pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sábado, 2 de junho de 2018

Le Monde Diplomatique: Greve dos caminhoneiros, disputas ideológicas e urbanização rodoviaristas

A greve dos caminhoneiros tem caminhado para uma mobilização da classe trabalhadora e de outros segmentos da população no sentido de criar uma relação de solidariedade com essa luta, a exemplo de produtores de leite e alimentos que, diante da possibilidade de perda do produto, doaram para trabalhadores e desempregados, numa forma de apoio a greve que tem sacudido o país nessa semana que cada vez mais vai ampliando a pauta contra a política do atual governo
A greve dos caminhoneiros iniciada na semana de 20 de maio de 2018 está contribuindo para expor diversos problemas para a classe trabalhadora e povo brasileiro, problemas oriundos do golpe parlamentar de 2016 que empossou o usurpador Michel Temer e o seu governo neoliberal na política de preços da Petrobrás. Além disso, vem mostrando problemas estruturais de nossa formação socioespacial, resultado da urbanização rodoviarista entre as décadas de 1950 e 2000, processo que gerou uma intensa segregação urbana entre as classes sociais e representações sociais distintas da história social concreta dessa mesma realidade.
O primeiro aspecto a ser compreendido é que a greve dos caminhoneiros foi organizada pelo segmento dos caminhoneiros autônomos, muitos proprietários de seus caminhões, que representam cerca de 70% da categoria dos caminhoneiros. Com a paralisação iniciada dia 21, esse segmentou contou com o apoio dos demais 30% representados por empresas do setor de transporte e logística, que foi exatamente o semento do setor ouvido na negociação com o desgoverno golpista no dia 23, mas com propostas recusadas na reunião do dia 24. O segmento dos empresários de transporte foi representado pela Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), que reúne cerca de 700 mil caminhoneiros e conta com o apoio de 600 sindicados espalhados no Brasil. Esse segmento reivindicou a retirada de impostos como PIS, Cofins e da CIDE que estão embutidos no preço do combustível, enquanto que o segmento dos caminhoneiros autônomos questionam os preços a partir de outro problema mais profundo: a indexação dos preços dos combustíveis à flutuação do dólar e do mercado internacional.
Desde outubro de 2016, quando o governo implementou a política de indexação do preço dos combustíveis da Petrobrás ao dólar e mercado externo, tirando a autonomia da maior empresa brasileira nesse setor para favorecer os seus acionistas e colocando em questão a soberania do país, que as condições de toda a categoria de caminhoneiros só vem piorando e se precarizando ainda mais. A categoria reúne cerca de 2,3 milhões de caminhoneiros em todo o país e mostrou com essa greve que é possível parar a produção e a reprodução da economia parando a circulação das mercadorias. A greve, que tem sido chamada de paralização pela mídia burguesa, já foi vitoriosa por inverter e virar do avesso os problemas da política econômica de um país desgovernado desde 2016, que cujo pacto conservador para o golpe vem apenas tirando direitos dos trabalhadores através da contra-reforma trabalhista e da PEC 51 que congela investimentos públicos, para manter o pagamento da divida pública oriunda dos títulos do tesouro nacional ofertados a juros exorbitantes no mercado de ações.
Para compreender algumas das contradições instauradas com a greve dos caminhoneiros, pretendo problematizar a disputa ideológica sobre ela, a urbanização rodoviarista e o debate oculto das classes sociais nesse processo.
Disputas ideológicas nos discursos sobre a greve e as classes sociais
Como analisou o historiador E.P. Thompson: “classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real”. Então, a consciência de classe dos trabalhadores só pode advir de sua luta política direta contra os interesses do grande capital, e ela não se dá antes da luta concreta e real na produção, muito menos por uma “consciência” filosófica, sociológica ou mesmo representação da realidade social. Com efeito, o que pudemos verificar nessa primeira semana de greve foi uma confusão e desinformação a respeito da greve dos caminhoneiros no Brasil, tanto por parte da esquerda institucional como pela direita conservadora.
A confusão inicial, presente nas chamadas redes sociais, iniciou sob o argumento de que a greve seria uma espécie de locaute (lock out, em inglês) proibido por lei, que é quando empresários e proprietários de caminhões obrigam os trabalhadores pararem para prejudicar a economia e derrubar o governo. Há algo de estranho nesse argumento reproduzido também pela mídia burguesa capitalista, pois nenhum empresário faria isso explicitamente no Brasil, até porque sua maioria apoiou o golpe parlamentar de 2016 que instaurou o atual governo. O que a presença dos empresários da Abcam na reunião com o governo mostra é que esse segmento defende a redução de impostos, mas não questiona a política de preços da Petrobrás. O que essas negociações têm ocultado é que a greve foi de iniciativa dos caminhoneiros autônomos, que continuaram parados mesmo depois do governo anunciar um acordo para acalmar os ânimos dos meios de comunicação e não alardear a sociedade. No entanto, a categoria dos caminhoneiros é heterogênea e complexa para ser vista apenas pela aparente unidade política nessa greve, o que requer estudos mais aprofundados de sua composição.
Da parte da direita conservadora há uma disputa pelo discurso ideológico sobre a greve, pois pegam carona na luta dos caminhoneiros e tentam levar suas pautas de redução de impostos, de intervenção militar e de conservadorismo de seus privilégios de classe num momento de crise econômica e política escancarada, mas não questionam a política monetária e neoliberal do atual governo que ela ajudou no golpe.
A luta política dos caminhoneiros autônomos adquiriu apoio da maior parte da população brasileira, sobretudo, da classe trabalhadora, por causa do que representam para o país e pelas condições de precariedade que estão submetidos, a exemplo de outras categorias de trabalhadores que agonizam com o aumento do custo de vida, o desemprego e sentem concretamente as consequências da farsa do golpe parlamentar de 2016. A greve conta com apoio importante do setor dos Petroleiros, da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo, e o que ela evidencia são as condições de trabalho desses caminhoneiros, que só têm sido noticiadas nas redes sociais e mídias alternativas por causa dessa greve, ao mostrar uma realidade desconhecida pela maioria dos brasileiros: jornadas de trabalho que chegam a 24 horas diretas; em média 19 dias de trabalho longe da família; os caminhoneiros rodam cerca de 10 mil quilômetros por todo o Brasil nesses dias de trabalho; há assalariamento entre os caminhoneiros proprietários de mais de um caminhão; e eles recebem em média R$ 4 mil reais de salário ou renda, comprometida agora com o alto custo dos combustíveis e as dificuldades de negociar o frete ante flutuação dos preços e manutenção de caminhões. Entretanto, não se mostra as condições econômicas de empresas e de proprietários de vários caminhões entre os caminhoneiros autônomos, dada sua heterogeneidade e complexidade.
No entanto, as representações sociais sobre a greve dos caminhoneiros produzida pela mídia burguesa, quando tenta ludibriar os trabalhadores mentindo descaradamente sobre a circulação de medicamentos, e por certos agentes ao reproduzir o argumento de locaute e focar sua crítica apenas nas faixas de intervenção militar que parte dos caminhoneiros expõe, mostram a complexidade da categoria, da greve e das classes sociais, mas também como as representações sobre um determinado fenômeno social precisam ser reconhecidas e superadas. O sociólogo e filósofo Henri Lefebvre analisou que a representação está ligada filosoficamente ao conhecimento, porém, há uma dimensão que é de desconhecimento. Ele destacou que há uma cisão entre ser e saber que precisa ser superada, ao questionar a ideologia nos processos de representação da realidade, e expor que o tempo de trabalho abstrato socialmente necessário apagou os trabalhadores e o trabalho no processo de conhecimento, o que tem dificultado na apreensão do movimento real e apenas uma compreensão da representação da realidade. Em síntese, as pessoas tendem entender o real a partir das representações sobre a realidade e não a partir da própria realidade mediada pela teoria ou representação. Isso se verifica no fenômeno das redes sociais e na amálgama de informações e desinformações que circulam nessas redes. O aspecto mais palpável desse problema é o da chamada Fake News (notícia falsa), que não é exclusivo das redes sociais, mas que está presente e cuja origem vem de organizações como o MBL, Movimento Vem Pra Rua e outras, que disseminam notícias falsas sobre a realidade econômica e política.
Todavia, são as condições de precarização do trabalho e aumento do custo de vida, oriundos das políticas de ajuste fiscal e corte de investimento da atual política, que levam determinadas categorias a fazer greves e paralizações. A greve sempre é o último ato de quem não conseguiu chegar num acordo razoável e com respeito às partes. Nesse quesito, não há acordo na greve por causa de interesses antagônicos e contrários de classes presentes nas negociações com o governo que advém das contradições econômicas, políticas e sociais, resultado da contradição entre produção e apropriação privada da riqueza socialmente produzida, aspecto que é ocultado pela ideologia dominante no atual governo, nos meios de comunicação, nas escolas, nas empresas.
A ideologia dominante opera de modo a pegar um aspecto da realidade e universalizá-lo como sendo problemas de todos. Isso acontece no caso das pautas de determinadas classes ou grupos sociais quando querem que outras classes se unam aos seus interesses. A corrupção, por exemplo, que efetivamente é um problema social, político e econômico, foi alçada como problema central da sociedade pelas “classes médias” e parte das classes dominantes, mas reproduzida pela maior parte da classe trabalhadora como sua bandeira. No entanto, não é em si o principal problema da classe trabalhadora, cuja reprodução social está dificultada por causa do regime de acumulação despótico de capital que gera aumento do custo de vida e baixos salários, e que acaba reproduzindo esse discurso como sendo seu pela dificuldade de produzir um discurso próprio a partir de seus problemas reais de vida pelas dificuldades de se constituir como classe na batalha política e ideológica por seus interesses econômicos.
Por isso, a greve dos caminhoneiros tem sido alvo de disputas ideológicas ou de discursos sobre a realidade que partem de representações sociais, que precisam ser compreendidas nessa conjuntura política, econômica e social complexa, mas sem perder as condições materiais do processo de trabalho e de valorização do capital e sua estrutura de classes. A dificuldade talvez se dê pela ausência de um programa político e de um projeto de sociedade que articule os diversos setores produtivos e de transporte para resolver o impasse da crise dos combustíveis, levando sempre às medidas paliativas como redução de impostos ou congelamento do preço. No entanto, a dificuldade maior tem sido o reconhecimento dos interesses de classe, pois o fenômeno das classes sociais é o mais complexo e de difícil compreensão neste tipo de sociedade, já que a divisão técnica e social do trabalho, a heterogeneidade dos tipos de assalariamento e a ausência de organização sindical e política dificultam a compreensão dos trabalhadores enquanto uma classe social. Há quatro elementos fundamentais para se entender classes no Brasil a partir do marxismo: 1º) posição dos indivíduos no processo produtivo (proprietário de meios de produção – patrão, e não proprietários – assalariados); 2º) relações entre as classes no processo de valorização do capital (disputas pelo aumento de seus rendimentos – lucro e salário); 3º) a luta política das classes com relação aos seus interesses econômicos e alianças de classes (através de leis e regimes políticos); e 4º) condições espaciais de vida na cidade e no campo (moradia, localização e deslocamento), o que nos leva a discutir o ponto nodal da atual crise.
