erudito do hebraico. Seus trabalhos na gramática generativa, que derivaram do seu interesse pela lógica moderna e pelos fundamentos da matemática, deram-lhe fama.
Sempre se interessou pela política e suas tendências políticas para o socialismo são resultado do que chama de “a comunidade judaica radical de Nova York”. Desde 1965, tornou-se um dos principais críticos da política externa latino-americana. Seu livro O poder americano e os novos mandarins foi considerado um dos ataques mais substanciais ao envolvimento americano no Vietnã.
Hoje, Chomsky é a voz mais respeitada da esquerda acadêmica e intelectual. Mesmo sendo um radical nada convencional. Produziu um substancial volume de teoria política própria e defende a busca da verdade e do conhecimento nos negócios humanos, de acordo com um conjunto simples e universal de princípios morais. Escreve de jeito claro, fala com o público especializado e com o leitor em geral. Pode-se dizer que é um herdeiro da Nova Esquerda dos anos 60. No seu livro mais famoso da época, O poder americano e os novos mandarins, ele disse que os Estados Unidos precisavam de “uma espécie de desnazificação, insinuando que o país estava caindo no fascismo.
Chomsky é autor de, entre outros, O governo no futuro, Poder e terrorismo, Contendo a democracia e 11 de setembro, Seu último livro publicado no Brasil é Rumo a uma nova guerra fria (Editora Record), uma coletânea de ensaios dos anos 70 4e 80. A filósofa Marcia Tiburi entrevistou o pensador americano para a revista CULT.
CULT -Devido às suas críticas ao terrorismo, tem sido acusado de, ao contrário, fazer a apologia do terror. Acredita que há alguma forma de combater o discurso ideológico conservador, que evita o significado real da crítica ao tentar confundir o que está contido nela?
Noam Chomsky – O único modo de lidar com o fanatismo ideológico é ignorá-lo, e concentrar a atenção em pessoas que têm a mente suficientemente aberta para dar importância a evidências e argumentos. Há dois aspectos no que eu escrevi sobre o terrorismo desde 1981, quando o governo Reagan ocupou o poder declarando que uma “guerra ao terror” seria o foco da política externa dos Estados Unidos, uma “guerra” que foi redeclarada por George Bush em 11 de setembro de 2001. O primeiro é que eu uso a definição oficial de terrorismo dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido. Isso é considerado um escândalo, porque se usamos essas definições, significa diretamente que os Estados Unidos estão liderando um estado terrorista, e o Reino Unido não fica muito atrás. A conclusão, claro, é inaceitável. Como a lógica é impecável, e a base factual não está em dúvida, a reação-padrão dos que fazem a apologia do terror do Ocidente é de pura irracionalidade. Uma das reações é a que você descreveu: fingir que a condenação consistente de todos os tipos de terror é uma apologia para o terror deles contra nós, o único tipo que pode ser discutido dentro do sistema doutrinário. O segundo aspecto do que escrevo sobre o assunto é que, ao discutir o terror deles, eu acompanho de perto as análises dos principais especialistas em terrorismo islâmico do mundo acadêmico, da inteligência dos Estados Unidos e do jornalismo, como Fawaz Gerges, Michael Scheuer e Jason Burke. Isso também é considerado um escândalo, porque eles fazem análises sérias, e é muito mais conveniente fazer poses heróicas diante das câmeras e falar de “fascismo islâmico”, “guerra de civilizações”, etc. Quanto ao discurso ideológico conservador, vale a pena ter em mente que algumas das mais extremas e irracionais defesas da agenda política nesses pontos é produzida por pessoas que se definem como liberais e social-democratas. Independente de sua origem, há alguma maneira de confrontar o discurso ideológico? Sim, há uma maneira muito simples: tentar dizer a verdade. Não arranca aplausos da elite intelectual, mas é assim que ela reage normalmente às revelações sobre a natureza e o exercício do poder. O que importa é o público em geral, que é capaz de se libertar das doutrinas e buscar compreensão.
Em seus livros e entrevistas, de uma forma ou de outra, o senhor defende a necessidade de reflexão, análise e de um pensamento lúcido que seja capaz de entender as razões da existência do terrorismo e a sua possibilidade de retorno, como na entrevista que deu a John Junkerman, em 2002, na qual falou sobre os componentes de legitimidade das atividades terroristas. A ausência de reflexão que mencionou seria similar ao que Hannah Arendt chamou de “vazio de pensamento”, algo que poderia levar-nos à banalidade do mal ? Para o senhor ê, essa é uma idéia contemporânea?
Acredito que existe uma similaridade, mas as idéias são simples e diretas. Não vejo necessidade de ocultá-las em uma retórica arrogante e pretensiosa.
Considera que a humanidade vive atualmente um otimismo inconsequente? O senhor acredita em algum argumento básico que pode fazer com que os desatentos reflitam sobre o estado atual da política internacional e das questões relativas à natureza, como o aquecimento global, sem parecer apologia do pessimismo? É possível refletir sem usar esse termo?
Não apenas acho que é possível, sei que é possível, por experiência e pela história. Todos nós sabemos. Confrontar o poder, a repressão e a injustiça nunca foi fácil, mas muitas tarefas foram realizadas, e o sucesso não foi pequeno. As lutas de muitos anos nos deixaram um legado de liberdade que é raro em padrões históricos comparativos. Podemos optar por usar esse legado para carregar a luta para frente, ou podemos decidir abandonar a esperança, acreditando que o pior vai acontecer. Essa escolha é comum no decorrer da história. Felizmente, muitas pessoas não abandonaram a esperança, e não há razão para fazê-lo hoje.
Considerando que a vida e a morte dos “sem-poder” é decidida soberanamente a cada dia na política interna e externa das nações, o senhor acha que podem escapar da biopolítica em que se tornou a política?
Sim. Novamente, podemos escolher o caminho fácil do desespero, mas é uma escolha, não uma necessidade. Aqueles que fizerem essa escolha não terão a gratidão das pessoas que sofrem hoje ou das futuras gerações.
