pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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segunda-feira, 19 de março de 2018

Durval Muniz: Tempos de monstruosidade

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No carnaval, um enredo que se apoiava na famosa história do monstro Frankenstein arrebata o primeiro lugar no desfile das escolas de samba. Em segundo lugar terminou uma escola de samba que trouxe como destaque em seu enredo outro monstro famoso do século XIX, o vampiro Drácula, transmutado em vampiro neoliberalista. O Oscar concede o prêmio de melhor filme para A forma da água, do diretor Guilherme Del Toro, onde uma criatura monstruosa aprisionada em terras sul-americanas é submetido à tortura da curiosidade científica, das disputas e espionagens políticas e do preconceito contra o diferente, o monstruoso. Definitivamente os monstros parecem estar na crista da onda em nosso tempo. O monstruoso parece ser a própria imagem de nosso tempo. Há algo de muito significativo nessa escolha da monstruosidade para metonimizar a nossa época, para resumí-la e dar-lhe uma imagem de conjunto. Os monstros que povoaram o imaginário, as cabeças de um século XIX impactado pelas brutais mudanças sociais, tecnológicas, científicas e morais, trazidas pelo capitalismo, voltam a assombrar o nosso tempo. O que isso tem a nos dizer? Que monstros andam soltos em nossas ruas, em nossas vidas, em nossas sociedades, em nossas formações sociais?
Afinal, o que define o monstruoso? Qual o elemento que define algo ou alguém como monstruoso? O monstro padece de um problema de forma, ele é por definição deformado, ele possui uma forma estranha, diferente, bizarra, distinta daquela que uma dada sociedade e uma dada cultura consideram normal. O monstruoso é uma ruptura com a normalidade da forma, é a irrupção de uma forma estranha, estrangeira, rara. A monstruosidade remete ao disforme, ao que parece violar as normas, os códigos, as regras, os preceitos, as injunções que definem dadas formas como aquelas que seriam desejáveis, esperadas, canônicas, esteticamente perfeitas. Embora o conceito de monstro tenha sido usado inicialmente para nomear as formas corporais, as formas materiais, as formas carnais que se desviavam do que se considerava como sendo a normalidade de um dado ser, do que seria sua forma normal, ele passou a ser usado também, notadamente a partir do século XIX, para nomear dados comportamentos, atitudes, dadas ações e reações humanas. Para nomear indivíduos considerados excessivamente maus, perversos, cruéis, desumanos, atrozes. O monstruoso seria um problema de caráter tanto quanto de caractere ou de característica.
A palavra monstro vem da palavra latina monstrum, que remetia a ideia de um ser portentoso, um ser grandioso e diferente, que seria um presságio, um aviso de algo extraordinário. Derivando da raiz latina monere, o aparecimento do monstruoso era um sinal, uma mensagem, uma advertência de que algo bom ou ruim iria ocorrer. Entre os romanos antigos o monstro tinha um sentido religioso, ele era um sinal dos deuses,  um signo dos desígnios do divino, devendo ser decifrado. Os monstros faziam parte do mundo mitológico e fantástico, eram potências alojadas entre o divino e o terreno, entre a realidade e a fantasia, seres fora do comum, descomunais. Na modernidade esse sentido sagrado do monstro se perdeu. Ele passou a se referir a um erro da natureza, um ser contrário a sua própria natureza, um ser que viola as regras e normas que definiriam as formas naturais. Naturalizado, dessacralizado, ele se torna uma anomalia, um ser que transgride sua própria natureza, sendo visto como qualquer coisa de horrenda, de pavorosa, de feia, de bizarra. O monstruoso remete ao teratológico, ou seja, ao que não obedece a lógica em sua constituição, fora de lógica, o aberrante, o que escapa aos códigos e princípios que definem o que seria a forma normal.
Se o monstruoso é o contrário daquilo ou daquele que possui uma boa forma, talvez possamos partir daí para entendermos o porquê dos monstros estarem de volta, em nossos dias. Desde o século XVI, surgem os primeiros escritos, no Ocidente, que se preocupam com as formas e as formalidades na vida social. Os chamados tratados de civilidade, surgem tanto na Itália, como na França, buscando educar os homens das Cortes, buscando educar os príncipes e nobres para o exercício de suas funções e para a manutenção do poder que vieram a conquistar. Estava-se deixando para trás o que seria a rude sociedade medieval, ainda caracterizada em seu declínio, nos séculos XIV e XV pela predominância da passionalidade, pela predominância da rusticidade, pela expressão exagerada dos sentimentos. Com a centralização do poder, com o surgimento dos Estados absolutistas tratava-se de reprimir a violência privada, tornando-a monopólio do Estado. A Igreja e os novos monarcas investem na curialização dos cavaleiros, ou seja, na subordinação da anárquica vida do nobre guerreiro aos ditames de uma vida regulada e regrada por formas de comportamento cada vez mais ritualizadas. Nas Cortes, os homens e mulheres vão aprender a conter as suas paixões, a construir rostos e gestos adequados a cada situação de sociabilidade e de conflito. As máscaras, que se tornam ornamento onipresente nos rituais da Corte, indiciam a importância que as formalidades, que os rituais, que as formas estilizadas vão ter nessa sociedade. O processo civilizatório, como vai defender o sociólogo alemão Norbert Elias, implica essa repressão dos instintos, esse controle das paixões, essa ritualização da vida social, essa construção de uma certa zona de separação entre cada pessoa, uma certa distância protetora entre cada indivíduo.
A emergência do indivíduo moderno, da forma de ser individual, surge da crescente repressão aos comportamento de rebanho, aos comportamentos corporativos. A vida civilizada exigiria uma educação para a serenidade, a impassibilidade, a contenção, a urbanidade e a civilidade, nascidas de uma boa dose de hipocrisia, de um calculo racional da ação, do cálculo do efeito que sua ação exercerá sobre o outro. Esse processo civilizatório exige, também, um maior controle sobre si mesmo, uma maior vigilância a respeito de seus próprios atos e de suas falas. A figura do autor surge para responsabilizar cada um pelo que diz. Da fala anônima e costumeira passa-se a fala individual, autoral, que pode ser atribuída a um sujeito de direito, acarretando a sua punição em caso de transgressão ou ofensa no que diz. A sociedade aristocrática enfatiza e valoriza o refinamento das formas de vida. A pompa, o ornamento, as vestimentas, os gestos, a forma de se expressar, de caminhar, de comer, de conversar diferenciava um nobre de um homem comum, de um plebeu ou de um burguês. Era fundamental nas sociedade aristocráticas as noções de distinção, de preferência, de precedência, de ordem, que deviam marcar cada momento e cada prática do homem pertencente a nobreza. O ser humano passa a ter como definição o ser que se faz por si mesmo, que se distingue construindo um mundo próprio, o humano se define por sua capacidade de artificio, de ser artificial, artífice de si mesmo e de seu mundo. O homem natural não seria propriamente humano, daí o desprezo devotado aqueles próximos da natureza, como os camponeses.
A sociedade burguesa, essa sociedade em que ainda vivemos, se estruturou como uma reação a essa sociedade aristocrática e de Corte. Já com os filósofos iluministas, do final do século XVIII, ideólogos da nova sociedade que se instala, a crítica à artificialidade da vida da nobreza é a tônica dos discursos. O que antes era visto como inaceitável passa a ser idealizado. Se o homem aristocrático não podia ser estritamente conforme a natureza, ele passa a ser visto como uma espécie de monstruosidade. Drácula, o conde decadente, um morto vivo, vivendo de sugar o sangue dos camponeses, é uma dura imagem que a sociedade burguesa criou para sintetizar o que seria um aristocrata, um nobre. Com seu rosto pálido, com sua máscara de morte, Drácula denuncia o que seria o ser que não obedece as leis da natureza, que não é conforme com ela, um ser do artifício e da artimanha, o ser da nobreza. A burguesia advoga no lugar da artificialidade da vida, sua naturalidade e autenticidade. No mundo burguês somos convocados a ser autênticos, a termos uma identidade capaz de expressar a nossa verdade mais interior, o nosso ser mesmo enquanto humano. Enquanto na sociedade de Corte, tão bem descrita em sua decadência pelo escritor francês Marcel Proust, se desenvolveram sofisticados códigos corporais, de gestos, de signos, de sinais, que visavam tornar a sociedade marcada pela polidez, ou seja, uma sociedade onde cada gesto humano, cada reação humana teria sido objeto de um trabalho de polimento, de aperfeiçoamento, de formatação, de ritualização por uma educação cotidiana e constante, a burguesia, como vai fazer o filósofo francês Jean-Jacques Rosseau, vai apostar na naturalidade, quando não, romanticamente, na volta a um estágio natural do Homem, onde pretensamente ele ainda não teria sido corrompido pela civilização. Se o homem natural era para a nobreza a besta, a fera que de dentro de nós ameaçava a vida em sociedade, a sociedade burguesa aposta na possibilidade da sinceridade, da verdade, da autenticidade de cada um, considerando excessivos os códigos e rituais aristocráticos. Embora, em alguns países, como na Inglaterra, a burguesia tenha se deixado aristocratizar, em países como a Alemanha, a burguesia mostrou-se hostil à cultura de Corte, por ter matriz francesa. Nobert Elias, escrevendo em plena barbárie nazista, vai ver nessa prevalência de uma burguesia rude e pouco polida, pouco civilizada, a tragédia alemã. Em busca da naturalidade, a burguesia solta as feras que existem em nós.