Urbanização rodoviarista, segregação urbana e Petrobrás: o ponto nodal da crise
A greve dos caminhoneiros vem mostrando um problema que há décadas faz parte da vida social brasileira: as consequências de um desenvolvimento dependente, desigual e combinado alicerçado na industrialização automotiva e urbanização rodoviarista, cujo ponto nodal dessa relação tem sido a cadeia produtiva do petróleo e da produção automotiva nacional e internacional. O tripé dessa relação entre indústria petroleira e indústria automotiva nesse modelo de “desenvolvimento” tem sido articulado pela indústria da construção civil, pouco destacada pela chamada esquerda institucional e revolucionária que não disputa os sindicatos de trabalhadores dessa categoria, e condições de superexploração dos trabalhadores totalmente negligenciada pela direita conservadora. A categoria dos caminhoneiros também não é disputada politicamente devida sua heterogeneidade, o que mostra a dificuldade de entendimento da atual greve. Por sua vez, a cadeia da construção civil está ligada ao setor imobiliário, que detém o poder de produção de cidades e metrópoles, bem como de infraestrutura urbana e rodoviária para a circulação de mercadorias. Mas ela apresenta um elemento fundamental apresentado por Lefebvre e aprofundado por outros teóricos: o de impedir ou barrar a tendência de queda da taxa de lucro em outros setores da indústria mais dinâmicos e contraditórios, ao ser o enlace atual entre setores imobiliário e financeiro numa economia política da urbanização baseada na extração de mais-valia absoluta.
Por isso, analisar o processo de urbanização é fundamental para entender sua importância para o desenvolvimento capitalista e a superação de suas crises, ao compreender por que a greve dos caminhoneiros ganhou a força de parar o país, enquanto que outras categorias de trabalhadores da indústria não conseguem mais fazê-lo. A urbanização brasileira tem sido um processo induzido pela produção capitalista do espaço, ao passo que o espaço urbano de metrópoles e cidades grandes no Brasil apresenta visualmente os efeitos das desigualdades estruturais deste tipo de capitalismo dependente. A luta de classe se lê no espaço urbano produzido, espaço que precisa ser “objeto” de discussão ampla da esquerda institucional e revolucionária, que não investiga na realidade a relação entre o tripé contraditório apresentado por Marx: terra, trabalho e capital, pressuposto de análise do modo de produção e desenvolvimento da sociedade capitalista, aprofundados apenas por teóricos marxistas da cidade.
As consequências desse tipo de desenvolvimento são visíveis e se manifestam por meio da segregação urbana, entendido aqui como processo social em que as classes que dominam a sociedade (industriais, ruralistas, banqueiros, proprietários de terras) habitam e trabalham numa área da metrópole ou da cidade produzida exclusivamente para elas, enquanto que as demais classes sociais habitam um lugar e trabalham em outro, numa segregação que se efetiva com o sistema viário e de transporte produzido para a reprodução social dessas classes, condição estrutural que indica a necessidade de deslocamentos diários de trabalhadores, pequenos burgueses, profissionais liberais e camadas médias, mas também das mercadorias produzidas. As causas e determinações sociais do deslocamento diário de milhões de trabalhadores se encontram na relação entre segregação urbana, renda da terra e modais de transportes, o que pode evidenciar os fundamentos da mobilidade urbana originado na contradição deste tipo de urbanização, mas também o modelo de dependência do petróleo como combustível.
Essa urbanização tem um caráter rodoviarista desde os governos de Juscelino Kubitschek (1956-1961), que priorizou a urbanização rodoviária articulada a produção automotiva, promoveu a parceria com as montadoras estrangeiras e transnacionais que se instalaram no país para o “desenvolvimento” nacional. No entanto, foi necessário criar a ideologia do “carro próprio” entre as classes médias e trabalhadoras, para viabilizar esse projeto político-econômico, o quê gerou consequências e problemas para a vida urbana metrópoles e cidades médias do país no final do século XX e início do século XXI. Nesse sentido, a ideologia do carro próprio, oriundo da classe média brasileira, nos últimos anos se expandiu para parte da classe trabalhadora, que assumiu esse modo de vida baseado no carro articulado ao sonho da casa própria também, em decorrência dos limites, precariedades e alto custo do transporte público, o que provocou a produção de cidades e metrópoles calcadas na urbanização rodoviarista.
Eduardo Vasconcellos analisou com profundidade a história da “questão do trânsito” em São Paulo, por exemplo, ao contribuir para se pensar o predomínio do modelo rodoviarista e a ideologia do carro próprio que fundamentam a sociedade de classes que vivemos. Para Vasconcellos, o resultado da discussão pública, na década de 1950, entre o ex-prefeito de São Paulo Prestes Maia, defensor do modelo de mobilidade americano, e o urbanista Anhaia Mello, que defendia a ampliação do transporte coletivo, pode explicar a origem do caos viário que se tornou a cidade de São Paulo, mas também as metrópoles brasileiras e sistemas viários na atualidade. O caos instaurado no trânsito só é possível por causa da força produtiva produzida pela infraestrutura urbana de ruas, avenidas, rodovias, pontes e viadutos, enquanto que o transporte coletivo e público não recebeu a mesma prioridade ao longo de décadas, ao desencadear uma crise urbana que explodiu com a revolta da tarifa em 2013 e volta a explodir com a greve dos caminhoneiros em 2018 no país.
A engrenagem da produção automobilística, dos viários e da “cultura” do “carro próprio” só pode ser compreendida no contexto de industrialização e urbanização, ao passo que as duas grandes guerras mundiais aceleraram a industrialização e as grandes aglomerações nos centros urbanos que, mediante a dependência do uso do petróleo até para a construção de asfalto e muitos gêneros de mercadorias, torna-se possível entende as determinações externas para os estímulos dessas políticas econômicas e para quais classes elas visam favorecer: a classe dos capitalistas industriais (montadoras), construtoras (sistema viário), combustível fóssil (petrolíferas e distribuidoras), o agronegócio (ruralistas) e classes médias e pequena burguesia consumidoras de carro. Nessa “engrenagem” da produção de automóveis e urbanização viária da cidade e metrópole, foi necessária a criação da ideologia da circulação e a construção do imaginário de ascensão social baseadas no carro, que negligenciou os problemas urbanos de deslocamento da relação entre moradia e trabalho e a segregação urbana.
Um dos estudiosos dessa questão no Brasil tem sido o urbanista Flávio Villaça, que aprofundou a problemática da segregação urbana e dos vetores de valorização ao explicitar que: “Daí decorre a importância da segregação na análise do espaço urbano de nossa metrópole, pois a segregação é a mais importante manifestação espacial-urbana da desigualdade que impera em nossa sociedade. […]”. Ele analisou ainda que os vetores de valorização nas diversas metrópoles brasileiras convergem para uma direção: a localização das classes dominantes na metrópole. No caso de São Paulo, essa localização está bem delimitada: o quadrante sudoeste da cidade, que abriga as classes dominantes da cidade, mas também da metrópole e parte do país.
Por isso, a greve dos caminhoneiros anuncia uma crise estrutural que precisa ser compreendida em relação dialética e contraditória com o problema conjuntural dos preços dos combustíveis, e mostra também que o capitalismo produz seus próprios coveiros, tal como indicado por Marx. A política de preços da Petrobrás, indexada a flutuação diária do dólar e do mercado internacional de barril de petróleo, expõe o problema de soberania nacional ao favorecer apenas acionistas da Petrobrás, enquanto que desfavorece caminhoneiros e trabalhadores, possuidores de caminhões, automóveis, motocicletas e outros tipos de veículos motorizados. O atual presidente da Petrobrás, Pedro Parente, adotou uma política de preços para favorecer os acionistas e ajudar as petroleiras internacionais a entrarem no mercado brasileiro, como uma das diretrizes do golpe de 2016 na tentativa de entregar o pré-sal às empresas estrangeiras e imperialistas.
Brasília – Caminhoneiros protestam na BR 040, nas proximidades da cidade de Valparaíso de Goiás (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Para onde vai a greve dos caminhoneiros e a luta da classe trabalhadora?
A greve dos caminhoneiros autônomos tem mostrado ao povo brasileiro que não basta apenas diminuir impostos (como reivindicado pelo patronato), pois essa medida tem efeito momentâneo e não resolve o problema da flutuação dos preços no mercado externo. Com a política monetarista de inflação baixa, mas de altos custos públicos e sociais, as consequências dessa política de preços dos combustíveis mostram que o preço atrelado às variações diárias do barril do petróleo internacional expõe o aumento dos custos de vida (transporte, alimentos, e outros) não só para os caminhoneiros, mas para o conjunto da população brasileira, além de expor a maior empresa brasileira que é estatal, a Petrobrás, ao retirar subsídios e tornar quase um terço das refinarias ociosas para abrir espaço para as companhias de petróleo imperialistas, obrigando o país a importar derivados de petróleo por causa do real desvalorizado. Essa política representa um desastre e é contra ela que aparentemente se insurgiu atual greve.
A greve dos caminhoneiros tem caminhado para uma mobilização da classe trabalhadora e de outros segmentos da população no sentido de criar uma relação de solidariedade com essa luta, a exemplo de produtores de leite e alimentos que, diante da possibilidade de perda do produto, doaram para trabalhadores e desempregados, numa forma de apoio a greve que tem sacudido o país nessa semana que cada vez mais vai ampliando a pauta contra a política do atual governo, apesar de haver segmentos da direita disputando com sua pauta de intervenção militar. Ela mostrou também a importância dos trabalhadores do setor de transporte, que precisam ser compreendidos nas complexas relações de classes sociais no atual modo de produção no país, e de que a luta política dos trabalhadores precisa ocorrer de baixo para cima na atual conjuntura para inverter as estruturas institucionais viciadas na hierarquia de cima para baixo. Em síntese, a luta se dá pela base e a partir da base e, evidentemente, exige organização, projeto político e alianças para os enfrentamentos. Por isso, é necessário partir das condições de trabalho presentes no processo produtivo e de circulação, e não das representações sociais que circulam em redes sociais e na mídia burguesa hegemônica.
Por fim, a greve dos caminhoneiros tende a conseguir importantes aliados nessa luta com a greve dos petroleiros, já anunciada pela Frente Única dos Petroleiros (FUP) ao dizer que “a atual política de reajuste dos derivados do petróleo, que fez os preços dos combustíveis dispararem, é reflexo direto do maior desmonte da história da Petrobrás”, e que realizou paralizações nessa segunda 28 de maio. Eles denunciam ainda que “o número de importadoras de derivados quadruplicou nos últimos dois anos, desde que Parente adotou preços internacionais, onerando o consumidor brasileiro para garantir o lucro do mercado. Em 2017, o Brasil foi inundado com mais de 200 milhões de barris de combustíveis importados, enquanto que as refinarias, por deliberação do governo Temer, estão operando com menos de 70% de sua capacidade. O povo brasileiro não pagará a conta desse desmonte”, conclui a nota da FUP. De uma mobilização pela queda dos preços de combustíveis e derivados, a luta dos caminhoneiros está sendo o estopim de uma luta em defesa da Petrobrás e por uma política econômica soberana e voltada para a classe trabalhadora e povo brasileiro, abrindo mais uma janela histórica de transformação que precisa ser aproveitada pelas organizações de esquerda comprometidas com os trabalhadores do campo e da cidade.

