pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sábado, 17 de dezembro de 2016

Sensação de ver personagem na tela é estranha e agradável, diz Padura

Série baseada na tetralogia policial do escritor cubano Leonardo Padura estreou na Netflix na última sexta (9)

O escritor cubano Leonardo Padura (Foto: Alejandro Ernesto/EFE)
O escritor cubano Leonardo Padura (Foto: Alejandro Ernesto/EFE)
Amanda Massuela
O detetive Mario Conde agora tem rosto, pele e osso. Interpretado pelo ator Jorge Perugorría no longa Vientos de la Habana e na série Quatro estações em Havana, o personagem mais famoso do escritor cubano Leonardo Padura chegou aos cinemas espanhóis em setembro e na plataforma de streaming Netflix na última sexta (9).
“É uma sensação muito estranha, mas foi muito agradável [ver o personagem], porque o ator Jorge Perugorría faz uma interpretação esplêndida. Ele sabe incorporar seu caráter, sua forma de falar, transmite sua tristeza e melancolia características”, disse Padura à CULT.
O autor nunca descreveu Conde fisicamente em seus romances, deixando a cargo de cada leitor imaginar o protagonista de sua Tetralogia das Quatro Estações – formada pelos títulos Passado perfeitoVentos de quaresmaMáscaras e o recém lançado no Brasil Paisagem de outono. “Descrevo todas as outras personagens, mas não Conde. Por isso é necessário ver se Pergurroía cumpriu as expectativas dos leitores ao interpretá-lo. No meu caso, ele as cumpriu.”
Nos quatro romances, Padura narra o cotidiano do tenente investigador pelas ruas da capital cubana durante as quatro estações de 1989, ano da queda do Muro de Berlim. Por meio do olhar de Conde, o escritor quer produzir uma crônica do que tem sido a vida cubana nas últimas décadas e olhar para a história do país como “a causa do que somos e vivemos”.
“A literatura não tem a obrigação de fazer essa crônica. O jornalismo, sim. Mas sinto que o jornalismo cubano não pôde realizar essa tarefa do modo que deveria, porque é demasiadamente oficial”, afirma. “Portanto, deixo que meus romances participem dessa construção de uma imagem possível de Cuba, que não é a única e nem a mais verdadeira. Mas creio que se parece bastante com a verdade – mais do que o jornalismo. E Mario Conde foi um instrumento fundamental para esse propósito.”
Estações de Havana, série da Netflix baseada na tetralogia policial do cubano, teve o roteiro adaptado pelo próprio Padura junto de sua mulher, Lucia Lopez Coll. Sem previsão de lançamento, o autor prepara ainda uma nova história para Conde, que termina justamente no dia em que se inicia o processo de negociações entre Cuba e os Estados Unidos. “É um fenômeno complexo e muito recente. Necessito de uma distância para poder vê-lo, para deixar que se estabeleça.”
*Tradução Edoardo Ghirotto
(Publicado originalmente no site da revista Cult)

Final de ano difícil para todos. Inclusive para Geraldo Júlio e Paulo Câmara



Resultado de imagem para Geraldo Júlio/Paulo Câmara

Recentemente, o juiz eleitoral encarregado de analisar as contas de campanha de reeleição do prefeito Geraldo Júlio, rejeitou-as, inclusive fazendo observações duras sobre as mesmas, onde aparece inúmeras irregularidades, como ausência de emissão de nota fiscal em algumas transações, empresas de fachadas e até virtuais. Numa dessas supostas "empresas", ainda hoje está estampada na fachada que se trata de uma casa de sucos. São muitas as irregularidades, o que contingenciará o futuro prefeito a dar muitas satisfações à sociedade recifense. Importante salientar que o juiz emite sua sentença a partir de pareceres construídos por técnicos do tribunal eleitoral, que apontaram essas irregularidades. O prefeito irá tomar posse, mas terá um imbróglio jurídico e político pela frente, com o qual terá que conviver durante a sua gestão. 

Se isso ainda não fosse suficiente, nos últimos dias o prefeito tomou conhecimento de que passou à condição de investigado no STF, em razão do acatamento de um pedido da Procuradoria-Geral da União, através do procurador Rodrigo Janot, em razão de possíveis irregularidades na construção da Arena da Copa, numa época em que ele atuava como um dos gestores estatais do projeto na parceria público privada. Outro que também assume o status de investigado é o hoje governador do Estado de Pernambuco, Paulo Saraiva Câmara, que dividia com ele essa responsabilidade, na gestão de Eduardo Campos. É incrível a reação dos homens públicos aqui da província quando são cobrados sobre a sua gestão. Quando a Polícia Federal realizou operações aqui no Estado, denominada por eles de Fairplay, envolvendo a denúncia de desvios gigantescos de recursos através daquela obra, um simples artigo levou o mandatário estadual a mover uma interpelação judicial contra o cientista político Michel Zaidan Filho. 

Agora, com a substantivação da aceitação do STF das denúncias da Procuradoria Geral da República, é nítida a impressão de que muitas coisas terão que ser devidamente explicadas. Apenas para relembrar, a Polícia Federal falava em desvios da ordem de R$ 42 milhões, concluindo que uma "quadrilha especializada" em roubar o erário atuava no Estado.Em meio a esta turbulência institucional e o país numa iminente convulsão social, o governador convida as Forças Armadas para atuarem na segurança pública do Estado. Não vamos aqui voltar a falar sobre o desacerto da medida, uma vez que escrevemos um longo editorial sobre o assunto, publicado aqui no blog. Os problemas de segurança pública no Estado estão se agravando desde meados de 2013. Certamente isso não está sendo bem visto pelos governistas, mas até a oposição está se oferecendo para participar do Pacto pela Vida. Não vejo nenhum problema nisso. Afinal, em questões de segurança publica, que envolve toda a sociedade, atores estatais e privados, os três poderes devem articular ações conjuntas em busca de sua solução para o problema. Pelo andar da carruagem política, o ano de 2016 é um ano para ser esquecido pelos "técnicos" socialistas.  

