Antonio Negri
O caminho democrático para o fascismo
Tornou-se uma observação precipitada que todo poder seja “poder de exceção”. Pena que esta afirmação não explica a diferença entre um regime fascista e um regime constitucional. Não há nenhuma diferença, replica aquele que afirma a normalidade da “exceção”. Que vá então explicar aos cidadãos brasileiros que aguardam a posse de Bolsonaro e ouvirá a resposta: “Tu estás louco!”
Na tradição do marxismo revolucionário, a analogia entre o regime democrático e o regime fascista é rejeitada. Quando nos anos 20 a Terceira Internacional impôs esta semelhança (que logo se tornou uma identidade) sabemos como terminou. Com igual atenção e distinção, parece-me que devemos olhar para o conceito de poder constituinte: ele não pode ser confundido ou mesmo misturado com a “exceção política”, com seu exercício, como sustentam os cultivadores da “autonomia do político” nas pegadas de Carl Schmitt – para quem o poder constituinte seria apenas uma figura da exceção.
A respeito do que aconteceu no Brasil, para retornar a nós, deve-se notar, em primeiro lugar, o fato de que o fascismo chegou não através de um “golpe de Estado” clássico (desde fora das instituições democráticas), através da “exceção” (como mais ou menos aconteceu com os fascismos latino-americanos até Pinochet), mas desde dentro do processo constitucional; não através de uma ruptura com a ordem constitucional, mas através da construção constitucional de uma nova legitimidade. Em segundo lugar, estou convencido de que o governo fascista brasileiro não exercerá o poder através de uma mutação externa e violenta do regime constitucional, mas sim através de uma atenuação suave (exceto contra a população negra) das liberdades civis e da governance existente na Constituição. Ou seja, através da colocação em movimento de um tipo de “poder constituinte”, dentro da governance – funcional, absorvido nela e capaz de determinar profundas modificações no tecido constitucional. Este caminho perverso da democracia, agora afirmado no Brasil, mas já experimentado no todo ou em parte noutras situações e noutros países (Turquia, Egito, por exemplo, sem falar nos antigos países socialistas) deve ser criticado – imaginando o que significa hoje “democracia representativa”, mas também “democracia” em geral, e portanto como, de que formas, e com quais objetivos se devem mover aqueles que se propõem construir e defender uma Constituição que respeita a liberdade, construa igualdade e forneça (proponha) suas condições – e, finalmente, se ainda é possível fazer estas perguntas ou se deve reciclar o tecido mesmo do questionamento.
Golpe de Estado institucional
“Golpe de Estado institucional” e/ou “Golpe de Estado democrático”: assim se pode chamar o ocorrido no Brasil, e agora inseri-lo numa nova categoria acadêmica do direito constitucional. A derrubada do poder legitimamente existente e sua substituição por um poder não legitimado pelo sufrágio universal mas por um órgão de Estado, o Congresso Nacional, foi realizado por detrás de uma máscara constitucional. Começou com o impeachment da Presidente e continuou com a sua substituição, simplesmente da parte do Congresso Nacional, excluindo uma nova eleição geral, pouco depois de seu mandato presidencial ter sido renovado. O “Golpe de Estado” continuou (o que não é irrelevante) com a aprovação imediata pelo Congresso Nacional de algumas leis de caráter neoliberal (entre as quais, a que proibiu o aumento de gastos públicos por um longo período) que revogaram, imediata e prodigamente, o paradigma “material” da Constituição vigente. A ligação entre o impeachment de Dilma por razões político-morais (corrupção) e a liquidação do seu projeto político de governo através da afirmação constitucional de um princípio neoliberal revela que a sua defenestração teve uma qualificação político-partidária, ou seja, característica de um “golpe de Estado” – sendo seguido por uma modificação radical da direção política do governo ou, como se pode dizer, da “constituição material”. Foi assim liberado o caminho para a construção de suportes que, mesmo no caso de novas eleições, impediriam que uma diversa maioria presidencial (que as pesquisas atribuíam a Lula) pudesse restabelecer (porque agora constitucionalmente vetada) propostas não-liberais de redistribuição de renda ou, em qualquer caso, dispositivos alternativos à legitimidade econômica recém determinada. Em apoio à continuação de uma política liberal e, em seguida, na linha de uma renovação das políticas estatais fora (e de qualquer maneira antes) da legitimidade popular, a magistratura move-se através da condenação e da prisão de Lula, e posteriormente, através da sua exclusão do “voto passivo” (ou seja, a possibilidade de ser votado). Não surpreendentemente, este judiciário foi cooptado imediatamente pelo governo Bolsonaro. Por fim, as eleições ocorreram sob ameaça – mais uma vez não externa ao processo institucional – de uma intervenção militar, caso a esquerda tivesse triunfado nas eleições. Neste ponto, o novo Presidente, um “fascista do século 21”, foi eleito, restaurando a legitimidade democrática do poder retrospectivamente. Uma restauração muito duvidosa, em todo caso eficaz. No governo que tomará posse no próximo ano, além do Juiz da Lava-Jato (operação que, como foi expressamente declarado pelo Juiz Greco, nada tem a ver com as “mãos-limpas”), indicado para liderar as finanças e a economia um “Chicago Boy”, no estrangeiro ligado à “alt-right” e às políticas de Trump, enquanto ao Exército serão atribuídas às funções do Ministro do Interior, de um Ministro de Ordem.