O senhor acredita que os intelectuais têm um papel específico diante da atual ordem internacional e das questões nacionais e regionais que compreendem o poder?
As pessoas são chamadas de “intelectuais” se possuem um determinado grau de privilégio e decidem usar sua oportunidade na arena pública. É fato que o privilégio traz oportunidade, e é um truísmo moral que a oportunidade traga responsabilidade. Portanto, aqueles que são chamados de “intelectuais” têm responsabilidades claras. Como são eles que escrevem a história, o papel histórico dos intelectuais parece muito atraente: corajosos, honrados, defensores da verdade e da justiça etc. A história real é um pouco diferente. O fundador da moderna teoria das relações internacionais, Hans Morgenthau, lamentou o que chamou de nossa “subserviência conformista aos que estão no poder”, referindo-se às classes intelectuais. A descrição dele tem um mérito considerável – agora e no passado. Há exceções, é claro, e muitas vezes sofreram por sua integridade – o quanto, depende da natureza da sociedade. Mas a responsabilidade permanece.
Na sua opinião, qual seria a base central da conexão entre o capitalismo e o totalitarismo disfarçado de democracia no qual vivemos? Você acredita que a democracia pode ser salva pela economia ?
Os sistemas nos quais vivemos têm muitas falhas, mas estão longe de ser totalitários, embora tenham elementos totalitários. Uma corporação moderna, por exemplo, é tão próxima do ideal totalitário quanto qualquer instituição construída pelo homem. As decisões são tomadas no topo, transferidas para os burocratas (gerentes) em sucessivos níveis inferiores, e finalmente executadas pelos funcionários que apenas seguem ordens. Essas tiranias privadas são em grande parte não-explicadas ao público, além de terem mecanismo regulatórios que são tipicamente fracos, devido ao seu poderoso papel na arena política. É claro, há mais complexidade do que qualquer breve descrição poderia capturar, mas isso se aplicava até para o Partido Comunista na velha União Soviética. No entanto, essas instituições não constituem a sociedade inteira, e o público não precisa aceitar seu poder passivamente. As cortes reconhecem a vulnerabilidade das corporações se as formas de democracia começam a funcionar de maneira mais eficiente. Nos Estados Unidos, as cortes encorajaram os diretores de corporações a agirem ocasionalmente de acordo com o interesse do público, ao invés de ficarem estritamente presas a sua obrigação legal de maximizar o lucro e a quota de mercado. Senão, elas avisam, um “público animado” poderá prestar atenção aos enormes privilégios dados àquelas instituições criadas e alimentadas pelo Estado, e agir para limitá-los ou acabar com eles. De maneira mais geral, as decisões sobre economia, vida política e social, e outras questões, são fortemente influenciadas, de diversas maneiras, pelo poder econômico concentrado. Mas forças populares empenhadas e comprometidas têm muitas oportunidades de modificar políticas e de mudar ou mesmo desmantelar estruturas institucionais que passarem a considerar ilegítimas. E os sistemas de poder estão conscientes disso. Essa é uma das razões da intensa propaganda tentar manter o público passivo e marginalizado. Não há compulsão para sucumbir a essas pressões. Não há como a democracia ser reconstruída e estendida pela economia, mas não há limites discerníveis quanto ao que o empenho popular pode alcançar. O que está faltando é vontade, não oportunidade.
No seu livro sobre o governo no futuro, o senhor apresenta a ideia da natureza humana em um sentido marxista, conectando-a a um pensamento libertário que seria incompatível com o capitalismo. Você acha que o marxismo ainda mantém interpretações-chave para os nossos tempos, como, por exemplo, sobre o conflito de classes?
Isso é um pouco equivocado. É verdade que, no início, Marx contava com conceitos da natureza humana que tinham caráter fortemente libertários, mas ele os extraiu amplamente da cultura intelectual do Iluminismo e do Romantismo de sua época: Rousseau, Von Humboldt e outros. As influências continuam em seu trabalho posterior, mas nas margens. A tradição marxista posterior muitas vezes caiu em interpretações equivocadas e sem sentido da natureza humana como um produto puro da história e da sociedade, e outras formulações insignificantes. Quanto à luta de classes, é claro que ela existe, com muitos componentes. Em uma primeira aproximação, podemos distinguir os donos do capital, os políticos, os doutrinários e os trabalhadores (basicamente aqueles que se alugam para sobreviver, caindo em muitas categorias). Há muitos outros conflitos: por exemplo, capital industrial versus capital financeiro. A vida e as sociedades são assuntos complexos, mesmo em setores sóciopolíticos e econômicos.
Como é viver nos Estados Unidos hoje, tendo tantas críticas ao governo, aos meios de comunicação de massa e a uma sociedade com uma clara inclinação conservadora, que, ao mesmo tempo, parece incapaz de dialogar criticamente sobre a sua posição política em escala planetária?
A realidade é bem diferente. Nos últimos anos, tornou-se possível levantar questões públicas que há pouco tempo eram meramente inteligíveis ao público. As pessoas esquecem. A guerra do Vietnã, por exemplo. A oposição era tão desprezada que poucas pessoas estavam conscientes de que John F. Kennedy tinha começado uma grande guerra contra o Vietnã do Sul em 1962. Quando protestos significativos se desenvolveram, cinco anos depois, o Vietnã do Sul tinha sido destruído e a agressão se espalhado pelo resto da Indochina. Nenhum presidente dos Estados Unidos poderia cometer, hoje, os crimes que Eisenhower, Kennedy e Johnson perpetraram com pouco protesto. Poderia descrever as mudanças a partir de uma experiência pessoal. Nos primeiros dias da guerra, eu dava palestras em igrejas para uma platéia de quatro pessoas. Em outubro de 1965, com centenas de milhares de soldados no Vietnã do Sul e a agressão se estendendo para o norte, em Boston, provavelmente a cidade mais liberal do país, a primeira grande demonstração pública contra a guerra foi atacada por contra-manifestantes, muitos deles estudantes, que foram aplaudidos pela imprensa e pelos senadores liberais. Nada disso é imaginável hoje. Apenas recentemente os poderes e direitos extraordinários dados pelo estado de poder a corporações, instituições centrais da economia interna e internacional, passaram a ser alvo de sérios exames e questionamentos populares. Isso também vale para várias outras dimensões, algumas muito familiares para serem mencionadas: os direitos das mulheres, por exemplo. Existem ilusões em relação à liberdade e à abertura da sociedade e dos meios de comunicação de massa do passado. As ilusões são encorajadas amplamente pelo fato de a dissidência ter sido tão limitada e fragmentada. Houve progresso considerável desde então, ao lado de regressões e contra-ataques que tiveram certo sucesso. No geral, a trajetória me parece positiva.
