José Luiz Gomes
Em 1959, cumpria um
auto-exílio na Bahia o antropólogo português George Agostinho da Silva, que
propôs ao então reitor da Universidade Federal da Bahia, a criação de um Centro
de Estudos Afro-Orientais, com o propósito de aprofundar os estudos sobre a
presença dos escravos africanos naquele Estado. A Bahia já contava com uma galeria
de grandes estudiosos desse tema, como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson
Carneiro, Pierre Verger, Luiz Viana Filho. O que sugeria Goerge Agostinho, na
realidade, é que esses estudos fossem retomados, de preferência de forma mais
sistemática, com um crivo acadêmico. A proposta foi aceita pela reitoria da
UFBA e foi criado o CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais - que ficou
diretamente subordinada àquela reitoria.
Desde então, o CEAO vem
realizando uma série de estudos sobre a presença africana no Brasil, em
particular no Estado da Bahia, tratadas sob vários aspectos, que envolvem
personagens, fluxos migratórios, rituais religiosos, costumes, trocas
linguística, antropologia gastronômica, entre outros. O CEAO tornou-se uma
grande referência quando se discute a presença africana na Bahia. Não à toa, se
diz que outras grandes agências vinculadas ao tema passaram, antes,
inexoravelmente, pelo CEAO. O Museu Afro-Brasileiro é um bom exemplo do que estamos
afirmando. Outro dado que caracteriza bastante o CEAO é o seu perfil plural,
filosoficamente democrático e agregador, características que remontam às suas
origens, de acordo com o professor Waldir de Freitas Oliveira, que esteve entre
o grupo que fundou o CEAO e foi um dos seus primeiros diretores.
Isso se verifica, por
exemplo, quando da ocasião em que era discutida a proposta de criação de um
museu sobre o negro na Bahia. Em princípio – como pensava alguns participantes
da roda de discussão - seria apenas o Museu do Negro. Waldir de Freitas,
naquele momento se contrapôs, afirmando que, para ser justo e coerente com os
princípios norteadores do centro, se vamos criar o Museu do Negro, se faz
necessário, igualmente, que seja criado, também, o Museu do Caboclo. No final,
prevaleceu o bom senso e foi criado o Museu Afro-Brasileiro, cuja concepção
expositiva foi concebida pelo CEAO, com um link com outras esferas acadêmicas
da UFBA, entidades da sociedade civil e o Ministério das Relações Exteriores,
que passou a observar no Mafro um órgão que podia dar suporte às relações do Brasil
com o continente africano.
No contexto desta
pesquisa, muito nos impressionou este vínculo do Mafro com as entidades
representativas da sociedade civil, traduzida, por exemplo, numa exposição
temporária, organizada por uma ONG, sobre a violência contra adolescentes
negros na periferia de Salvador. Nem tanto pelos dados apresentados, tampouco
pelas cenas impactantes, mas, sobretudo, pela capacidade de diálogo e
articulação daquela entidade com a sociedade civil, como podemos observar em
outros eventos logo após essa visita técnica, com o propósito de realização da
pesquisa: “ O Discurso Expositivo Acerca da Raça Negra no Museu do Homem do
Nordeste”, do Programa Institucional P-II, Educação e Relações Étnico-Raciais,
do projeto: A Produção da Fundação Joaquim Nabuco sobre Relações
Étnico-Raciais.
Como a pesquisa
concentra-se numa análise acerca da representação da raça negra no Museu do
Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco, onde, com base nos pressupostos
teóricos de autores como Stuart Hall e Thomaz Tadeu da Silva, observa-se uma
sobreposição do conceito de identidade sobre o conceito de diferença -
traduzidas em fraturas expositivas ou silenciamentos institucionais que não
contribuem para fomentar posturas problematizadoras ou atitudes cidadã e
emancipatórias - procuramos, junto aos pesquisadores do CEAO, Cláudio e
Jefferson Baltar, provocar uma discussão que suscitasse aproximações de
respostas à pergunta dessa pesquisa, ou seja, como essa questão da identidade e
da diferença era posta em outras instituições museológicas congênere, ou seja,
quando está em jogo o conceito expositivo acerca da raça negra.
