O modelo político-eleitoral, que depende do financiamento empresarial de campanha, que por sua vez cobra a fatura desse financiamento por meio de contratação de obras e serviços, é o que tem ditado o centro da política urbana nos últimos anos...
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por Silvio Caccia Bava |
As eleições municipais deste ano ocorrem em um cenário de profunda crise política e econômica. Para debater as perspectivas que se abrem com o pleito e analisar os atores e modelos em disputa pela cidade, o Le Monde Diplomatique Brasil conversou com a urbanista Raquel Rolnik, professora da FAU-USP. Confira a entrevista a seguir LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Vamos ter eleições daqui a um mês e pouco e não estamos ouvindo muita discussão sobre programas, sobre conteúdo. E isso ocorre num cenário meio crítico. Como esses novos prefeitos vão governar sem dinheiro? RAQUEL ROLNIK – Vai haver muito pouco espaço nesse debate eleitoral sobre o destino da cidade, sobre um projeto de cidade, já que o ambiente eleitoral está muito contaminado pela crise política e pela pauta da crise política. Por outro lado, os partidos que hoje estão concorrendo ao pleito, pelo menos as grandes coalizões, aquelas que têm mais tempo na TV, mais recurso para financiar campanha, justamente são os que se desenvolveram graças às práticas que levaram à crise política que estamos vivendo hoje. Enfim, o modelo político-eleitoral, que depende do financiamento empresarial de campanha, que por sua vez cobra a fatura desse financiamento por meio de contratação de obras e serviços, é o que tem ditado o centro da política urbana nos últimos anos... Portanto, a expectativa é muito baixa de uma discussão real sobre as questões da cidade e menor ainda de enfrentamento da crise fiscal. O fato é que os governos municipais não vão operar com o rio de dinheiro que operaram nos últimos anos. Muito provavelmente vamos ver campanhas que vão falar ou ficar mostrando as obras que foram inauguradas ou prometer obras que serão feitas, quantos hospitais, quantas creches, quantos quilômetros... Isso evidentemente será menos possível, menos factível, em um contexto de crise fiscal. Mesmo assim, dificilmente o embate eleitoral vai fugir das “obras que fiz” ou “das obras que prometo fazer” e enfrentar, de fato, os nós do modelo de desenvolvimento urbano (muito tributário e conectado ao modelo político-eleitoral) que temos. Vai estar muito pouco presente a questão de que não vai haver dinheiro para as “obras” e que o modelo de financiamento do desenvolvimento urbano que temos é incapaz de “resolver” nosso déficit de urbanidade. Por outro lado, do ponto de vista dos efeitos da crise política, ao que parece, a indignação da sociedade não foi suficiente para superar esse modelo, já que hoje as forças políticas e as coalizões que articularam o golpe, que propuseram o impeachment, são as mesmas que vão disputar as eleições com força e estão umbilicalmente vinculadas ao tal modelo de desenvolvimento urbano falido a que me referi. Não há uma luz imediata no fim do túnel de que elas vão se desconstituir a curtíssimo prazo, ou seja, no prazo da próxima disputa eleitoral municipal. Então o que vai acontecer diante da falta de dinheiro? Os prefeitos não terão alternativa senão tentar responder com alguma proposta de política inovadora. Quem viveu nos anos 1990 no Brasil sabe que esses foram períodos também de crise fiscal e falta de dinheiro, em que os governos se viraram e introduziram políticas muito baseadas em mobilização social, em participação. Por exemplo, no campo da moradia foi o momento em que se começou a urbanizar favelas, mobilizando mutirão dos próprios moradores para instalar o sistema de saneamento de esgoto e de melhorias; um momento em que se construiu também moradia por meio do mutirão, em que se propôs assistência técnica e jurídica para os moradores em processos de regularização fundiária e autoconstrução assistida. Essas são políticas com baixo custo e muita mobilização, que começavam a dar respostas naquele período para questões que estavam batendo na porta dos prefeitos, e estes tinham de dar uma resposta. Eles faziam isso por meio da participação popular, da cogestão com os próprios cidadãos. Mas o neoliberalismo combina com democracia? Então, enquanto uma parte da sociedade, uma parte minoritária eu diria, estava envolvida em projetos de radicalização democrática, de mobilização social, na direção da ampliação dos direitos, o neoliberalismo e a visão neoliberal estavam penetrando também em nosso país e em nossas cidades, em nossa política municipal. Os próprios governos democráticos e populares, quando chegaram ao governo federal, construíram todo o arcabouço jurídico e regulatório