O que dizer da burguesia brasileira, das nossas elites ? Embora tenhamos sido a única monarquia das Américas e tenhamos elites com pretensões aristocráticas, o refinamento e a polidez nunca foram propriamente a marca de nossas classes dirigentes. A presença da escravidão, essa escola de prepotência, crueldade, perversidade, desumanidade, marcou indelevelmente a constituição das consciências e sensibilidades das elites brasileiras. Como muitos analistas da sociedade brasileira já chamaram atenção, desde um Machado de Assis, até um Gilberto Freyre, a escravidão impediu que a vida aristocrática à brasileira tivessem as mesmas formas da vida das Cortes europeias. Embora a Corte transplantada de Portugal tenha tentado preservar os rituais da vida real e da vida cortesã, a vida nos trópicos e, notadamente, a presença das relações escravistas, provocou desvios e promoveu singularidades consideráveis na maneira de ser nobre no Brasil. A burguesia brasileira esteve ligada, desde o início, à atividades escravistas. O tráfico negreiro, com todo o seu cortejo de desumanidades, esteve na origem de muitas fortuns no país. O pouco apreço pela vida do diferente, do preto, do pobre, do indígena, foi aprendido nessa escola de arrogância e de prepotência que foi a casa-grande e o sobrado colonial e imperial.
Desde a infância nossas elites aprenderam formas de dominação que se assentam no desprezo completo pelo outro, pela visão meramente instrumentalizante do outro, o outro como uma coisa, uma propriedade, um objeto, uma mercadoria, da qual se pode dispor ao bel prazer. Desde a infância aprenderam, muitas vezes em sua própria carne, o exercício da violência direta como marca de classe, como marca de ascendência e distinção. Poder chicotear o outro, bater em seu rosto, marcar o seu corpo, seviciá-los sexualmente, matá-los foram as lições básicas servidas pela pedagogia escravista que se estendeu séculos afora, no espancamento das crianças visto como gesto de educação, na procura da menina pobre e imberbe para deflorar, no se achar no direito de surrar seu empregado e trabalhador, no se achar no direito de matar todo aquele que achar menor, diferente, inferior, débil, todo aquele que conteste suas vontades e interesses. Machado de Assis, em muitos de seus personagens das elites brancas, notadamente entre os homens, vai denunciar essa incapacidade do homem das elites brasileiras de enxergar o outro, sua incapacidade de solidariedade e compaixão, sentimentos que, já no século XVIII, foram definidos como básicos para o estabelecimento de uma verdadeira república.
Os inúmeros golpes de força e prepotência que marcam a história da república brasileira nascem dessa incapacidade de nossas elites de enxergarem para além de seu próprio umbigo. Já no século XIX, um Montesquieu dizia que era aceitável que os homens primeiro quisessem atender a seus desejos e interesses, mas alertava que sem compaixão, sem a capacidade de sair de si e ir em direção ao outro, a vida social e política se esgarçava, e o que se teria era uma sociedade marcada, cada vez mais, pela violência, pelo conflito, pela insegurança. Mesmo Adam Smith, um dos teóricos do liberalismo e da centralidade do interesse individual na vida pública, alertava para a necessária existência em paralelo, nos próprios indivíduos, da atenção para o sofrimento e a dor do outro, sem o qual recairíamos na tirania. Os socialistas, não acreditando nessa capacidade dos indivíduos por si mesmos abrirem mão de seu egoísmo, vão defender que o Estado e as leis devem pressionar e sancionar no sentido de que saiamos de nosso egoísmo e levemos em conta o outro. A fraternidade, uma das máximas da Revolução Francesa, pressupõe esse se preocupar com o outro na mesma medida e intensidade que se preocupe consigo mesmo. Abatido o monstro que era o tirano, o que colocava todos os seus desejos acima dos demais, cabia agora construir uma sociedade de irmãos, em que cada um se vê no outro e, por isso, não quer para o outro o que não se quer para si mesmo, ou seja, a empatia com o outro seria um principio fundamental para a vida em sociedade.
Creio que os acontecimentos das últimas semanas, no Brasil e no mundo, diz muito do porquê os monstros voltaram como imagem que simboliza o nosso tempo. A pretexto de criar um mundo autêntico, um mundo onde cada um pudesse ser idêntico a si mesmo, um mundo sem máscaras, um mundo sem fabricação de formas e rituais de convívio, a sociedade liberal e, com maior ênfase, a sociedade neoliberal abriu as portas para a manifestação em público e sem máscaras do nossos desejos e impulsos os mais agressivos. Os monstros que habitam nosso interior, sem o trabalho da polidez, da civilidade, sem o esmero da forma pela educação, se apossam de nossos corpos e mentes e relincham bestialmente nas redes sociais. Centenas de energúmenos comemoram o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, por ela ser diferente, por ela ser lésbica, por ela ser defensora de “bandidos”. A falta de empatia com outro ser humano é total. Uma desembargadora sem apresentar nenhuma evidência ou prova escreve em rede social que ela havia sido eleita pelo Comando Vermelho e teria sido assassinada pela facção rival de Acari. Nessas falas nenhum distanciamento civilizado e racionalizado em torno da dor e do sofrimento do outro, nenhuma solidariedade com o outro que se foi e com aqueles que ficaram. A polidez deu lugar a essa sociedade em que o privado assaltou e tomou conta do público, uma sociedade que se tornou pornográfica. Nenhum pudor em se despir e em mostrar as partes mais intimas em rede nacional ou nas redes sociais. A vida privada é exposta constantemente, sabemos o prato que cada um está comendo naquele instante, onde e com quem cada um está, com quem está fazendo sexo, quando não se disponibiliza o próprio corpo sendo penetrado por alguém.
Assim como Frankenstein (o monstro que só queria ser amado), todos aqueles que são vistos como diferentes podem sofrer as maiores violências simbólicas ou físicas. Monstros acusando os outros de serem monstruosos pelo simples fato de não corresponderem às formas ditas normais ou canônicas. Crimes monstruosos são perpetrados contra homossexuais, travestis, transexuais, a pretexto de eles serem os monstros. Temos um governo monstruoso, que chegou ao poder denunciando o que seria a monstruosidade do petismo, do comunismo, do bolivarianismo, para hoje termos uma horda de vampiros a sugar o sangue da nação e dos trabalhadores brasileiros. A votação do impeachment foi uma sessão de teratologia política, em que aberrações como dedicar o voto favorável ao impeachment a um torturador foi totalmente normal. O candidato que ocupa o segundo lugar nas pesquisas para presidente tem modos e comportamentos que dificilmente seriam considerados humanos numa sociedade da civilidade e da polidez. Ele estaria mais próximo do troglodita do que de um homem que passou por um processo civilizatório. A grosseria, a rudeza, a falta de educação, a arrogância, o vitupério, o xingamento, a calúnia, a prepotência, a incivilidade, são atributos que ele e seus asseclas distribuem à farta em todo lugar aonde vão. A discrição, a impavidez, a sobriedade, a altivez, a elegância, que desde o século XVI passou a definir o que seria um homem nobre de espírito, parecem andar escassas por essas plagas, e em todo o mundo, as performances cruzadas de Vladimir Putin e de Donald Trump, não me deixam mentir.
Vivemos tempos em que a busca da perfeição corporal convive com verdadeiros aleijões subjetivos. Marielle Franco morreu porque denunciava a monstruosidade de uma sociedade que enjeita ao nascer seus filhos, os transforma em monstros e depois os elimina. Ela denunciava a monstruosidade de forças de ordem e segurança que militam na desordem e na insegurança, forças da morte travestidas de forças em defesa da vida. Defensores de uma ordem social injusta e monstruosa, que condena milhões à miséria e produz uma minoria monstruosamente rica e egoísta, incapaz de ver e pensar no outro, só no ouro, como podem não se tornar monstrengos subjetivos? Como defender sob a força das armas a injustiça e a desordem de um sistema promotor da infelicidade e precariedade de milhões e não se tornar monstruosos? Marielle reunia tudo o que essa sociedade e suas elites desprezam e odeiam. Como Frankenstein ela reunia o ser mulher, o ser negra, o ser homossexual, o ser de esquerda, o ser política, o ser de origem humilde, o ser corajosa e altiva na denúncia das monstruosidades cometidas por forças de segurança que só distribuem a insegurança, agindo à base do preconceito e da discriminação. Ela era monstruosa, logo tinha que ser abatida como se abate um animal daninho. E depois de matá-la fisicamente, trata-se de completar o serviço matando-a simbolicamente. Como pode um país se indignar com o crime contra uma pessoa como essa, que devia morrer mesmo? Como é que o mundo se importa com um monstro como esse, tem por ele amor, piedade e solidariedade, como as duas mulheres da limpeza em relação ao monstro supliciado no laboratório, elas também marcadas pelo estigma de classe, mas também de raça (uma delas era negra) e aquele destinado à pessoas com deficiência (uma delas era muda)? Como diz a monstruosa operadora do direito (Deus nos livre desse Direito), isso é coisa da esquerda que quer transforma-la em mártir, ou seja, leia-se nas entrelinhas a afirmação monstruosa: ela deveria mesmo morrer, não é nenhuma surpresa e não se perde nada. Fala de uma mulher (ou de um monstro) sobre outra mulher. Estarrecedor! Os monstros estão soltos nas ruas e eles estão longe de serem apenas pretos, pobres, favelados, vagabundos, homossexuais, lésbicas, transsexuais, eles estão nas coberturas e recebem auxilio-moradia, moram em condomínios fechados e vivem com segurança privada. Aliás, alguns habitam até os tribunais superiores e os palácios de Brasília.