O repto das ruas ao Tratado de Versalhes das elites

Resgatar o espaço da democracia social nas ruas do Brasil é a tarefa que empresta frescor e esperança a 2017.

por: Saul Leblon

reprodução

O grau de sacrifício que o golpe decidiu impor à população brasileira é muito superior ao poder de ordenamento que as elites  detém para implementa-lo sem recorrer a um regime de força.
 
Só uma ampla frente de interesses ecumênicos poderá impedir que a lógica em curso se acerque do epílogo nefasto.
 
É sombrio o futuro da democracia no Brasil: 2017 será um ano decisivo para desenhar a nação que seremos no século XXI.
 
A vitória ou a derrota da resistência popular  nesse embate condicionará o destino da sociedade que seremos de agora em diante.




 
Arremeda-se aqui um Tratado de Versalhes revestido de medidas extremas de sacrifício e empobrecimento, qualificadas pela relatoria de Direitos Humanos da ONU ‘como sem precedente no mundo em sua duração e intensidade’.
 
’Essa emenda’, diz Philip Alston, relator da ONU, ‘(ademais de)  atar as mãos de todos os próximos governos por outras duas décadas, bloqueará gastos em níveis inadequados e rapidamente decrescentes na saúde, educação e segurança social, colocando toda uma geração futura em risco de receber uma proteção social muito abaixo dos níveis atuais.... Se for adotada, colocará o Brasil em uma categoria única em matéria de retrocesso social’.
 
Ao contrário do acordo imposto à Alemanha em 1919 pelo Tratado de Versalhes, igualmente incompatível com a capacidade de pagamento e sobrevivência da sociedade,  como anteviu John Mainard Keynes  --que abandonou a delegação inglesa nas negociações e expôs suas divergências no clássico ‘As consequências econômicas da paz’— o alvo agora não é um inimigo à mercê da vingança dos vitoriosos, após a conflagração mundial que custou dez milhões de vidas, 400 mil só na França.
 
O alvo da elite brasileira hoje é o próprio povo, tratado como inimigo dentro do seu próprio país.
 
Descarrega-se sobre a geração de hoje, a de ontem e a de amanhã, o descomunal custo de uma transição de desenvolvimento só equacionável com a repactuação justa do ônus da travessia e a democratização das oportunidades previstas na chegada.
 
As elites e os donos da riqueza preferiram o golpe.
 
A diretriz  incrustrada na PEC 55– como também na reforma da Previdência em curso, e na ‘flexibilização das leis trabalhistas’ sinalizada,  desenha um horizonte de afunilamento extremo do acesso a direitos e à renda num quadro de desigualdade secularmente asfixiante.
 
A ganância replica em certa medida a postura do insaciável George Clemenceau, o primeiro-ministro francês, nas negociações de paz de Versalhes na primeira guerra, entre as potencias vitoriosas (França, Inglaterra e EUA) e a Alemanha derrotada.
 
Sugestivamente conhecido como ‘Tigre’, o representante de Paris traduzia em exigências de pagamentos e ressarcimentos a ferocidade felina atada à jugular da presa.
 
A ‘paz cartaginesa’ de 1919 vale como metáfora do que se pretende agora como nova ordem social, com a PEC -55.
 
Às famílias assalariadas, aos pobres e deserdados reserva-se um jejum de futuro equivalente ao dispensado por Roma aos derrotados de Cartago.
 
Até o solo da antiga colônia foi salpicado de sal, para que o povo fenício não mais pudesse semear nem colher.
 
A PEC 55 salga o futuro da pobreza hoje e amanhã ao estreitar, por exemplo, ainda mais, o corredor já rígido da educação como atalho mitigador da desigualdade brasileira.
 
O espírito de convergência inscrito no pacto social da Carta Cidadã de 1988 foi rompido em seus fundamentos, sem consultar a sociedade.
 
Desobriga-se o Estado, pelos próximos vinte anos, de assegurar 18% da receita líquida da União à escola pública nacional.
 
Nesse período o orçamento terá apenas a reposição inflacionária.
 
Significa que diante da expansão demográfica, em dez anos, ou seja, em 2026, os 18% atuais representarão 14,7%; que despencarão para 9,3%  em 2036 (50% menos que o valor insuficiente disponível hoje).
 
Estamos falando de um garrote progressivo em um sistema em que o salário base do professorado equivale a menos da metade da média da OCDE -- sendo igualmente mais baixo que o de países da América Latina como Chile, México e Colômbia. 
 
O Brasil investe US$ 3,8 mil /ano por aluno na educação básica.
 
Os países da OCDE investem, em média, cerca de US$ 8,4 mil/ano per capita nos anos iniciais.
 
A defasagem é maior ainda nos estágios subsequentes.
 
Qual a surpresa com os resultados ainda desfavoráveis nos rankings internacionais de aprendizagem?
 
É esse sistema vulnerável, desafiado a dobrar as matrículas no ensino superior até 2024, a expandir o ensino técnico para elevar a produtividade da economia, a universalizar o acesso à educação infantil entre 4 e 5 anos e a universalizar e elevar a qualidade do atendimento escolar na faixa crítica entre 15 e 17 anos que está sendo garroteado agora para não ampliar investimentos por vinte anos.
 
Na saúde, o Tratado de Versalhes brasileiro prevê um corte de R$ 440 bilhões até 2036.  
 
Hoje o SUS já se encontra subfinanciado, respirando por aparelhos –e esse é um consenso suprapartidário.
 
O que se passa é algo distinto da recorrente barragem conservadora a novos avanços sociais.
 
O espírito de Clemenceau está no ar.
 
A determinação é a de esfolar até ao osso, pelo tempo mais longo possível, as famílias assalariadas, a pobreza e a velhice desamparada.
 
O tigre da ganância capitalista fechou as mandíbulas na jugular do Estado, da nação e de sua gente.
 
Para não pagar imposto.
 
Um estudo do PNUD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, corrobora o bordão conservador de que o Brasil cobra quase tantos impostos quantos os países ricos.
 
A obsequiosa mídia oficialista omite, porém, a distinta composição dessa carga.
 
Ao invés de taxar a riqueza, o fisco brasileiro suga a classe média e os pobres.
 