Sandro Barbosa de Oliveira é cientista social, professor e educador popular. Bacharel em Ciências Sociais pelo Centro Univ. Fundação Santo André, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo e doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. É também associado da Usina Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado e militante da Frente Itaquera Sem Medo.

(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique Brasil)

O princípio Lula: democracia e eleições em 2018

                                         
Marcia Tiburi

O princípio Lula: democracia e eleições em 2018                                    
Atividade das mulheres no Acampamento Democrático Lula Livre, em Curitiba (Foto: Ricardo Stuckert)

Falar de democracia no Brasil hoje significa, mais do que nunca, falar de um espectro.
Desde o final dos anos 80, com a chamada Abertura, vivemos dentro de uma espécie de bolha democrática que foi furada pelo Golpe. A partir de então, a fragilidade da redemocratização formal que vivíamos veio à tona e, como aquela energia elétrica que falta, a urgência e a importância de democracia apareceu mais radicalmente. Se de um lado ela é frágil e precária, de outro a democracia é uma forma aberta que requer reinvenção. Como cidadãos, seguimos nessa linha.
Se é verdade que vivíamos em uma democracia de baixa intensidade, em meio a avanços e retrocessos, erros e acertos, pelo menos a vida política brasileira desenvolvia-se dentro dos marcos impostos pelas regras do jogo democrático. Existia democracia, ainda que insuficiente. Hoje, nem isso.
No momento presente, apostamos em eleições, mesmo depois dos 54 milhões de votos vencedores jogados na lata do lixo da história em 2016.  Resistir é insistir. O desejo de democracia segue e a utopia de um mundo melhor permanece presente entre nós exigindo atitudes capazes de superar esse estado político, econômico e social injusto.
O caráter excepcional da eleição em tempos de Golpe
Talvez o conjunto das forças de centro-esquerda – ou seja, daqueles que acreditam que o Estado tem um papel ativo e fundamental na redução das desigualdades sociais e na implementação do projeto constitucional de vida digna para todas e todos – parece não ter percebido que a próxima eleição tem um caráter excepcional. Trata-se da primeira eleição presidencial que se dá em um quadro de quebra da normalidade democrática.
Os efeitos de um golpe de Estado, ainda inconcluso, se fazem sentir diariamente. O impeachment da presidenta eleita sem crime de responsabilidade, a implementação de um projeto político derrotado nas urnas e a utilização do sistema penal para perseguir os inimigos políticos dos atuais detentores do poder político, que se confundem com a parcela significativa dos detentores do poder econômico, deixam claro que o Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) atua fora dos limites da legalidade democrática para atender interesses que não se confundem com os da maioria do povo brasileiro.
O “Golpe”, portanto, deve ser a categoria de análise da situação política. Não basta afirmar a existência de um golpe, mas, a partir dessa constatação inafastável, perceber as consequências e formular estratégias de atuação compatíveis com esse quadro.
O que está em jogo é, mais uma vez, a democracia. Não só a democracia formal e a importância do voto na escolha dos governantes estão em risco, mas uma concepção de Estado comprometido com a dignidade da pessoa humana, a realização dos valores republicanos e a concretização dos direitos e garantias fundamentais de todas as pessoas.
É justamente esse “comum” que evolve a efetiva participação popular na tomada das decisões políticas e a realização dos direitos e garantias fundamentais da população, que deve unir todas a forças de centro-esquerda e ser posto em oposição ao golpe e aos candidatos dos grupos econômicos responsáveis pela quebra da normalidade democrática.
Princípio Lula
Podemos chamar esse “comum” capaz de aglutinar e promover reações às consequências práticas do Golpe contra a população e a democracia de Princípio Lula. Esse princípio não se confunde com o pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva, que atualmente está submetido a uma brutal perseguição judicial com finalidade política.  O cidadão Lula da Silva é um homem de carne e osso, com seus erros e acertos, que se tornou a maior liderança política do Brasil, um ex-presidente que deixou o cargo com 83% de aprovação, segundo dados do Datafolha.
Já o princípio Lula é um vetor de orientação que exige ações concretas à redução da desigualdade, um mandamento de conduta direcionado a resistir ao projeto neoliberal que quer transformar tudo e todos em objetos negociáveis. O princípio Lula fundamenta a luta de todos aqueles que querem o retorno e o aprofundamento da democracia.
O ex-presidente Lula, antes de sua prisão, disse que é impossível aprisionar ideias. Ele tem razão. Lula, esse espectro que ronda o Brasil, vai se concretizar na próxima eleição cada vez que o eleitor votar em candidatos radicalmente contrários ao Golpe. Mais do que apenas em Lula, o voto possível do campo democrático será no que ele representa no imaginário popular, ao que podemos chamar de princípio Lula. Esse princípio atravessará o voto de todos os que desejam a democracia. A união das esquerdas, indispensável à defesa da democracia, queiram ou não, passa pela adesão ao princípio Lula.
Não é novidade que para reduzir a pobreza, gerar empregos formais e promover o crescimento econômico, o governo protagonizado por Luiz Inácio Lula da Silva adotou uma postura pragmática, por vezes conflitante com princípios históricos que levaram à criação do Partido dos Trabalhadores. A questão era e ainda é: vale  ou valeu a pena um amplo ciclo de alianças e as tentativas de conciliar na medida do possível os interesses de classes distintas quando isso é necessário a um projeto de governo voltado a atender aos interesses da maioria da população? Intelectuais de esquerda ainda divergem. Os altos índices de popularidade de Lula da Silva, mesmo depois de uma terrível campanha empresarial-midiática contra a sua imagem, parecem indicar que o povo não tem tantas dúvidas ou apego ao purismo doutrinário.
Porém, criticar o Partido dos Trabalhadores à esquerda, tensionando pelo abandono de certo conservadorismo da política macroeconômica ou pela adoção de posturas revolucionárias, era um luxo de tempos democráticos. Hoje, qualquer reflexão séria sobre os rumos do país deve partir da constatação de que o Brasil durante o governo Lula reduziu a desigualdade, promoveu um crescimento econômico bem superior à média das últimas décadas, diminuiu o furor privatizacionista e reduziu substancialmente o desemprego.
Devolver o Estado ao Povo
O Golpe, todos já sabem, deu-se em razão dos acertos e do que havia de compromisso popular no governo petista e não por causa dos erros dos governantes, que não foram poucos. No entanto, para reagir ao golpe, o mais importante é reafirmar e defender os acertos do Partido dos Trabalhadores. Isso não significa que o Partido dos Trabalhadores está livre do dever de formular uma autocrítica. A autocrítica é fundamental para que erros não se repitam no futuro, mas não deve servir para demonizar o passado.
Todo governo é complexo, como produto histórico caracteriza-se por acertos e erros. Não se pode, porém, ignorar que hoje os erros dos governos petistas são utilizados na retórica golpista, acolhida pela esquerda mais ingênua, para ocultar e demonizar os acertos que tanto incomodaram à muitos dos detentores do poder econômico que, no Brasil e no exterior, não tem qualquer compromisso com o destino do país, e à parcela da classe média que se mostrou incomodada com a ascensão social das classes populares.
Hoje, em um momento marcado por uma ameaça concreta à democracia brasileira, não há mais espaço para o narcisismo das pequenas diferenças ou ressentimentos daqueles que, por idealismo, purismo ou vaidade, acreditaram ter sido traídos ou abandonados pelos governos petistas. Diante do crescimento do pensamento conservador e do projeto de destruição do Estado brasileiro, como insistir com idiossincrasias, projetos pessoais de poder ou desejos de reforçar identidades partidárias?
Nesse momento, é preciso que todos aqueles que possam participar diretamente das eleições de 2018 o façam como apoiadores de uma união das esquerdas – e até mesmo como candidatos quando for o caso, o que envolve certa dose de generosidade e sacrifício pessoal em muitos casos. Os rumos da política democrática brasileira dependem da união das esquerdas. Junto ao princípio Lula, não há nada mais importante do que a união das esquerdas nesse momento.
Há uma missão histórica posta às forças progressistas: devolver o Estado ao povo, impor limites democráticos ao poder econômico e concretizar os direitos fundamentais de todos e todas. Os golpistas, em nome do desejo de enriquecer e de lucrar ilimitadamente, implementaram uma espécie de vale-tudo para se manter o poder, impõe-se uma resposta popular que passa necessariamente pelas urnas, embora não se limite a elas.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

O Quarto Poder - Episódio 2


Caminhoneiros e seus patrões fornecem combustível ao golpismo. Temer é o principal artíficie do caos.