Esse perverso caminho, da democracia ao fascismo, linear, organizado não por movimentos externos, mas pelas mesmas instituições do poder constitucional, pela conformação dos órgãos de controle (da magistratura em particular) às linhas da extrema direita, é o desvelamento de um projeto coerente que atravessa as instituições, destruindo todos os elos e incidindo, sobre novas conformações, nas figuras formais da Constituição e na materialidade de sua direção política garantida pelo processo de legitimidade eleitoral, e assim dissipando qualquer caráter ético do princípio democrático: tudo isso impõe, quando e se a indignação diminuir, uma reflexão sobre o tema da democracia.
Mas isto não é suficiente. O fascio-populismo de Trump-Bolsonaro comete mais um estupro da democracia. A “democracia direta” é aqui assumida, de maneira massificada e mistificada, por estas lideranças fascistas, e subvertida pelo “modo de governo” na sua “figura de legitimidade”. Os tweets de Trump representam esta derrubada. As mídias social e institucional agora se debruçam voluntariamente sobre esta função de legitimação. Pode-se também adicionar (e a literatura sobre este assunto é vasta) que a produzem – ou pelo menos tornam isso possível. Quando a indignação tiver diminuído deveremos ainda colocar o problema da “liberdade de expressão” atrelada ao poder. É o primeiro dos problemas que um movimento de resistência, sob a bandeira de “livros, e não armas” (como agora começa a se dizer no Brasil) deverá se pôr, porque antes de tudo ele deverá libertar a “liberdade de expressão”. Certo que a contradição entre liberdade de expressão (protegida constitucionalmente) e o dinheiro (=propriedade, =corrupção, =uso criminoso de informações falsas pela grande mídia) parece insolúvel.
Um problema geral
Nos EUA, um processo semelhante ao brasileiro está em andamento. A solidez democrática e o valor da Constituição daquele país impedem, por enquanto, que o processo de transformação tenha os aspectos perversos e por vezes grotescos que se passam no Brasil. Nos EUA, a presença das forças de oposição ainda pode bloquear (e, em todo caso, tornar incerta) a realização de uma tendência como a brasileira. Isso não significa, todavia, que um processo de consolidação reacionária esteja em curso. Detecta-se o pesado deslocamento do Partido Republicano para o “núcleo duro” trumpiano (e, por trás disso, a supremacia alt-right), a direção de vinte anos da Suprema Corte em posições ultraconservadoras, a realização de colossais operações financeiras para controle midiático do voto etc.. De uma maneira muito mais frágil, mas com acelerações por vezes velozes, processos análogos também estão ocorrendo na Itália. Contudo, o horizonte populista se alarga na Europa e na América latina. Esta extensão aprofunda dramaticamente o problema acima colocado: como o fascismo se estabelece nas/através das instituições democráticas? E, em segundo lugar, o que é esta insurgência fascistizante?
Vamos tentar, senão dar uma resposta, introduzir essa questão de forma mais ampla, como segue. Por enquanto, contentemo-nos em definir este estranho fascismo que aqui está em profunda conjugação com o neoliberalismo. Melhor, vamos tentar definir as dificuldades de realização que, parece-nos, uma nova experiência radical das teorias de Chicago deve encontrar em seu desenvolvimento. As atuais conversões fascistizantes da classe dirigente capitalista (não toda, no momento), de fato, parecem determinadas pela necessidade de apoiar com mais força, por todos os meios estatais, compulsivamente, um desenvolvimento mais neoliberal em profunda crise. É importante sublinhar esta deformidade usual: a força do autoritarismo é chamada em apoio à crise do liberalismo. Agora, nesta perspectiva, o fascismo parece apresentar-se (embora não somente) como a face dura do neoliberalismo, como pesada recuperação do soberanismo, como inversão do slogan “primeiro o mercado, depois o Estado”, em várias formas, nos pontos de máxima dificuldade do desenvolvimento ou de quebra de seus dispositivos, ou melhor, em face das fortes resistências que emirjam.