Os "super-ricos" do Brasil, ou 0,05% da população,  diz o PNUD, pagam proporcionalmente menos impostos do que pessoas de renda intermediária. 
 
Ganhos anuais superiores a R$ 4 milhões desfrutam de isenções sobre lucros e dividendos –sua principal fonte, em muitos casos. Isso garante que a republica rentista e a pátria dos acionistas pague, de fato, uma alíquota média de 7% aos fundos públicos.
 
O cidadão comum paga em média 12%. 
 
O requisito para manter essa assimetria tão estável quanto a paz dos cemitérios imposta à Alemanha é a faxina social promovida pelo golpe de 31 de agosto.
 
No momento estratégico em que o esgotamento de um ciclo de desenvolvimento impunha a discussão do passo seguinte a ser escrutinado pela sociedade, as elites se anteciparam.
 
E enfiam goela abaixo da sociedade o seu projeto de paz social.
 
Consiste em tomar de volta, subtrair e predar tudo o que se acumulou em décadas, por sucessivas gerações que foram às ruas, às greves, às urnas e ao sacrifício da liberdade --da própria vida--  para universalização os direitos sociais básicos no Brasil.
 
Mira-se desde a CLT, de Getúlio –e a partir daí,  tudo o que veio depois.
 
Tudo o que não é mercado é populismo e corrupção, catequiza o jogral fúnebre da mídia embarcada.
 
Uma rendição celerada e incondicional é operada nesse ambiente por um parlamento que se ergue vergonhosamente contra o povo e como um hímen complacente, sanciona todas as violações contra o patrimônio e a soberania da nação.  
 
A ‘des-emancipação’ social em massa atingirá a presente geração, a anterior, idosa, e a futura, hoje na soleira do mercado e da cidadania. 
 
Não se cogita que o que está em jogo é o destino de um dos países mais promissores dentre os que lutam pelo desenvolvimento no século XXI.
 
Ignora-se  a vida e a morte, assim como as convulsões inerentes ao desatino em marcha.
 
Cega pela ganância, a elite enxerga na sociedade apenas o entreposto onde salgar carne humana em troca da acumulação descabida e imperturbável de riquezas e privilégios.
 
O que se pretende é devolver ao absoluto desamparo a parcela majoritária da sociedade, para deserda-la por décadas dos meios pelos quais poderia influenciar as relações de poder e produção no capitalismo brasileiro. 
 
O conjunto requer uma ruptura histórica para se consumar.
 
Não qualquer uma.
 
Essa que será decidida nas ruas em 2017.
 
De uma ferocidade equivalente à urdida no salão de espelhos do Palácio de Versalhes, onde o ‘Tigre’ exigiu a penhora do sangue e da alma de sucessivas gerações alemãs. 
 
Uma escalada dessa natureza e intensidade implica em algum ponto da cadeia em se recorrer à fascistização dos instrumentos de Estado.
 
Na Alemanha isso ocorreu em 30 de janeiro de 1933, quando o partido nazista, já majoritário no parlamento, impôs seu líder, Adolf Hitler, como chanceler do enfraquecido governo Hindenburg .
 
O resto é bastante conhecido. 
 
Uma das primeiras medidas de Hitler foi colocar o partido comunista na ilegalidade.
 
Seguiu-o, a cassação da socialdemocracia  –ambos fragilizados pela divisão intestina nascida da repressão aos espartaquistas de Rosa de Luxemburgo pelo SPD, ente 1918 e 1919.
 
Esse ângulo da tragédia alemã reserva outra advertência às forças progressistas brasileiras do presente.
 
Enquanto as esquerdas germânicas se matavam literalmente, seu destino comum era selado pela captura integral do Estado por uma simbiose perfeita entre capitalismo e nazismo, cujo êxito até hoje espanta os que identificam capitalismo à livre concorrência.
 
O Tratado de Versalhes levaria a sociedade alemã a uma escalada indivisa de colapsos sequenciais de natureza econômica, social e política que pavimentou a demanda por uma solução centralizadora, impositiva e identitária. 
 
Degraus sucessivos de hiperinflação, desemprego em massa e a inexistência de alternativa coesa nas fileiras progressistas criariam uma catarse social,   induzindo a nação alemã a entregar seu  destino e o destino de seu desenvolvimento às promessas de ordem e redenção nacional acenadas pelo nazismo. 
 
Keynes estava certo: uma paz efetiva exigiria a repactuação entre vencedores e vencidos, de modo a recriar as condições para uma coordenação estatal de investimentos, capaz de restaurar a esperança e a fraternidade em um futuro de empregos, oportunidades e democracia social.
 
O caminho escolhido em Versalhes, como hoje na encruzilhada do desenvolvimento brasileiro, foi outro.
 
O fardo das reparações impagáveis, das expropriações de infraestrutura, colônias, riquezas públicas e privadas levou ao empobrecimento generalizado, ademais do sentimento de humilhação e opressão.
 
O conjunto arrastaria a sociedade a um rodamoinho de radicalização e sobressaltos que se prolongaria por mais de uma década, culminando em 1931 com a ‘moratória Hoover’ que suspendeu os pagamentos. 
Tarde demais.
 
O desemprego havia queimado todas os disjuntores de estabilidade na vida alemã. 
 
Em 1929 o país registrava 2,8 milhões de desempregados; em 1932 esse contingente saltaria para quase seis milhões --o Partido Nacional Socialista conquistaria então 13,5 milhões de votos (37,4%), tornando-se o maior do Parlamento, com 230 cadeiras.
 
O crash na Bolsa de Nova Iorque (1929) seccionou o último balão de oxigênio da economia, representado por investimentos diretos de capitais norte-americanos, que paradoxalmente serviram de correia de transmissão da crise de Wall Street no mercado germânico.
 
A escalada de desamparo e liquefação das instituições parecia corroborar a incapacidade do Estado liberal  de devolver algum chão firme à produção e à democracia .
 
A humilhação, o medo e a revolta falavam alto em cada esquina.
 
A extrema-direita fazia campanha política nas rádios apenas lendo a lista de imposições trazida pelos negociadores de Versalhes.
 