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)

sábado, 17 de março de 2018

Quem matou Eduardo, Matheus e Reginaldo?

Carolina Moura, Bruna de Lara, Leandro Demori, Juliana Gonçalves, Yuri Eiras




Os responsáveis por matar Marielle Franco não queriam se livrar de uma vereadora de 38 anos que dedicava seus dias ao expediente político. O desejo dos assassinos era o de silenciar uma ideia. Marielle foi morta à noite, em uma emboscada, sem poder de reação, o modo covarde como se mata nas favelas do Rio de Janeiro e do Brasil, lugares onde as cartas não chegam, a luz falha, a água é suja, as escolas fecham ao som de tiros e o Estado é um tanque de guerra com licença para matar o qual chamam de Caveirão.
Dias antes de ser executada, Marielle Franco denunciou o assassinato de três homens – jovens e de periferia –, parte grande do estereótipo dos corpos que enchem os cemitérios do país. “Foi um recado”, era uma das frases que mais se ouvia entre as pessoas que, ainda estarrecidas, lotaram o Centro do Rio, na quinta-feira, em vigília e protesto. Mas que recado? O que queriam dizer os assassinos de Marielle? A quem eles se dirigiam? “Não ousem mexer nas estruturas”, eles sussurravam.
Não se sabe ainda se a execução de Marielle foi motivada pelos crimes que ela denunciou – dois deles na área do 41º Batalhão de Polícia Militar e seu histórico de terror.
The Intercept Brasil formou um time de quatro jovens jornalistas – Bruna, Carolina, Juliana e Yuri – para contar as histórias de Eduardo, Matheus e Reginaldo. É irrelevante o que a conclusão policial dirá sobre a relação da morte de Marielle com sua pressão pela investigação desses casos. Porque esses assassinatos, tendo policiais como suspeitos, continuam sem solução.
Marielle se foi, mas a pressão para que esses – e todos os outros jovens de periferia – tenham respostas não pode parar. A ideia de que é impossível enfrentar o crime organizado sem usar armas é errada. A ideia de que é impossível ter liberdade nos subúrbios do Brasil é velha e errada. Uma mulher, sozinha, talvez não possa peitar os senhores da guerra. Mas uma multidão pode.

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Ilustração: Pedro Franz
Matheus Melo Castro, 23 anos – morto dia 12 de março
Era um trajeto curto e de rotina. Terminada a reunião da última segunda-feira na Igreja Evangélica Missão da Fé, em Manguinhos, Matheus, auxiliar do pastor, subiu em sua moto – comprada com o salário que ganhava como agente de coleta seletiva – e levou a namorada para casa, no Jacarezinho. As duas comunidades são separadas apenas por uma avenida. Eram cerca de 22h quando, ao voltar para casa, ele cruzou com uma patrulha da Polícia Militar. Vizinhos disseram que os policiais “revistavam menores de idade”. Segundo a família de Matheus, a patrulha não deu ordem de parada. Ele passou pela blitz, mas poucos metros à frente foi atingido por dois tiros, um no braço esquerdo, outro no tórax.
Matheus caiu. Os policiais o observaram à distância como se fosse uma caça abatida. Não prestaram socorro. Ferido mas ainda vivo, ele foi amparado por usuários de crack que frequentam ruas próximas. Confusos, eles decidiram colocar o estranho em um carrinho de mão e sair em disparada pela movimentada Avenida Dom Hélder Câmara até chegar à Unidade de Pronto Atendimento de Manguinhos.
A cena foi vista por motoristas que passavam pela via naquela noite. A notícia se espalhou e, entre amigos e familiares, mais de cem pessoas se amontoaram em frente à UPA para uma vigília. Muitos deles eram do grupo de moças e rapazes que havia se reunido na igreja minutos antes para cantar e rezar. O “refúgio jovem”, como são chamados esses encontros, foi liderado por ele naquela noite. Matheus Melo Castro chegou a ser atendido, mas não resistiu.
“Foi cruel. Ele passou e eles metralharam”, disse uma de suas tias. “O pior é que não socorreram. Quem socorreu foram os ‘crackeiros’ que estavam ali perto e o carregaram para a UPA. Se ele fosse bandido os PMs teriam capturado e feito a segurança no hospital. Mas como era qualquer um, atiraram e foram embora como se fosse ninguém”, desabafou uma prima. Todos têm medo de falar.
Uma desculpa oficial e corriqueira da Polícia em casos como esse, emitida sempre em notas curtas à imprensa e que por regra não dizem nada, é que são mortes colaterais, vítimas azaradas da troca eterna de tiros entre mocinhos e bandidos. Moradores de Manguinhos disseram que no momento da execução de Matheus não havia confronto na comunidade. Horas depois, entretanto, foi possível ouvir disparos.
Familiares garantem que o tiroteio tardio foi uma tentativa de justificar a morte de Matheus como mais uma vítima de bala perdida. Uma cortina de fumaça. A polícia disse que a base da Unidade de Polícia Pacificadora do bairro foi “atacada por criminosos”, por isso o revide. De madrugada, um ônibus foi incendiado na Avenida dos Democráticos, via que dá acesso à comunidade. Tudo ocorreu a poucos metros da Cidade da Polícia, localizada exatamente na Avenida Dom Hélder Câmara, entre Manguinhos e Jacarezinho. O incêndio, assim como as circunstâncias da morte de Matheus, permanecem em uma das tantas “investigações sob sigilo” que adormecem nas delegacias do Rio.
A família se sente ameaçada e, aconselhada por vizinhos, cogita sumir do bairro. Matheus era conhecido da comunidade e não tinha nenhuma ligação com o crime. Uma vítima incômoda com uma família determinada nos calcanhares de seus assassinos: apesar do medo, eles pretendem processar o Governo do Estado e já começaram uma investigação paralela para descobrir quem deu os tiros.
Junto com advogados, querem buscar as câmeras de trânsito do Centro de Operações da Prefeitura para tentar encontrar os últimos minutos de Matheus com vida e seu assassino. O sistema de segurança da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais, localizada na rua, também pode ajudar.
Questionada sobre o estado das investigações, a assessoria da Polícia Civil afirmou às 10h21 da manhã de quinta, via e-mail, que “estão em andamento e, no momento, não há novidades para divulgar sobre o caso.”
A Coordenadoria de Polícia Pacificadora disse que abriu “uma averiguação sumária” para descobrir se os assassinos são policiais de alguma UPP. Por telefone, nos disse que a sindicância interna, sigilosa, teve início no dia seguinte ao crime. Não confirmou se havia, de fato, uma viatura no local em que Matheus foi morto. “Ainda que tivesse, não necessariamente era de UPP. Poderia ser de um batalhão da PM ou da Polícia Civil”, disse, no jogo de empurra-empurra. O procedimento é apenas uma averiguação, não um inquérito. Portanto, não resulta em acusações.
“Mais um homicídio de um jovem pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, twittou a vereadora Marielle Franco, na terça-feira. No dia seguinte, sob hinos de louvor e gritos por justiça, ele foi enterrado no Memorial do Carmo, no Caju, Zona Portuária. Horas depois, Marielle foi assassinada.

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Ilustração: Pedro Franz

Eduardo Ferreira, 39 anos, e Reginaldo Santos Batista, idade desconhecida – mortos dia 5 de março
Moradores ouviram disparos pouco depois do nascer do sol. Naquela primeira segunda-feira de março, assim cedo, todos estranharam. Não parecia haver troca de tiros com traficantes, as bocas de fumo sequer estavam abertas. Depois que os fuzis silenciaram, um pequeno grupo de vizinhos decidiu investigar. Encontraram dois corpos em uma zona de mata rala próxima ao Rio Acari.
O primeiro estava de bruços, bermuda e camisa, os olhos fechados. Os moradores decidiram puxá-lo pelas pernas e resgatá-lo de um leve declive até posicioná-lo de modo que pudesse ser reconhecido. Nessas horas ninguém espera pela perícia, que pode levar horas, para ver se o morto é um conhecido ou um parente. Mais tarde se soube que era Eduardo Ferreira, de 39 anos.
O outro estava alguns metros adiante, em uma descida um pouco mais íngreme. Reginaldo Santos Batista, que não teve a idade descoberta, precisou ser içado pelo grupo. “Aqui desde criança a gente aprende a içar um corpo. Vocês sabem o que é isso? Acho que não, né?”, disse uma das pessoas. A Delegacia de Homicídios só o recolheu por volta das 19h, já noite, com a ficha de identificação: homem negro, forte, de feições marcadas e cabelo raspado.
As circunstâncias das duas mortes ainda são misteriosas. Testemunhas oculares contaram que um grupo de policiais estava escondido na mata da favela e que teria abandonado os corpos antes de desaparecer. No Facebook do 41º, o mais letal da cidade, nada. O batalhão posta diariamente sobre suas ações, mas não há postagens sobre ocorrências no dia 5. Somente nos dias 4 e 6. No twitter da PMERJ também não há registros sobre a Favela do Acari.
Eduardo tinha uma companheira e era morador de Acari desde pequeno. Deixou dois filhos. Sua família – mãe, irmãos e primos – são todos evangélicos e todo mundo é de Acari. Era um trabalhador autônomo, que, dizem os amigos, “estava sempre trocando ideia” com os moradores da região. “Ele era muito na dele. Meio tímido. Lembro que ele falava para eu tomar cuidado pela região. Se preocupava com os moradores”,  disse uma moradora.
Sobre Reginaldo, pouco se sabe. Ninguém reclamou publicamente o corpo.
Questionada, a Polícia alegou que não estava sabendo de operação no momento. Algumas horas depois, mandou uma nota por e-mail na qual dizia que os policiais do 41º BPM estavam em patrulhamento para “coibir o comércio de drogas, roubo de veículos e prender criminosos”. Disse também que tinha prendido um bandido, apelidado de Timbau, que estaria com um rádio transmissor.
Depois daquele dia, durante toda a semana, houve tiroteio todos os dias.
No sábado seguinte, uma moradora estava indo buscar doações perto da região de Piracambu, onde fica a associação de moradores da favela Acari, quando ouviu disparos. Olhou para os lados para ver se tinha algum traficante em confronto ou alguma boca de fumo aberta, mas era cedo e estavam todas fechadas. Os policiais, segundo ela, estavam “atirando a esmo, fora da viatura”. ”Me escondi junto com outra moradora. Olhava para os lados e não entendia porque eles estavam atirando. Não tinha nada. Só morador na rua”, falou. Eram 8h da manhã.
”Quando deu umas 13h, voltei lá no mesmo local e a quantidade de policiais tinha aumentado e eles continuavam atirando. Foi quando dois caveirões da Polícia entraram na favela”, contou. Outros moradores mandaram mensagens de áudios para alertar quem estava pela favela. ”Meu deus, muito tiro aqui. muito tiro”, disse um. Outra, quase chorando, disse: “Gente, eu tô com muito medo. Medo mesmo. Eles estão na frente da minha casa”. “Os caras estão esculachando morador. É muito tiro na casa dos outros. Isso não está certo. Em pleno sábado?”, respondeu outro.
Marielle denunciou a ação da Polícia naquele mesmo sábado. Escreveu no Facebook: “Precisamos gritar para que todos saibam o está acontecendo em Acari nesse momento. O 41° Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro está aterrorizando e violentando moradores de Acari. Nessa semana dois jovens foram mortos e jogados em um valão. Hoje a polícia andou pelas ruas ameaçando os moradores. Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior. Compartilhem essa imagem nas suas linhas do tempo e na capa do perfil!”