para, pelo menos no campo da política urbana, promover as parcerias público-privadas (PPPs) nos projetos urbanos. Acabamos de ver um ensaio geral disso muito claro no Rio de Janeiro, que utilizou exatamente esse tipo de marco regulatório. O que aconteceu lá? O projeto urbano ligado à transformação urbanística do Rio de Janeiro em razão da Copa do Mundo e das Olimpíadas é 100% neoliberal, pois foi introduzido por meio de parcerias e da privatização dos espaços e recursos. Além disso, foi modelado e definido em arenas que nada têm a ver com os espaços públicos de negociação e decisão acerca das políticas. E com um pequeno detalhe, mas muito relevante: 100% financiado pelo fundo público. Não há um tostão de empresa privada. Pega o Porto Maravilha: R$ 8 bilhões do FGTS! Para não dizer que é zero de participação privada, há aí uns US$ 20 milhões do Santander na construção do Museu do Amanhã. E é só, porque o resto ou é recurso de fundos públicos, ou renúncia fiscal, que é o quê? Dinheiro público, o dinheiro de imposto que não entra. Eu não sou contra investimentos feitos pelo poder público. Sim, só que esse foi um investimento público dirigido 100% para uma transformação urbanística pensada e modelada para beneficiar o privado, e não o público. Como foi no Porto Maravilha, o que se implantou sobre terras que eram públicas? Torres corporativas AAA, para gerarem o quê? Uma frente de expansão do capital financeiro global, que encontra mais uma fronteira, mais um terreno no qual pode investir para poder ser rentável a médio e longo prazo. Alguém vai falar: mas a Praça Mauá ficou linda, ficou superlegal, o Rio de Janeiro ganhou um espaço público de que a população se apropriou e o qual usa. É só fazer a conta: quanto custaria fazer uma Praça Mauá renovada? Não sou contra a Praça Mauá renovada, está linda mesmo, só que foram gastos R$ 8 bilhões de nosso FGTS para fazer algo que com alguns milhões se poderia fazer... Você acha que isso é um anúncio do que vai ser a gestão municipal nas cidades aqui no Brasil? É o que as gestões municipais hoje gostariam de ser quando crescer, esse é o modelo. E, de preferência, com um ator como a Globo por trás para ajudar a construir toda a base de apoio político e simbólico do projeto. Mas no Rio de Janeiro há uma grande resistência ao projeto de cidade introduzido sob o manto dos megaeventos, há uma grande contestação. Isso nos dá esperança de que esse modelo não vá ser absolutamente disseminado em todo o país. Ademais, esse projeto tem como ator/protagonista central, além do fundo público, as grandes empreiteiras. São estas que armaram e modelaram essas PPPs de projetos urbanos no Brasil e que, evidentemente, se beneficiam também da introdução das obras de infraestrutura ali contidas, que elas serão remuneradas para instalar. Mas, na atual conjuntura, em que o fundo público está diminuindo e os grandes empreiteiros estão envolvidos na Lava Jato, é difícil pensar que esse modelo possa ser amplamente reproduzido. Então a ideia de que todas as cidades brasileiras vão virar o Rio de Janeiro de Eduardo Paes não me parece ter nenhuma viabilidade econômica e política neste momento. Assim como foi nos anos 1990, algum espaço para experimentação democrática vai fatalmente acontecer. Como, onde e quais serão as forças políticas que vão protagonizar isso, não sabemos. Mas dá para governar sem dinheiro? Sem nenhum dinheiro não dá mesmo, claro que não, mas dá para governar com muito menos dinheiro do que se governou na última década. Você está falando da prestação de serviços públicos ou só do desenvolvimento urbano? Vamos falar dos custos da prestação de serviços públicos, como transporte e lixo, e de sua qualidade. Há uma falta de controle público efetivo, de controle social sobre esses custos e sua performance. Os instrumentos de controle dentro do Estado brasileiro estão muito contaminados pela lógica política partidária até dentro do próprio Ministério Público, infelizmente. Nós vemos quanto o Judiciário tem parte, não é independente, e quanto o Estado brasileiro, incluindo os órgãos de controle e fiscalização, está contaminado pela lógica política partidária: os tribunais de contas, por exemplo, cuja lógica são indicações políticas, uma coisa completamente dentro do mesmo esquema. Então não se introduziu um controle social efetivo sobre as empresas que prestam serviço público na cidade. Cada vez menos temos noção dos reais custos da operação. Dá para desconfiar muito quando se mencionou na investigação jornalística dos Panama Papers que um dos grandes investidores offshore do Brasil é um grande concessionário de ônibus. São milhões e milhões que eles ganharam da exploração dos serviços de ônibus, e vamos combinar que essa está longe de ser uma prestação de serviço