Há alguma chance de escaparmos do projeto do consumismo global, desde que a política foi substituída pela economia e, como conseqüência, perdemos a noção do sentido político de nossas relações?
Repetindo, podemos optar por sucumbir ao consumismo e a outros tipos de propaganda, ou podemos seguir caminhos próprios e independentes. É mais fácil confrontar o consumismo que as câmaras de tortura, fato às vezes esquecido.
O que significa, hoje, a possibilidade de combater o Império se ele é, essencialmente, fundado em uma base que o senhor chamou de nazificação, o profundo ódio ao outro, que foi promovido a lei e padrão de governo?
Eu não descrevi os projetos imperialistas atuais como nazificação, embora o termo se aplique em casos particulares. Mas nós devemos realmente pensar por que há tamanha sensação de falta de esperança na hora de confrontar o poder. A introdução dessa falta de esperança é o maior feito da propaganda contemporânea, mas não somos forçados a sucumbir. Objetivamente, a resistência e a mudança social construtiva são tarefas consideravelmente mais fáceis do que eram no passado, graças ao legado de liberdade que resultou das lutas de nossos predecessores. Vemos exemplos por toda parte. Veja as conquistas do MST no Brasil. Há meio século , não havia nada parecido. Havia um movimento de massa global pela justiça, ou um Fórum Social Mundial com tantos desdobramentos regionais, mesmo há 20 anos? Veja o mais pobre país da América do Sul, a Bolívia, onde a maioria indígena da população conseguiu um triunfo eleitoral de significância real, superando barreiras que dificilmente existem em sociedades ricas e desenvolvidas. E é fácil continuar. A luta por um mundo mais decente e justo nunca foi fácil e nunca vai ser. Mas as possibilidades são, no mínimo, tão favoráveis quanto eram no passado e, em muitos casos, até maiores.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
Crônica: Um inquérito sobre os escritores brasileiros
Graciliano
Ramos era muito próximo dos escritores Jorge Amado e José Lins do Rego. Também
podemos incluir nesta lista a escritora Raquel de Queiroz, que, a princípio, antes de
conhecê-la pessoalmente, pensou tratar-se de um homem. Onde já se viu uma mulher
escrever um romance como O Quinze?, questionava Graciliano. Com o tempo, essa impressão - ou ciúme de campo - se desfez completamente e ambos se tornariam bons amigos, frequentadores do círculo literário de Maceió. Segundo Graciliano, Jorge Amado era um sujeito
muito inquieto, desses que não param em lugar algum, sempre mexendo nas coisas,
arrumando-as e desarrumando-as novamente, apenas para dar vazão à sua ansiedade. Quando tornou-se editor de Dom Casmurro, teve uma ideia curiosa, a
de entrevistar as mulheres dos escritores, sobre suas intimidades pessoais.
Essa possibilidade, naturalmente, deixou muita gente de orelha em pé, temerosos de que suas intimidades fossem, assim, reveladas por aquele jornal literário.
Aqui na província pernambucana, lendo entrevistas antigas de pessoas que conviveram com poetas e escritores, descobri fatos curiosíssimos como o registro de uma esposa de um poeta conhecido que media sua "fidelidade" pelo tamanho do nó da gravata. Caso houvesse alguma diferença - mensuradas religiosamente ao sair e ao voltar para casa - tratava-se de uma possível prova de que o poeta havia transgredido as normas do casamento. Naqueles tempos, fazer amor de gravata não constava, ainda, das fantasias das chamadas destruidoras de lares. Hoje, isso seria o de menos. Numa dessas brincadeiras, depois de um longo pernoite, o autor da entrevista esconde os sapatos do poeta, para complicar ainda mais a situação. Naquela noite, ele precisou voltar para casa com os nós da gravata em desalinho e sem os sapatos, numa situação bastante comprometedora. Só Deus sabe como ele se arranjou com a esposa ciumenta.
Antes
mesmo que o autor de Angústia se lançasse às famosas entrevistas, aproveita para esmiuçar algumas dessas possíveis intimidades, descritas em Linhas Tortas, um dos seus livros de crônicas. “Ficaremos
sabendo que José Lins do Rego toma café com leite, receia adoecer do coração e
compõe os seus livros em caderninhos de papel pautado, desses que os vendeiros
utilizam para fazer contas; teremos notícia da horrível pensão do major Nunes,
onde Hermes Lima jogava bridge, estudava alemão com Girovate e planejava o
Tobias Barreto; conheceremos os gostos de Armando Fontes, que embirra com
Mussolini, admira Franco, torce no futebol e constrói os seus romances com
pachorra, uma folha hoje outra daqui a dois meses. Como só ouvirão mulheres de
escritores, os solteiros e os viúvos ficarão prejudicados. E como Raquel de
Queiroz não tem mulher, o público ignorará que ela fez O Quinze a lápis,
deitada no soalho, de barriga para baixo.’
No
final, o velho Graça, confidencia o que teria ouvido de uma dessas esposas:
-Está doido? Isso é uma provocação. Se eu fosse dizer o que penso e o que sei
do meu marido, não viveríamos juntos um dia. Vamos esperar que ele morra."
sexta-feira, 14 de dezembro de 2018
Michel Zaidan Filho: Fascismo, Estado de Exceção e Direito de Resistência
Tem havido uma grande controvérsia em relação à caracterização do regime
político brasileiro, depois da última campanha eleitoral: Estado de direito
democrático, Estado formalmente democrático e constitucional, Estado de Exceção,
Estado de Exceção Episódico?
Para muitos, a diferença entre um Estado de Exceção e um Estado
democrático de Direito estaria no funcionamento normal das instituições:
Justiça, Legislativo e Executivo. E a existência do direito do contraditório,
da crítica, da oposição e do debate. Enquanto esses poderes funcionarem, não se
poderia falar com propriedade em Estado de Exceção. O primeiro a questionar a
diferença foi um teórico alemão simpático ao Nazismo, na Alemanha. Carl Schmidt,
em seu livro “Teologia política”.
Afirmava esse filósofo político que todas as categorias da política
seriam extraídas da religião. Que o líder não precisa representar ninguém; ele
decide os outros o seguem (decisionismo). E que a política se resumia à
oposição entre o amigo e o inimigo. Para Schmidt, era irrelevante a fronteira
entre ditadura e democracia. Porque para as classes dominadas, sempre houve uma
ditadura, nunca uma democracia. Assim, para estas, tratava-se de criar
pioneiramente um verdadeiro Estado de Exceção para as classes dominantes. E
isso só podia ser feito com a revolução (Walter Benjamin).
O decisionismo
de Carl Schmidt prosperou no terreno da história das ideias políticas e chegou
ao Brasil, através dos doutrinadores que apoiaram o afastamento da Presidente
Dilma, o chamado golpe parlamentar de 2016.
Aos olhos desses autores (e há um pernambucano entre eles), teríamos uma
modalidade de Estado de Exceção, dentro das regras do jogo democrático, um
fascismo democrático, institucionalizado. Não um golpe de Estado. Um regime
“fascista” com atenuante ou disposições constitucionais refuncionalizadas para
legitimar o Estado autoritário (Antônio Negri). De toda maneira, cabe lembrar
que o fascismo clássico possuía uma base de massas organizada e não massas
difusas e ocasionais. No Brasil, não haveria essa base de massas. Mas um
pensamento nacionalista de direita sempre presente nessas manifestações de rua
da classe média contra LULA, Dilma e o PT. Sem profundidade ideológica, quase
epidérmico. Fascismo difuso e superficial alimentado pelo combate à corrupção e
fortemente alimentado pelas igrejas evangélicas, com a sua pregação a favor de
Deus, da família e da pátria.
De toda maneira,
esse Estado de Exceção episódico ou permanente se manifesta na aberta
criminalização dos movimentos sociais, do movimento sindical, do MST e MTST,
dos movimentos das minorias pela afirmação de suas identidades, pela
criminalização da liberdade de opinião e a liberdade de cátedra e contra o
laicidade do Estado republicano no Brasil. Suas intervenções policiais são
seletivas. Dirigem-se a determinados grupos sociais, numa espécie de
“lombrosianismo social”: negros, índios, homossexuais, lésbicas, transexuais,
comunistas ou esquerdistas etc. É a violência praticada em nome da lei, da moral, dos bons costumes, da fé religiosa
etc. Nas instituições públicas, isso tem o nome de processo
administrativo-disciplinar, administração racional, técnica ou burocrática,
dirigida contra os que discordam dos agentes do poder. Há, como quê, uma
cotidianização da violência. Ela assume o aspecto de normalidade institucional,
de legalidade, não de uma perseguição político-ideológica. Vale lembrar que as
ditaduras no Brasil buscaram legitimar-se através de Constituições promulgadas:
a de 1937, a de 1967, a lei contra o terrorismo, editada a pedido da FIFA. Daí
para as jurisprudências mais absurdas (como a doutrina do domínio de fato, ou
força das convicções ou as prisões de ativistas a partir da presunção dos
crimes que poderiam vir a cometer), além daquelas abertamente ilegais, como
escutas de autoridades, conduções coercitivas, vazamentos intencionais de
trechos de inquéritos etc. foi um passo extremamente curto.
Assim, representa enorme
preocupação a nomeação de um juiz de primeira instância associado a todas essas
práticas. E por outro lado, um ministro da Fazenda que não esconde o seu amor
pelo mercado, pelas privatizações e as empresas multinacionais. Grave também é
a presença de pastores e teólogos em pastas de conteúdo altamente polêmicos,
como educação e direitos humanos. Ou o privilegiamento de igrejas e
manifestações religiosas, em detrimento de outras. Sobre ser profundamente inconstitucional,
antidemocrática e discriminatória. Pode estimular crimes de ódio contra outros
credos e religiões. A perspectiva habermasiana do “patriotismo constitucional”,
em sociedades multiculturais ou muiterreligiosas resta prejudicada e voltamos às práticas
nocivas da segregação étnica e cultural. Preocupante é também a situação dos
direitos civis das minorias sociais, pendentes de uma avaliação religiosa das
autoridades judiciárias e policiais. A liberdade de pensamento e o pluralismo
de orientações pode sofrer uma dura restrição nas escolas públicas, caso seja
adotado o roteiro apresentado pelo
futuro ministro da Educação. A ideia de se criar “conselhos de ética” nessas
instituições que possam julgar a atividade docente e sua liberdade de cátedra é
um atentado à cultura, ao ensino, a pesquisa e a extensão. Não cabe à
autoridade educacional prejulgar o conteúdo das disciplinas e muito menos das
aulas ministradas. Substituir o legado do pensamento moderno e iluminista por
doutrinas fundamentalistas de índole religiosa é uma enorme ameaça à formação
esclarecida de futuros cidadãos e cidadãs brasileiras.
Daí porque a
discussão, nos dias que correm, sobre o direito de resistência à tirania ganha
uma grande atualidade. Ela não é nova; vem dos clássicos do liberalismo
político e dos contratualistas: Hobbes, Locke, Stuart Mill. Quando o soberano
quebra as cláusulas do contrato social e se transforma num ditador, é legitimo
o direito de resistir. O Estado é derivado. A Sociedade Civil é originária. O
direito à resistência foi atualizado por Tourau, Boaventura Santos e encontrou
sua mais lídima expressão nos movimentos antiglobalização, nas passeatas de rua
de 2013 e hoje, diante de um regime que
tem todas as características daquilo que se chama “fascismo democrático”, ou”
fascismo atenuado” ou ainda “Estado de Exceção Episódico”, na formulação da
professora de Direito, Liana Cirne Lins. Disse Boaventura Santos, estamos
diante de um direito democrático à desobediência. É preciso utilizá-lo com
ousadia e sabedoria quando as liberdades públicas se sentem ameaçadas.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia
segunda-feira, 10 de dezembro de 2018
Primeiras observações sobre o desastre brasileiro
Antonio Negri
O filósofo marxista Antonio Negri (Divulgação)
O caminho democrático para o fascismo
Tornou-se uma observação precipitada que todo poder seja “poder de exceção”. Pena que esta afirmação não explica a diferença entre um regime fascista e um regime constitucional. Não há nenhuma diferença, replica aquele que afirma a normalidade da “exceção”. Que vá então explicar aos cidadãos brasileiros que aguardam a posse de Bolsonaro e ouvirá a resposta: “Tu estás louco!”
Na tradição do marxismo revolucionário, a analogia entre o regime democrático e o regime fascista é rejeitada. Quando nos anos 20 a Terceira Internacional impôs esta semelhança (que logo se tornou uma identidade) sabemos como terminou. Com igual atenção e distinção, parece-me que devemos olhar para o conceito de poder constituinte: ele não pode ser confundido ou mesmo misturado com a “exceção política”, com seu exercício, como sustentam os cultivadores da “autonomia do político” nas pegadas de Carl Schmitt – para quem o poder constituinte seria apenas uma figura da exceção.
A respeito do que aconteceu no Brasil, para retornar a nós, deve-se notar, em primeiro lugar, o fato de que o fascismo chegou não através de um “golpe de Estado” clássico (desde fora das instituições democráticas), através da “exceção” (como mais ou menos aconteceu com os fascismos latino-americanos até Pinochet), mas desde dentro do processo constitucional; não através de uma ruptura com a ordem constitucional, mas através da construção constitucional de uma nova legitimidade. Em segundo lugar, estou convencido de que o governo fascista brasileiro não exercerá o poder através de uma mutação externa e violenta do regime constitucional, mas sim através de uma atenuação suave (exceto contra a população negra) das liberdades civis e da governance existente na Constituição. Ou seja, através da colocação em movimento de um tipo de “poder constituinte”, dentro da governance – funcional, absorvido nela e capaz de determinar profundas modificações no tecido constitucional. Este caminho perverso da democracia, agora afirmado no Brasil, mas já experimentado no todo ou em parte noutras situações e noutros países (Turquia, Egito, por exemplo, sem falar nos antigos países socialistas) deve ser criticado – imaginando o que significa hoje “democracia representativa”, mas também “democracia” em geral, e portanto como, de que formas, e com quais objetivos se devem mover aqueles que se propõem construir e defender uma Constituição que respeita a liberdade, construa igualdade e forneça (proponha) suas condições – e, finalmente, se ainda é possível fazer estas perguntas ou se deve reciclar o tecido mesmo do questionamento.
Golpe de Estado institucional
“Golpe de Estado institucional” e/ou “Golpe de Estado democrático”: assim se pode chamar o ocorrido no Brasil, e agora inseri-lo numa nova categoria acadêmica do direito constitucional. A derrubada do poder legitimamente existente e sua substituição por um poder não legitimado pelo sufrágio universal mas por um órgão de Estado, o Congresso Nacional, foi realizado por detrás de uma máscara constitucional. Começou com o impeachment da Presidente e continuou com a sua substituição, simplesmente da parte do Congresso Nacional, excluindo uma nova eleição geral, pouco depois de seu mandato presidencial ter sido renovado. O “Golpe de Estado” continuou (o que não é irrelevante) com a aprovação imediata pelo Congresso Nacional de algumas leis de caráter neoliberal (entre as quais, a que proibiu o aumento de gastos públicos por um longo período) que revogaram, imediata e prodigamente, o paradigma “material” da Constituição vigente. A ligação entre o impeachment de Dilma por razões político-morais (corrupção) e a liquidação do seu projeto político de governo através da afirmação constitucional de um princípio neoliberal revela que a sua defenestração teve uma qualificação político-partidária, ou seja, característica de um “golpe de Estado” – sendo seguido por uma modificação radical da direção política do governo ou, como se pode dizer, da “constituição material”. Foi assim liberado o caminho para a construção de suportes que, mesmo no caso de novas eleições, impediriam que uma diversa maioria presidencial (que as pesquisas atribuíam a Lula) pudesse restabelecer (porque agora constitucionalmente vetada) propostas não-liberais de redistribuição de renda ou, em qualquer caso, dispositivos alternativos à legitimidade econômica recém determinada. Em apoio à continuação de uma política liberal e, em seguida, na linha de uma renovação das políticas estatais fora (e de qualquer maneira antes) da legitimidade popular, a magistratura move-se através da condenação e da prisão de Lula, e posteriormente, através da sua exclusão do “voto passivo” (ou seja, a possibilidade de ser votado). Não surpreendentemente, este judiciário foi cooptado imediatamente pelo governo Bolsonaro. Por fim, as eleições ocorreram sob ameaça – mais uma vez não externa ao processo institucional – de uma intervenção militar, caso a esquerda tivesse triunfado nas eleições. Neste ponto, o novo Presidente, um “fascista do século 21”, foi eleito, restaurando a legitimidade democrática do poder retrospectivamente. Uma restauração muito duvidosa, em todo caso eficaz. No governo que tomará posse no próximo ano, além do Juiz da Lava-Jato (operação que, como foi expressamente declarado pelo Juiz Greco, nada tem a ver com as “mãos-limpas”), indicado para liderar as finanças e a economia um “Chicago Boy”, no estrangeiro ligado à “alt-right” e às políticas de Trump, enquanto ao Exército serão atribuídas às funções do Ministro do Interior, de um Ministro de Ordem.