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre a violência urbana?

                                           
Wilson Gomes                                                                                 

A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre a violência urbana?
Arte Revista Cult


O crime urbano violento e a corrupção, quando tratados como fenômenos sociais graves e disseminados, estão muito próximos. Os fenômenos do crime urbano e da corrupção política, em virtude do modo extremo como hoje afetam a qualidade de vida dos brasileiros, são considerados não apenas as principais razões para o desejo de migrar, o novo trend das nossas classes abastadas (a modinha do Projeto Miami e, mais recentemente, o Projeto Portugal), como também ganharam espaço cativo no topo das urgências sociais que, segundo a percepção geral, a política tem que resolver.
Mas o que o sentimento geral da população considera problemas e urgências sociais é em geral um construto da própria sociedade. Explico. O que não falta no mundo são problemas e aflições, mas toda sociedade em um determinado momento elege aqueles que são mais urgentes e que, por conseguinte, precisam estar no topo da agenda. Mas tudo tem limite, até o centro das preocupações sociais. Assim, lembramos de e ficamos aflitos com algumas poucas coisas de cada vez e vamos substituindo os temas e problemas conforme vai se deslocando o foco da atenção pública. Os cidadãos, em um dado momento, precisam pôr-se de acordo, por exemplo, que o que lhes impede de serem felizes e de terem uma vida com qualidade são agora X e Y e que A e B, que ocupavam, até o momento, o topo das suas aflições, podem ser deslocados para o segundo plano.
Assim, preocupações com saúde pública e desemprego parecem estar no centro das nossas preocupações em razão de uma imposição da realidade, mas o fato é que, em um determinado momento, uma sociedade pode decidir que temas como imigração, ajuste das contas públicas, matriz enérgica, sustentabilidade, aquecimento global, educação, violência urbana ou corrupção podem assumir o seu lugar. E é assim que os temas vão e vêm das arenas da atenção pública.
Além disso, problemas sociais não são propriamente “fatos naturais”, mas fatos interpretados, segmentos intermediários de uma sequência que inclui pelo menos um diagnóstico e uma solução preconizada. As expressões genéricas “crime” ou “corrupção” são, na verdade, um feixe de noções envolvidas em uma competição social pela interpretação das raízes do crime e da corrupção e do modo como estes temas podem ser resolvidos. Esta competição envolve, naturalmente, todas as forças sociais que disputam o mercado de interpretação e opiniões: as pessoas comuns, a comunicação massiva e as pessoas que conseguem se expressar por meio dela, intelectuais, autoridades, políticos etc. Não é simplesmente “corrupção”, mas corrupção causada por X e que deve ser resolvida pelos meios Y e Z. Idem para o crime urbano.
Por fim, depois que as pessoas se põem em suficiente acordo sobre as emergências sociais e sobre o ângulo de abordagem a ser adotado, chega o momento em que elas, as emergências, de alguma forma, estruturam as campanhas políticas. É na relação com as emergências que aparecem na percepção social que são avaliados os cacifes eleitorais dos candidatos, planejadas as narrativas da campanha e construídas as imagens dos candidatos. Assim, uma vez que a maioria admite que a corrupção é causada por X (e não por A) e será resolvida por meio da providência Y (e não B), o ator mais adaptado para o papel e a narrativa mais coerente com as premissas socialmente adotadas no esquema causa-problema-solução têm mais chances eleitorais que os seus concorrentes.
Por outro lado, as grandes contraposições políticas frequentemente desempenham um papel na estrutura das urgências sociais e da resposta política, tanto no que tange às narrativas quanto no que se refere à imagem de pessoas e instituições necessárias para disputar a opinião pública e os votos. A esquerda e a direita, por exemplo, novamente voltam, nestes dias, ao terreno da disputa acerca do tema do crime. Não é opcional. Como disse na coluna anterior, a agenda do crime ocupou o centro da atenção pública e está orientando, como nunca, as decisões eleitorais na eleição presidencial.
O problema, para a esquerda e para o centro, é que estão sendo derrotados fragorosamente no tema do crime, na arena da percepção pública. E esta é provavelmente uma das razões porque esta eleição, noves fora Lula, vem se inclinando para a direita. Antes de tudo, isso tem a ver com cultura e mentalidades relacionadas aos segmentos políticos: a direita, sobretudo a direita conservadora, consegue tradicionalmente lidar melhor com os temas do crime e da violência do que o centro liberal ou a esquerda progressista. Tudo tem a ver com a competição pela interpretação do esquema causa-problema-solução. Competição, naturalmente, para ver qual será o ponto de vista adotado pela maioria das pessoas, se o meu ou do meu concorrente. Assim, por exemplo, se o tema é o crime violento, o pacote completo inclui a disputa para ver quem consegue convencer mais pessoas sobre as causas do crime violento e as soluções ao alcance da mão para resolvê-lo.
O fato é que a esquerda em geral, e a esquerda brasileira em particular, não tem uma resposta com sucesso de público e crítica para a violência urbana. O sucesso da direita, por sua vez, tem a ver com o enquadramento que adota, as associações que evoca e com o fato de as suas explicações serem simples, intuitivas e coerentes com a matéria prima fartamente disponível no imaginário social – medo, moralização e punição -, enquanto os concorrentes fazem associações complexas e abstratas, correlacionam causas remotas e demandam muito em termos de cognição e informação do público para serem assimiladas e aceitas.
Há, naturalmente, muitas alternativas possíveis para o esquema causa-problema-solução no que se refere ao crime violento urbano. A direita conservadora costuma recorrer a duas delas. Na primeira, há crime porque indivíduos tomam a decisão de praticá-los e o fazem de caso pensado. Há racionalidade envolvida, pois o criminoso sopesa vantagens e riscos e decide que os potenciais benefícios de, por exemplo, praticar um latrocínio, superam os potenciais custos envolvidos. O sujeito põe na balança, de um lado, os benefícios do crime e, de outro, as chances de ser apanhado, multiplicadas pelas penas a que estaria sujeito se fosse condenado. E se inclinará para o prato que pesar mais.
Como, em geral, acredita-se que no Brasil é baixíssima a chance de um criminoso violento ser apanhado e que, quando ocorre identificação e condenação, as penas não são severas o suficiente, parece à população que o temor de ser apanhado e a perspectiva de punição não são o bastante para desencorajar o crime. Antes, ao contrário, o crime compensa e a escolha pelo crime, acreditam, tem fundamento racional.
Poder-se-ia perguntar, claro, por que razão, se o crime compensaria para todo mundo, nem todo mundo é criminoso. Teoricamente, a teoria da escolha racional, aplicada ao crime, é pouco consistente, mas a opinião pública não é um simpósio filosófico e a responsabilização individual pelo crime (“se eu me privo, mas não pratico o crime, os outros também poderiam fazer o mesmo”), que a acompanha, acaba desviando a atenção das inconsistências conceituais da ideia.
O passo seguinte, naturalmente, é a política pública para resolver o problema. Do diagnóstico do crime decorre que uma solução necessariamente há de passar pelo aumento das chances de identificação e captura do criminoso (vigiar) e pelo aumento das penalidades pelo crime violento (punir). Precisa-se, portanto, de mais vigilância, mais controle, mais polícia, mais exibição de força do Estado, de um lado, e do aumento das penas (tudo vai virando “crime hediondo”) e da diminuição da menoridade penal, de outro.
A fórmula parece simples: se mais vigilância, penas mais severas e mais gente podendo ser punida (até crianças), o prato da balança dos custos do crime começará a pesar mais que o prato dos benefícios, e o crime violento deixará de compensar. A banalização da violência cessaria com a distribuição de punições mais frequentes, mais severas e a mais gente.
O segundo modelo adotado para explicar a violência urbana transfere a causa do crime para o plano dos valores. A responsabilização tira o peso do indivíduo e dos seus cálculos de perdas e ganhos e o transfere para o julgamento de caráter, individual, e para a estrutura intermediária onde o caráter é formado, que são os valores. Crime tem a ver com maldade, com fraqueza de caráter, com ausência de valores.
