Na cidade de Cachoeira,
na região do Recôncavo Baiano, mais precisamente na Rua 13 de maio, encontra-se
a sede de uma das irmandades mais festejadas do país, a Irmandade da Boa Morte.
O espaço é composto de uma pequena exposição, uma loja de souvenir e uma
capela, onde é possível observar algumas gravuras sacras e a imagem da Nossa
Senhora da Boa Morte, a mesma que participa dos concorridos cortejos que
acontecem em meados do mês de agosto, todos os anos, nas ruas estreitas daquela cidade. Um visitante atento, antes
de buscar as informações sobre a Irmandade nas mais diversas fontes disponíveis
nas redes sociais -algumas delas pouco confiáveis - ali se depara com uma
auto-definição, possivelmente construída num consenso entre as 21 senhoras que
integram a Irmandade: “Organização privativa de mulheres com vínculo
étnicos, religiosos e sociais, também unidas por parentescos consanguíneos ou
de fé, deixando fluir a maneira afro-brasileira de ser.”
Existem muitas narrativas
discursivas em torno da Irmandade da Boa Morte, que vão, de sua origem, ao
sincretismo religioso adotado, assim como de suas relações com a Igreja
Católica. Fontes documentais, no entanto, são escassas, uma vez que a Irmandade
teria iniciado suas atividades em Salvador, pelos idos de 1820, na Igreja da
Barroquinha, que sofreu um incêndio num determinado momento. Dois livros de
apontamentos, apesar de resgatados do incêndio, foram queimados por uma
integrante da Irmandade, acredita-se que, possivelmente, num momento de surto
psicótico. Restou aos historiadores e cientistas sociais tentarem recontar essa
história através de fatos correlatos ou através da história oral, uma fonte
primária das mais importantes para o resgate do legado da Irmandade.
A rigor, a rigor, como
observa o historiador João José Reis, a constituição de irmandades eram muito
comuns no período colonial, sobretudo como uma forma de a Coroa gerar
expedientes administrativos que pudessem suprir determinadas carências de
amplos setores da população nos países colonizados. Um bom exemplo do que
estamos falando talvez seja a Santa Casa de Misericórdia, uma Irmandade, já
naquela época “globalizada”, que desenvolve até hoje uma série de trabalhos
assistenciais, como administração de hospitais e cemitérios. Aqui no Recife,
por exemplo, boa parte dos cemitérios pertencem a essa ordem e o poder público
precisa pagar para utilizá-los. Em Bairros como o de São José, por exemplo, algumas
casas comerciais ali existentes pagam aluguéis à Santa Casa de Misericórdia.
O historiador João José
Reis define as irmandades “Como associações corporativas, no interior das
quais se teciam solidariedades fundadas nas hierarquias sociais. Essas
irmandades representavam a defesa, representação social e mesmo a política dos
interesses dos adeptos.’ No Brasil Colônia, como já afirmamos
anteriormente, proliferaram irmandades, de várias categorias, raças, nações,
dos ricos, dos pobres, dos pretos, dos brancos, raramente de mulheres, como
ocorre com a Irmandade da Boa Morte.
De acordo com o
historiador João José Reis, a devoção da Irmandade da Boa Morte deve ter se
iniciado em 1820, em Salvador, na Igreja da Barroquinha, com a nação Jejes. Em
1850, possivelmente, depois de uma intensa perseguição na Bahia aos cultos
afros - e um crescente processo de intervenções urbanas de orientação
higienística - somada à efervescência política e econômica então representada
pela cidade de Cachoeira, para lá elas se transferiram, estranhamente não
procurando acolhida em nenhuma igreja, mas numa casa residencial. O que não
faltam são templos católicos naquela cidade do Recôncavo Baiano.
Proporcionalmente, arrisco a dizer que se trata de uma das maiores densidades
de templos católicos do Brasil. Vejo aqui um ranço de rebeldia e altivez dessas
senhoras, que pareceu não se importarem muito com as formalidades legais
exigidas para a constituição de uma irmandade, ou seja, uma igreja que as
acolhessem e um estatuto aprovado por uma autoridade eclesiástica.
Ao estabelecermos um link
com a pesquisa ora em curso - que trata de identidade e diferença na
representação da raça negra no Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim
Nabuco - especificamente no que concerne à observação sobre como essa temática
se evidencia na composição e intercecção religiosa da Irmandade da Boa Morte, é
possível compreendermos que a questão da diferença é um dado bem
resolvido em relação a esta irmandade, tanto no que concerne à sua vinculação à
matriz dos povos africanos - Jejes, Ketu e Nagô - tanto no que concerne aos
ritos do Candomblé consorciado aos rituais da Igreja Católica, tudo ao seu
tempo, desde a missa no começo da manhã, às oferendas aos orixás e, claro, à
festa profana, cada vez mais concorrida, quer atrai turistas do Brasil e do
mundo. Segundo confidências de moradores locais, até os evangélicos participam dos rituais dos mais de 80 terreiros ali existentes.
Um dos aspectos mais
relevantes do diálogo mantido com os pesquisadores do CEAO - Centro de Estudos
Afro-Orientais - ainda no curso dessa pesquisa, foi, justamente, o processo de
criação de “mitos”. Sempre que nos debruçamos sobre as origens - ou mesmo
algumas particularidades sobre a Irmandade da Boa Morte - temos uma preocupação
com as narrativas discursivas em torno do assunto - que não são poucas -
notadamente no que concerne à tentativa de aproximar essas narrativas a uma
possível verdade, se é que isso é possível, Michel Foucault. Há, por exemplo, possíveis
evidências da participação da revolucionária Luísa Mahin na constituição dessa
irmandade - como o fato de ela ter fugido de Salvador para Cachoeira num
período próximo às atividades da Irmandade da Boa Morte naquela cidade do
Recôncavo Baiano, o que se presume aí pelos idos de 1850 - depois do massacre
infringido aos escravos de religião muçulmana - que ficou conhecido como A
Revolta dos Malês - uma rebelião contra a escravatura que a própria Luísa Mahin
teria liderado.
Se exista a possibilidade
da construção de um “mito” em torno do envolvimento ou não da revolucionária
Luísa Mahin nas atividades da Irmandade da Boa Morte, o fato concreto é que,
por outro lado, a presença muçulmana nos ritos, como os batuques e indumentária,
são inegáveis. O pesquisador Jefferson Baltar, do CEAO - Centro de Estudos
Afro-Orientais - alertou-nos sobre um estudo conduzido pelo historiador João
José Reis, que não teria encontrado nenhum registro oficial sobre a presença de
Luísa Mahin na Bahia. O que pode não querer dizer muita coisa, uma vez a
“História” é quase sempre escrita pelos vencedores, somado ao fato de que os
Malês foram completamente dizimados depois da Revolta. Exceto, quem sabe, Luísa
Mahin, que procurou refúgio na aprazível e rebelde cidade de Cachoeira, onde,
naquele momento, eram travadas batalhas em diversas frentes, seja contra a
Coroa, seja pela libertação dos escravos, luta com a qual ela tanto se identificava.
Nota do Editor: Este ensaio é parte integrante do relatório de visita técnica realizado pelo autor à Irmandade da Boa Morte, no curso do desenvolvimento da pesquisa institucional mencionada no texto.
Nota do Editor: Este ensaio é parte integrante do relatório de visita técnica realizado pelo autor à Irmandade da Boa Morte, no curso do desenvolvimento da pesquisa institucional mencionada no texto.
Cachoeira é uma bela cidade.
ResponderExcluirBoa noite, Hely. Sim. Uma cidade com um grande histórico de luta pela liberdade. Um grande abraço!
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