Que não eram poucas.
 
Nem menos que devastadoras.
 
Na verdade, ainda hoje soam quase inacreditáveis em se tratando de um acordo para paz -- assim como soam desconcertantes as imposições decretadas aqui pelo golpe.
 
Keynes, em sua obra sobre Versalhes, lista alguns  exemplo:
 
1)  sistema econômico alemão existente antes da guerra dependia de três fatores principais: I) o comércio ultramarino representado pela sua marinha mercante --suas colônias, seus investimentos estrangeiros, suas exportações e os encadeamentos de seu mercado com o exterior; II) a exploração do seu ferro e carvão, e as indústrias baseadas nesses produtos; III) seu sistema de transporte e suas tarifas.  O Tratado de Versalhes induziu à destruição sistemática desses três pilares.
 
2) A Alemanha cedeu aos aliados todos os navios da sua marinha mercante com mais de 1.600 toneladas brutas; metade dos navios entre 1.000 e 1.600 toneladas e um quarto das suas traineiras e outros barcos de pesca. Mais que isso: o confisco atingia todos os barcos de bandeira alemã no exterior e  todos aqueles de propriedade de  alemães, mesmo que sob outras bandeiras, assim como todos os barcos em construção. Ainda: os estaleiros alemães, quando solicitados, deveriam construir para os aliados todos os tipos de navios, num total de 200.000 toneladas/ ano,  durante cinco anos. Ou seja, a marinha mercante alemã foi varrida dos mares. Para que o país transportasse suas mercadorias, o tratado previa que pagasse pelo frete em cascos de sua antiga frota  --ao preço que os vitoriosos arbitrassem.
 
3) Todos os direitos, terras e títulos das possessões e colônias alemãs no ultramar foram confiscados definitivamente pelos aliados. Diferentemente da prática adotada na maioria dos acordos bélicos da história, as propriedades privadas de alemães também foram confiscadas. Seus detentores originais poderiam ou não ser autorizados a residir, ter propriedade, exercer o comércio ou uma profissão nesse território.
 
4) Todos os contratos de empresas alemãs para a construção ou exploração de obras públicas foram transferidos para os governos das nações vitoriosas.
 
5) A expropriação em massa de propriedade privada e contratos seria feita sem qualquer compensação dos indivíduos ou grupos penalizados.
 
6) O parque fabril alemão na Alsácia- Lorena poderia ser expropriado sem compensação, a critério do governo francês. À França, igualmente, caberia a posse plena e absoluta, sem ônus, livre de todas as dívidas de qualquer espécie, as minas de carvão situadas na bacia do Sarre.
 
7) O sistema ferroviário alemão, um dos pilares do dinamismo comercial germânico, foi fatiado e redistribuído entre os vencedores com o confisco de 150 mil vagões e cinco mil locomotivas.
 
8) Por fim, a soma de reparações em dinheiro e o pagamento de pensões aos mutilados ou familiares de mortos na guerra, dos países vitoriosos, impuseram à Alemanha transferências anuais –sujeitas a juros arbitrados unilateralmente em caso de atrasos— de uma soma quatro vezes superior à que Keynes, por exemplo, considerava factível sem a destruição do país.
9) Pelo menos 80% do saldo do comércio exterior alemão teria que ser destinado à finalidade dos pagamentos em dinheiro previstos por Versalhes. 
 
O não cumprimento das cláusulas, punido com juros, perpetuaria a condição devedora do país, impondo-se novas penalizações, como foi o caso da ocupação do polo industrial do Ruhr pelos vitoriosos, em 1923.
 
A reação dos negociadores alemães em Versalhes diante da lista leonina, apropriadamente tratada por Keynes de ‘as consequências econômicas da paz’, foi de choque.
 
Em um primeiro comunicado, antes de ser coagida a anuir sob risco de uma ocupação militar violenta, a comissão de representantes de Berlim desabafou:
 
‘A democracia alemã é aniquilada justamente no momento em que o povo alemão se dispunha a erigi-Ia –e pelas mesmas pessoas que durante toda a guerra não se cansaram de afirmar que pretendiam trazer-nos a democracia... A Alemanha deixa de ser um povo e um Estado; passa a ser um simples empreendimento comercial, colocada pelos seus credores nas mãos de um administrador de massa falida, sem ter sequer a oportunidade de demonstrar o desejo de cumprir por conta própria as suas obrigações. A comissão, sediada em caráter permanente fora do território alemão, terá nesse território direitos incomparavelmente maiores do que os do Imperador; (tal política reduzirá) a  Alemanha à servidão por toda uma geração (...) Alguns a pregam em nome da justiça (...) a justiça nunca é tão simples. E se fosse, a religião ou a moral natural não autoriza as nações a fazer recair sobre os filhos dos seus inimigos as perversidades dos seus pais ou governantes’. 
 
Depois de resumir as principais disposições do Tratado de Paz, o relatório alemão concluía: 
 
‘ (...) com a sua produção diminuída, depois da depressão resultante da perda das colônias, da frota mercante e dos investimentos no exterior, dentro de muito pouco tempo o país não terá condições de fornecer pão e emprego a seus numerosos milhões de habitantes, impedidos de ganhar a vida. Para implementar as condições do Tratado de Paz seria necessário, logicamente, reduzir a população alemã em vários milhões. Uma catástrofe que poderia não tardar, considerando que a saúde do povo alemão foi muito prejudicada - pelo bloqueio, durante a guerra, e pelo agravamento da fome, durante o armistício’. 
 
Trechos do desabafo germânico poderiam ser evocados na apreciação da política de terra arrasada em curso hoje no Brasil.
 
À  semelhança de Versalhes, ela reserva um tratamento de tropa de ocupação a direitos sociais, salários, riquezas nacionais como o pré-sal, ademais de promover a dizimação do estoque de expertise e capacidade produtiva condensado em grandes corporações empresariais  --esfaceladas pela ação grosseira ou deliberada do lubrificante curitibano, de marca Lava Jato, que auxiliou na derrubada do governo Dilma Rousseff.
 
