Tem havido uma grande controvérsia em relação à caracterização do regime
político brasileiro, depois da última campanha eleitoral: Estado de direito
democrático, Estado formalmente democrático e constitucional, Estado de Exceção,
Estado de Exceção Episódico?
Para muitos, a diferença entre um Estado de Exceção e um Estado
democrático de Direito estaria no funcionamento normal das instituições:
Justiça, Legislativo e Executivo. E a existência do direito do contraditório,
da crítica, da oposição e do debate. Enquanto esses poderes funcionarem, não se
poderia falar com propriedade em Estado de Exceção. O primeiro a questionar a
diferença foi um teórico alemão simpático ao Nazismo, na Alemanha. Carl Schmidt,
em seu livro “Teologia política”.
Afirmava esse filósofo político que todas as categorias da política
seriam extraídas da religião. Que o líder não precisa representar ninguém; ele
decide os outros o seguem (decisionismo). E que a política se resumia à
oposição entre o amigo e o inimigo. Para Schmidt, era irrelevante a fronteira
entre ditadura e democracia. Porque para as classes dominadas, sempre houve uma
ditadura, nunca uma democracia. Assim, para estas, tratava-se de criar
pioneiramente um verdadeiro Estado de Exceção para as classes dominantes. E
isso só podia ser feito com a revolução (Walter Benjamin).
O decisionismo
de Carl Schmidt prosperou no terreno da história das ideias políticas e chegou
ao Brasil, através dos doutrinadores que apoiaram o afastamento da Presidente
Dilma, o chamado golpe parlamentar de 2016.
Aos olhos desses autores (e há um pernambucano entre eles), teríamos uma
modalidade de Estado de Exceção, dentro das regras do jogo democrático, um
fascismo democrático, institucionalizado. Não um golpe de Estado. Um regime
“fascista” com atenuante ou disposições constitucionais refuncionalizadas para
legitimar o Estado autoritário (Antônio Negri). De toda maneira, cabe lembrar
que o fascismo clássico possuía uma base de massas organizada e não massas
difusas e ocasionais. No Brasil, não haveria essa base de massas. Mas um
pensamento nacionalista de direita sempre presente nessas manifestações de rua
da classe média contra LULA, Dilma e o PT. Sem profundidade ideológica, quase
epidérmico. Fascismo difuso e superficial alimentado pelo combate à corrupção e
fortemente alimentado pelas igrejas evangélicas, com a sua pregação a favor de
Deus, da família e da pátria.
De toda maneira,
esse Estado de Exceção episódico ou permanente se manifesta na aberta
criminalização dos movimentos sociais, do movimento sindical, do MST e MTST,
dos movimentos das minorias pela afirmação de suas identidades, pela
criminalização da liberdade de opinião e a liberdade de cátedra e contra o
laicidade do Estado republicano no Brasil. Suas intervenções policiais são
seletivas. Dirigem-se a determinados grupos sociais, numa espécie de
“lombrosianismo social”: negros, índios, homossexuais, lésbicas, transexuais,
comunistas ou esquerdistas etc. É a violência praticada em nome da lei, da moral, dos bons costumes, da fé religiosa
etc. Nas instituições públicas, isso tem o nome de processo
administrativo-disciplinar, administração racional, técnica ou burocrática,
dirigida contra os que discordam dos agentes do poder. Há, como quê, uma
cotidianização da violência. Ela assume o aspecto de normalidade institucional,
de legalidade, não de uma perseguição político-ideológica. Vale lembrar que as
ditaduras no Brasil buscaram legitimar-se através de Constituições promulgadas:
a de 1937, a de 1967, a lei contra o terrorismo, editada a pedido da FIFA. Daí
para as jurisprudências mais absurdas (como a doutrina do domínio de fato, ou
força das convicções ou as prisões de ativistas a partir da presunção dos
crimes que poderiam vir a cometer), além daquelas abertamente ilegais, como
escutas de autoridades, conduções coercitivas, vazamentos intencionais de
trechos de inquéritos etc. foi um passo extremamente curto.
Assim, representa enorme
preocupação a nomeação de um juiz de primeira instância associado a todas essas
práticas. E por outro lado, um ministro da Fazenda que não esconde o seu amor
pelo mercado, pelas privatizações e as empresas multinacionais. Grave também é
a presença de pastores e teólogos em pastas de conteúdo altamente polêmicos,
como educação e direitos humanos. Ou o privilegiamento de igrejas e
manifestações religiosas, em detrimento de outras. Sobre ser profundamente inconstitucional,
antidemocrática e discriminatória. Pode estimular crimes de ódio contra outros
credos e religiões. A perspectiva habermasiana do “patriotismo constitucional”,
em sociedades multiculturais ou muiterreligiosas resta prejudicada e voltamos às práticas
nocivas da segregação étnica e cultural. Preocupante é também a situação dos
direitos civis das minorias sociais, pendentes de uma avaliação religiosa das
autoridades judiciárias e policiais. A liberdade de pensamento e o pluralismo
de orientações pode sofrer uma dura restrição nas escolas públicas, caso seja
adotado o roteiro apresentado pelo
futuro ministro da Educação. A ideia de se criar “conselhos de ética” nessas
instituições que possam julgar a atividade docente e sua liberdade de cátedra é
um atentado à cultura, ao ensino, a pesquisa e a extensão. Não cabe à
autoridade educacional prejulgar o conteúdo das disciplinas e muito menos das
aulas ministradas. Substituir o legado do pensamento moderno e iluminista por
doutrinas fundamentalistas de índole religiosa é uma enorme ameaça à formação
esclarecida de futuros cidadãos e cidadãs brasileiras.
Daí porque a
discussão, nos dias que correm, sobre o direito de resistência à tirania ganha
uma grande atualidade. Ela não é nova; vem dos clássicos do liberalismo
político e dos contratualistas: Hobbes, Locke, Stuart Mill. Quando o soberano
quebra as cláusulas do contrato social e se transforma num ditador, é legitimo
o direito de resistir. O Estado é derivado. A Sociedade Civil é originária. O
direito à resistência foi atualizado por Tourau, Boaventura Santos e encontrou
sua mais lídima expressão nos movimentos antiglobalização, nas passeatas de rua
de 2013 e hoje, diante de um regime que
tem todas as características daquilo que se chama “fascismo democrático”, ou”
fascismo atenuado” ou ainda “Estado de Exceção Episódico”, na formulação da
professora de Direito, Liana Cirne Lins. Disse Boaventura Santos, estamos
diante de um direito democrático à desobediência. É preciso utilizá-lo com
ousadia e sabedoria quando as liberdades públicas se sentem ameaçadas.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia
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