Mário Magalhães



O combustível sonegado aos postos atiça há dez dias a brasa do golpismo. Caminhoneiros autônomos ou a serviço de empresas de transporte rodoviário de cargas apelam pela ruptura institucional. Em frente à Refinaria Duque de Caxias, uma faixa pregou “Intervenção militar é solução; buzina, Brasil!”. Ali, taxistas e motociclistas se uniram aos caminhoneiros em gritos pela dita intervenção, cuja tradução sincera é golpe militar ou golpe de Estado.
Num bloqueio na rodovia Régis Bittencourt, picharam no asfalto “Queremos intervenção militar já”. Na cidade potiguar de Mossoró, esbanjaram pontos de exclamação: “Queremos intervenção militar no Brasil urgente!!!”. No país inteiro, aflito e atônito, foi assim.
Difundiu-se num grupo de rede social restrito a caminhoneiros a mensagem, anotada pelo repórter Ricardo Senra: “As reações à greve dos caminhoneiros, amplamente apoiada pela população, demonstram que o brasileiro está sem paciência alguma com as ‘autoridades’. As condições são ideais para uma verdadeira revolução que refunde o Brasil. Mas onde está a liderança desse processo? Escrevam no para-brisa dos caminhões e carros. Intervenção militar!”.
A repórter Josette Goulart capturou esta incitação em vídeo, no grupo catarinense de WhatsApp “Carreteiros na luta”, que reúne 257 participantes: “Vamos parar o Brasil. Vamos parar tudo. Você que quer uma intervenção civil e militar saia às ruas e dê apoio aos caminhoneiros”. Na manhã da quinta-feira, as consultas sobre “intervenção militar” alcançaram o segundo lugar no ranking brasileiro do Google. Parentes de caminhoneiros e aliados deles promoveram no fim de semana atos diante de quartéis no Rio Grande do Sul e em Minas. As vivandeiras, essa espécie imortal, imploravam por “intervenção militar”.
O cineasta Jorge Furtado contou: “Um amigo passou por uma fila de caminhoneiros em greve e gritou: ‘Força aí, companheiros!’. Os caminhoneiros responderam: ‘Sai fora, vermelho! Comunista!’”.
Acossado pela ditadura nas décadas de 1960 e 1970, o ator Francisco Milani teve de trocar de ofício. Passou a exercer a digna e dura profissão de caminhoneiro. De regresso à carreira artística, elegeu-se vereador no Rio. Militava no Partido Comunista Brasileiro.

Um pouco de história

A história oferece pistas para elucidar o caráter de certos movimentos sociais e caldos de cultura. Em novembro de 2015, caminhoneiros interditaram estradas de ao menos 14 Estados. Um dos líderes bravateou como reivindicação prioritária a queda de Dilma Rousseff. A presidente reagiu à obstrução com o aumento dos valores de multas e sanções aos motoristas. Derrotou o protesto.
Os empresários do transporte rodoviário do Chile tramaram em 1972 uma paralisação de quase um mês que provocou vasto desabastecimento de mercadorias. A CIA integrou a conspiração oposicionista que estacionou os caminhões. Às vésperas da deposição do presidente Salvador Allende, em 1973, reeditaram a operação e devastaram ainda mais a economia.
O golpista Michel Temer nada tem a ver com Dilma e muito menos com Allende, governantes consagrados pelo voto popular. Mas os três locautes e greves prestaram-se a idêntico propósito: extremistas de direita alvejarem a democracia.
É claro como roupa lavada em propaganda de sabão em pó que nem todos os caminhoneiros comungam da fé intervencionista. Mas foram raras as invocações por “Lula livre” e raríssimos, e olhe lá, os incentivos às candidaturas presidenciais de Marina Silva, Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Manuela D’Ávila ou Guilherme Boulos.  “Não tem uma bandeira vermelha, estão de parabéns”, festejou o deputado Jair Bolsonaro.
“Sabe que todo caminhoneiro vota no Bolsonaro, né?”, esclareceu, com uma pergunta, o empresário e caminhoneiro Claudinei Habacuque, dono de quatro caminhões. Parcela expressiva dos caminhoneiros e sobretudo dos seus patrões tem lado, e a este tem sido útil. Desfralda a bandeira para se livrar do problema, “Fora, Temer!”, mas acrescenta o estandarte liberticida “Intervenção militar!”.
Bolsonaro hesitou mexer as peças, mas no auge da mobilização fez o seu lance. Manifestou-se por Twitter e WhatsApp: “Qualquer multa, confisco ou prisão imposta aos caminhoneiros por Temer/Jungmann será revogada por um futuro presidente honesto/patriota”. Logo recuou o cavalo: “A paralisação precisa acabar, não interessa a mim, ao Brasil, o caos”. Carcomido açulador de golpes, condenou a “intervenção militar”.
O jornalista Janio de Freitas alertou: “Na gravidade e nos modos, a situação provocada pelos caminhoneiros empresariais e autônomos se ajusta, com precisão, ao que Jair Bolsonaro diz e representa para o eleitorado. O governo fraco e frouxo, a falta de ordem e de quem a ponha sob controle, o Congresso dos negocistas, o alto Judiciário confuso e confundindo, e a população indignada, a esperar das ‘autoridades’ a solução que não vem”.

Conspirações fardadas e paisanas

Janio revelou que têm havido “reuniões de militares fora dos quartéis, para ‘discutir a situação’”. Jabeou: “Só poderiam ser vistas como prática de civismo se o passado brasileiro, a partir do golpe da República, não as intrigasse com o espírito da democracia”.
Que o diga o general-de-exército Antonio Hamilton Mourão, fanzoca do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra e partidário da candidatura presidencial de Bolsonaro. Em entrevista à jornalista Joice Hasselmann, o oficial da reserva vociferou: “Terá que haver uma intervenção forte num primeiro momento, colocando ordem nessa casa”. Atemorizou: “Se o país irá flertar com o caos, só existe uma instituição capaz de impedir que isso aconteça, e essa instituição são as Forças Armadas”.
O general Mourão rechaçou, entrevistado pelo repórter Rubens Valente, a “intervenção militar” nos moldes do estímulo dos caminhoneiros. Porém, desafiou: “Se o governo não tem condições de governar, vai embora, renuncia. Antecipa as eleições […]”. Um dia antes, o deputado e pastor Silas Malafaia rumara pela mesma prosa: “Antecipe as eleições. Dê posse antecipada ao presidente novo”.
Quando Mourão e Malafaia, sócios do consórcio anti-Dilma, especulam sobre antecipação das eleições, a pulga cambalhota na orelha. Com menos de 1% de intenção de voto para o Planalto, Temer é tão abominado que, se um jiló gritar “Fora, Temer!”, os brasileiros elogiarão seu gosto adocicado. Só o ministro Carlos Marun, celebrizado como leão-de-chácara de Eduardo Cunha, encena devoção pelo chefe.
Temer fora é uma coisa – ele já iria tarde. Antecipar o pleito de 7 de outubro, outra. Efetivá-lo hoje favoreceria quem agora mostra vigor nas pesquisas, mas pode sofrer com os segundos parcos no horário eleitoral – Bolsonaro. Noutras trincheiras, diminuiria o tempo para Lula transferir votos ao candidato que apadrinhar e encurtaria campanhas promissoras. A essa altura, conversa sobre mudança do calendário eleitoral planta antecipação para colher adiamento ou cancelamento. Faltam quatro meses e sete dias para o primeiro turno.
Outra conversa ladina é a do “semipresidencialismo” preconizado pelo protagonista do golpe de dois anos atrás. Michel Temer edulcora tal regime como “extremamente útil para o Brasil”. A despeito da retórica ardilosa, seria desprestigiado o instituto do sufrágio popular, ou o presidente escolhido pelos cidadãos. Esvaziariam seus poderes. O ministro Gilmar Mendes é um dos articuladores da proposta, que, alegam, passaria a vigorar em 2023. Não surpreenderia, a depender das restrições ao eleito em outubro de 2018, implementarem a manobra quatro anos antes.
A crise é política. Só adivinhões prognosticam seu desfecho. Ele será influenciado pelo silêncio ou pelo rugido das ruas.
O céu está nublado. Deputados, senadores e ministros do STF percebem que cresce a possibilidade de Temer não completar o mandato. Um senador da base governista sugeriu a derrubada do vice de Dilma. José da Fonseca Lopes, presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros, disse que há “um grupo muito forte intervencionista” que “quer derrubar o governo”. Não seriam, afirmou, caminhoneiros. Há “infiltrados” denunciou o governo. Inexiste liderança única dos manifestantes ou interlocutores plenamente autorizados.
A crise é política. Só adivinhões prognosticam seu desfecho. Ele será influenciado pelo silêncio ou pelo rugido das ruas – neste caso, do recado que se ouvirá.
Como escreveu o Barão de Itararé, há qualquer coisa no ar, além dos aviões de carreira – menos os que permaneceram em solo, imobilizados nos doze aeroportos sem querosene.