Há uma teoria sobre a decadência moral da sociedade por trás desta explicação: se no passado o crime urbano não assombrava as pessoas e todos se sentiam seguros é porque no passado os valores compartilhados eram do tipo X (valorizava-se a honestidade, o trabalho, a integridade, o respeito, a religião, a distribuição tradicional dos papeis de gênero, um padrão normativo de comportamento sexual, etc.), de muito melhor qualidade, e não do tipo Y que agora “querem nos impor”. A violência seria um sintoma de um profundo desarranjo no nível dos valores e na formação do caráter das pessoas. Assim, os jovens são piores que os velhos, os costumes antigos são melhores que os modernos e as sociedades do passado são melhores do que as do presente: O tempora! o mores!.
O antídoto à dissolução moral, naturalmente, estaria em preservar valores morais consistentes, restaurando antigos padrões e reeducando. Naturalmente, quem está disposto a diagnosticar esta causa não tem tempo nem paciência para reeducar uma inteira sociedade degenerada, preferindo mais rapidamente punir, afastando a “maçã podre” da sociedade antes que se estrague todo o cesto.
Nesta perspectiva, educar evita o aumento do dano, mas não o que já está acontecendo. De forma que tudo o que caberia ao Poder Público, dado o estado de disseminação do crime, seria punir exemplarmente a marginalidade, aumentando por este meio o medo de ser apanhado e, de quebra, reafirmando os bons valores desta sociedade. Não se deixaria de praticar o mal por virtude, mas por pavor das punições que podem ser aplicadas pelas “pessoas de bem”.
Nas duas alternativas, o “vamos punir!” é a forma de aplacar o ressentimento da parte da sociedade que é vítima habitual do crime urbano. O mesmo se aplicando, ao tema aparentado da corrupção. A convicção por trás disso tudo é que a punição é o remédio que cabe ao Estado aplicar em nome da sociedade. É um esquema freudianamente até infantil: se eu não posso fazê-lo e se quando o faço sou punido, porque ele faz e não lhe acontece nada? Se o medo da punição é eficaz em mim, também será eficaz para conter os outros. E se houver algum obstáculo social à punição severa, alargada e abrangente, que nos satisfaz, tenha este obstáculo origem nos direitos e garantias das Constituições liberais ou venha do populismo da esquerda e dos Direitos Humanos, que se danem tais barreiras, passemos por cima delas. As contas precisam fechar de maneira mais favorável às “pessoas de bem”, a sua sede de justiçamento precisa ser aplacada.
O modelo causal da esquerda já é velho e gasto. A responsabilização individual desaparece da equação, a estrutura intermediária dos valores é dispensada e tudo se resume à relação entre macroestruturas determinantes e indivíduos determinados. A violência urbana, como muitas outras mazelas sociais, é determinada em sua maior parte por fatores estruturais remotos. Pobreza, miséria, abandono social, ausência de acesso a serviços de educação, saúde e amparo social, como fatores próximos, e pela própria divisão da sociedade em classes e, enfim, pelo sistema de produção capitalista, como fatores remotos. Tudo isso vai correlacionado para explicar o crime urbano e uma série de outros fenômenos associados.
As soluções, naturalmente, passam por mudanças estruturais, geralmente fora do alcance imediato dos imediatamente envolvidos: fim da miséria e da pobreza, educação (“Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”, disse Darcy Ribeiro), alteração substancial nos índices de desenvolvimento humano em geral. Os mais radicais, naturalmente, atam tudo ao fim do modo de produção capitalista e à exploração do homem pelo homem.
As políticas públicas dedicadas ao problema da violência urbana (a rigor, desaparece o problema do crime, substituído pelo tema mais genérico da “questão social”) devem vir pari passu com todas as políticas públicas dedicadas a resolver a questão social. Não há uma ênfase exclusiva ou mesmo expressiva no tema da epidemia do crime urbano que apavora as pessoas neste momento. Em vez do mais simples e aplacador “vamos punir”, entra em campo o menos emocionante, quase frígido, “vamos construir escolas, vamos incluir todos os cidadãos, vamos reduzir as desigualdades para acabar com o crime”.
Para o cidadão comum, trancado em casa e que possivelmente já experimentou no corpo ou na vida dos que ama ou amou o horror da violência, isto soa basicamente como dizer “reze e entregue tudo a Deus”. Não resolve o seu problema, nem solução lhe parece.
Ainda mais quando lhe dão a entender que ele é causa do problema e não a sua vítima. Se é de classe baixa, dizem-lhe que a culpa é da sociedade e não do criminoso; se é de classe média dizem-lhe que a culpa é do seu egoísmo, do seu consumismo, da sua indiferença; se calha de ser rico, então, a culpa é diretamente jogada nos seus ombros, quase como se a merecesse, como punição, por ser beneficiário da exploração do seu semelhante ou por não tomar as providências que poderiam pôr fim à situação.
Quem, em situação de desespero, quer ser responsabilizado pelo mal de que é vítima, tirando a responsabilidade individual do seu algoz para colocá-la em si? Melhor migrar, melhor adotar a solução “casca grossa” de Bolsonaro, qualquer coisa é melhor que o proposto. Mas isto é praticamente tudo o que a esquerda tem a oferecer e não surpreende, em termos de mera psicologia social, que as pessoas fujam da adoção deste esquema como o diabo fugiria da cruz.
Na verdade, ninguém sabe como interpretar corretamente o problema da violência urbana brasileira e, muito menos, como resolvê-la. A intervenção militar de Temer na cidade do Rio é, neste contexto, uma cartada extrema, apostando tudo na demanda punitivista da sociedade. Bolsonaro oferece perspectivas de punição, “se eleito for”; Temer aposta no aumento da presença do Estado armado, forte, amedrontador. Poderia ter mandado a Guarda Nacional, mas a palavra Forças Armadas tem mais peso dramático e só Deus sabe como Temer precisa de soluções dramatúrgicas para o seu fim de governo.
O lance é arriscado, claro, uma vez que um esquema que pode funcionar muito tempo no nível do imaginário e das narrativas pode revelar-se um engodo quando materializado em ações. E se o crime no Rio não diminuir? E se o crime voltar assim que o Exército se retirar? Os 70% que apoiam a intervenção, com o argumento de que “chegamos ao limite, alguma coisa tinha que ser feita”, terão paciência por quanto tempo se não virem o crime reduzir drasticamente?
A esquerda em geral falha no seu esquema pela impossibilidade de mostrar resultados imediatos. “Eduque o sujeito agora e não terá que o punir daqui a 20 anos” é um argumento relativamente sensato, mas 20 anos é uma vida e a violência é um transtorno existencial tremendo aqui e agora. Os esquemas interpretativos da direita conservadora parecem mais intuitivos, mas se são transformados em política de Estado precisam fazer uma entrega imediata.
Por isso é que “bancadas da bala”, candidatos eleitos por conta da agenda do combate ao crime, são geralmente bancadas legislativas e não cargos executivos – o sujeito faz basicamente discursos, atua no interesse de corporações militares e policiais e tenta fazer Projetos de Lei transformando o delito A em crime hediondo, apoiando que a população se arme ou tentando reduzir a menoridade penal. Gasta cuspe e papel, nada mais. Não tem que testar as suas ideias em campo e mostrar que o seu esquema explicativo efetivamente dá conta da realidade do crime. Há poucos meses das eleições gerais, ao fazer do Rio o seu laboratório, Temer faz uma aposta alta. Logo saberemos no que pode resultar.
Enquanto isso, a esquerda é apanhada mais uma vez sem ter o que dizer sobre um tema dominante na conjuntura política. Aconteceu o mesmo em 1994, quando o tema que se impôs na opinião pública foram inflação e máquina pública, sobre os quais o PT nada tinha a dizer e FHC nadou de braçada. As perspectivas punitivistas continuam fazendo sucesso de público, embora estejam enfrentando um teste de fogo neste exato momento.
Nas arenas da opinião e do imaginário do público, contudo, não têm adversária à altura. E, o que é pior, a esquerda sequer demonstra ser capaz de entender a importância deste tema para a população. O que tem para oferecer, até o momento, é não apenas o esforço de demonização da urgência social, como também a tentativa de demonização dos atores políticos que, por sua vez, concentram-se em surfar com sucesso a gigantesca onda de atenção que o tema produziu. Como se demonizar temas e atores fosse capaz de fazer o tema desaparecer ou de tornar desimportantes aqueles que fornecem as interpretações que o público adota e usa para tomar decisões eleitorais.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Le Monde: Marielle Franco: O novo sempre vem