A história fará esse relatório minucioso em algum momento no futuro.
 
Por ora, cumpre observar que o repto à virulência em curso é inexorável.
 
Ilude-se quem confunde a perplexidade com resignação.
 
Sim, há prostração intensa em alguns segmentos.
 
Ele decorre, em boa parte, do largo período de avanços incrementais no consumo, na renda e nos direitos, sem a contrapartida de uma armadura política, organizacional e midiática capaz de defende-los na hora do confronto que viria.
 
Como veio, antecedido, astutamente, de uma caçada à corrupção.
 
Nesse ambiente deliberadamente turvado pelo descrédito paralisante na política, a regressão anunciada reveste-se de imposições e sacrifícios insuportáveis em uma nação marmorizada por carências e urgências apenas proteláveis sob o abrigo da esperança. 
 
A esperança é esse sentimento que agoniza dentro dos lares, nas ruas, nas escolas, nas fábricas, nas grandes metrópoles e nos campos distantes, nesta sombria despedida de 2016.
 
A atmosfera de um rolo compressor sob o qual nada se mantém de pé reflete, no entanto, a força de um martelete midiático que ecoa mais do que pode de fato.
 
A agenda antissocial e antinacional do golpe carrega o seu limite e vulnerabilidade na própria ferocidade que ordena o seu escopo, assim como as imposições do ‘Tigre’, em Versalhes.
 
A rota bruta virulenta e cínica de colisão com pleitos, bandeiras e projetos torna inevitável a emergência de uma nova  referência de desenvolvimento e de futuro para a nação, a economia, a sua gente e o seu sonho.
 
A chance de as forças progressistas retomarem a iniciativa política depende da sua capacidade de prover  escala e consistência à demanda por esse repto.
 
Há um requisito mais geral para isso: a determinação e o desassombro para se enxergar o esgotamento de um ciclo histórico e as balizas que podem pavimentar o próximo.
 
A resistência socialista e democrática alemã não conseguiu construir a unidade de forças necessária à modelagem desse repto nos anos 20.
 
Hitler o fez pela chave sanguinária do nazismo, nos anos 30.
 
No caso brasileiro, o que se requisita é a articulação de um protagonista social com força e consentimento para acionar os novos motores do desenvolvimento –identificados pelo golpe como sendo o desmanche dos direitos sociais e a entrega do patrimônio público que resta ao país.
 
Antes que um Hitler sinalize a rota alternativa no totalitarismo de um Estado policial, as forças democráticas e progressistas devem oferecer ao discernimento social as linhas de passagem de uma travessia crível e desassombrada de repactuação do país e do seu desenvolvimento ancorado em uma pedra angular inegociável: a construção da democracia social no ambiente saturado da desordem neoliberal em nosso tempo.
 
Resgatar o espaço da democracia social nas ruas do Brasil é a tarefa que empresta frescor e esperança a 2017.
 
Que seja um bom Ano Novo, são os desejos de Carta Maior.
(Publicado originalmente no Portal Carta Maior) 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Le Monde: Nem todas as mulheres dos Estados Unidos são Hillary Clinton...


Misógino contumaz e cercado de acusações de assédio sexual, Donald Trump afastou de si boa parte do eleitorado feminino. Aproveitando-se dessa impopularidade, Hillary Clinton apresenta-se como um modelo às mulheres em busca de emancipação. No entanto, a igualdade de gênero permanece um distante horizonte nos EUA
por Florence Beaugé


Quando ela se inclina, a blusa se entreabre e podemos ler em seu colo: “Ela acreditou que era capaz, então fez”. A tatuagem é sua oração. Após vários anos trabalhando na administração pública e ganhando mal por falta de diploma, Tiffany Runion decidiu retomar os estudos. Matriculou-se na Universidade de Toledo, uma pequena cidade de Ohio, no meio-oeste dos Estados Unidos, e foi estudar Sociologia, com habilitação em gender studies (estudos de gênero). Após cinco anos de trabalho duro, muito sacrifício e uma dívida que a perseguirá por muito tempo, ela agora tem uma profissão – assistente social – e projetos. Runion é uma emblemática representante dos millennials (geração do milênio), cujas mulheres entre 16 e 36 anos fizeram Gloria Steinem – um ícone dos direitos das mulheres – dizer: “Essas são as novas feministas!”.
Ela teve de se tornar mãe para entender o que é a “exceção norte-americana”. Não há licença-maternidade. Não há creches públicas. Não há nenhuma estrutura de guarda de crianças pequenas (a escola pública só as recebe a partir dos 5 anos de idade). E direitos – ao aborto, especialmente – sempre podem ser postos em questão. Runion engasga ao listar tudo o que está errado para as mulheres nos Estados Unidos: “O país mais poderoso do mundo não é capaz de cuidar de seus cidadãos, isso é revoltante!”.
“Aqui, podemos dirigir. Não somos obrigadas a ter um homem ao lado para sair, viajar, trabalhar ou ir ao médico. Podemos estudar sem medo de ser atacadas. Não somos forçadas a nos casar na adolescência”, enumera Jessica Ravitz, jornalista especializada em questões sociais para a rede CNN. “Preferimos ver os Estados Unidos como um exemplo. Mas, em muitas áreas, estamos atrasados no que diz respeito às mulheres.”