20 anos em 2

É justa a bronca dos 2 milhões de caminhoneiros do Brasil. A tresloucada política de preços de combustíveis da Petrobras no governo Temer tornou imprevisível o custo dos fretes. Os reajustes oscilam conforme a cotação internacional do petróleo e a flutuação do câmbio. Em um ano, o barril pulou de 45 para 80 dólares. Só em maio o óleo diesel subiu 11,85% nas refinarias.
Os contratantes, contudo, não pagam um centavo a mais pelo transporte. O caminhoneiro combina um valor que, ao final, pode nem cobrir as despesas com a viagem, porque o combustível ficou mais caro. Inexiste margem para negociação: há frota demais para carga de menos. Se um caminhoneiro não quer, outro topa. O litro do diesel só foi mais caro em 2008. Mas naquele ano o barril saía a US$ 140.
A paralisação foi locaute e greve, mais aquele do que esta. Trinta por cento dos caminhoneiros são autônomos. Os demais trabalham para grandes, médias e pequenas transportadoras. Os patrões apoiaram, se é que não organizaram, o movimento dos trabalhadores. Seria uma greve peculiar. Ao pedirem redução de impostos federais e estaduais e serem atendidos, os caminhoneiros serviram de estridentes porta-vozes dos empresários.
Na noite do domingo, Temer rendeu-se, em pronunciamento recepcionado por panelaços (com muito menos decibéis do que os que atazanavam a antecessora). Abateu tributos, reduziu o preço do diesel, congelou-o por 60 dias, comprometeu-se com reajuste só uma vez por mês, criou tabela mínima para frete, barateou pedágios. Destinou a caminhoneiros autônomos 30% dos fretes da Companhia Nacional de Abastecimento. Manteve a desoneração tributária na folha de pagamento das transportadoras, para júbilo patronal. O acordo sugará R$ 10 bilhões ao Tesouro.
Os contribuintes bancarão com subsídios o lucro dos acionistas privados da Petrobras. Uma sociedade de economia mista sob controle da União não deveria se guiar exclusivamente por vantagens mercantis, à revelia de políticas públicas. É uma aberração brasileiros miseráveis patrocinarem, com novos cortes nos magros recursos sociais, a política de preços da companhia presidida por Pedro Parente.
Os caminhoneiros pareceram poupá-lo de sua artilharia. Melhor para quem conjura a privatização da Petrobras. Os petroleiros iniciam hoje uma greve de três dias para “baixar os preços do gás de cozinha e dos combustíveis, contra a privatização da empresa e pela saída imediata do presidente Pedro Parente”.
O poder dos donos e motoristas de caminhões é imenso no país em que dois terços das cargas são transportadas em rodovias. Excluindo petróleo e minério, 90% delas seguem por estradas. Anteontem persistiam 556 pontos de bloqueios, em rodovias federais. Mesmo com a rendição do governo, numerosos caminhoneiros temem ser passados para trás.
É uma aberração brasileiros miseráveis patrocinarem, com novos cortes nos magros recursos sociais, a política de preços da companhia presidida por Pedro Parente.
Temer e seus aspones os subestimaram. Os caminhões começaram a se enfileirar nas pistas e nos acostamentos na segunda-feira retrasada, 21 de maio. Seis dias antes, a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos protocolou na Presidência da República o aviso de que a manifestação começaria dali a menos de uma semana. Pediu audiência “em caráter emergencial”, e o governo ignorou a advertência.
Teria sido mais uma bobeada? Interessaria a alguém, no Planalto, conflagrar o país? Na sexta-feira, encurralado, Temer convocou as Forças Armadas para escoltar caminhões-tanque abastecidos em refinarias e outras missões –não pediram uma “intervenção militar”? O de costume: governo pusilânime, tropa na rua. Em São Paulo, a polícia reprimiu com bombas de gás um protesto de motoboys por combustível mais barato.
Anúncio do governo federal com o mote “Avançamos com o Brasil”.
Anúncio do Governo Federal com o mote “Avançamos com o Brasil”.
Foto: reprodução/Governo Federal
Em meados do mês, o governo distribuíra um convite para a cerimônia comemorativa dos dois anos da administração Temer com o slogan “O Brasil voltou, 20 anos em 2”. Todos leram, curvando-se aos fatos, sem a vírgula. Já com os 40 mil postos quase sem uma gota de gasolina, Temer entregou 369 automóveis em evento no Estado do Rio.
Na segunda-feira, oitavo dia da mobilização, jornais publicaram um anúncio do governo federal com o mote “Avançamos com o Brasil”. Na foto, as gôndolas estão abarrotadas de legumes e frutas. Nos supermercados reais, estavam vazias. Não basta empurrar o Brasil para o abismo; Temer tripudia sobre carências e desesperos alheios. Com seu furor ultraliberal na Petrobras, ele é o principal artífice do caos.

À beira do abismo

Nos dias em que o Brasil sem caminhões se equilibrou à beira do abismo, rarearam nas farmácias insulina, hormônios e remédios. Hospitais adiaram cirurgias agendadas e só asseguraram as urgentes. Estoques de oxigênio estiveram na iminência de esgotar. Suspenderam campanhas de vacinação. Não recolheram o lixo em São Paulo e em muitas cidades. Ambulâncias não circularam devido à ameaça de pane seca. Famílias sofreram sem gás de cozinha. Com incômodos ou dramas, os brasileiros padeceram.
Escolas e universidades fecharam – só no Rio, 1.500 estabelecimentos da prefeitura, mais de 650 mil alunos, dos quais metade não costuma levar lanche; perderam a refeição diária garantida. Sem fornecimento de alimentação e com funcionários sem transporte, creches não receberam as crianças país afora.
Hortifrútis desapareceram. Escassearam carne de frango e de boi, muitíssimos produtos. Supermercados limitaram compras. Em pânico, houve gente que estocou comida como um francês aguardando a invasão alemã ou, um tcheco, a soviética. A saca de 50 quilos de batata de um dia para o outro saltou de 70 para 350 reais no atacado.
A Cedae pediu para os cariocas pouparem água, por carecer de insumos de tratamento. Uma unidade do McDonald’s de Copacabana ficou sem Big Mac, porque os pães vindos do Espírito Santo e os hambúrgueres fabricados em São Paulo não chegaram. Num restaurante, a rabada com agrião se metamorfoseou em rabada com brócolis. Com carros na garagem, os engarrafamentos sumiram. A frequência aos cinemas caiu a menos da metade. O faturamento do comércio despencou.
Devido à greve dos caminhoneiros, produtos estão faltando nas prateleiras dos supermercados.
Devido ao locaute/greve de transportadoras e caminhoneiros, produtos estão faltando nas prateleiras dos supermercados.
Foto: Marcelo Fonseca/Folhapress
No domingo, os ônibus descansaram em Belo Horizonte e Porto Alegre. O transporte coletivo minguou, com a maior parte das frotas inativa. Trens superlotaram. Quanto mais longe do trabalho se mora, pior –os mais pobres foram os mais afetados. Municípios decretaram situação de emergência e estado de calamidade pública. As polícias fizeram menos rondas motorizadas. Nos postos com estoque de combustível, formaram-se filas, ao pé da letra, quilométricas. Em alguns, os clientes tentaram resolver a tapa quem encheria o tanque primeiro.
Por falta de ração, sacrificaram 64 milhões de aves. Em granjas, frangos famélicos comeram as penas de outros, causando ferimentos que matam. Nos próximos dias, podem morrer 1 bilhão de aves e 20 mil porcos. Interromperam as atividades 167 fábricas de carne de ave e carne suína. Nelas trabalham 234 mil funcionários.
Sem transporte, os produtores jogaram fora leite estragado. Idem os caminhoneiros, nas rodovias. Com o colapso no abastecimento, todas as montadoras de automóveis suspenderam a produção –o setor representa 4% do PIB brasileiro e 20% do industrial. Usinas de açúcar e álcool pararam. Ontem, o movimento dos caminhoneiros arrefecia.
Outro dia o ministro Marun, da Secretaria de Governo, adulou Temer como “o melhor presidente do Brasil por hora de mandato”.
Uns se afligem, outros debocham.

Foto em destaque: Caminhoneiros escreveram pedido de intervenção militar no asfalto da rodovia Régis Bitencourt, em São Paulo.
 
(Publicado originalmente no site Intercept Brasil)

O Quarto Poder - Episódio 1


Charge! Renato Aroeira

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Negras na família real britânica: representação ou mera performance

                                         
Dennis de Oliveira                                                                                

Negras na família real britânica: representação ou mera performance?         
A família real britânica durante o casamento de Harry e Meghan Markle (Divulgação)

Nas últimas semanas, causou um certo frisson nas redes sociais o casamento do príncipe Harry com Meghan Markle, realizado no dia 19 de maio. A polêmica se deu pelo fato de Meghan Markle ser uma mulher afroamericana. E as posições que polemizaram nas redes sociais resumiram-se em duas perguntas: a presença de uma mulher negra na família real britânica seria um avanço na “representatividade” da população negra, em especial das mulheres negras? Ou aquilo não teria nenhum significado, dado o caráter racista da Coroa e do Império britânicos?
Acompanhando as discussões que transitavam entre estas posições de representatividade, visibilidade ou um detalhe sem nenhum significado importante, lembrei-me de um texto do pensador jamaicano Stuart Hall sobre multiculturalismo. Segundo Hall, estas visibilidades de diferenças étnicas, culturais, de gênero ou de orientação sexual se inserem na lógica chamada, pelo filósofo pós-estruturalista Jacques Derrida, de differance. Este conceito derridiano é produto da articulação de duas palavras francesas que significam “diferenciar” e “diferir”. Isto é, uma perspectiva discursiva em que a diferenciação é incorporada numa certa lógica, mas sem apagar as marcas que são classificadas como diferentes. Em outras palavras, é a incorporação no terreno da universalização da diferença, mantendo o status de diferença (o que, em última instancia, reforça o caráter do que é referente, hegemônico).
Homi Bhabha, também citado por Hall, fala do “tempo liminar das minorias” em que estas estratégias da differance são executadas como momentos pontuais, episódicos, pontos que enfeitam um quadro já pré-desenhado. Em outro texto, Hall fala da ideia, comum na própria Inglaterra em que ele viveu a maior parte da sua vida, do bit of the other, uma “gota do outro” que chega a ter até uma conotação sexual.
O que é interessante nestas discussões é que existe uma diferença entre visibilidade e representação. Isto porque colocado como bit of the other, como differance, como um tempo liminar – ou ainda como Michele Alexander, na obra A nova segregação, chama: “exceção que confirma a regra” -, a visibilidade de pessoas negras pode ser uma mera estratégia que reforça uma ordem hegemônica. Uma mera visibilidade que não significa, necessariamente, representação. Aliás, mesmo no campo das representações, há que se discutir se ela (a representação) pode ser pensada de forma dissociada do reconhecimento e da redistribuição como afirma Nancy Fraser.
E por que esta visibilidade gera a impressão de uma representação? Muito em função da configuração da sociedade da inflação das informações. É uma demonstração do deslocamento da percepção do poder para o campo da visibilidade, da celebridade. Em boa parte, os movimentos da agenda da diversidade se pautam por este aspecto, como acontece nos filmes Pantera Negra e Mulher Maravilha. A visibilidade midiática dá a sensação de uma proximidade com as estruturas de um poder sinóptico – expressa uma ubiquidade pela sua visibilidade intensa, mas não no sentido do Panóptico de Jeremy Bentham (ou seja, a de criar uma sensação de estar sendo vigiado), mas de ser mostrado, visibilizado. É uma arquitetura do poder que não é apenas temida, mas sedutora.
Em boa parte, esta glamourização das imagens do poder e sua narrativa sedutora escondem tanto as estruturas que o sustentam (a base econômica mantida pela exploração dos povos, inclusive negros na Inglaterra e fora dela) quanto ações que, embora não tenham o glamour do casamento real, a sustentam – como, por exemplo, as guerras imperialistas patrocinadas por este país. Por outro lado, não há como negar o que Hall e Bhabha afirmam em relação a este tempo liminar das minorias que, graças a isto, a narrativa hegemônica nunca se cristaliza totalmente, abrindo sempre espaços para estas contra-narrativas. Aí, as lágrimas da mãe negra de Meghan Markle no casamento podem ter diversos significados.
A única coisa de que se tem certeza neste episódio é que, se não fosse esta discussão, a importância de um fato como este – o casamento real, um evento de uma classe para lá de decadente – não teria importância nenhuma.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: O coito do PT pernambucano

 
Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem
Felipe Ribeiro/JC Imagem
 
 
Não faz muito tempo, li um artigo de um pesquisador cearense onde se fazia uma avaliação das estratégias políticas adotadas pelo Partido dos Trabalhadores no plano nacional. Para embasar seus argumentos, como nordestino da gema, o aludido pesquisador observava as recomendações de um ilustre pernambucano, ali de Serra Talhada. Nada mais nada menos do que Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Virgulino, de acordo com este pesquisador, recomendava aos seus cabras nunca invadir uma cidade com mais de uma torre de igreja, tampouco entrar num coito de uma única saída. Invadir uma cidade com mais de uma torre de igreja significava subestimar o poder de reação do inimigo, possivelmente com uma efetiva capacidade de defender-se. Seria uma cidade de porte médio, do tipo de Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde Lampião e seu bando sofreram um grande revés.  Coito de uma única saída, na realidade, trata-se de uma ratoeira, bastante vulnerável a uma emboscada, sem chances de defesa. No plano nacional, a opção do PT em enfrentar as urdiduras golpistas pela via institucional mostrou-se profundamente equivocada, resultando em derrotas sucessivas, consolidando, assim, uma das premissas básicas dos operadores do golpe de 2016: esmagar o PT.
 