É um reflexo reacionário que caracteriza este fascismo. Isso o distingue dos fascismos dos anos 20-30 em que os reacionários certamente estiveram no campo político, enquanto no terreno econômico eles poderiam ser relativamente progressistas, pseudo-keynesianos. Provavelmente esta reação é, portanto, um sintoma de fraqueza, é efeito de mais resposta que de um ataque. Isto é provado pelo fato de que estas demandas fascistas, ao invés de técnicas totalitárias, parecem tentar utilizar mecanismos flexíveis para a transformação autoritária do Estado, calibrando a governo como uma espécie de novo perverso “poder constituinte” … Mas estas são previsões que apenas a intensidade da luta de classes por vir poderá confirmar ou negar.
Resta ainda perguntar: o que é esse fascismo do século 21? Aquele do 20 queria destruir os soviéticos, na Rússia e em todo o mundo onde se encontrassem. Hoje, onde estão os “bolcheviques”? Eles são obviamente fantasiados. Mas o esforço do neoliberalismo para se consolidar e as crises políticas que se somam às econômicas suscitam o medo dos “bolcheviques”. Essa insistência é surpreendente.
Para tentar racionalizá-lo, vamos avançar uma hipótese que nos permita qualificar estas tendências fascistas numa época na qual o desenvolvimento do modo de produção colocou a multidão no centro da luta de classes. Ora, a multidão é um conjunto de singularidades, ligadas pela cooperação social. O elemento de cooperação é para a multidão (especialmente para as metrópoles) o ponto central de sua existência de classe. Em termos produtivos, esse poder cooperativo leva a multidão em direção ao comum. Quando, todavia, intervêm fortes tensões que agem sobre as singularidades (que compõe a multidão), em termos, por exemplo, de insegurança econômica ou ambiental e de medo do futuro, então a cooperação multitudinária pode implodir em termos de defesa da identidade. O fascismo do século 21 parece apoiar-se nesses incidentes da natureza cooperativa da multidão.
Fascismo e neoliberalismo
Se, na época de Platão, as constituições democráticas eram inadequadas para bloquear a crise da democracia, na situação atual favorecem a ascensão do fascismo, gerando corrupção.
As modernas constituições democráticas foram organizadas num confronto dinâmico de interesses eventualmente fundidos à direita e à esquerda, entorno de um modelo de inimizade e com padrão de solução pacífica para isto, na hipótese de uma posição equilibrada dos interesses conflitantes. Hoje, a globalização tem empurrado para a homogeneização da governance ao nível global (pode-se dizer para sua homologação), requerendo para governar compor a relação entre constituição formal e material através da inserção naquela de regras desenvolvidas pelas relações monetárias multinacionais das empresas no mercado global – e, portanto, eliminando substancialmente o confronto/conflito, interno à constituição mesma. O “extremismo de centro”, o “groko” (“Große Koalition”, grande coalizão – N.T.) foram neste sentido momentos fundamentais na recomposição, através da governance, de perfis constitucionais agora expandidos globalmente. Mas esta fase acabou e a acentuação dos conflitos pela globalização leva as formas de governance demoliberais a uma crise profunda. Assim seguem os experimentos de ruptura: America first, Brexit e agora Brazil first, Italia first …
É aqui que a governance (ou seja, aquele conjunto de dispositivos que configurou unitariamente o horizonte de governo nacional e global) está cada vez mais sujeita a incidentes constitucionais que tem, acima de tudo, o efeito de obliterar aqueles aspectos de “democracia progressista” que as Constituições herdaram após a Segunda Guerra mundial e o fim da Guerra Fria. De tal modo, transformaram-se as faces dos Estados apesar da democracia. A longa crise de 2007 piorou as coisas. Governar a crise sempre significou que a crise impôs suas exigências à democracia. Hoje, medimos totalmente as consequências desses incidentes. Cada vez mais, desconsideram-se as dinâmicas dialéticas constitucionais, as oposições integradas à governance, o keynesianismo destruído com o consentimento dos keynesianos. Qualquer operação de “exceção” é dada dentro da governance democrática, quase como articulações ocultas de “poder constituinte”, ao invés de opções e mecanismos controláveis. Quero dizer que a transformação que esses movimentos sugerem é agora comandada por um poder destrutivo da democracia.