Recorde de mortalidade materna
Dois pontos sensíveis costumam ser mencionados: o acesso desigual à saúde e o salário mínimo. Nos Estados Unidos, a taxa de mortalidade materna é a mais alta do mundo desenvolvido. Longe de diminuir, ela mais que dobrou desde o fim dos anos 1980. De acordo com a organização Black Women’s Roundtable, o número de mulheres afro-americanas mortas por complicações na gravidez ou no parto é de 42,8 para cada 100 mil nascidos vivos. Entre as brancas, a taxa é menor, mas ainda elevada: 12,5, contra 9,6 na França e 4 na Suécia. Segundo Terry O’Neill, presidente da National Organization for Women (NOW), esse recorde “aterrador” está relacionado à falta de seguro-saúde para um grande número de mães, nem ricas o bastante para pagar por ele nem pobres o suficiente para ter acesso gratuito ao serviço de saúde. Embora sejam quase metade da força de trabalho nos Estados Unidos, as mulheres representam dois terços do universo de trabalhadores que recebem apenas o salário mínimo federal, congelado em US$ 7,25 por hora desde 2009.
Há apenas quatro países em todo o mundo que não garantem licença-maternidade remunerada: Suazilândia, Lesoto, Papua-Nova Guiné e... Estados Unidos. Se existe uma queixa recorrente entre as mulheres norte-americanas, é essa. Hoje, a única obrigação das empresas em nível federal é permitir doze semanas de licença (não remunerada) para mulheres grávidas, com a garantia de terem seu emprego quando voltarem.
Entre as millennials, a revolta cresce, mas não a ponto de empurrá-las para as ruas. “Nada de interferência do poder público na vida privada! Esse conceito tem uma vida difícil nos Estados Unidos”, lamenta Virginia Valian, professora de Psicologia na Hunter College, em Nova York. Mas assiste-se a uma tomada de consciência, especialmente entre a geração mais jovem. “Cada vez mais gente admite, quando questionada: ‘Esta não é a vida que eu quero’. Os homens não se atrevem a dizê-lo tão abertamente quanto as mulheres, com medo de prejudicar sua carreira, mas também pensam assim”, diz Virginia Valian. Para a cientista política Karlyn Bowman, do American Enterprise Institute, um think tank conservador, a “exceção norte-americana” deve-se principalmente à diferença de mentalidade nos dois lados do Atlântico. “Eu gosto do sistema francês, mas aqui somos muito mais individualistas. Não pedimos necessariamente a intervenção do Estado, embora tenhamos avançado nessa direção.” É verdade que a palavra “socialismo” já não provoca mais o mesmo terror de outrora. Daí, talvez, o relativo sucesso alcançado pelo candidato Bernie Sanders junto aos jovens nas primárias democratas.

Em Toledo, Meghan Cunningham, de 32 anos, explica que, sem a ajuda da família, não teria se salvado. Quando era repórter no Toledo Blade, o jornal regional, ela deu à luz em uma manhã de sábado: “Eu parei no dia anterior, na sexta-feira! Quase todas as mulheres fazem como eu: guardam o máximo de dias para o período após o nascimento, tomado principalmente de suas folgas remuneradas”. O problema é tão grande que o comediante Jon Oliver falou sobre o assunto em 10 de maio de 2015, Dia das Mães, em seu programa Last Week Tonight, transmitido pela HBO: “Elas nos deram a vida, elas nos criaram, elas fizeram de nós aquilo que somos hoje. Neste Dia das Mães, temos apenas uma coisa a lhes dizer: voltem já para sua m... de emprego!”.
No entanto, as coisas estão mudando. Ainda não em nível federal, mas em escala local. Em abril de 2016, São Francisco tornou-se a primeira cidade a obrigar as empresas a concederem seis semanas de licença-maternidade remunerada, o que entrará em vigor em 2017.1 Embora muitas empresas reclamem, outras estão interessadas em recuperar suas funcionárias após o nascimento dos filhos. Facebook, Microsoft e Yahoo, por exemplo, já oferecem dezesseis semanas de licença-maternidade paga.
Outra grande preocupação das mães norte-americanas, frequentemente citada como um obstáculo à carreira: a guarda das crianças, sobretudo seu custo. “Eu só abri os olhos quando tive minha filha. Antes, não conseguia nem identificar os problemas relacionados ao meu ‘gênero’! O jardim de infância privado é horrível, e o sistema escolar é organizado de um modo que obriga um dos pais a ficar em casa”, critica Anna Allen, nova-iorquina, chefe de uma ONG, mãe solteira de uma menina de 3 anos que ela adotou. Para cuidarem de sua filha, ela desembolsa US$ 2,1 mil por mês, o mesmo que seu aluguel. Pagos esses dois itens, não lhe sobra muito para viver. “Aqui, celebramos incansavelmente os valores da família, mas não os defendemos. Não há coerência. Na verdade, continuamos a apoiar um sistema patriarcal”, avalia.
As “questões de gênero” não são a principal preocupação de Sandra Pagan, mãe solteira de cinco filhos e moradora do Bronx. A verdadeira questão, em sua opinião, são as disparidades de classe e renda. “Como conseguir dinheiro para me virar?” Essa é a pergunta que a mulher de 38 anos, vinda de Porto Rico, faz toda manhã, quando levanta, às 5 horas, para cuidar da família antes de ir para sua lojinha de óculos. “Não importa o que eu faça, entre encargos, impostos e o cuidado dos meus filhos, meu salário inteiro se vai. Todos os dias eu me pergunto se vale a pena continuar trabalhando.” A alternativa: viver de parcos benefícios ou food stamps (cupons de alimentos).

“Muitas prefeririam ficar em casa”
É coincidência que, desde 2000, muitas venham desistindo de seu emprego? Há 25 anos, os Estados Unidos ocupavam o sexto lugar, entre os países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), para as taxas de trabalho das mulheres. Hoje estão na 17ª posição.
Os candidatos democratas à Casa Branca – Bernie Sanders e Hillary Clinton – fizeram da desigualdade salarial seu tema favorito. Segundo um estudo feito em 2014 pelo Bureau of the Census, agência oficial encarregada do censo norte-americano, as mulheres ganham em média 21% a menos que seus colegas homens.2 A diferença aumenta se forem negras (36% a menos) ou hispânicas (44%). Entre as millennials, no entanto, a diferença cai para 10%, o que traz esperanças de melhoria.
Os homens não são mais graduados que as mulheres – pelo contrário –, mas monopolizam as profissões mais bem remuneradas. A população feminina continua concentrada em profissões como enfermeira, professora etc. Mas fazer carreira, para as mulheres, é uma questão de escolha? “A tese dominante é de que elas escolhem desacelerar quando têm filhos.3 Mas isso não é verdade. Na maioria das vezes, elas sucumbem à pressão dos empregadores”, responde Virginia Valian. Essa não é a opinião de Karlyn Bowman: “Muitas prefeririam ficar em casa com os filhos se pudessem”, afirma. “A demanda por jardins de infância públicos é enorme, mas eu duvido que algum dia essa medida seja tomada, pois o custo seria astronômico!”