Esse perverso caminho, da democracia ao fascismo, linear, organizado não por movimentos externos, mas pelas mesmas instituições do poder constitucional, pela conformação dos órgãos de controle (da magistratura em particular) às linhas da extrema direita, é o desvelamento de um projeto coerente que atravessa as instituições, destruindo todos os elos e incidindo, sobre novas conformações, nas figuras formais da Constituição e na materialidade de sua direção política garantida pelo processo de legitimidade eleitoral, e assim dissipando qualquer caráter ético do princípio democrático: tudo isso impõe, quando e se a indignação diminuir, uma reflexão sobre o tema da democracia.
Mas isto não é suficiente. O fascio-populismo de Trump-Bolsonaro comete mais um estupro da democracia. A “democracia direta” é aqui assumida, de maneira massificada e mistificada, por estas lideranças fascistas, e subvertida pelo “modo de governo” na sua “figura de legitimidade”. Os tweets de Trump representam esta derrubada. As mídias social e institucional agora se debruçam voluntariamente sobre esta função de legitimação. Pode-se também adicionar (e a literatura sobre este assunto é vasta) que a produzem – ou pelo menos tornam isso possível. Quando a indignação tiver diminuído deveremos ainda colocar o problema da “liberdade de expressão” atrelada ao poder. É o primeiro dos problemas que um movimento de resistência, sob a bandeira de “livros, e não armas” (como agora começa a se dizer no Brasil) deverá se pôr, porque antes de tudo ele deverá libertar a “liberdade de expressão”. Certo que a contradição entre liberdade de expressão (protegida constitucionalmente) e o dinheiro (=propriedade, =corrupção, =uso criminoso de informações falsas pela grande mídia) parece insolúvel.
Um problema geral
Nos EUA, um processo semelhante ao brasileiro está em andamento. A solidez democrática e o valor da Constituição daquele país impedem, por enquanto, que o processo de transformação tenha os aspectos perversos e por vezes grotescos que se passam no Brasil. Nos EUA, a presença das forças de oposição ainda pode bloquear (e, em todo caso, tornar incerta) a realização de uma tendência como a brasileira. Isso não significa, todavia, que um processo de consolidação reacionária esteja em curso. Detecta-se o pesado deslocamento do Partido Republicano para o “núcleo duro” trumpiano (e, por trás disso, a supremacia alt-right), a direção de vinte anos da Suprema Corte em posições ultraconservadoras, a realização de colossais operações financeiras para controle midiático do voto etc.. De uma maneira muito mais frágil, mas com acelerações por vezes velozes, processos análogos também estão ocorrendo na Itália. Contudo, o horizonte populista se alarga na Europa e na América latina. Esta extensão aprofunda dramaticamente o problema acima colocado: como o fascismo se estabelece nas/através das instituições democráticas? E, em segundo lugar, o que é esta insurgência fascistizante?
Vamos tentar, senão dar uma resposta, introduzir essa questão de forma mais ampla, como segue. Por enquanto, contentemo-nos em definir este estranho fascismo que aqui está em profunda conjugação com o neoliberalismo. Melhor, vamos tentar definir as dificuldades de realização que, parece-nos, uma nova experiência radical das teorias de Chicago deve encontrar em seu desenvolvimento. As atuais conversões fascistizantes da classe dirigente capitalista (não toda, no momento), de fato, parecem determinadas pela necessidade de apoiar com mais força, por todos os meios estatais, compulsivamente, um desenvolvimento mais neoliberal em profunda crise. É importante sublinhar esta deformidade usual: a força do autoritarismo é chamada em apoio à crise do liberalismo. Agora, nesta perspectiva, o fascismo parece apresentar-se (embora não somente) como a face dura do neoliberalismo, como pesada recuperação do soberanismo, como inversão do slogan “primeiro o mercado, depois o Estado”, em várias formas, nos pontos de máxima dificuldade do desenvolvimento ou de quebra de seus dispositivos, ou melhor, em face das fortes resistências que emirjam.
É um reflexo reacionário que caracteriza este fascismo. Isso o distingue dos fascismos dos anos 20-30 em que os reacionários certamente estiveram no campo político, enquanto no terreno econômico eles poderiam ser relativamente progressistas, pseudo-keynesianos. Provavelmente esta reação é, portanto, um sintoma de fraqueza, é efeito de mais resposta que de um ataque. Isto é provado pelo fato de que estas demandas fascistas, ao invés de técnicas totalitárias, parecem tentar utilizar mecanismos flexíveis para a transformação autoritária do Estado, calibrando a governo como uma espécie de novo perverso “poder constituinte” … Mas estas são previsões que apenas a intensidade da luta de classes por vir poderá confirmar ou negar.
Resta ainda perguntar: o que é esse fascismo do século 21? Aquele do 20 queria destruir os soviéticos, na Rússia e em todo o mundo onde se encontrassem. Hoje, onde estão os “bolcheviques”? Eles são obviamente fantasiados. Mas o esforço do neoliberalismo para se consolidar e as crises políticas que se somam às econômicas suscitam o medo dos “bolcheviques”. Essa insistência é surpreendente.
Para tentar racionalizá-lo, vamos avançar uma hipótese que nos permita qualificar estas tendências fascistas numa época na qual o desenvolvimento do modo de produção colocou a multidão no centro da luta de classes. Ora, a multidão é um conjunto de singularidades, ligadas pela cooperação social. O elemento de cooperação é para a multidão (especialmente para as metrópoles) o ponto central de sua existência de classe. Em termos produtivos, esse poder cooperativo leva a multidão em direção ao comum. Quando, todavia, intervêm fortes tensões que agem sobre as singularidades (que compõe a multidão), em termos, por exemplo, de insegurança econômica ou ambiental e de medo do futuro, então a cooperação multitudinária pode implodir em termos de defesa da identidade. O fascismo do século 21 parece apoiar-se nesses incidentes da natureza cooperativa da multidão.
Fascismo e neoliberalismo
Se, na época de Platão, as constituições democráticas eram inadequadas para bloquear a crise da democracia, na situação atual favorecem a ascensão do fascismo, gerando corrupção.