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Marielle Franco ajudou o Le Monde Diplomatique Brasil no momento em que mais precisamos. Em dezembro de 2017 gravou depoimento em apoio à nossa campanha de financiamento coletivo. Em janeiro de 2018, seu artigo compôs a cobertura da capa sobre a revolução feminista. No texto, ela dizia: “nós aprendemos umas com as outras, estamos buscando formas de fazer política que não sejam mera reprodução do que sempre foi feito”. Sua solidariedade jamais será esquecida. Seu exemplo será seguido. O novo sempre vem. Expressamos também nossos sentimentos aos familiares, amigos e amigas de Anderson Pedro Gomes.
Republicamos a seguir o artigo escrito por Marielle para nossa edição de janeiro. A postagem original pode ser acessada aqui.
O novo sempre vem
Por Marielle Franco
Em 1975, um grupo de mulheres organizou um evento na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, sobre a situação das mulheres no Brasil. Foram mais de quatrocentas participantes, num movimento que deu início ao Centro da Mulher Brasileira (CMB), primeira organização feminista no país. Mais de quatro décadas depois, ocupamos o mesmo espaço, agora como mulheres, negras, trans, faveladas, professoras, nordestinas, mães, enfim, mulheres em toda a sua diversidade.
No evento de outrora, mulheres negras fizeram críticas contundentes à organização que, apesar de contar com personagens importantes da luta contra a ditadura, não abarcou a diversidade de experiências do que é ser mulher. No final de novembro de 2017, fizemos da ABI um espaço de debate político. Um debate vivo, cheio de nuances, em que cinco centenas de nós afirmamos que vamos ocupar a política, os espaços de poder; contudo, não em uma ocupação meramente “cotista”. Há, inegavelmente, um novo momento, uma marcha em fermentação de mulheres rumo à apropriação dessas engrenagens.
Chegamos a 2018 colhendo frutos de décadas de lutas das mulheres por melhores condições de vida e por mais igualdade nos espaços de tomada de decisões. Nesse período, é inegável que o feminismo se tornou mais diverso, em especial com os avanços das pautas de raça, orientação sexual e identidade de gênero, e também nas reflexões sobre as diversas experiências pelas quais as mulheres passam, como a maternidade. Essa diversidade se expressa nas ruas, em manifestações, e nas redes sociais, por meio de páginas, aplicativos, blogs e vídeos.
Fala-se muito que estamos vivendo uma nova onda feminista, embora a ideia de onda indique um rompimento maior do que como acontece na história de fato. A mídia propaga a ideia de que há um “novo feminismo”, mas na verdade o que vivemos é o resultado de uma convergência de diferentes expressões do feminismo que, mesmo com estratégias de atuação muito diversas, têm em comum a compreensão de que a internet é um espaço de diálogo e articulação política. O feminismo brasileiro hoje não é só jovem e empoderado. O bonde das feministas históricas e o bonde das feministas hashtag dialogam na construção das ações. O feminismo como um todo é plural, diversificado e capaz de produzir convergências.

Desde a eleição de 2010 vivemos uma conjuntura marcada por contradições importantes no que se refere às questões de gênero. O saldo das manifestações e campanhas que se seguiram foi a necessidade de uma representação política mais diversa. As mulheres se colocaram como uma força política importante no cenário nacional, em especial as negras e indígenas. Assumimos o papel de apontar para o que seria o “novo” de verdade na política: inverter o jogo, sair da posição de subalternidade na sociedade para ocupar espaços de formulação, de desenvolvimentos programáticos e de projetos, de tomadas de decisão.
Apesar de termos chegado a alguns lugares importantes, a representação política das mulheres ainda é ínfima, e a das mulheres negras é ainda pior. Mulheres negras somos cerca de 25% da população brasileira, segundo censo do IBGE de 2010. Segundo o “Retrato das desigualdades de gênero e raça” (Ipea, 2015), somos também a maior parte das pessoas desempregadas, que trabalha sem carteira assinada, como empregada doméstica ou com menor renda domiciliar per capita. Essa situação não é por acaso, é fruto de um desenvolvimento civilizatório que foi capaz de desumanizar e objetificar o corpo das mulheres negras.
Em meio a tanta desigualdade, ao racismo e ao sexismo que insistem em nos violentar, a chegada da mulher negra à institucionalidade surpreende. Nossa presença assusta o conluio masculino, branco e heteronormativo. Ao mesmo tempo, nos vemos diante do desafio de construir um projeto político que não exclua as questões que nos trouxeram até aqui, que não as torne secundárias e que se mantenha afinado com as lutas dos movimentos.
Ironicamente, se em 1975 as mulheres reunidas estavam em luta contra a ditadura militar, agora estamos em enfrentando um governo ilegítimo e os golpes cotidianos que ele promove em nossos direitos e em nossas liberdades. Em um cenário de graves retrocessos e da ação articulada das forças religiosas no Congresso Federal, as mulheres estão conseguindo impedir as mudanças de legislação pela articulação de formas muito diversas de fazer feminismo por meio do fortalecimento mútuo. Estamos resistindo aos ataques racistas cotidianos e tentando encontrar caminhos para superar a situação de miséria em que a crise colocou as pessoas que moram nas favelas, periferias e no campo, fortalecendo as iniciativas de economia solidária e de fortalecimento de movimentos como o MTST e o MST.
Graças ao surgimento de grupos como o PretaLab, à formação sobre segurança digital da Universidade Livre Feminista, à MariaLab e às Blogueiras Negras, estamos resistindo à difusão do discurso de ódio e às novas formas de violência que acontecem no âmbito virtual. Quando ouvimos o Slam das Minas, levando a poesia falada das mulheres para os diferentes territórios e reinventando a ideia de batalha – elas não competem nos recitais, elas estão lado a lado, se complementando na performance –, sabemos quem somos, as vozes que se escutam, que se acolhem, que fazem política o tempo todo. Essa resistência é nova também em sua estética!
A PartidA Feminista está mobilizada para lançar candidatas e fazer o debate sobre a importância de eleger feministas comprometidas com os projetos de transformação. O movimento, surgido em 2015, quando ativistas se reuniram para discutir o sentido e a possibilidade de um partido feminista brasileiro, reúne coletivos de mulheres de partidos e movimentos diversos de todo o Brasil. Ou seja, de forma articulada, as eleições de 2018 estão sendo gestadas. Iniciativas para uma representação mais diversa devem ser reeditadas, além de instrumentos para o financiamento coletivo das campanhas.
Em nosso encontro recente na ABI, partimos da ideia de que “uma mulher puxa a outra” – um dos motes da Marcha das Mulheres Negras em 2017. Reunimos mulheres que se destacaram no cenário político do Rio de Janeiro e que são potenciais candidatas a diversos espaços de poder – câmaras estaduais e federal, sindicatos, partidos e associações diversas –, com destaque para as mulheres negras. Isso porque o recado foi dado nas eleições de 2016, e aqui no Rio de Janeiro seguimos à frente da Comissão da Mulher para pautar o debate de gênero na Câmara partindo da nossa perspectiva. Talíria Petroni tem enfrentado o desafio de construir um mandato negro, popular e feminista como a única mulher na Câmara de Niterói. Áurea Carolina, em Belo Horizonte, inova ao criar a “gabinetona” aberta às mais diferentes lutas e ao mesmo tempo atenta aos afetos, à poesia e ao autocuidado. Nós aprendemos umas com as outras, estamos buscando formas de fazer política que não sejam mera reprodução do que sempre foi feito, porque isso nos deixa mais fortes para ocupar espaços da institucionalidade, apesar de todos os retrocessos. Mas não queremos ficar sozinhas nesse espaço, queremos outras e que transformem a política.
O evento recente da ABI foi gestado dentro de um mandato parlamentar, mas não só por ele. Uma rede de mulheres independentes de filiações partidárias se uniu para demandar e organizar o encontro. Por si só essa movimentação descortina um novo momento. O sistema político, tal qual (não) funciona hoje precisa ser urgentemente transformado. Nossa aposta é que outras mulheres sejam fortalecidas para ocupar os espaços de poder. E, para isso, qualquer projeto político de esquerda não pode ignorar as questões que trazemos. 2018 que nos aguarde!
*Marielle Franco é vereadora do Rio de Janeiro pelo Psol.

Charge! Leo Villanova via Gazeta de Alagoas

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O xadrez e o fator detonador com a morte de Marielle

Peça 1 – como semear ódio e colher assassinato

Seja quem forem os responsáveis diretos pelo assassinato de Marielle, entra-se em novo patamar da dissolução do Estado brasileiro.

Etapa 1 – plantando o ódio

Os anos sucessivos, começando antes do “mensalão”, das matérias diuturnas plantando e irrigando o ódio irracional contra o governo Lula, com factoides sobre venezuelização, cubanização, tapiocas e outros recursos conhecidos, o que passou a ser chamado, agora, de fakenews.
Alimentamos o antipetismo, Lula perde as eleições e tudo volta ao normal.

Etapa 2 – o “mensalão”

A entrada no jogo da Procuradoria Geral da República (PGR) e do Supremo Tribunal Federal (STF) como agentes políticos, montando a tese da “organização criminosa” em cima de uma fraude: o suposto desvio de recursos da Visanet, que jamais ocorreu.
Como alertamos na época, tinha-se, descoberto, ali, a fórmula da desestabilização política do PT. Dilma e o PT descobriram essa novidade, alguns meses após o impeachment. O pacto democrático da Constituição de 1988 começa a ruir. O desfecho é adiado pelo desempenho imprevisto de Lula na crise econômica global de 2008.

Etapa 3 – a Lava Jato

O aparato repressivo retoma o protagonismo, alimentado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, e todos os pecados são perdoados, desde que contra o inimigo correto. Nessa etapa, todos os princípios civilizatórios, de direitos individuais, de respeito aos ritos processuais, tudo vai por água abaixo, mas ainda contra alvos definidos. Sem problema. Como declarou o Ministro Luís Roberto Barroso, há a necessidade de medidas de exceção para situações de exceção.
Mas depois que Lula e o PT forem anulados, tudo volta ao normal.