Igualdade de sexos fora da Constituição
Nas fileiras conservadoras, ninguém está disposto a fazer concessões. A desconfiança em relação ao governo federal nunca foi tão grande. Elizabeth Bergman, de 32 anos, agricultora orgânica em tempo parcial em Ohio, assume-se republicana de coração. Ela aderiu ao Partido Libertário em 2016, por repulsa a Donald Trump. Seu temor: o aumento dos impostos. Para ela, as mulheres não têm de se queixar nos Estados Unidos. Elas são livres para fazer suas escolhas; só têm de assumi-las. “Eu voltei a estudar para ser psicóloga. Terei horários flexíveis quando tiver filhos. É uma escolha!”, insiste. “Se eu trabalhar em tempo parcial, isso afetará meu salário, é claro, mas será minha escolha!” Seria Bergman representativa de sua geração? Ela morre de rir: “Acho que não!”.
As mudanças na sociedade transformaram a condição feminina. Apenas 46% das crianças vivem com seus dois pais. As mulheres casam-se cada vez menos e cada vez mais tarde. Quando têm o primeiro filho, 70% das negras não são casadas, contra 30% das brancas. As mulheres solteiras passaram a ser mais numerosas que as casadas.
Também mais numerosas são as mulheres breadwinners (chefes de família), “seja porque criam seus filhos sozinhas, seja porque ganham mais que o cônjuge”, de acordo com D’Vera Cohn, analista no Pew Research Center de Washington. Como elas não têm medo de se fazer ouvir, os políticos ou as cortejam, ou as temem. Eles as veem como uma força política em potência. Elas não transigem, de fato, sobre algumas questões: direitos reprodutivos, igualdade salarial... E, eles também sabem, elas votam majoritariamente nos democratas.
Na política, porém, a paridade está longe de ser alcançada: o Congresso tem apenas 19,4% de mulheres eleitas. Quase todos os cargos de governador são ocupados por homens (44 de 50). Mesmo entre os prefeitos, há apenas 18,8% de mulheres dirigindo cidades com mais de 30 mil habitantes. Quando falamos desses dados, muitas de nossas entrevistadas dão de ombros. “A política, do modo como é praticada nos Estados Unidos, não me atrai. Não corresponde à minha visão de mundo”, declara Emmaia Gelman, uma professora nova-iorquina, mãe de três filhos que ela cria com sua companheira.
Outras, ao contrário, mostram uma determinação inesperada: “Um dia, serei candidata em uma eleição. Talvez para o conselho municipal”, anuncia tranquilamente Lucy Franck, de 21 anos, estudante de Ciência Política na Universidade de Toledo. Originária de Wauseon, uma pequena cidade de Ohio, ela revela que “toda sua família vota nos republicanos”. Ela conta sobre sua infância e adolescência vividas em um meio rural abertamente conservador e até mesmo racista: insultos contra os muçulmanos, proibição absoluta do aborto “mesmo em caso de estupro” e todo o peso desse meio “que rejeita qualquer questionamento a seu próprio respeito, por menor que seja”. De tempos em tempos, seu pai a adverte: “Espere um pouco, minha pequena. Com a idade, você se tornará conservadora!”.
Ser conservador não impede certas tolerâncias em Ohio. Os homossexuais ou, de forma mais ampla, lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) são aceitos, desde que “não passeiem por aí de mãos dadas”, como resume Gina Mercurio, dona da única livraria feminista em Toledo. A sala de leitura da biblioteca chama-se Steinem’s Sisters, em homenagem a Gloria Steinem, nascida em Toledo há 82 anos. Todo ano, em agosto, uma Parada do Orgulho Gay é realizada na cidade, reunindo 15 mil a 20 mil pessoas, sem maiores incidentes.
Marcy Kaptur é um modelo para muitas jovens de Toledo. Eleita pelo 9º Distrito de Ohio para a Câmara Federal, essa democrata elegante e bem cuidada de 70 anos de idade, próxima de Sanders, é a mais velha dos parlamentares. “Havia uma dúzia de mulheres eleitas no Congresso quando eu entrei. Hoje somos 104. O progresso é lento, mas constante”, assegura. Recorrer à política de cotas para acelerar o movimento? Como muitos norte-americanos, Kaptur é contrária a essa medida. “Temos espírito de competição”, argumenta. Segundo ela, o maior obstáculo quando se quer fazer política não é o sexismo, mas “o papel do dinheiro nas campanhas eleitorais”.
Embora a paridade ainda deva levar muito tempo para ser alcançada, as mentalidades estão mudando. Em 1937, dezoito anos após as mulheres conquistarem o direito de voto em nível federal, apenas 33% das eleitoras norte-americanas declaravam-se dispostas a votar em uma mulher, de acordo com uma pesquisa Gallup. Hoje, são 92%. Peter Glick, professor universitário e psicólogo, destaca, no entanto, que o sexismo está longe de ter desaparecido. “Jamais o comportamento de um Trump seria aceito em uma mulher! Os interditos impostos a elas – não ter desejo de poder, por exemplo – continuam fortes, assim como os estereótipos sobre a mulher ‘ideal’”, observa o docente de Ciências Sociais da Universidade Lawrence d’Appleton, no Wisconsin.
Essas barreiras são ainda mais altas para as afro-americanas. “O teto de vidro e a superioridade dos homens brancos, todas conhecemos isso! Mas nossa navalha tem dois fios. Somos discriminadas por sermos mulheres ou por sermos negras?”, interrogam-se Janet Charles, jurista desempregada, e Valery Bradley, que dirige uma pousada no Harlem.
O movimento feminista norte-americano contemporâneo é marcado por essa “interseccionalidade” das opressões. “Cada mulher está em uma encruzilhada de preconceitos que se multiplicam e se combinam”, constata Laurence Nardon, pesquisadora do Instituto Francês de Relações Internacionais. Roxane Gay, figura negra do feminismo norte-americano, confirma isso, a seu modo: “Nos Estados Unidos, o simples fato de ser qualquer coisa diferente de um homem branco saudável de classe média já é um desafio”.
“As mulheres negras sofrem de um sexismo sem proporção”, lembra Celia Williamson, pesquisadora da Universidade de Toledo, conhecida pela luta contra o tráfico de seres humanos, e ela mesma mestiça. “No geral, as coisas estão melhores para as mulheres, especialmente quando elas são graduadas. Mas, para aquelas que são pobres e negras, não, as coisas não vão bem.” Morgan Newton, estudante negra, confirma desiludida: “Eles nos dizem: ‘Se você se esforçar, alcançará o sonho americano’, mas nós estamos afogadas em dívidas e nossas famílias são dizimadas pela prisão e pelas drogas. Além disso, a qualquer momento um policial pode nos ferir ou nos matar porque somos negras...”. Nem ela nem Celia Williamson leram Ta-Nehisi Coates. No entanto, o que dizem ecoa, quase palavra por palavra, aquilo que esse jornalista negro descreveu em um livro magistral,4 que fala do medo da comunidade afro-americana diante da brutalidade policial.