de alta qualidade. Sim, mas como você vai brigar com eles, se no caso de São Paulo, por exemplo, dois empresários têm 8 mil ônibus? Está tudo cartelizado, muito cartelizado, e infelizmente também a relação empresas/sistemas políticos partidários está muito entranhada nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas. Na gestão Luiza Erundina, quando se tentou romper o cartel do lixo, o governo foi quase a nocaute. Os empresários da coleta de lixo ameaçaram não realizar o serviço. “Eu deixo aí sua cidade um mês sem coletar o lixo, vai ter impeachment contra você, prefeito.” Eles realmente dominam, é verdade. Então como nós rompemos esses cartéis? É incrível como na Lava Jato surgiu a história, mas não a história inteira, não a relação entre as empresas que prestam serviços ao setor público e o sistema partidário, político-eleitoral, o efeito disso sobre a gestão da cidade, sobre as escolhas, sobre a qualidade do serviço, sobre o destino da cidade. Isso ainda não se mostrou claramente, então vai ter que efeito? Isso é o mais maluco da história, porque parece que o problema são os 10% que os partidos e os políticos levavam de corrupção, e não a política pública que existia para sustentar o negócio e não para atender ao interesse do cidadão. Veja, no neoliberalismo, em sua dimensão simbólica e cultural, quanto o imaginário neoliberal penetra em nosso país já há muito tempo. Enquanto o imaginário triunfa, porque é repetido nos meios de comunicação, é o que as pessoas falam, a ideia do mercado, do mérito, do cara que vai se fazer sozinho, por mérito próprio, toda essa ideologia é uma ideologia anti-Estado, anti-Estado com redistribuição. Esse pensamento foi entrando forte em nossa sociedade, e não é de hoje, e neste momento esse pensamento detém uma hegemonia cultural, desmontando o imaginário social dos direitos e da redistribuição. Mas isso não foi capaz de moldar a cabeça, por exemplo, de uma juventude secundarista, dos meninos que já nasceram bombardeados por esse imaginário e, no entanto, se organizam e resistem em cima de uma pauta de autonomia, autodeterminação, participação, respeito aos direitos. Há uma luz no fim do túnel no sentido de que o neoliberalismo, seus instrumentos e seus imaginários são dominantes, mas estão mortos do ponto de vista de sua possibilidade concreta de oferecer alternativas para a crise que estamos vivendo, crise de mobilidade, crise ambiental, crise de representatividade do Estado. Como diz Franco Berardi, pensador italiano, o neoliberalismo está morto e nós estamos vivendo dentro do cadáver. Quando você acena para a inovação, a experimentação como resposta a essa situação atual, isso pode ser possível em pequenas cidades, até talvez em médias, mas não nas regiões metropolitanas. Há um paradoxo aí. Lembrando outro momento interessante de inovação político-social e de gestão local, por incrível que pareça, foi nas grandes cidades, nas regiões metropolitanas em que elas mais aconteceram – Porto Alegre, São Paulo e municípios de sua região metropolitana, como Diadema. Por que isso? Porque nas regiões metropolitanas é onde se concentra também um capital crítico, cultural, tecnológico, social e político muito forte. Não acho que seja um problema de escala; não foi nos pequenos municípios, nas pequenas cidades que tivemos, por exemplo, instrumentos como orçamento participativo em seus tempos de glória, não o que ele virou depois disso. Não acho que seja um problema de escala, que haja uma espécie de comunitarismo, que então dá para fazer uma gestão comunitária onde você tem um tête-à-tête, não. Acho absolutamente possível e necessário neste momento percebermos que os movimentos de experimentação reais já estão ocorrendo pela própria sociedade. O processo de apropriação dos espaços públicos na cidade de São Paulo não foi uma iniciativa da gestão, e sim uma iniciativa e um movimento da própria sociedade com que a gestão – no caso, a gestão Haddad – se relacionou, percebendo seu potencial e a fortalecendo. Do que você está falando? Processos de ocupação dos espaços públicos são uma coisa supergenérica. Nos anos 1990, os anos negros da crise e da miséria produtiva, de desemprego, o crescimento da cidade se deu por meio de muros, enclaves fortificados, shopping centers, condomínios e, assim, houve um esvaziamento dos espaços públicos, dos espaços de convívio. A cidade de São Paulo se transformou fisicamente com esse modelo, e começamos a ver nos últimos anos iniciativas dos próprios cidadãos, da própria sociedade, de retomar a cidade, a calçada, a praça, o lugar de convívio, de rejeitar esse modelo, embora ele ainda seja dominante. Foi graças a movimentos da própria sociedade que surgiu esse movimento pelo uso da bicicleta, pela humanização do trânsito. A