As modernas constituições democráticas foram organizadas num confronto dinâmico de interesses eventualmente fundidos à direita e à esquerda, entorno de um modelo de inimizade e com padrão de solução pacífica para isto, na hipótese de uma posição equilibrada dos interesses conflitantes. Hoje, a globalização tem empurrado para a homogeneização da governance ao nível global (pode-se dizer para sua homologação), requerendo para governar compor a relação entre constituição formal e material através da inserção naquela de regras desenvolvidas pelas relações monetárias multinacionais das empresas no mercado global – e, portanto, eliminando substancialmente o confronto/conflito, interno à constituição mesma. O “extremismo de centro”, o “groko” (“Große Koalition”, grande coalizão – N.T.) foram neste sentido momentos fundamentais na recomposição, através da governance, de perfis constitucionais agora expandidos globalmente. Mas esta fase acabou e a acentuação dos conflitos pela globalização leva as formas de governance demoliberais a uma crise profunda. Assim seguem os experimentos de ruptura: America first, Brexit e agora Brazil first, Italia first …
É aqui que a governance (ou seja, aquele conjunto de dispositivos que configurou unitariamente o horizonte de governo nacional e global) está cada vez mais sujeita a incidentes constitucionais que tem, acima de tudo, o efeito de obliterar aqueles aspectos de “democracia progressista” que as Constituições herdaram após a Segunda Guerra mundial e o fim da Guerra Fria. De tal modo, transformaram-se as faces dos Estados apesar da democracia. A longa crise de 2007 piorou as coisas. Governar a crise sempre significou que a crise impôs suas exigências à democracia. Hoje, medimos totalmente as consequências desses incidentes. Cada vez mais, desconsideram-se as dinâmicas dialéticas constitucionais, as oposições integradas à governance, o keynesianismo destruído com o consentimento dos keynesianos. Qualquer operação de “exceção” é dada dentro da governance democrática, quase como articulações ocultas de “poder constituinte”, ao invés de opções e mecanismos controláveis. Quero dizer que a transformação que esses movimentos sugerem é agora comandada por um poder destrutivo da democracia.
Com a crise e o enfraquecimento do poder americano que até então determinava um certo equilíbrio global, mesmo no seu campo de domínio, esses processos se aceleraram, trazendo caos para todos os lugares. O novo fascismo se instala dentro deste caos. Armando-se do neoliberalismo como projeto para dominá-lo, encontrará condições duráveis de desenvolvimento? É muito difícil. Sob estas condições, o neoliberalismo encontra-se numa situação desesperada, se quiser reconstruir o equilíbrio. Tendo deslocado ou rejeitado o antigo equilíbrio constitucional democrático, está agora exposto ao vazio. Ele precisa de algo novo, que responda aos novos desafios, que encontra em formas de autoritarismo, de fascismo renovado… Para sobreviver a passagem no vazio, deve recorrer a instrumentos midiáticos, ideológicos, e de difamar e destruir as forças que se opuserem (por vezes timidamente, ou até mesmo antecipando suas direções destrutivas – essa crise é longa e profunda e as responsabilidades ainda precisam ser definidas). Eram os keynesianos forças socialdemocratas. Agora, para os neoliberais que constroem as novas fórmulas de governo fascistizantes no Brasil, são chamados de “comunistas” e “bolivarianos”, apoiadores do caos… Nos EUA, são reconhecidos como bobos urbanos que subvertem a identidade nacional. Assim, este fascismo fundado no vácuo ideológico qualifica-se como um falsificador da memória e restaurador reacionário de identidades passadas. Que seja um passado escravagista como nos EUA, importa; que seja um presente escravocrata, como no Brasil, isto preocupa ainda mais.
Não tenha medo
Meus amigos brasileiros estão perguntando como a vitória de Bolsonaro foi possível, porque seus concidadãos votando tão maciçamente nele. A resposta é simples: eles não votaram no fascismo, ao invés disso, votaram pelo fim da corrupção e da insegurança, nessa conjuntura crítica para a sua vida que, de fato, uma parte da população imputava ao PT. Não é difícil pensar que a motivação racista e a defesa da família (vide a absurda polêmica sobre gênero) construíram o coágulo fascista deste desconforto. É fácil profecia pensar que, como já dissemos, Bolsonaro não conseguirá instituir seu governo como regime. A ele se soma, ao obstáculo já mencionado antes do casamento do fascismo/liberalismo, uma dificuldade específica: necessitará, de fato (frente aos impedimentos táticos que a dispersão de votos cria no Congresso), continuar a comprar a maioria parlamentar evangélica ou de outros mercenários; o preço a ser pago aos ruralistas pelo apoio eleitoral, pela sustentação ao governo e na negociação dos limites ecológicos para a ampliação de seus interesses, será ainda mais salgado; as propostas extremas de privatização do patrimônio público encontrarão a hostilidade do exército em nome da nação etc.. Não será para ele fácil avançar. E também a consolidação desta vitória será difícil, muito difícil, e colidirá contraditoriamente com as mesmas constantes econômicas brasileiras (aberta aos mercados internacionais de alimentos e energia, fechada aos limites ecológicos de enorme importância, instada a uma forte dinâmica produtiva a partir da ampliação do mercado de trabalho). Estamos – parece-nos – sobre uma margem a qual as promessas da vitória de Bolsonaro colidem com as intenções de seus partidários neoliberais. Como poderão se equilibrar? Não estamos nos anos 30, quando o fascismo se organizava sob uma planificação em favor da grande indústria (de guerra) e do grande capital bancário – com excedente, todavia, de vantagens sociais imediatas para o proletariado.
O que faz tremer, depois da vitória de Bolsonaro, é prever os desastres que este governo produzirá, incapaz de desenvolver um plano jurídico que se afaste de uma frente de ataque contra os pobres e negros, em geral de uma proposta antissocial – como mostra seu programa ultraliberal. Militarista, homofóbico, machista, premido ao ódio por uma população agora majoritariamente negra (estamos bem longe dos 54% ainda brancos do censo de 2000), Bolsonaro será exposto ao impulso demográfico não-branco que aumenta incessantemente. O desastre que o aguarda é enorme, mas as consequências serão longas nos próximos anos.