Embora O CEAO seja um
centro de estudos e pesquisa - que, a rigor, não possui um conceito expositivo
- como já informamos antes, o órgão esteve envolvidos em estudos de concepções
expositivas, inclusive a do Mafro. Aliás, nas palavras do pesquisador Cláudio Pereira,
o CEAO é a mãe de todas as agências que pensaram a cultura afro-brasileira no
Brasil. Sobre essa questão de identidade e diferença, observa ainda Cláudio, à
guiza de exemplo, ele observou um museu baiano que se propôs a ser um centro de
representação do índio. Com um detalhe: índios do Xingu. Nenhuma referência aos
índios da Bahia ou de outras regiões do Nordeste. Com o
exemplo, quis o pesquisador enfatizar os problemas relacionados às fraturas
expositivas ou silenciamentos institucionais são frequentes – por inúmeras
razões – e não se restringem, unicamente, à representação da raça negra nos
museus brasileiros.
Quando se discute, por
exemplo, o estudo dos povos africanos que chegaram ao Brasil – assim como as
manifestações religiosas – de acordo com o pesquisador Jefferson Baltar, existe
um problema de “camadas”. “A explicação é
que eles foram os últimos. Outra causa: os intelectuais daqui se interessaram
pelos mais “puros”. Eles achavam que os mais puros eram os candomblés Jejes e
Nagôs. Vieram também pessoas com prestígio internacional, que contribuíram para
essa “nagolização”.”
Ainda sobre essa questão,
reforçando a opinião de Jefferson Baltar, o pesquisador Cláudio Pereira observa: “Mas é assim no Brasil todo. Eu acho que esse
conceito ao qual o Jefferson se reporta, que é o conceito de pureza, na
realidade, ele balizou todo o desenvolvimento de pesquisas. Só eram estudados
determinados grupos religiosos. Mas hoje, por exemplo, você tem o estudo do
candomblé de caboclo, que não corresponde a nenhuma daquelas nações
tradicionais puras. Os Jejes, por exemplo, que tinham sido abandonados, que
tinham sido vinculados ao nagoísmo.”
Para o pesquisador
Jefferson Baltar, o conceito de diferença vem se impondo sobre o conceito de
identidade – nas pesquisas e possivelmente com possibilidade de reverberação
nos conceitos expositivos de instituições museológicas. Ele cita, inclusive, os
pesquisadores Nicolau Barise e Lísia Castilho, que estão nos Estados Unidos
realizando pesquisas sobre o assunto. “Essa
diferença está cada vez mais forte, do que uma identidade, uma homogeinização
plena, unificadora.”
Como uma de nossas
preocupações é o problema das fraturas expositivas observadas no Museu do Homem
do Nordeste – e, neste sentido, as revoltas negras é uma das mais evidentes –
instigamos os pesquisadores a se pronunciarem acerca da Revolta dos Malês,
ocorrido na Bahia, um dos movimentos revoltosos mais emblemáticos na luta contra
a escravidão. São poucas as referências sobre o assunto – exceto um trabalho de
pesquisa realizado pelo pesquisador João José Reis, também dos quadros do CEAO,
publicado em livro. Na realidade, depois da Revolta, os malês foram
praticamente dizimados. Até referências históricas – como a possibilidade de
Luisa Mahim ter liderado a Revolta dos Malês foi posta em dúvida pelos
pesquisadores do CEAO. Sobre o assunto, observa Jefferson Baltar: “João José Reis, que é um pesquisador sério,
não encontrou um só documento que provasse a existência de Luisa Mahim na
sociedade baiana. Maria Felipa foi outra invenção de Ubiratan Castro.”
O pesquisador Cláudio
Pereira observa que existe estórias inventadas, criação de mitos, que ganham contorno
de verdade junto à população. A Escrava Anastácia, por exemplo, observa
Cláudio, é uma dessas “invenções”,
invenção criada por um padre do Rio de Janeiro, que resolveu criar um museu
depois do incêndio ocorrido na Igreja do Rosário dos Pretos. Encontrou aquela
pintura, no Arquivo Nacional, realizada por um pintor francês, que a retrata
com aquele instrumento de tamponamento dos lábios, até hoje entendido como um
instrumento de tortura. Na realidade, tal instrumento tinha como finalidade
evitar que o escravo comesse terra, adoecesse e representasse uma perda para o
seu dono.
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