gestão municipal precisa se ligar nesses movimentos de transformação ativados pela própria sociedade para extrair deles políticas públicas que consigam oferecer respostas a esses movimentos. Dei um exemplo de um processo que parte de uma leitura de que está havendo uma transformação na própria sociedade que induz a políticas inovadoras, dá força a elas. Temos mil exemplos, até em questões como financiamento coletivo colaborativo, autogestão, autotransformação. Não é o do it yourself no urbanismo, tudo fragmentado, cada um faz a cidade do jeito que quiser, não é isso; mas temos outras formas de financiar iniciativas de projetos. Se vier a ocorrer a aprovação da PEC 241, que limita o gasto social àquilo que foi despendido no ano anterior mais a inflação, vai haver um corte muito grande no repasse de recursos para os municípios nas áreas de educação, saúde, assistência social e várias políticas. Como esses novos prefeitos vão se virar com isso? Uma questão não equacionada no Brasil é nosso modelo federativo, o tema do financiamento desse modelo. Hoje, na verdade, os municípios têm baixíssima autonomia e vivem basicamente de transferências federais e estaduais. Transferências obrigatórias e compulsórias com percentuais preestabelecidos para educação e saúde, e transferências voluntárias, muito mediadas politicamente. Com a PEC 241 isso cairá, não será mais obrigatório. Sim, mas o município vive dessas transferências ou de transferências voluntárias. O exemplo que posso dar é o que ocorreu nas cidades quando foi lançado o Minha Casa, Minha Vida. As poucas cidades que tinham políticas municipais locais pararam imediatamente de praticá-las por causa do Minha Casa, Minha Vida. A pergunta dos prefeitos nesses últimos anos, e isso foi péssimo, não era: “Do que minha cidade está precisando, quais são suas necessidades e como eu vou enfrentá-las?”. A pergunta era: “Que oferta eu tenho do governo federal, o que você pode me dar aí? Ah, um ginásio! Beleza, então vou fazer um ginásio. Ah, um equipamento para reciclar lixo! Ótimo, vou fazer. Umas casas das construtoras do Minha Casa, Minha Vida! Maravilhoso, eu passo a lista, vocês fazem a casa e eu inauguro”. É verdade que não havia tantas políticas municipais assim virtuosas para serem desmontadas, porque essa equação do financiamento é uma equação não resolvida já desde a Constituição. Nós lutamos tanto pelos planos diretores municipais! Eles valem alguma coisa hoje? Os planos diretores municipais são, como toda esfera da regulação e da legislação, arenas de conflito, e não projetos efetivos de cidade. Eles podem ser apropriados, e muitas vezes o são, nas lutas e nas resistências do cidadão para defender qualidade, inclusão etc., e também são utilizados para introduzir projetos, abrir frentes para o capital financeiro, para o complexo imobiliário financeiro. Em sua maioria, os planos diretores são verdadeiros frankensteins. São uma mistura porque tiveram de ser aprovados nas câmaras. Eles apostam e têm instrumentos em duas direções: uma para desmontar e bloquear tudo o que o outro faz, então são uma arena de conflito no momento da elaboração, e são uma arena de conflito também nos momentos subsequentes, que são de aplicação. Esses famosos anos 1990 não desmontaram também a capacidade técnica de planejamento das prefeituras? Mesmo quando há uma oportunidade de financiamento, muitas vezes a cidade não tem um projeto para apresentar. Como você vê isso? Essa foi a grande justificativa utilizada pelo governo federal, particularmente pelos governos Lula e Dilma, para lançar projetos e políticas que dispensam a capacidade de planejamento e gestão dos municípios, porque elas não existem. Então como é que construímos uma capacidade de planejamento e gestão se as políticas têm de dar resultado rápido, em quatro anos, e é no período eleitoral que tudo tem de dar resultado? Então não se faz nada que dê muito trabalho, como construir uma capacidade de planejamento e gestão. Em um momento mais complexo de crise, em que não vão existir essas ofertas, não existe uma saída fácil e rápida que garanta a reeleição. É preciso inventar de alguma forma e eventualmente reconstruir uma capacidade de planejamento. O cenário hoje das prefeituras, principalmente das cidades grandes, é de tudo muito terceirizado, nada é o próprio município que faz. O município fica extremamente amarrado, porque a legislação toda que rege o Estado, no Brasil, não deixa quem está no Estado fazer nada. É muito difícil, muito difícil. Em nome do combate à corrupção, da fiscalização e do não desvio de recursos, engessou-se totalmente o Estado. E o paradoxo é que isso não acabou com a corrupção, pelo contrário! Isso matou a capacidade de ação do Estado e privatizou-o para que este funcionasse como um veículo de transferência de fundos públicos para as empresas privadas, que sustentam a reprodução política das coalizões e dos mandatos. Esse é o enrosco em que nos encontramos hoje. É engraçado porque, no Brasil, o modelo demoniza o Estado, mas o fundo público pode ser largamente utilizado. Essa é uma diferença grande do modelo neoliberal, de como ele é aplicado no Brasil em relação a outros lugares do planeta, inclusive na área de desenvolvimento urbano. PPP 100% financiada pelo fundo público dos trabalhadores – quando apresentei isso num congresso internacional, com participantes do mundo inteiro, as pessoas falavam: “Não é possível, é mentira”. Aí perguntaram: “Como os trabalhadores deixam?”