As estatísticas da violência são terrivelmente eloquentes: “Uma em cada cinco mulheres é estuprada nos Estados Unidos, e uma em cada quatro é fisicamente violentada por seu parceiro”,5 indica Meghan Rhoad, responsável pelos direitos das mulheres no Human Rights Watch. A não ratificação, pelos Estados Unidos, da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, aprovada pela ONU em 1979,6 continua atravessada na garganta das feministas da primeira geração. Quanto mais as millennials entrevistadas dizem que essa questão “não está entre suas principais preocupações”, mais suas veteranas se ressentem. A ausência de menção explícita à igualdade entre os sexos na Constituição dos Estados Unidos é outra fonte de mágoa.7 “Para mim, é uma ferida aberta. Temos de corrigir essa lacuna, porque ela nos torna vulneráveis”, declara Teresa Fedor, democrata eleita para a Câmara dos Representantes de Ohio, antes de acrescentar, com um sorriso: “Já é hora de sermos adultas!”.
Apesar do caminho que ainda têm pela frente, as norte-americanas, em sua maioria, parecem confiantes. “Em Toledo, a prefeita é mulher. A reitora da universidade também. Em escala nacional, cada vez mais mulheres tomam o lugar dos homens que se aposentam”, observa Shanda Gore, responsável pelo programa Igualdade e Diversidade da Universidade de Toledo. Para essa afro-americana, a primeira da família a ir para a faculdade, sua mãe, que teve treze filhos, disse muitas vezes: “Você tem sorte de ser mulher hoje!”.

A popularidade dos estudos de gênero
Segundo Jay Newton-Small, jornalista da revista Time, para que as mulheres se imponham, é necessário ultrapassar a “massa crítica” de 30%. É o caso da administração pública. Ainda estamos longe disso no Congresso, embora “75% das leis mais importantes dos últimos anos tenham sido produzidas pelas 20% eleitas”, observa essa autora de um livro de sucesso.8
Em 2030, a geração dos baby boomers estará aposentada. O país vai precisar de mão de obra: cerca de 26 milhões de empregos poderão estar vagos, segundo as estimativas de Newton-Small. “Por razões econômicas, será preciso recorrer à imigração ou... às mulheres”, explica. “E, para que as coisas realmente funcionem, isso será necessário em todos os níveis.”
Ainda mais do que essas projeções, pequenos sinais indicam que os papéis são cada vez menos rígidos. O número de pais que ficam em casa (7%) quase dobrou em dez anos. Asma Halim, que leciona questões de gênero na Universidade de Toledo, tem em sua classe de sete a dez rapazes, em um total de quarenta estudantes. “A disciplina é popular. Cada vez mais rapazes fazem o curso, pois sabem que é um trunfo para trabalhar no estrangeiro ou em uma ONG, por exemplo.” No início do ano, rapazes e moças chegam à sala de aula “bastante indiferentes, ou melhor, ignorantes”. Asma Halim lhes pergunta: “Quem se considera feminista aqui?”. Em geral, metade das moças levanta a mão. Mas este ano houve “também dois rapazes”. No fim do ano, a professora fez a pergunta novamente. Dessa vez, “a classe toda levantou a mão!”.

Florence Beaugé
Florence Beaugé é jornalista.


1    Califórnia, Rhode Island e Nova Jersey (e em breve o estado de Nova York) já garantem aos novos pais e mães uma licença parcialmente remunerada.
2    Além disso, observa-se uma estagnação do salário das mulheres desde 2001 (fonte: Heidi Hartmann, Institute for Women’s Policy Research).
3    As mulheres norte-americanas têm em média 1,9 filho. Essa taxa é explicada em grande parte pela contribuição dos imigrantes de origem sul-americana.
4    Ta-Nehisi Coates, Une colère noire. Lettre à mon fils [Cólera negra. Carta a meu filho], Autrement, Paris, 2016.
5    “The national intimate partner and sexual violence survey” [Pesquisa nacional sobre violência doméstica e sexual], Centre for Disease Control and Prevention, Atlanta, 2011.
6    Seis membros da ONU não o ratificaram: Estados Unidos, Irã, Somália, Sudão do Sul, Tonga e Vaticano.
7    Em todo o mundo, 197 Constituições mencionam explicitamente a igualdade entre homens e mulheres. Apenas 32 não o fazem, entre elas a Constituição dos Estados Unidos. A Equal Rights Amendment [Emenda para a Igualdade de Direitos], apresentada ao Congresso pela primeira vez em 1923 e muitas vezes reapresentada, nunca foi aprovada por três quartos dos Estados do país, portanto nunca entrou em vigor.
8    Jay Newton-Small, Broad Influence: How Women Are Changing the Way America Works [A influência feminina: como as mulheres estão mudando o modo como os Estados Unidos funcionam], Time Books, Nova York, 2016.
03 de Novembro de 2016
Palavras chave: Estados UnidosEUAMulheresGêneromaternidadedireitosmortalidadedesigualdade, interseccionalidade

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