Com a crise e o enfraquecimento do poder americano que até então determinava um certo equilíbrio global, mesmo no seu campo de domínio, esses processos se aceleraram, trazendo caos para todos os lugares. O novo fascismo se instala dentro deste caos. Armando-se do neoliberalismo como projeto para dominá-lo, encontrará condições duráveis de desenvolvimento? É muito difícil. Sob estas condições, o neoliberalismo encontra-se numa situação desesperada, se quiser reconstruir o equilíbrio. Tendo deslocado ou rejeitado o antigo equilíbrio constitucional democrático, está agora exposto ao vazio. Ele precisa de algo novo, que responda aos novos desafios, que encontra em formas de autoritarismo, de fascismo renovado… Para sobreviver a passagem no vazio, deve recorrer a instrumentos midiáticos, ideológicos, e de difamar e destruir as forças que se opuserem (por vezes timidamente, ou até mesmo antecipando suas direções destrutivas – essa crise é longa e profunda e as responsabilidades ainda precisam ser definidas). Eram os keynesianos forças socialdemocratas. Agora, para os neoliberais que constroem as novas fórmulas de governo fascistizantes no Brasil, são chamados de “comunistas” e “bolivarianos”, apoiadores do caos… Nos EUA, são reconhecidos como bobos urbanos que subvertem a identidade nacional. Assim, este fascismo fundado no vácuo ideológico qualifica-se como um falsificador da memória e restaurador reacionário de identidades passadas. Que seja um passado escravagista como nos EUA, importa; que seja um presente escravocrata, como no Brasil, isto preocupa ainda mais.
Não tenha medo
Meus amigos brasileiros estão perguntando como a vitória de Bolsonaro foi possível, porque seus concidadãos votando tão maciçamente nele. A resposta é simples: eles não votaram no fascismo, ao invés disso, votaram pelo fim da corrupção e da insegurança, nessa conjuntura crítica para a sua vida que, de fato, uma parte da população imputava ao PT. Não é difícil pensar que a motivação racista e a defesa da família (vide a absurda polêmica sobre gênero) construíram o coágulo fascista deste desconforto. É fácil profecia pensar que, como já dissemos, Bolsonaro não conseguirá instituir seu governo como regime. A ele se soma, ao obstáculo já mencionado antes do casamento do fascismo/liberalismo, uma dificuldade específica: necessitará, de fato (frente aos impedimentos táticos que a dispersão de votos cria no Congresso), continuar a comprar a maioria parlamentar evangélica ou de outros mercenários; o preço a ser pago aos ruralistas pelo apoio eleitoral, pela sustentação ao governo e na negociação dos limites ecológicos para a ampliação de seus interesses, será ainda mais salgado; as propostas extremas de privatização do patrimônio público encontrarão a hostilidade do exército em nome da nação etc.. Não será para ele fácil avançar. E também a consolidação desta vitória será difícil, muito difícil, e colidirá contraditoriamente com as mesmas constantes econômicas brasileiras (aberta aos mercados internacionais de alimentos e energia, fechada aos limites ecológicos de enorme importância, instada a uma forte dinâmica produtiva a partir da ampliação do mercado de trabalho). Estamos – parece-nos – sobre uma margem a qual as promessas da vitória de Bolsonaro colidem com as intenções de seus partidários neoliberais. Como poderão se equilibrar? Não estamos nos anos 30, quando o fascismo se organizava sob uma planificação em favor da grande indústria (de guerra) e do grande capital bancário – com excedente, todavia, de vantagens sociais imediatas para o proletariado.
O que faz tremer, depois da vitória de Bolsonaro, é prever os desastres que este governo produzirá, incapaz de desenvolver um plano jurídico que se afaste de uma frente de ataque contra os pobres e negros, em geral de uma proposta antissocial – como mostra seu programa ultraliberal. Militarista, homofóbico, machista, premido ao ódio por uma população agora majoritariamente negra (estamos bem longe dos 54% ainda brancos do censo de 2000), Bolsonaro será exposto ao impulso demográfico não-branco que aumenta incessantemente. O desastre que o aguarda é enorme, mas as consequências serão longas nos próximos anos.
Que fazer agora? É necessário parar de chorar, é preciso ir ao trabalho, confortado pela consciência que o quadro fascista ainda é fraco. Em que sentido, com que espírito começar a trabalhar? Já se medem as provocações e se multiplicarão no futuro. Nas universidades aparecem esquadrões que provocam, grupos de direita trabalham para construir listas de “comunistas”, os programas escolares começam a ser preenchidos com remissões a um passado escravagista etc. É necessário não ter medo. Não ter medo torna-se o elemento central para a construção de uma resistência.
O fascismo se apoia no medo. Aqui isso suscita e cultiva o medo do negro e do comunista. Mas este casal é símbolo da vida e sua luta é um sinal de libertação. Os partidos de esquerda, começando pelo irrecuperável PT, estão em crise. É na relação e na recomposição política dos negros e comunistas que uma esquerda radicalmente antifascista pode ser construída. Esta passagem é essencial. Não há antifascismo no Brasil sem uma recomposição política dos comunistas brancos e da população negra. Desnecessário acrescentar que desta recomposição os movimentos feministas já são a faísca de hoje. Estão são os movimentos majoritários e a maioria não tem medo.
20 de novembro de 2018
Tradução de Augusto Jobim do Amaral, professor dos Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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