Etapa 4 – o impeachment e o pós

O clima de ódio é potencializado e há um liberou geral no Judiciário, Ministério Público Federal e Polícia Federal. Inaugura-se um vale-tudo em que todos os abusos são permitidos e todos os oposicionistas se sentem ameaçados. Qualquer promotor, delegado ou juiz de 1ª instância se vê com autoridade para ordenar conduções coercitivas, prisões temporárias.
Os piores sentimentos vêm à tona, as demonstrações mais estapafúrdias de ignorância boiam que nem dejetos no esgoto. E ainda não se está falando em Bolsonaro e companhia, mas na promotora de Campinas que se declarou  “indignada” com um seminário sobre maconha e denunciou o cientista consagrado. Simples assim: sentiu-se indignada e do alto da sua ignorância, fez valer sua autoridade. Ou a juíza e a delegada que levaram o reitor ao suicídio. Ou os bravos desembargadores do TRF4, aparentados com os sobrinhos do Pato Donald, aqueles que tinham tanta afinidade que um completava a fala do outro. A mídia não poderia condenar os abusos, até escondeu o episódio chocante do suicídio do reitor, porque poderia enfraquecer a maratona pela condenação de Lua.
Mas depois que Lula for condenado, tudo volta ao normal.

Etapa 5 – o assassinato de Marielle

E aqui se ingressa em um fator detonador, independentemente de quem seja os responsáveis diretos, se as milícias da PM ou milícias de ultra-direita. Por fator detonador se considere os tiros com que Gravilo Princip executou o arquiduque Francisco Fernando, levando à Primeira Guerra;  a morte de Walther Rathenau, que desmontou a Republica de Weimar; a morte de João Pessoa que detonou a Revolução de 30 e a do Major Rubem Vaz, que levou ao suicídio de Vargas. Ou, ainda, a morte do estudante Edson Luis que expôs a violência que já vinha sendo praticada pela ditadura e inaugurou a nova etapa da repressão..

Peça 2 – o processo de desmanche

Quando se disseminou a repressão, no período do impeachment, gênios jornalísticos minimizavam: é muito diferente da ditadura, que matava e torturava pessoas. Era óbvio que aquele momento representava, como num filme, o período 1964-1968, que precedeu o AI-5. Não se preocuparam com os alertas que mostravam a lógica que sucedia períodos de tolerância com o arbítrio e o ódio. A Noite de São Bartolomeu passou a ser praticada em etapas.
Em 1963 nasceu o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), no bojo da campanha de ódio alimentada pela mídia. Depois de 1968, eles se limitavam a quebrar teatros e espancar artistas e estudantes. Nos porões, torturavam-se e matavam-se pessoas. E militares planejavam atentados de grandes extensões. Todos esses processos nasceram da mesma árvore do ódio plantado.
Tempos atrás fui a uma pacata cidade do interior. Lá, em conversas familiares, um jovem casal, de família temente a Deus, sem histórico de violência,  falava da sua vontade de ver Lula morto. A campanha sistemática de ódio, a irracionalidade plantada em suas cabeças, faziam-nos, pessoas incapazes de fazer mal a um bicho, entender como natural – e necessária – a morte de uma pessoa! A mídia conseguiu naturalizar o ódio no Brasil.
Hoje em dia, é um sentimento generalizado, que se espalha por todas as regiões do país e que, até agora, tinha em Bolsonaro e sua tropa sua mais grotesca expressão. Com a execução de Marielle entra-se em uma nova etapa na qual a doença social plantada pela mídia poderá resultar em loucuras maiores do que discursos de ódio nas redes sociais, tempos de terremotos e furacões, que podem preceder a entrega do poder a Bolsonaro e sua “bancada da metralhadora”. Ele, aliás, evitou comentar a tragédia de Marielle, para não expor o que pensa.
E quem vai segurar essa onda? A indignação retardatária da velha mídia? Certamente não a PGR Raquel Dodge, uma burocrata "apparatchik", subproduto da corporação, sem qualquer brilho ou luz própria, só frases obvias, ultra burocráticas "mandei instalar um procedimento em meu gabinete”.
Personalidades opacas e sem qualquer brilho no STF, na PGR, no Senado, uma organização barra-pesada no Executivo. E completa-se o mapa com os últimos dados econômicos, a queda geral do nível de atividade do setor de serviços em relação a qualquer período do ano passado, desmontando definitivamente a fábula da recuperação irresponsavelmente vendida por Henrique Meirelles e endossada pela Globo.
Tudo isso com as eleições a caminho. Mas não tem problema.
O Lula vai preso, o PT perde e tudo volta ao normal.
Por um tempo acreditei que a perspectiva do desastre promovia a volta à racionalidade. De 2005 – quando a mídia iniciou essa loucura – para cá, todas as esperanças de uma saída racional foram jogadas fora.
 
(Publicado originalmente no Jornal GGN)

O assassinato de Marielle Franco foi uma enorme perda para o Braisl - e para o mundo.


Shaun King


Costumo dizer que é difícil compreender a gravidade e a importância de um momento histórico enquanto você está vivendo ele. E estamos agora diante de um momento que preciso que vocês entendam.
Na quarta-feira, em pleno Rio de Janeiro, uma importante líder de direitos civis foi morta por tiros que partiram de um carro. Seu nome era Marielle Franco. Como eu, ela tinha apenas 38 anos de idade.
Ainda não sabemos quem assassinou Marielle e seu motorista, Anderson Pedro Gomes, embora haja indícios preliminares de que a polícia pode estar envolvida. Foi informado que investigadores teriam concluído que as cápsulas de munição encontradas na cena do crime haviam sido compradas pela Polícia Federal em 2006. Cartuchos do mesmo lote foram usados em uma série de ataques brutais que deixaram pelo menos 17 mortos e sete feridos em uma noite de 2015, em São Paulo. Dois policiais e um guarda municipal foram condenados pela chacina.
Marielle Franco ameaçava um preocupante status quo no Brasil.
O que sabemos é que Marielle ameaçava um preocupante status quo no Brasil.
Nos Estados Unidos, cerca de 1.200 pessoas foram mortas por policiais em 2017. Essas mortes frequentemente destroem famílias, e mesmo os agentes envolvidos nos casos mais ultrajantes raramente são responsabilizados. Na maior parte das nações parceiras dos EUA, como o Canadá, a polícia mata em média 95% menos. Os policiais norte-americanos matam mais pessoas em poucos dias do que a polícia de vários países mata em um ano.
Foi a crise de brutalidade policial nos EUA, mais do que qualquer outro fator, que desencadeou o movimento Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”).
Mas vocês sabiam que o Brasil é provavelmente o grande campeão do mundo em violência policial? Embora tenha 120 milhões de habitantes a menos que os EUA, um assustador número de 4.224 brasileiros morreram nas mãos da polícia em 2016. Esse número representa um aumento de 26% em relação ao ano anterior.
Isso é uma crise internacional de direitos humanos. É um escândalo.

 
 
 

 

 
E o lugar que sofreu com maior intensidade a violência policial foi o Estado do Rio de Janeiro, onde a polícia assassinou mais de 1.124 pessoas em 2017 – uma disparada de 22% em relação ao ano anterior. Além de tudo isso, há uma intervenção militar em curso no Rio. Quer saber de polícia militarizada? As Forças Armadas literalmente assumiram o controle do aparato estatal de segurança.
Marielle Franco, líder brilhante com um coração enorme, era uma figura central no movimento contra a violência policial no Brasil.  Esse movimento se equipara para todos os fins ao Black Lives Matter – sem esse nome, mas com indiscutíveis semelhanças. E é por isso que dezenas de milhares de pessoas foram às ruas para protestar e chorar sua morte.
Ela era uma mulher negra e queer lutando não apenas contra a violência policial, mas por uma igualdade mais ampla e pelo empoderamento das mulheres e das pessoas negras em todo o Brasil. Ela estava exatamente saindo de um evento voltado para o empoderamento das mulheres negras no Centro do Rio quando um carro parou ao lado do dela e alguém atirou quatro vezes em sua cabeça.
Seu carro não foi roubado. Não levaram sua bolsa. Ela foi alvo de uma execução.
RJ - Rio de Janeiro - 03/15/2018 - Vel river of the councilwoman Marielle Franco - Women raise their hands in protest of the death of Marielle. The morning of this Thursday (15) in Cinel India, the wake of the councilwoman Marielle Franco, who was murdered last night in the center of Rio, after reporting abuses committed by police officers in Acari. Photo: Ian Cheibub / AGIF (via AP)

Mulheres erguem os punhos em protesto pela morte de Marielle Franco no Rio de Janeiro em 15 de março de 2018.