. Eu dei risada, porque no Brasil temos essa especificidade de privatização do Estado, do fundo público. O modelo afirma que o Estado é ineficiente, incapaz de gerir, então a resposta é justamente deixar isso tudo na mão do privado, sem nenhuma mediação. É a democracia direta do capital, como diz Carlos Vainer. Eu acho que são ondas das chamadas best practices urbanas que vão vir, e não estamos dando a devida atenção política a elas. A questão fundamental é universalizar. Você pode até criar um mercado disso ou daquilo, mas como você universaliza isso? Como isso é para todos? Não dá para ser para todos, há um limite. Então é sobre isso que as prefeituras e os governos vão ter de dar uma resposta para esses cidadãos que são vistos como descartáveis, cidadãos que não vão ter acesso a isso. Estou vendo uma capacidade muito grande aqui no Brasil, diante de situações de crise, de inventar, mobilizar, criar, imaginar. É o país do puxadinho: uma improvisação que vai surgindo e se experimentando, e com coragem de fazer isso. Há um lado ruim, pois poderíamos planejar e fazer tudo direito, mas há o outro lado, que é o pragmatismo mesmo, a capacidade de as pessoas se engajarem, terem energia para isso. Eu vejo que a juventude hoje tem muito mais acesso à informação, à comida, a muita coisa que as juventudes das gerações anteriores não tiveram; ela tem uma capacidade enorme não só de reivindicar, mas também de fazer. Agora é dar tempo para que essa geração constitua lideranças novas, novos agrupamentos políticos e coalizões, e consiga promover transformações aqui no Brasil. De certa maneira, estamos em melhor condição do que outros países, até porque já conhecemos isso, já sabemos o que é viver sob a crise fiscal, o que é viver sem recurso etc. Isso dá certa esperança. Vão ser anos difíceis, anos duros, até conseguirmos sair do cadáver..., mas acho que temos uma perspectiva de longo prazo pela frente.
Silvio Caccia Bava
Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique BrasilIlustração: João Montanaro |
LEALDADE
pubicada depois das eleições presidenciais de 2006
Quando cheguei à TV Globo, em 1995, eu tinha mais cabelo, mais esperança, e também mais ilusões. Perdi boa parte do primeiro e das últimas. A esperança diminuiu, mas sobrevive. Esperança de fazer jornalismo que sirva pra transformar — ainda que de forma modesta e pontual. Infelizmente, está difícil continuar cumprindo esse compromisso aqui na Globo. Por isso, estou indo embora.
Quando entrei na TV Globo, os amigos, os antigos colegas de Faculdade, diziam: “você não vai aguentar nem um ano naquela TV que manipula eleições, fatos, cérebros”. Aguentei doze anos. E vou dizer: costumava contar a meus amigos que na Globo fazíamos — sim — bom jornalismo. Havia, ao menos, um esforço nessa direção.
Na última década, em debates nas universidades, ou nas mesas de bar, a cada vez que me perguntavam sobre manipulação e controle político na Globo, eu costumava dizer: “olha, isso é coisa do passado; esse tempo ficou pra trás”.
Isso não era só um discurso. Acompanhei de perto a chegada de Evandro Carlos de Andrade ao comando da TV, e a tentativa dele de profissionalizar nosso trabalho. Jornalismo comunitário, cobertura política – da qual participei de 98 a 2006. Matérias didáticas sobre o voto, sobre a democracia. Cobertura factual das eleições, debates. Pode parecer bobagem, mas tive orgulho de participar desse momento de virada no Jornalismo da Globo.
Parecia uma virada. Infelizmente, a cobertura das eleições de 2006 mostrou que eu havia me iludido. O que vivemos aqui entre setembro e outubro de 2006 não foi ficção. Aconteceu.
Pode ser que algum chefe queira fazer abaixo-assinado para provar que não aconteceu. Mas, é ruim, hem!
Intervenção minuciosa em nossos textos, trocas de palavras a mando de chefes, entrevistas de candidatos (gravadas na rua) escolhidas a dedo, à distância, por um personagem quase mítico que paira sobre a Redação: “o fulano (e vocês sabem de quem estou falando) quer esse trecho; o fulano quer que mude essa palavra no texto”.
Tudo isso aconteceu. E nem foi o pior.
Na reta final do primeiro turno, os “aloprados do PT” aprontaram; e aloprados na chefia do jornalismo global botaram por terra anos de esforço para construir um novo tipo de trabalho aqui.
Ao lado de um grupo de colegas, entrei na sala de nosso chefe em São Paulo, no dia 18 de setembro, para reclamar da cobertura e pedir equilíbrio nas matérias: “por que não vamos repercutir a matéria da “IstoÉ“, mostrando que a gênese dos sanguessugas ocorreu sob os tucanos? Por que não vamos a Piracicaba, contar quem é Abel Pereira?”
Por que isso, por que aquilo… Nenhuma resposta convincente. E uma cobertura desastrosa. Será que acharam que ninguém ia perceber?
Quando, no JN, chamavam Gedimar e Valdebran de “petistas” e, ao mesmo tempo, falavam de Abel Pereira como empresário ligado a um ex-ministro do “governo anterior”, acharam que ninguém ia achar estranho?
Faltando seis dias para o primeiro turno, o “petista” Humberto Costa foi indiciado pela PF. No caso dos vampiros. O fato foi parar em manchete no JN, e isso era normal. O anormal é que, no mesmo dia, esconderam o nome de Platão, ex-assessor do ministério na época de Serra/Barjas Negri. Os chefes sabiam da existência de Platão, pediram a produtores pra checar tudo sobre ele, mas preferiram não dar. Que jornalismo é esse, que poupa e defende Platão, mas detesta Freud! Deve haver uma explicação psicanalática para jornalismo tão seletivo!
Ah, sim, Freud. Elio Gaspari chegou a pedir desculpas em nome dos jornalistas ao tal Freud Godoy. O cara pode ter muitos pecados. Mas, o que fizemos na véspera da eleição foi incrível: matéria mostrando as “suspeitas”, e apontando o dedo para a sala onde ele trabalhava, bem próximo à sala do presidente… A mensagem era clara. Mas, quando a PF concluiu que não havia nada contra ele, o principal telejornal da Globo silenciou antes da eleição.
Não vi matérias mostrando as conexões de Platão com Serra, com os tucanos.
Também nãoo vi (antes do primeiro turno) reportagens mostrando quem era Abel Pereira, quem era Barjas Negri, e quais eram as conexões deles com PSDB. Mas vi várias matérias ressaltando os personagens petistas do escândalo. E, vejam: ninguém na Redação queria poupar os petistas (eu cobri durante meses o caso Santo André; eram matérias desfavoráveis a Lula e ao PT, nunca achei que não devessemos fazer; seria o fim da picada…).
O que pedíamos era isonomia. Durante duas semanas, às vésperas do primeiro turno, a Globo de São Paulo designou dois repórteres para acompanhar o caso dossiê: um em São Paulo, outro em Cuiabá. Mas, nada de Piracicaba, nada de Barjas.!
Um colega nosso chegou a produzir, de forma precária, por telefone (vejam, bem, por telefone! Uma TV como a Globo fazer reportagem por telefone), reportagem com perfil do Abel. Foi editada, gerada para o Rio. Nunca foi ao ar!
Os telespectadores da Globo nunca viram Serra e os tucanos entregando ambulancias cercados pelos deputados sanguessugas. Era o que estava na tal fita do “dossiê”. Outras TVs mostraram o vídeo, a internet mostrou. A Globo, não. Provava alguma coisa contra Serra? Não. Ele não era obrigado a saber das falcatruas de deputados do baixo clero. Mas, por que demos o gabinete de Freud pertinho de Lula, e não demos Serra com sanguessugas?
E o caso gravíssimo das perguntas para o Serra? Ouvi, de pelo menos 3 pessoas diretamente envolvidas com o SP-TV Segunda Edição, que as perguntas para o Serra, na entrevista ao vivo no jornal, às vésperas do primeiro turno, foram rigorosamente selecionadas. Aquele diretor (aquele, voces sabem quem) teria mandado cortar todas as perguntas “desagradáveis”. A equipe do jornal ficou atônita. Entrevistas com os outros candidatos tinham sido duras, feitas com liberdade. Com o Serra, teria havido, deliberadamente, a intenção de amaciar.
E isso era um segredo de polichinelo. Muita gente ouviu essa história pelos corredores…
E as fotos da grana dos aloprados? Tínhamos que publicar? Claro. Mas, porque não demos a história completa? Os colegas que estavam na PF naquele dia (15 de setembro), tinham a gravação, mostrando as circunstâncias em que o delegado vazara as fotos. Justiça seja feita: sei que eles (repórter e produtor) queriam dar a matéria completa — as fotos, e as circunstâncias do vazamento. Podiam até proteger a fonte, mas escancarando o que são os bastidores de uma campanha no Brasil. Isso seria fazer jornalismo, expor as entranhas do poder.