Que fazer agora? É necessário parar de chorar, é preciso ir ao trabalho, confortado pela consciência que o quadro fascista ainda é fraco. Em que sentido, com que espírito começar a trabalhar? Já se medem as provocações e se multiplicarão no futuro. Nas universidades aparecem esquadrões que provocam, grupos de direita trabalham para construir listas de “comunistas”, os programas escolares começam a ser preenchidos com remissões a um passado escravagista etc. É necessário não ter medo. Não ter medo torna-se o elemento central para a construção de uma resistência.
O fascismo se apoia no medo. Aqui isso suscita e cultiva o medo do negro e do comunista. Mas este casal é símbolo da vida e sua luta é um sinal de libertação. Os partidos de esquerda, começando pelo irrecuperável PT, estão em crise. É na relação e na recomposição política dos negros e comunistas que uma esquerda radicalmente antifascista pode ser construída. Esta passagem é essencial. Não há antifascismo no Brasil sem uma recomposição política dos comunistas brancos e da população negra. Desnecessário acrescentar que desta recomposição os movimentos feministas já são a faísca de hoje. Estão são os movimentos majoritários e a maioria não tem medo.
20 de novembro de 2018
Tradução de Augusto Jobim do Amaral, professor dos Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
domingo, 9 de dezembro de 2018
Michel Zaidan Filho: O fim do presidencialismo de coalizão
A eleição do senhor Jair Bolsonaro, nas controvertidas circunstancias em
que se deu, após o afastamento da presidente Dilma e o malfadado interregno do senhor Michel
Temer, só confirma mais uma
vez a exaustão do chamado “presidencialismo de coalizão” no Brasil. Como
se sabe, o nosso messianismo legal copiou as instituições políticas
norteamercianas, no início da República brasileira. E entre estas, o instituto
do Presidencialismo, sem se dar conta da multiplicidade de partidos e legendas
existentes no nosso país. Partidos de frágeis bases nacionais, mais parecidos
com federações de grupos políticos locais. A tradição messiânica da política brasileira
se expressou com perfeição no Presidencialismo semi-imperial, de absoluto
desprezo pelo sistema partidário e, mais ainda, pelo Poder Legislativo. Esta tendência
histórica levou ao menosprezo pelo eleitor das eleições proporcionais e a uma
sobrevalorização do Poder Executivo, fazendo muitas vezes as eleições majoritárias assumirem o caráter de um
plebiscito.
Em todas as eleições do mundo, em democracias representativas como a
nossa, os partidos de centro e centroesquerda sempre desempenharam o papel
fundamental no equilíbrio do sistema político, garantindo sua governabilidade
ou evitando guinadas radicais seja em direção à direita ou à esquerda. A essa
afirmativa, poder-se-ia juntar a famosa tese de Aristóteles de que são as
classes médias o que salvam a democracia. Infelizmente, essas constatações
foram fortemente desmentidas no ambiente cultural e político do Brasil.
Primeiro, pela debilidade do nosso liberalismo político, definido por um
político do DEM como a cultura do Bombril, liberalismo de mil e uma utilidades,
usado e interpretado ao sabor das conveniências dos partidos. Segundo, em razão
do conservadorismo das classes médias brasileiras (eterna massa de manobra dos
regimes golpistas e autoritários). Em suma, um regime Presidencialista sujeito
permanentemente a “chuvas e trovoadas”, dependendo dramaticamente do arremedo
de legendas partidárias representadas no Congresso. É a isso que se denomina de
“governabilidade”. O que faria depender do apoio de maiorias eventuais a
estabilidade do regime democrático.
Some-se a esse quadro, o complicador de uma mudança cultural na
população brasileira, sobretudo de baixa renda. Nação de origem católica, até
outro dia se dizia que a ética puritana do trabalho, o individualismo
anglo-saxão (self made man) e a realização através do acumulo e a posse de bens
materiais não faziam parte da mentalidade da maioria dos brasileiros, em razão
da influencia religiosa ibérica. Mas não contaram os analistas com o crescimento
paulatino dos cultos evangélicos de orientação pentecostal e neopentecostal,
numa versão muito modificada do modelo
original americano. Igrejas que ajudaram a difundir uma “teologia da
prosperidade”, que coloca a culpa da pobreza e da inferioridade social no
próprio indivíduo, não nas condições sociais, e a defender a prosperidade
material como “presente de Deus”. Não se conhecia no país essa modalidade de
individualismo e afastamento de uma hermenêutica social como foi, por exemplo,
a “teologia da libertação” e suas comunidades eclesiais de base. Diga-se também
que foi adotado um modelo de comunicação social de massas vitorioso e, mais
importante, um projeto político para o país.
O resultado não poderia ser outro: na esteira do ressentimento da
democracia provocado pela “operação lava-jato”, que aliás resultaram em 30
milhões de votos nulos e brancos e da abstenção eleitoral, as instituições de
nosso Presidencialismo de coalizão chegaram profundamente desgastadas, ao fim
da campanha eleitoral.Na ausência de qualquer reforma política digna deste nome
e legitimada pela sociedade, a nossa
democracia de baixa intensidade está em frangalhos. A extrema
fragmentação da representação parlamentar, a pouca representatividade dos
partidos políticos (dominados por lobbies” de todo tipo), a politização do
judiciário e um Poder Executivo que mais do que nunca precisa e depende da mixórdia
dos 35 partidos, sob pena de não governar ou ser afastado do poder. Esta a
crise do modelo político brasileira.
Mais grave, contudo, é a imensa crise social que acompanha a crise
político-institucional. O fundamentalismo de mercado que quer privatizar tudo,
mercadorizar os bem sociais, entregar os pobres e miseráveis à própria sorte,
precarizar de uma vez o trabalho, atacar a magistratura do trabalho, perseguir
as entidades sindicais e os movimentos
sociais, através de uma interpretação canhestra da lei que criminaliza o
protesto social. Até ontem, tínhamos um grave problema com a engenharia
institucional do país. Hoje, estamos à beira de um imenso cataclismo social.
Quando reagiram os brasileiros diante desse assalto aos seus direitos e expectativa de direitos?
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.
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