Neste momento de instabilidade institucional e  política, a garantia das eleições presidenciais de 2018 tornou-se uma incógnita, a depender de uma série de variáveis. Turbulências é o que não deverão faltar daqui para frente, o que pode levar os atores envolvidos nessas tessituras a "justificarem" seu cancelamento ou adiamento. Sempre convém observar que o establishment golpista ainda não possui um candidato para chamar de seu e salvar as aparências da não-democracia. Mesmo nessas circunstâncias, o PT ainda insiste em manter-se na estratégia de  apostar numa candidatura que se encontra numa cela da sede da Polícia Federal lá de Curitiba, dependendo da "via institucional" para viabilizar-se ao pleito. Dialogar com outras forças políticas do campo progressista, para alguns setores do partido, trata-se de uma atitude reprovável, uma heresia. Uma das condições impostas pelo PT ao PSB pernambucano - para consolidar uma aliança que rifa a eventual candidatura própria do partido do Estado - enfatiza que os socialistas não devem apoiar a candidatura presidencial de Ciro Gomes(PDT) no plano nacional.
 
Parte do PT pernambucano parece ter vocação para entrar em ratoeira. Isso vem de longas datas, desde a aliança com o então governador Eduardo Campos, que hegemonizou todo o processo aliancista - consoante seus interesses pessoais - abandonando o partido quando achou oportuno, colocando em curso seu projeto presidencial. Nem os nacos tradicionais de poder do partido - como era o caso da Prefeitura da Cidade do Recife - foram respeitados, mantendo-se na máquina apenas alguns "queijos-do-reino", que logo se mostraram mais amarelos do que vermelhos. Aqui em Pernambuco, uma aliança com o PSB representa não apenas uma derrota política, mas moral para o PT, como observou o cientista político Michel Zaidan Filho. Ela atende unicamente os interesses comezinhos de uma determinada caciquia partidária que já mandou às favas as instâncias deliberativas do partido, composta por sua militância, e, igualmente, os anseios mais nobres e republicanos da sociedade pernambucana, que, certamente, gostaria de ter na disputa candidaturas com um alinhamento político e programático distinto das velhas oligarquias carcomidas do Estado.
 
Embora nunca tenha participado de uma disputa majoritária, a vereadora Marília Arraes - sangue bom dos Arraes - aparece muito bem nas primeiras pesquisas de intenção de voto realizadas, num empate técnico com os principais nomes da disputa, o governador Paulo Câmara(PSB), que tenta a reeleição, e o senador Armando Monteiro, do PTB. De acordo com o levantamento do Instituto Múltipla, os três principais nomes da disputa aparecem com 15%. Não se nega aqui que Marília seja oriunda de uma linhagem política tradicional do Estado: Os Arraes. Ela hoje, no entanto, constrói seu projeto político envolvendo amplos setores da sociedade civil, além do seu comprometimento com a normalidade democrática e a sensibilidade às demandas sociais de setores socialmente fragilizados. Há uma identidade orgânica entre Marília  e amplos setores do PT, o que anima a militância em torno de sua candidatura. Abortar essa candidatura seria mais um equívoco.  
 
Aqui em Pernambuco, até recentemente, abriu-se uma competição macabra entre o PSDB e o PSB para se saber quem era mais golpista. O tal mandatário foi acusado por um adversário de ser até mesmo padrinho do atual chefe do Executivo Federal. Eis aqui uma das razões pelas quais a movimentação de alguns morubixabas petistas estejam causando tanta repulsa em setores da militância. Em outros momentos, não foram poucas vezes  em que a cidade amanheceu pichada com dizeres que afirmavam que o PT havia matado o ex-governador Eduardo Campos. Um outro gravíssimo problema seria a imposição dessa aliança pela Executiva Nacional da legenda, passando por cima das instâncias deliberativas locais do partido. Se se mantiver essa tendência, a Gruta do Angico do PT fica por ali nas imediações do Palácio do Campo das Princesas. A saída atende pelo nome de Marília Arraes.  

Charge! Mor via Folha de São Paulo

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quinta-feira, 31 de maio de 2018

Michel Zaidan Filho: A confiança dos eleitores não é um cheque em branco




 
Com a confirmação de que a Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores oficializou a aliança nacional do partido com o PSB, em Pernambuco, com o objetivo de reeleger o atual governador Paulo Câmara, garantir um palanque para Lula no Estado e eleger Humberto Costa ao Senado e João Paulo a Câmara dos Deputados, consumou-se aquilo que se pode chamar de um "estupro eleitoral" na pré-candidatura de Marília Arraes, que tem amplas possibilidades de derrotar o bizarro mandatário estadual.
 
A manobra, que segundo alguns corresponde a estratégia nacional do PT no maior número de Estados, passa por cima e atropela decisões locais e termina por submeter toda a vida do partido aos cálculos - nem sempre corretos ou republicanos - da cúpula partidária lulista . Não é a primeira vez nem será a última. Mesmo que isso implique numa desastrosa derrota política e moral para o partido. 
 
O voto e a confiança dos eleitores petistas e simpatizantes não é um cheque em branco para que os maiorais do partido usem com quiserem. Devem eles satisfação ao distinto público que sempre os apoiou. A se manter essa política medonha e sem princípios seremos obrigados a fazer campanha contra essa espúria aliança com os inimigos de ontem e defender a candidatura da vereadora mesmo contra o seu partido, que não cansa de fazer acordos com os inimigos na ilusão de que serão poupados por eles, quando não tiveram mais nenhuma utilidade.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE 

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Editorial: Caminhoneiros: Uma agenda política de arrepiar

 
Resultado de imagem para caminhoneiros em greve
 
Num momento de instabilidade política como o que estamos vivendo, uma paralisação como esta dos caminhoneiros pode trazer sérias consequências para a saúde já debilitada de nossa democracia. As consequências naturais já estão sendo sentidas por todos os brasileiros, que passaram a conviver com o desabastecimento de alimentos; caos no transporte público; aumento de preços e ausência de combustíveis nos postos de gasolina. Nos referimos aqui a um outro tipo de consequência, esta ainda mais grave, como o emparedamento em que foi posto um governo já bastante fragilizado e ilegítimo, pela categoria dos caminhoneiros. Na opinião de algumas autoridades do Governo, talvez pelo cartel dos donos de transportadoras, o que tipificaria o movimento não como uma greve, mas um lock out, termo de origem americano para identificar uma paralisação promovida por empresários ou empregadores. Como observou o jornalista Josias de Souza, Temer pagou o resgate, mas continua refém, acossado, sem autoridade, vítima de mais chantagens. Para completar o enredo, quem acompanhou o noticiário da emissora do plim plim no dia de hoje,  28/05, percebeu claramente que a turma intensificou o "Fora, Temer".  

Diante do quadro caótico, o senhor Michel Temer convocou seu staff de segurança pública e institucional e anunciou que adotará medidas mais duras para desobstruir as rodovias, o que significa, de imediato, o uso de forças policiais. Mesmo com a pauta atendida até o limite da absoluta capitulação, parte da categoria permanece irredutível, não autorizando a volta da normalidade, permitindo o fluxo normal do transporte rodoviário. 70% do transporte de cargas no país ainda é realizado pela via rodoviária, o que, em si, já implica numa grande insegurança. Se os caras param, o caos se instaura. As consequências já estão sendo sentida por todos os brasileiros, seja nos postos de gasolina, nos supermercados, na indústria, que paralisa suas atividades em razão da ausência de insumos.  
 
Ainda há algumas incógnitas e preocupações substantivas em relação a este movimento grevista - se ficar configurando o locaute, o termo "movimento grevista" talvez não seja o mais adequado. Convocado por Temer, o Exército foi recebido com aplausos entre os manifestantes, com saudações que pedem uma intervenção militar já. A emissora do plim plim, que nunca demonstrou, digamos assim, algum pendor republicano - tampouco democrático - por sua vez, é profundamente rejeitada pelo movimento. Quando não através de hostilidades explícitas - que eles naturalmente não mostram - através de  faixas espalhadas por todos os bloqueios. Evidente que a política de preços adotada pela Petrobras precisa ser urgentemente repensada. Talvez os caminhoneiros sintam o problema mais de perto, mas, a rigor, nenhum brasileiro que utiliza transporte particular suporta mais esse abuso. 
 
Mesmo com a finanças públicas em frangalhos, o Governo acabou capitulando-se diante do drama criado pelo paralisação dos caminhoneiros. Pegou no tranco, depois de subestimar as inúmeras correspondências enviadas por suas lideranças alertando sobre o agravamento do problema. Depois, assumiu um ônus extremamente alto, não se sabendo de onde arranjará recursos, uma vez que já se encontra no limbo, acumulando déficits sobre déficits. A renúncia do pis, cofins representam um rombo descomunal nas contas públicas. Para alguns analistas, mesmo não formalmente, a Petrobras, na gestão Pedro Parente, entrou num processo de privatização, priorizando os rentistas e alinhavando-se com os interesses de petrolíferas internacionais, pouco se importando com o brasileiro comum, aquele que transporta a economia do país através das estradas.
 