Mais uma vez, fomos seletivos: as fotos mostradas com estardalhaço. A fita do delegado, essa sumiu!
Aquele diretor, aquele que controla cada palavra dos textos de política, disse que só tomou conhecimento do conteúdo da fita no dia seguinte. Quer que a gente acredite?
Por que nunca mostraram o conteúdo da fita do delegado no JN?
O JN levou um furo, foi isso?
Um colega nosso, aqui da Globo ouviu a fita e botou no site pessoal dele… Mas, a Globo não pôs no ar… O portal “G-1″ botou na íntegra a fita do delegado, dias depois de a “CartaCapital” ter dado o caso. Era noticia? Para o portal das Organizações Globo, era.
Por que o JN não deu no dia 29 de setembro? Levou um furo?
Não. Furada foi a cobertura da eleição. Infelizmente.
E, pra terminar, aquele episódio lamentável do abaixo-assinado, depois das matérias da “CartaCapital”. Respeito os colegas que assinaram. Alguns assinaram por medo, outros por convicção. Mas, o fato é que foi um abaixo-assinado em defesa da Globo, apresentado por chefes!
Pensem bem. Imaginem a seguinte hipótese: a revista “Quatro Rodas” dá matéria falando mal da suspensão de um carro da Volkswagen, acusando a empresa de deliberadamente não tomar conhecimento dos problemas. Aí, como resposta, os diretores da Volks tem a brilhante ideia de pedir aos metalúrgicos pra assinar um manifesto em defesa da empresa! O que voces acham? Os metalurgicos mandariam a direção da fábrica catar coquinho em Berlim!
Aqui, na Globo, muitos preferiram assinar. Por isso, talvez, tenhamos um metalúrgico na Presidência da República, enquanto os jornalistas ficaram falando sozinhos nessa eleição…
De resto, esté difícil continuar fazendo jornalismo numa emissora que obriga repórteres a chamarem negros de “pretos e pardos”. Voces já viram isso no ar? Sinto vergonha…
A justificativa: IBGE (e, portanto, o Estado brasileiro) usa essa nomenclatura. Problema do IBGE. Eu me recuso a entrar nessa. Delegados de policia (representantes do Estado) costumavam (até bem pouco tempo) tratar companheiras (mesmo em relações estáveis) como “concubinas” ou “amásias”. Nunca usamos esses termos!
Árabes que chegaram ao Brasil no início do século passado eram chamados de “turcos” pelas autoridades (o passaporte era do Império Turco Otomano, por isso a nomenclatura). Por causa disso, jornalistas deviam chamar libaneses de turcos?
Daqui a pouco, a Globo vai pedir para que chamemos a Parada Gay de “Parada dos Pederastas”. Francamente, não tenho mais estômago.
Mas, também, o que esperar de uma Redação que é dirigida por alguém que defende a cobertura feita pela Globo na época das Diretas?
Respeito a imensa maioria dos colegas que ficam aqui. Tenho certeza que vão continuar se esforçando pra fazer bom Jornalismo. Não será fácil a tarefa de voces.
Olhem no ar. Ouçam os comentaristas. As poucas vozes dissonantes sumiram. Franklin Martins foi afastado. Do Bom dia Brasil ao JG, temos um desfile de gente que está do mesmo lado.
Mas sabem o que me deixou preocupado mesmo? O texto do João Roberto Marinho depois das eleições.
Ele comemorou a reação (dando a entender que foi absolutamente espontânea; será que disseram isso pra ele? Será que não contaram a ele do mal-estar na Redação de São Paulo?) de jornalistas em defesa da cobertura da Globo:
“(…)diante de calúnias e infâmias, reagem, não com dúvidas ou incertezas, mas com repúdio e indignação. Chamo isso de lealdade e confiança”.
Entendi. Ele comemora que não haja dúvidas e incertezas… Faz sentido. Incerteza atrapalha fechamento de jornal. Incerteza e dúvida são palavras terríveis. Devem ser banidas. Como qualquer um que diga que há racismo — sim — no Brasil.
E vejam o vocabulário: “lealdade e confiança”. Organizações ainda hoje bem populares na Itália costumam usar esse jargão da “lealdade”.
Caro João, você talvez nem saiba direito quem eu sou.
Mas, gostaria de dizer a você que lealdade devemos ter com princípios, e com a sociedade. A Globo, infelizmente, não foi “leal” com o público. Nem com os jornalistas.Vai pagar o preço por isso. É saudável que pague. Em nome da democracia!
João, da família Marinho, disse mais no brilhante comunicado interno:
“Pude ter certeza absoluta de que os colaboradores da Rede Globo sabem que podem e devem discordar das decisões editoriais no trabalho cotidiano que levam à feitura de nossos telejornais, porque o bom jornalismo é sempre resultado de muitas cabeças pensando”.
Caro João, em que planeta você vive? Várias cabeças? Nunca, nem na ditadura (dizem-me os companheiros mais antigos) tivemos na Globo um jornalismo tão centralizado, a tal ponto que os repórteres trabalham mais como bonecos de ventríloquos, especialmente na cobertura política!
Cumpro agora um dever de lealdade: informo-lhe que, passadas as eleições, quem discordou da linha editorial da casa foi posto na “geladeira”. Foi lamentável, caro João. Você devia saber como anda o ânimo da Redação — especialmente em São Paulo.
Boa parte dos seus “colaboradores” (você, João, aprendeu direitinho o vocabulário ideológico dos consultores e tecnocratas — “colaboradores”, essa é boa… Eu não sou colaborador, coisa nenhuma! Sou jornalista!) está triste e ressabiada com o que se passou.
Mas, isso tudo tem pouca importância.
Grave mesmo é a tela da Globo — no Jornalismo, especialmente — não refletir a diversidade social e política brasileira. Nos anos 90, houve um ensaio, um movimento em direção à pluralidade. Já abortado. Será que a opção é consciente?
Isso me lembra a Igreja Católica, que sob Ratzinger preferiu expurgar o braço progressista. Fez uma opção deliberada: preferiram ficar menores, porém mais coesos ideologicamente. Foi essa a opção de Ratzinger. Será essa a opção dos Marinho?
Depois, não sabem porque os protestantes crescem…
Eu, que não sou católico nem protestante, fico apenas preocupado por ver uma concessão pública ser usada dessa maneira!
Mas, essa é também uma carta de despedida, sentimental.
Por isso, peço licença pra falar de lembranças pessoais.
Foram quase doze anos de Globo.
Quando entrei na TV, em 95, lá na antiga sede da praça Marechal, havia a Toninha — nossa mendiga de estimação, debaixo do viaduto. Os berros que ela dava em frente à entrada da TV traziam uma dimensão humana ao ambiente, lembravam-nos da fragilidade de todos nós, de como nossa razão pode ser frágil.
Havia o João Paulada — o faz-tudo da Redação.
Havia a moça do cafezinho (feito no coador, e entregue em garrafas térmicas), a tia dos doces…
Era um ambiente mais caseiro, menos pomposo. Hoje, na hora de dizer tchau, sinto saudade de tudo aquilo.
Havia bares sujos, pessoas simples circulando em volta de todos nós — nas ruas, no Metrô, na padaria.
Todos, do apresentador ao contínuo, tinham que entrar a pé na Redação. Estacionamentos eram externos (não havia “vallet park”, nem catraca eletrônica). A caminhada pelas calçadas do centro da cidade obrigava-nos a um salutar contato com a desigualdade brasileira.
Hoje, quando olho pra nossa Redação aqui na Berrini, tenho a impressão que estou numa agencia de publicidade. Ambiente asséptico, higienizado. Confortável, é verdade. Mas triste, quase desumano.
Mas, há as pessoas. Essas valem a pena.
Pra quem conseguiu chegar até o fim dessa longa carta, preciso dizer duas coisas…
1) Sinto-me aliviado por ficar longe de determinados personagens, pretensiosos e arrogantes, que exigem “lealdade”; parecem “poderosos chefões” falando com seus seguidores… Se depender de mim, como aconteceu na eleição, vão ficar falando sozinhos.
2) Mas, de meus colegas, da imensa maioria, vou sentir saudades.
Saudades das equipes na rua — UPJs que foram professores; cinegrafistas que foram companheiros; esses sim (todos) leais ao Jornalismo.
Saudades dos editores — que tiveram paciência com esse repórter aflito e procuraram ser leais às minúcias factuais.
Saudades dos produtores e dos chefes de reportagem — acho que fui leal com as pautas de voces e (bem menos) com os horários!
Saudades de cada companheiro do apoio e da técnica — sempre leais.
Saudades especialmente, das grandes matérias no Globo Repórter – com aquela equipe de mestres (no Rio e em São Paulo) que aos poucos vai se desmontando, sem lealdade nem respeito com quem fez história (mas há bravos resistentes ainda).
Bem, pelo tom um tanto ácido dessa carta pode não parecer. Mas levo muita coisa boa daqui.
Perdi cabelos e ilusões. Mas, não a esperança.
Um beijo a todos.
Rodrigo Vianna