Foto: Ian Cheibub/AGIF/AP
Recentemente eleita para a Câmara de Vereadores do Rio, em 2016, a voz e o poder de Marielle na política estavam crescendo. Ela era presidente da Comissão Permanente de Defesa da Mulher na Câmara e havia sido nomeada há menos de um mês relatora da comissão que fiscalizará a intervenção militar e a presença de forças policiais e de segurança nas favelas da cidade. Seu partido, o PSOL, estava planejando anunciá-la como candidata a vice-governadora do Estado nas eleições deste ano.
Ela era uma sonhadora que dava esperança a todos ao seu redor. Num país e num mundo que confiam cada vez menos nos políticos, ela mostrava às pessoas que líderes corajosos poderiam ter princípios, ser progressistas e lutar pela mudança de dentro para fora.
Devemos conectar nossas lutas nos EUA com as do Brasil. Marielle Franco era uma de nós.
O assassinato de Marielle me lembra em vários aspectos o de Patrice Lumumba, o primeiro a ser escolhido primeiro-ministro do Congo independente. Cheio de esperança e de ideias, Lumumba tinha apenas 35 anos quando foi morto. Ele personificava a esperança e a mudança em um país que precisava desesperadamente de ambas.
Antes de serem assassinados, Malcom X e Martin Luther King Jr., então apenas um ano mais velhos que Marielle Franco, tinham chegado à conclusão de que era importante conectar nossas lutas pelos direitos civis e nossas prioridades às lutas pelos direitos civis e humanos em curso pelo mundo.
E aqui estamos novamente. Devemos conectar nossas lutas nos EUA com as do Brasil. Marielle Franco era uma de nós. As prioridades dela são as nossas. Os sonhos dela são os nossos. As lutas dela são as nossas.
Não é coincidência que os países com as duas maiores populações de descendentes africanos fora da África – o Brasil, com quase 56 milhões, e os Estados Unidos, com 46 milhões – estejam ambos enfrentando uma crise de violência policial. Isso acontece porque as vidas negras, seja no Rio ou em Ferguson, em São Paulo ou Baltimore, muitas vezes não importam para a polícia e para os políticos. Em nome da segurança, vidas humanas estão sendo tratadas como descartáveis. E isso nunca pode ser aceito.
Saibam o nome de Marielle Franco. Não permitam que sua causa morra com ela. Mostrem ao mundo que é possível matar um homem ou uma mulher, mas não uma ideia.
Foto do título: Marielle Franco, recém-eleita vereadora, abraça uma apoiadora em visita à Favela da Maré, no Rio de Janeiro, em 9 de outubro de 2016.
 
Tradução de Deborah Leão
(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

Charge! Duke via O Dia

quinta-feira, 15 de março de 2018

Editorial: Os emblemas em torno da morte de Marielle Franco


 
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Ato no Parlamento Europeu, em Bruxelas, em protesto contra a morte de Marielle Franco.
 
Ainda consternado com a morte da vereadora Marielle Franco, assassinada no dia de ontem, 14, emboscada numa rua do Rio de Janeiro, juntamente com o seu motorista, Anderson Pedro. Uma assessora que a acompanhava conseguiu sobreviver. A morte da vereadora Marielle Franco traz alguns emblemas importantes para entendermos o que se passa neste país, notadamente no pós-golpe institucional de 2016, onde a face do protagonismo militar já tornou-se visível, depois da intervenção no Estado do Rio de Janeiro. Já colocamos na agenda de leituras o livro de Stephen Graham, Cidades Sitiadas, editado pela Boi Tempo. O livro foi recomendado por um amigo, com o propósito de entendermos melhor como o lastro autoritário pode se ampliar no país, vitimando seus potenciais “inimigos”, que hoje vão muito além das vitimas de balas perdidas ou de supostos “soldados” do tráfico de entorpecentes. 
A vereadora Mairelle Franco era uma autêntica ativista política. Envolvida com a causa LGBT; atuava contra os excessos cometidos por policiais nas favelas cariocas, uma atuação que não se limitava apenas às favelas do Complexo da Maré, onde nasceu; seria a relatora de uma comissão criada para avaliar a intervenção federal no Rio de Janeiro. Sua dissertação de mestrado foi sobre o impacto da implantação de uma UPP, numa favela carioca, com o sugestivo título: UPP: a favela resumida a três letras. Marielle voltava de uma reunião com outras mulheres, em torno das ocorrências registradas recentemente sobre a atuação da polícia militar na favela de Acari, onde a população denunciou várias violações, inclusive com o saldo de 02 mortos. Não tenho a menor dúvida de que Marielle já estava no retrovisor dos obscurantistas, restando identificar agora sua linhagem.
Quem melhor traduziu o significado da morte de Marielle Franco foi o seu colega, o Deputado Estadual, Marcelo Freixo, também do PSOL, que compareceu ao local do assassinato e cobrou das autoridades públicas que o crime fosse devidamente apurado, com a identificação dos criminosos. O assassinato de Marielle Franco alcançou repercussão internacional, mobilizando entidades de direitos humanos e o Parlamento Europeu em sua defesa. Como disse Freixo, a morte de Marielle é uma perda irreparável para os avanços e conquistas dos direitos das mulheres, das mulheres negras, das mulheres negras das favelas, das mulheres negras LGBT das favelas ou não. Engajada na luta pelos direitos humanos, sua morte representa mais um retrocesso para a democracia brasileira, que já acumula alguns sobressaltos.
Como disse antes, sua morte ocorre num momento muito difícil para o país. Há algumas leituras possíveis sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro, comandada por um general do Exército, Braga Netto. Uma delas dizia respeito à manobra de governantes desgastados com o propósito de recuperar popularidade, ancorado no enfrentamento do crime organizado. Essa leitura hoje é cada vez mais diluída, se entendermos que, na realidade, como afirmamos em editorial anterior, o tal governante busca apenas o escudo dos militares. Quando muito.  Uma outra leitura possível é a que aponta para o avanço do autoritarismo no país, subvertendo, cada vez mais, o Estado Democrático de Direito. Um outro emblema da morte dessa jovem é sobre a denúncia de possíveis excessos das forças policiais, movidas por uma interpretação equivocada de uma "licenciosidade" ou "permissibilidade" provocada pela intervenção. Na Vila Kennedy já ocorreu algo neste sentido - com os fiscais da Prefeitura do Rio derrubando os quiosques de comerciantes do local - e, em Acari, o fato pode ter se repetido, o que se constitui mais um equívoco da intervenção.  

quarta-feira, 14 de março de 2018

Charge! Renato Aroeira

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Editorial: Boulos candidato


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Não é incomum que os partidos de esquerda também experimentem processos de oligarquização. O PT, embora tenha construído uma sólida engenharia de tomadas de decisões coletivas, traduzidas em suas diversas instâncias partidárias deliberativas, desde o momento de sua fundação, também passa por essa experiência. Apesar do azeite orgânico partidário, no entanto, algumas decisões foram impostas goela a dentro da militância, bem ao estilo dos partidos tradicionais, cujas decisões são tomadas pela cúpula partidária, sem qualquer consulta às bases. De acordo com o sociólogo alemão Robert Michels, este é um mal ao qual padece todas as organizações democráticas, notadamente as organizações partidárias e sindicais, independentemente de suas origens. Em 1911, num livro sobre partidos políticos, Michels cunhou tal expressão a Lei de Ferro da Oligarquia, para identificar o fenômeno onde uma elite dirigente acaba assumindo as rédeas da organização. Trata-se de um fenômeno inevitável, consoante o autor. 
Remeto-me a esta "Lei de Ferro" em razão das disputas internas do PSOL, que culminaram com a decisão de lançar o nome do presidente do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto(MTST), Guilherme Boulos, como pré-candidato à Presidência da República, que deixou algumas sequelas na agremiação, que apontam para o questionamento sobre sua militância no grêmio partidária, assim como os mecanismos de sua escolha  como candidato, que não teriam trilhado os caminhos estatutários. Aqui em Pernambuco, em relação ao PSOL, os problemas não são menores. As suas lideranças vivem às turras, travando verdadeiras batalhas internas, com saldo de mortos e feridos. Em resumo, a escolha de Boulos como candidato do partido à Presidência da República pelo PSOL, não foi assim nenhuma unanimidade. O mais descontente com a condução do processo é Plininho, filho de Plínio Sampaio, que disputou a Presidência da República pelo partido no passado.
Algumas lideranças do PSOL não nutrem a menor simpatia pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT). Além do líder petista ter declarado apoio ao nome do companheiro, Boulos já está sendo apresentando como um possível “novo” Lula. Talvez um Lula “daqueles tempos”, mas um Lula, o que não agrade nenhum pouco a essas lideranças, principalmente aqueles proponentes de mudanças mais substantivas na sociedade brasileira. O PSOL é um partido relativamente novo e ainda não “engolido” pela bacia semântica à qual se referia o antropólogo Gilbert Durand. Para o PSOL entrar no "sistema" é apenas uma questão de tempo, apesar do protestos do Plínio e outros companheiros. 
A plataforma de Boulos, a princípio, parece bastante identificada com o programa do partido. É uma plataforma autenticamente de esquerda, com proposta de reforma agrária, tributária e urbana, convocação de um plebiscito para revogar algumas medidas adotadas pelo Governo Michel Temer - notadamente a agenda regressiva de direitos. Precisamos ter acesso a esse esboço de programa de governo para conferir as suas posições no tocante à educação e a democratização da mídia, um gargalo que o PT não mexeu e, em razão disso, pagaria um preço bastante alto logo em seguida, como se sabe. Setores da mídia cumpriram um papel fundamental nas tecituras que envolveram a materialização do golpe institucionald e 2016.
Quem nos acompanha por aqui sabe que nutrimos simpatia pela candidatura de Boulos. Já escrevemos sobre o assunto antes. É bom que seja ampliada essa capilaridade no campo de esquerda, sobretudo se considerarmos as “limitações” programática e aliancista de uma candidatura como a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje praticamente um carta fora do baralho golpista. Se tivermos eleições, ela não contará com Lula, com base no andar da carruagem política. Isso se tivermos eleições, uma vez que estamos presenciando, no momento,  um recrudescimento do golpe institucional de 2016, que já conta com uma espécie de protagonismo militar.