Hoje, o que mais intriga - e preocupa, além do quilo de tomate por R$ 20,00 - é a profunda dificuldade de comunicação entre o Governo Michel Temer(PMDB)  - ou que o que restou dele, sem as mínimas condições políticas de sustentabilidade - e setores da categoria, que insistem que a agenda negociada em Brasília não atendem os seus interesses. Insistem que a paralisação será mantida, o que suscita e existência de uma agenda política bem mais explosiva do que as reivindicações de natureza econômica. Não se pode negar o caráter político de nenhuma greve. Esta, em particular, assim como ocorreu em 1973, no Chile - que precipitou o golpe contra o então presidente Salvador Allende - traz alguns elementos, como disse antes, preocupantes. Bastante preocupantes... 
 
  


Charte! Duke via O Tempo

Charge! Renato Aroeira

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sexta-feira, 25 de maio de 2018

A morte e a vida da luta de classes

                          
                                                                                                                                                                    s                                                                                                                        
Além da lei

A morte e a vida da Luta de Classes
'Operários', de Tarsila do Amaral (1933) (Reprodução)

Ideologia e imaginário
Hoje, parece claro que as teses que sustentavam o fim das grandes narrativas, e os discursos que expressavam a certeza de que o mundo não poderia ser transformado, partem de uma grande narrativa a serviço daqueles que não querem transformações no mundo.  O “fim da história” e o “fim das ideologias” nunca passaram de discursos marcadamente ideológicos e com funcionalidade política.
A ignorância de muitos acerca do caráter ideológico de programas como o Escola Sem Partido ou dos efeitos da ideologia na aplicação do direito pelos tribunais (há, por mais incrível que possa parecer, os que sustentam de boa-fé a “neutralidade” dos juízes) é um sintoma muito claro de que a ideologia está mais viva do que nunca.
A ideologia que sustenta o “fim das ideologias no ensino” (o projeto Escola Sem Partido) leva a ações direcionadas a dificultar qualquer forma de reflexão e, assim, sepultar o pensamento crítico através de um modelo direcionado ao “pensamento único” (ou à “escola do partido único”) de viés totalitário e funcional para o projeto neoliberal de transformar cidadãos em consumidores acríticos. Algo parecido acontece com as campanhas que miram na “ideologia de gênero”, pois é o desejo de manter a hegemonia ideológica do patriarcado (e a correlata dominação) que serve de motivação para as ações de pessoas que parecem desconhecer o significado tanto de “ideologia” quanto de “gênero”.
A ideologia existe e produz efeitos ainda que não se fale dela. Aliás, a ideologia alcança o ponto ótimo de funcionamento enquanto não é desvelada e pode produzir efeitos sem que os indivíduos ideologicamente comprometidos a percebam enquanto tal. Como explicar as reformas neoliberais, que romperam o compromisso entre as grandes forças sociais que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, e a passividade com que a maioria da população assistiu ao desmonte do Estado do bem-estar? Como explicar que pessoas exploradas, das classes populares, defendam os interesses dos detentores do poder econômico?
Parece evidente que o modo de perceber e atuar no mundo passa por um conjunto de discursos, práticas, modificações econômicas, dispositivos de poder, produtos da indústria cultural, manipulações discursivas e alterações das relações sociais. Em outras palavras, o modo de ver o mundo liga-se à forma como o imaginário é construído. Pode-se afirmar que, hoje, qualquer forma de dominação ou de ação política relaciona-se, principalmente, com a imagem que cada pessoa faz da realidade.
A realidade é uma trama que envolve o simbólico (a linguagem, a Lei) e o imaginário: a realidade depende da linguagem e da imagem que se faz do mundo a partir dela.
Nas últimas décadas, verificou-se não só o empobrecimento da linguagem como também um correlato processo de dessimbolização em razão do qual se deu a perda (ou, ao menos, uma radical transformação) dos referenciais normativos para agir no mundo. A lei e os correlatos limites que conformavam o mundo-da-vida perderam importância diante do excesso de capitalismo. Tudo e todos passaram a ser tratados como objetos negociáveis. Em nome do projeto e do desejo de enriquecimento, acumulação e circulação ilimitada do capital, instaurou-se uma espécie de vale-tudo. A ilimitação tornou-se o novo regime da subjetividade.
Diante do enfraquecimento do simbólico, em meio a uma sociedade cada vez mais sem limites, aumenta a importância do imaginário. Em um mundo cada vez mais perverso, em que as pessoas gozam ao violar os limites legais e éticos (e no qual aumenta a cada dia o número de pessoas que não interessam ao capitalismo), o imaginário transforma-se em um registro fundamental a ser disputado por quem acredita que um outro mundo é possível. A ação transformadora cada vez encontra menos fundamento no registro do simbólico, ou seja, deixa de estar necessariamente conectada a um Grande Outro (partido, líder etc). Cresce, portanto, a relação entre o registro imaginário e o potencial revolucionário. E os detentores do poder econômico sabem disso.
Da Luta de Classes
O conceito de Luta de Classes perdeu prestígio. Há quem chegue a dizer que o excesso de capitalismo (avanços tecnológicos, capital improdutivo etc) eliminou a importância do conceito de “classe”. Não é verdade. As classes (e a desigualdade) persistem, embora a dessimbolização do mundo e o empobrecimento da linguagem tenham produzido um brutal velamento não só da categoria “classe” como também dos conflitos entre os diferentes grupos sociais. Em consequência, deu-se uma mutação na dinâmica da Luta de Classes.
Da mesma maneira que a burguesia industrial foi progressivamente perdendo espaço para a burguesia financeira, também por um efeito do condicionamento produzido pela racionalidade neoliberal, o trabalhador foi levado a não mais se identificar com os demais trabalhadores. Para ele, a ideia de Luta de Classes perdeu o sentido por uma questão ideológica, ou mais precisamente, em razão de um imaginário incapaz de identificar o outro como um aliado, um igual da mesma classe, contra a opressão. Mais grave ainda: racionalidade neoliberal, não raro, faz como que o explorado não perceba as novas formas de exploração.
Como percebeu Jessé Souza, em seu livro A elite do atraso, a ideia de classe social já é mal conhecida por boas razões:
porque ela, acima de qualquer outra ideia, nos dá a chave para compreender tudo aquilo que é cuidadosamente posto embaixo do tapete pelas pseudociências e pela imprensa enviesada. Como o pertencimento de classe prefigura e predetermina, pelo menos em grande medida, todas as chances que os indivíduos de cada classe específica vão ter na sua vida em todas as dimensões, negar a classe equivale também a negar tudo de importante nas formas modernas de produzir injustiça e desigualdade.
A questão da classe, que sempre foi maltratada, passou a ser praticamente ignorada no Brasil. Por vezes, a classe foi percebida apenas como uma realidade econômica ou como o lugar que a pessoa ocupa no sistema de produção, enquanto, em outras oportunidades, se deu a universalização dos padrões de comportamento da classe medida para todas as demais classes.
No mais das vezes, as tentativas de entender a questão das “classes” passa por leituras economicistas, ou seja, preocupadas exclusivamente com o nexo entre o comportamento humano e eventuais motivações econômicas. Jessé Souza tem razão ao sugerir que a questão das classes sociais não se limita ao problema da renda ou à temática econômica. O tratamento adequado das classes sociais deve partir da socialização familiar primária (do “berço”) e, mais precisamente, da análise de dados socioculturais. Por evidente, o pertencimento a uma determinada classe leva a um tipo de conhecimento (produzido desde o nascimento) e a um padrão de comportamento que fará diferença no mundo da vida.
Pode-se, portanto, sustentar a existência de mecanismos socioculturais de formação das classes e de produção de capital social. Assim, para o Brasil, faz sentido a tentativa de explicar a sociedade a partir da divisão de classes entre a elite econômica (os detentores do poder econômico), a classe média culturalmente distinta (os detentores de capital cultural), os trabalhadores (os detentores da força de trabalho) e a ralé (os herdeiros do desprezo antes atribuído aos escravos). Também se pode afirmar que enquanto a elite econômica integra a “classe capitalista” e a classe média culturalmente distinta pretende-se a “classe gerencial”, os trabalhadores e a ralé constituem a “classe popular” na configuração tripolar de classes proposta por Gérard Duménil e Dominique Lévy.
Se todas essas classes são visíveis a partir de dados socioculturais, de padrões de comportamento e das chances concretas de êxito no mundo-da-vida, a ideologia produzida a partir da racionalidade neoliberal faz com que fiquem invisíveis. As pessoas que integram tanto a classe média culturalmente distinta quanto a classe trabalhadora, e mesmo alguns que figuram na ralé, passaram a acreditar que são verdadeiros empresários e, portanto, a partir da ideologia da meritocracia, potenciais novos ricos (detentores do poder econômico, a elite que compõem a classe capitalista).
O sujeito condicionado pela racionalidade neoliberal acredita que deve perceber e agir no mundo como empresário de si próprio. Todos os outros, dos vizinhos aos colegas de trabalho e amigos de infância, passam a ser percebidos como empresários-inimigos e, portanto, como concorrentes a serem vencidos.
Ao mesmo tempo em que o egoísmo é transformado em virtude e o interesse individual passa a pautar as ações na sociedade, desaparece a possibilidade tanto de uma amizade desinteressada quanto de construção de uma consciência de classe. Em outras palavras, o outro que antes era um potencial amigo ou companheiro na caminhada para a construção de uma outra sociedade, tornou-se o inimigo a ser derrotado ou destruído. O sujeito passa a explorar a si mesmo na crença de que sua vida é uma empresa.
Tem razão Byung-Chul Han, ao afirmar que aquele que acredita ser “um projeto livre de si mesmo”, capaz de produzir ilimitadamente e enriquecer, acaba por isolar-se. Desaparece, então, o “nós”, o “comum” e a solidariedade que poderiam levar à ação conjunta. Porém, Byung-Chul Han está errado ao afirmar que as classes desapareceram e não há mais a possibilidade de uma revolução social, e isso porque os indivíduos de todas as classes sociais teriam se tornado, ao mesmo tempo, exploradores e explorados.
O “fim das classes”, tal como o “fim da história”, é também um discurso fortemente marcado pela ideologia produzida pela racionalidade neoliberal. Não se pode confundir o velamento ideológico das classes com o desaparecimento dos marcadores socioculturais e econômicos que diferenciam grupos de pessoas. Se a auto-exploração afeta todas as classes, isso não significa que a contradição produzida pela existência de classes desapareceu. A importância da Luta de Classes permanece para a transformação social.
Há, porém, uma luta prévia: a luta pelo imaginário de todos aqueles que não integram a elite econômica (os “super-ricos”) que explora e destrói o mundo, que lucra com a auto-exploração de todas as classes, que controla os meios de comunicação de massa e, portanto, os meios de produção do subjetivismo. Na luta pelo imaginário, como defende Naomi Klein, deve-se construir uma narrativa atraente e identificar um comum que justifique a luta lado a lado. Mas, não é, só. Impõe-se ressimbolizar as classes e apontar as contradições da sociedade, em especial dos grupos que lucram com a razão neoliberal, e partir à luta. Pois, como lembrou Marcio Sotelo Felippe, no texto que marcou a estreia da coluna Além da Lei, a Luta de Classes é “a verdade e a razão que só estão nela e em lugar nenhum mais”.

RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ, escritor, doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-Graduação da ENSP-Fiocruz, membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Mor via Folha de São Paulo

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quinta-feira, 24 de maio de 2018

Michel Zaidan Filho: A caminho do inferno

 
 
 
 
O   diabo em pessoa (ajudado por seus aprendizes pernambucanos) se apressou em fazer a sopa de letrinhas (siglas partidárias) que abastecerá  o caldeirão das próximas eleições estaduais. Se  a situação   política é ruim, ela pode piorar ainda mais. O tinhoso juntou, lado a lado, as companhias mais improváveis que se possa imaginar: de um lado, um bilioso ex-governador - em franca decadência política, inimigo histórico do Partido dos Trabalhadores, que   ainda  tripudiou sobre o cadáver político de Miguel Arraes, no palanque desse governador bizarro, fazendo dupla com o senador....Humberto Costa! - Pior, impossível. Um saco de gatos de cores absolutamente desiguais, que se odeiam, não se respeitam, guardam ressentimentos mútuos e que, em qualquer circunstância, estariam um tramando contra a desgraça eleitoral do outro.
 
No entanto, a caminho do inferno, tudo vale, inclusive alianças e coligações esdrúxulas como essa. Do outro, o usineiro eterno candidato em disponibilidade para algum cargo majoritário em Pernambuco, acompanhado de figuras ilustres: um ex-avicultor de Belo Jardim e de nada mais nada menos, do "menudo" que passou pelo Ministério das Cidades. O alto conchavo pode custar a candidatura da vereadora   Marilia Arraes ao Governo do Estado, se   a  Executiva  Nacional do Partido dos Trabalhadores   resolver, mais uma vez, atropelar as decisões do comitê local do PT, em nome dos interesses nacionais do partido, selando uma aliança desastrosa com o Partido Socialista (soi-dissent) Brasileiro, transformado pela oligarquia ora dominante em nosso Estado em instrumento do seus interesses familiares e sub-partidários.

É preciso   muito esforço (e boa vontade) de imaginação para entender como um governador incompetente, que votou a favor do golpe parlamentar de 2016 e apoiou Aécio Neves para Presidência da República  se une agora com o PT (a nível nacional), para garantir sua reeleição, trazendo de contrapeso um inimigo encarniçado dos petistas. E como alguns petistas históricos que lutaram o tempo todo contra esses políticos, se dão as mãos alegremente, sem nenhuma satisfação ao  eleitor ou meros simpatizantes do partido. Coisa do diabo mesmo!
  
Do outro lado, um arranjo eleitoral mau  costurado entre um candidato que pousa de oposição  aos governantes de turno, carregando  consigo a fina flor do conservadorismo e do atraso. É de se ressaltar que o senhor Armando Monteiro Neto é um candidato ambíguo. Ora se faz amigo dos petistas, ocupando cargos de importância em seu ministério, mas vota contra os interesses dos trabalhadores e da população em geral. Quem não se lembra que ele votou   a  favor da PEC da morte, congelando os gastos com a saúde e educação durante 20 anos e a favor da maldita reforma trabalhista, sempre    alegando o famigerado "custo Brasil". Ou seja, joga em todas as posições e para todo tipo de platéia. Sobre os aliados e companheiros de chapa,   ninguém há de se enganar   sobre  o caráter social dessa coligação mau arranjada, com finalidade exclusivamente eleitoral.  O sábio, douto e ilustre educador do agreste de Pernambuco e sua luta indômita pelo ensino público, gratuito  e  de qualidade!  E o outro, a favor da habitação popular!  Como esta chapa não terá a menor chance de vencer as eleições, ficamos com aquela sensação do tempo do inferno,  o eterno retorno do mesmo, do sempre-igual.

Pernambuco   precisa quebrar esse círculo vicioso de uma política feito por poucos, à revelia dos interesses do povo pernambucano. Não se pode reservar aos eleitores o mero papel de conceder uma autorização eleitoral para essa minoria governar - como quer - em seu nome. É mister dar início a um novo ciclo político virtuoso, com novos partidos,   novas candidaturas, novas propostas. Não faltam alternativas partidárias diferentes do que aí está. Falta coragem e determinação para se desviar desse caminho.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.

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A esquizofrenia da política pernambucana
 
 


domingo, 20 de maio de 2018

Michel Zaidan: Marx: 200 anos de seu nascimento. Aproximações (das revoluções)

    
 
 
Coube-me, neste seminário sobre os duzentos anos de Marx, tratar do tema das revoluções, na perspectiva marxiana. Diga-se inicialmente que não há um, mas várias visões da revolução na obra de Marx. Num lapso histórico que varia desde as revoluções de 48 até a comuna de Paris, houve várias formulações – de acordo com cada conjuntura histórica específica – do que seria A revolução. Vamos tentar abordar a ressemantização do conceito durante esse período.

Em primeiro lugar, diga-se que não há na obra de Marx uma teoria positiva do Estado, sim da revolução. Como diria Engels o Estado é a síntese das contradições de uma sociedade, num dado momento de sua evolução. Ou resultado da alienação produzida pela Revolução francesa: a divisão entre “citoyen” e “bouguois”. Ou ainda, um comitê executivo à serviço da classe dominante. Enfim, o Estado é um mal necessário na evolução histórica da humanidade e tende a desaparecer, conforme a famosa passagem da “crítica ao programa de Gotha” - a administração das pessoas será substituída pela administração das coisas. Teremos, na “sociedade dos produtores associados”, o autogoverno. Não haverá mais Estado, na sociedade comunista. A tarefa dos comunistas é destruir o Estado, não aperfeiçoá-lo. Ao contrário das especulações sobre o último Engels, Marx nunca foi um entusiasta da vida eleitoral e democrática para o socialismo.

Segundo, a primeira formulação marxiana da problemática da revolução surge com as revoluções democrático-burguesas, da década de 40: a revolução alemã e a revolta dos trabalhadores da Silésia. Nesta etapa, há uma fervorosa defesa da chamada “revolução democrático-burguesa” como momento indispensável da revolução proletária. Vivendo num contexto semifeudal, Marx vê uma necessidade imperiosa a realização dessa revolução na Prússia. Como se sabe, a revolução fracassou, obrigando o próprio Marx a se exilar.

Terceiro, a etapa seguinte é a revolução de 1848 na França – as barricadas de Paris. Numa situação em que as burguesias europeias abandonam suas veleidades revolucionárias e passam a se compor com as velhas classes dominantes, a revolução burguesa só pode ser concluída pelo proletariado. Sufocada a ferro e a fogo, a revolução de 48 passa a ser vista, num contexto internacional, como uma revolução permanente (Mensagem do comitê central da liga dos comunistas). Cabe, agora, ao proletariado levar adiante a revolução burguesa e transformá-la numa revolução proletária, diante das vacilações e a traição da burguesia. (há controvérsia sobre a origem dessa expressão). È dessa época um dos mais conhecidos modelos de revolução burguesa de que se tem conhecimento: a revolução pelo alto, o bonapartismo ou cesarismo, baseado numa classe apoio_ o campesinato francês, com uma aparência de autonomia e uma política a serviço da burguesia francesa. Há, no ensaio da época: O dezoito Brumário de Luis Bonaparte, A sugestão de que os comunistas ou os operários não devem se limitar a tomar de assalto o estado, mas destruí-lo, para que ele não se reproduza a partir de seu aparelho burocrático e militar.

Quarto, o fim dessa conjuntura política é marcado pela Comuna de Paris, em 1871. Um verdadeiro mito no pensamento político marxista. Teria dito Marx que a Comuna prefigurava o modelo da “ditadura do proletariado”, dadas suas características populares e diretas. Como quer que seja, a Comuna foi festejada por todos como uma revolução social(anarquistas, socialistas e comunistas). Mas essa unanimidade precisa ser melhor analisada. Como secretário da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx foi incumbido de escrever um epitáfio elogioso e positivo da Comuna, objeto de muitas críticas e retaliações. Mas ele também emitiu muitas críticas à direção e o funcionamento da Comuna. Como se sabe, a direção política coube aos socialistas e anarquistas franceses, ainda muito influentes no seio da classe operária. As dificuldades, as vacilações a demora em se tomar decisões cruciais, diante dos inimigos, foram durante criticadas por Marx, sem considerar o tipo de medidas aprovadas e até a composição mesma da Comuna. Lenin não poupou a experiência de críticas também. De forma que tomar a experiência dos “communards” como uma espécie de “álgebra social”, não ajuda em nada esclarecer a sua significação política no interior do pensamento político marxista. Tem, contudo, um valor simbólico importante como modelo de democracia de base.

Quinto, a revolução como uma necessidade radical. Esta é uma interpretação filosófica de Agnes Heller sobre o comunismo. A revolução é uma necessidade social, um dever que o proletariado assume, em razão das pré-condições criadas pelo desenvolvimento do capitalismo, gerando necessidades cada vez mais difíceis de serem atendidas no regime capitalista. Por isso, o comunismo é a saída.

Sexto, o debate de mar com os populistas russos (vera Zazulith) e a possibilidade da revolução russa queimar etapas, partindo da antiga comunidade camponesa (artéia) e chegando ao socialismo, sem a necessidade de passar pela revolução democrático-burguesa.

Posição não compartilhada por Engels, que comparando a situação dos camponeses na Europa e na Rússia, defendia a necessidade de uma revolução burguesa.

O mito da revolução permanente – Leon Davidoch Trotsky (o paradigma da guerra de movimento)

A mudança de estratégia revolucionária no Ocidente – Gramsci. (o paradigma da guerra de posição)

O debate no Brasil: circulacionistas e mododeproducionistas. Dois modelos de revolução.

PCB, a democracia pequeno-burguesa e a revolução burguesa anti-imperialista. Cadê a nossa revolução?

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE