pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Michel Zaidan Filho: Verborragia presidencial


sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Michel Zaidan Filho: A vida e a morte de Lula




  • O grande líder sul-africano que comandou a luta contra o "apartheid" em seu país, Nelson Mandela, passou 15 anos preso numa cela comum. Condenado várias vezes a morrer na forca, Mandela inspirou inúmeras campanhas internacionais de solidariedade para si e sua causa humanitária. Quando se findou o regime de segregação racial e espacial da África do Sul, o prestígio mundial e nacional do líder africano só fez crescer até torná-lo a  maior personalidade política de seu país. A  prisão - mormente, por razões políticas - não retira o brilho e a legitimidade de ninguém. Pelo contrário. Contribuí para a aura de sacrifício e desprendimento do líder social. A morte seria uma consagração definitiva  de uma tipo de liderança carismática como essa.

    Essas considerações vêm a pelo, em razão da prisão política e ilegal do maior líder político do Brasil, depois de Getúlio Vargas, o ex-metalúrgico e  militante sindical, Luis Inácio Lula da Silva.Hoje, com a publicação das conversas de bastidores dos integrantes da operação Lava-Jato, tem-se a prova irrefutável (até para os "mais" crentes) das motivações políticas do processo ilegal e da prisão do líder político brasileiro. Desde que foi preso e condenado a 15 anos de prisão, o prestígio político e eleitoral de Lula só fez crescer, no mundo e no Brasil. Romaria e peregrinações de caravanas de intelectuais, políticos, militantes ao seu  cárcere curitibano só fizeram aumentar cada vez mais. Pode se dizer, como uma consagração indiscutível de sua reconhecida e justa popularidade nacional. Ele se transformou numa bandeira de luta contra o estado de coisas ruinosas que temos diante de nós. O sinônimo de tudo aquilo que contraria esse nefasto (des)governo.

    Por isso, se essa manobra da juíza das execuções penais do Paraná,  tinha um efeito diversionista em razão dos formidáveis protestos da sociedade em face da reforma da previdência social (ora em fase final de votação), ela continha  uma mensagem mais grave: uma ameaça direta à vida do ilustre preso político. Numa prisão comum, como a de Tremembé (SP), Lula poderia simplesmente ser assassinado e tudo ficaria limitado ao universo das super populações carcerárias e suas intermitentes revoltas. E assim, os golpistas de 2016 se veriam livres de um incômodo e perigoso nome, acusando-os permanentemente do assalto ao estado brasileiro, a serviço do mercado.
     
    A decisão do STF, por quase unanimidade, sob a pressão de 70 parlamentares, deve agora ser completada, se não tivesse sido uma mera manobra diversionista, com a análise e deliberação sobre o processo de suspeição do senhor Sergio Moro na condução do fraudulento processo de investigação e condenação do presidente Lula, bem como pela perda do cargo do senhor Deltan Dalagnol, pelo Conselho Nacional do Ministério Público Federal. São medidas correlatas com a grande farsa judiciária do início do século XXI no Brasil.

    Michel Zaidan Filho é Filósofo, Historiador, Cientista Político, Professor Titular da Universidade Federal de Pernambuco e Coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia

Charge! Jaguar via Folha de São Paulo

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segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Charge! Montanaro via Folha de São Paulo

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Editorial: A abolição da verdade ( e da Comissão da Verdade, naturalmente)



 Imagem relacionada
Michel Onfrey

Ao longo da História, os regimes fascistas sempre guardaram algumas semelhanças entre si. Elegem uma causa - quase sempre uma cruzada contra a corrupção, normalmente liderada por agentes de conduta nem tão ilibadas assim - identificam seus inimigos e liberam a trupe entorpecida para persegui-los. Com o avanço da tecnologia, esses métodos tornaram-se mais sofisticados. A disseminação de mentiras(fake news), por exemplo, hoje é realizada através dos robôs criados com esta finalidade, por meio das redes sociais. Talvez pudéssemos falar aqui numa espécie de tecno ou neofascismo, onde  o repertório de sordidez do adeptos do regime é amplamente empregada para destruir a reputação dos adversários, não importando sua condição, se doente grave com câncer, como é o caso da mãe do jornalista Gleen Greenwald, violentamente atacada pelas redes sociais, assim como a filha do presidente da OAB, a atriz Duda Santa Cruz, de apenas 13 anos.

Na realidade, o termo mais apropriado seria "inimigos" e não adversários. Afinal, já não estamos numa democracia, onde pressupõe-se um certo grau de tolerância e respeito com quem pensa diferente. Dando sequência à série de editoriais onde estão sendo tratadas as  categorias das ditaduras de um novo tipo, a partir da leitura que o filósofo francês Michel Onfrey, faz da obra de George Oswell, 1984, o tema que gostaria de tratar hoje diz respeito à abolição da verdade.Como o Brasil tem algumas singularidades, o conjunto de maldades inerentes aos regimes fascistas, aqui, também guarda algumas especificidades, como, por exemplo, ridicularizar famílias que tiverem seus entes queridos torturados e mortos pela ditadura militar instaurada no país com o golpe civil-militar de 1964. 

Mas, a rigor, a abolição da verdade é o tema desta semana. Nos regimes fascistas ou de ditaduras de um novo tipo, observa o jurista Rubens Casara, ocorre uma substituição da verdade pela pós-verdade. Aqui, consoante os interesses dos governantes de turno, a mentira produz efeito de verdade. Trata-se de um novo regime de verdades, sem que a verdade esteja presente.  Em texto recente, publicado nas redes sociais, o cientista político Michel Zaidan Filho observa que no livro 1984, de George Oswell há referência a um Departamento da Memória, que cumpria a missão de recontar o passado consoante as conveniências do presente. Nada mais apropriado às circunstâncias políticas hoje observadas pelo país. Somente nesta semana, até o aparato tecnológico de verificação técnica sobre o desmatamento da região amazônica foi desmentido e o diretor do INPE afastado do cargo. Competência técnica e altivez tornaram-se uma combinação explosiva, num país onde a mentira assume status de verdade.

Está em curso um manual de perversões. Num momento em que as instituições da democracia estão sensivelmente fragilizadas. Posso ter reticências em relação a algumas posturas de nossa Suprema Corte, o que se enquadra perfeitamente dentro do escopo do jogo democrático. No entanto, O STF foi massacrado pelas redes sociais ao requisitar os áudios comprometedores antes que eles sejam reeditados ou mesmo apagados. Quando ainda se há algum respeito pela democracia, não se pode achincalhar o Poder Judiciário, mesmo sabendo-se que ele se tornou susceptível às injunções de caráter político. Mas, por outro lado, como conter uma trupe ensandecida, movida pelo ódio, pela raiva, inflada pela intolerância, numa condição que somente os bons analistas de psicologia de massa poderiam explicar o fenômeno?



Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Ensaio: "O Brasil não é para principiante"


Celebrado na última Flip, o angolano Kalaf Epalanga faz um balanço de sua passagem por aqui e questiona: “até quando irá durar esse fla-flu?”
Kalaf Epalanga 31jul2019 15h10
 

O escritor angolano Kalaf Epalanga
A frase título deste texto é atribuída ao maestro António Carlos Jobim, e surgiu-me no momento em que as rodas do Boeing 777 que me levava de regresso à Europa se desprenderam do asfalto de Guarulhos. A luz crepuscular que cobre a selva urbana paulista revelou-se então em todo o seu esplendor. Um momento melancólico que caracteriza as despedidas, não fosse o Brasil, como todos os países que se expressam na língua de Noémia de Sousa, um país tão íntimo da saudade. É um género de tristeza que tanto ri como chora, confundindo gente bem-intencionada que a tenta entender, mas que ainda desconhece este nosso gingado. Sou vosso cúmplice, sei bem onde a melancolia começa e do que se alimenta, de incerteza.

Que Brasil é este?
A pergunta leva até os mais céticos a coçarem a cabeça diante de tanto absurdo, desconfiados de estarem a viver dentro de um enredo saído do lápis de Dias Gomes. O frio da situação fazia-se sentir nas noites de Paraty, onde a convite da sua Festa Literária Internacional (Flip) pude testemunhar o aflorar das emoções sempre que o tópico se esquivava da literatura e fugia para a política. Nasci no país da Rainha Nzinga Mbande e, por lá, a discussão acabar em política é-nos inevitável, até quando falamos de amor damos um jeito de politizá-lo. Para nós, angolanos, o conceito de soberania saiu-nos caro, foi conquistado, e levar política para todas as discussões tornou-se uma forma de nos mantermos vigilantes, exercitando o músculo da memória.

Diante das plateias que visitei no festival, pensei no quão jovens são os nossos estados democráticos, talvez por sentir a presença de uma nuvem bem carregada pairando sobre a cabeça dos presentes. Os nervos nem sempre foram de roer unha, mas a tensão foi sempre palpável. Assim foi no Auditório da Matriz, quando o ruído da rua invadiu a arena onde decorriam os debates da festa literária mais celebrada do Brasil. Alguém sussurrou, explicando, que eram ‘os pró-situação, protestando contra a presença de Glenn Greenwald’, que naquele momento discursava, junto à margem esquerda do rio Perequê-Açu, sobre os desafios do jornalismo em tempos de Lava Jato. O hino nacional começou a tocar no volume máximo para silenciar um dos pilares da democracia, o direito a uma imprensa livre. As ameaças de morte feitas ao gringo da Intercept destoavam dos versos da canção nacional, e até direito a foguetes o jornalista teve, como manobra explosiva para afastar a atenção da sua voz. 
Dentro do auditório, Grada Kilomba, a generosa xamã de voz serena, nos tocava fundo na alma a cada frase proferida, expondo feridas e aplicando bálsamo da verdade, lembrando-nos a todos de como se luta jogando limpo. Por um pouco, suspirou-se de alívio. Eu, sentado no palco, ao lado de Grada e da historiadora Lilia Schwarcz, com quem partilhei o privilégio de moderar a conversa com uma das mais importantes vozes culturais do nosso tempo, respirei fundo. Olhando para o rosto das pessoas que lotavam os 512 lugares daquela arena, não pude deixar de me questionar: até quando irá durar esse fla-flu entre brasileiros?
Tempo. 
“Como soube bem”, partilhavam conosco os leitores que nos chegavam, depois de enfrentarem longas filas de autógrafos. Entre os sorrisos e confissões de gratidão, era possível identificar-lhes o ar atordoado, fazendo lembrar um pugilista que recupera no intervalo de um combate. As pessoas estão cansadas de defender a punho os seus pensamentos e posicionamentos ideológicos e, em Paraty, com os nossos livros nas mãos, ou num abraço afetuoso para a obrigatória selfie, senti que aquele contacto com as autoras e autores representavam a tão desejada pausa, o momento em que os lutadores estão recolhidos no canto do ringue, com a cabeça a latejar da troca de socos. Quase todos pareciam tentar lembrar-se de quando tudo isto começou e como foi possível chegar onde se chegou. 
A primeira vez que visitei a Flip foi em 2017, como espectador, e lembro-me de me sentir maravilhado com a proximidade entre autores e público. A minha atenção, na altura, foi sobretudo para a participação de autoras negras, presença essa que se fez sentir na edição seguinte, em 2018, e se refletiu também neste ano, onde não só marquei presença enquanto autor, como acabei por fazer parte da lista de livros mais vendidos. No topo da tabela, duas escritoras negras de origem africana: Grada Kilomba e Ayọ̀bámi Adébáyọ̀. Depois delas, Ailton Krenak, um brasileiro original da tribo dos crenaques, e depois, eu e Gaël Faye, parceiro de mesa com quem me encontrei ali pela primeira vez, mas que, durante a nossa conversa, moderada por Marina Person, senti como se tratasse de um reencontro de velhos amigos. ‘A Flip também é isso’, confessavam-nos os veteranos do mercado literário. 
Isso e muito mais. 
Uma lista liderada por autoras e autores negros suscita muitas perguntas e, quando questionado sobre o assunto por jornalistas, não consegui deixar de reparar que, embora seja motivo de celebração, essa possibilidade de festa existe devido ao conjunto de politicas sociais — incluído o sistema de cotas nas universidades brasileiras — que permitem o surgimento lento, mas consistente, de um grupo de consumidoras e consumidores ávidos por uma cultura plural, que até há bem pouco tempo não tinha acesso a espaços de produção e celebração de pensamento. 
No entanto, para celebrarmos esta lista feito bloco Olodum a passar na avenida, faltam ainda, ao lado destas autoras e autores, os nomes de editoras e editores negros, que nos garantirão, sem mais desconfianças, que estes números de vendas não se tratam de uma moda no mercado editorial brasileiro, reagindo a uma tendência global no universo da literatura contemporânea. É preciso que em quantidades ajustadas com a realidade social brasileira, as estórias e a história dos 54% dos brasileiros -  negras e negros - narradas por autores e autoras de pele escura, como a de Conceição Evaristo, sejam visíveis e recebidas por todos os amantes de literatura, só assim os dados estatísticos dessa ordem deixarão de dominar as manchetes. 
Numa sociedade onde nas suas Letras perfilam nomes como os de Maria Firmina dos Reis e o de Machado de Assis, listas com autores negros estrangeiros, ainda que importantes, não deveriam ser motivo de manchete. Em destaque no jornal deveria estar o que, nos últimos três anos, os leitores da Flip, ao colocarem na tabela dos mais vendidos Lázaro Ramos, Djamila Ribeiro e Geovani Martins, demonstram: um Brasil que, entre explosões e hinos em volume máximo, luta desde sempre, e não aceita mais que a sua voz se pareça a um grito abafado junto a um rio. Pede agora, e mais do que nunca, um Brasil brasileiro. E dentro dele, sabemos que cabe o mundo.
Que se abra então a cortina do passado!

(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros Quatro Cinco Um)

Moradores do Recife em situação de rua

Resultado de imagem para moradores do recife em situação de rua

Fome e frio, emergenciais para quem?
O desamparo programado das pessoas em situação de rua na cidade do Recife
Michel Zaidan Filho *
Mauricio Ferreira **
Patrícia Félix*** 
A cidade do Recife é um braço de mar – um longo braço de um mar de misérias. A frase é do célebre geógrafo pernambucano Josué de Castro [1] em seu livro “Homens e Caranguejos”, na busca de caracterização da capital pernambucana. Esta, segundo o autor, chamada, igualmente Veneza e Amsterdã, cidade anfíbia, dada a razão de ela ter nascido e crescido tendo por base “bancos de solo ainda mal consolidado – mistura ainda incerta de terra e água”, numa vista aérea percebendo-se a conformação de seus diferentes bairros “esquecidos à flor das águas” [2]. Sua paisagem urbana moderna parida em mais de quatro séculos de aterramento de alagados e manguezais.

No período de inverno, diante do reconhecido estado de calamidade, sobremodo ao travamento da mobilidade urbana e ao aumento da tensão nas áreas de risco, o cidadão e a cidadã recifense e os de suas cidades vizinhas da Região Metropolitana, que diariamente vem trabalhar em seu território enfrentando as dificuldades do trânsito e do tempo, sempre se perguntam pela resistência, ou falta de estrutura, da cidade no enfrentamento às fortes chuvas, questionando esse dom anfíbio da cidade. A ameaça de possíveis deslizamentos nas áreas de morro - onde via de regra mora somente povo pobre - e a possível e ameaçadora notícia de uma tragédia com vítimas da decorrente também é, infelizmente, um ritual que já é íntimo da população recifense.

Para amortizar esse problema a Prefeitura do Recife conta, há muitos anos, com a “Operação Inverno”, num trabalho conjunto coordenado pela Secretaria de Defesa Civil, em parceria com a ENLURB, CTTU e outras secretarias, executando atividades desde dezembro de monitoramento das áreas de risco, visitações às residências ameaçadas, colocação de lonas plásticas para contenção de barreiras, limpeza de canais, etc.,

Quando há mais chuvas que o esperado, como neste ano de 2019, a situação se agrava. Apesar dos esforços empreendidos, a Região Metropolitana do Recife, nestes dois últimos meses, já registrou 23 mortes, cinco delas em Recife, uma das maiores médias das últimas décadas.

Diante dessa realidade trágica, como se sabe já existe, há muitos anos e gestões, no Recife, um plano emergencial e uma estrutura preparada, ainda que insuficiente, pela administração da prefeitura para o enfrentamento ao período de inverno. As críticas de que algumas de suas medidas são tão somente paliativas, no trato às raízes do problema habitacional e da pobreza é outra face da questão, ainda que componha a mesma história. De todo modo é inegável a atenção e a alta destinação orçamentária que a Prefeitura da Cidade do Recife realiza para este setor. Tendo destinado mais de 80 milhões de reais para esse fim, segundo nota divulgada pela própria instituição. O erário público deve ser gasto para cuidar das pessoas, nada mais justo que assim o seja. 

No último 24 de julho, após uma das maiores precipitações pluviométricas do período, a Prefeitura do Recife divulgou balanço sobre as chuvas no qual reafirmava seu compromisso de assistência às vítimas, inclusivamente às que ficaram desabrigadas seriam oferecidos abrigos a expensas da Prefeitura. Os alertas de previsão de chuvas fortes são emitidos pela Agência Pernambucana de Águas e Clima (APAC) e difundidos pelo Governo do Estado e demais municípios, sempre com a orientação de buscar abrigo e um local seguro.

E se a rua fosse a sua casa? Sr. Geraldo Júlio, Prefeito do Recife e - por compartida de responsabilidade - o governador do estado, Sr. Paulo Câmara, seria ela, a rua, um local seguro para se abrigar neste período do inverno, ou, na verdade, o avesso disso?

O período de chuvas traz novos perigos para além dos já existentes nas ruas do Recife, do centro à periferia. E quem não tem para onde ir, quem vive nas ruas o que pode fazer? As mulheres e homens, meninos e meninas que não tem lugar seguro e casa para se abrigar, como indica a Prefeitura às suas cidadãs e cidadãos que assim o façam durante as precipitações pluviométricas, a essas pessoas lhes é garantido abrigo igualmente aos demais desabrigados das chuvas? Foi elaborado algum plano emergencial nesse sentido?

Estas perguntas não são nada absurdas, poderiam partir de cada uma das mais de mil pessoas que vivem em situação de rua no Recife [3], certamente elas tem todo direito de perguntar. Aliás, elas têm direitos por lei, ainda que sejam constantemente violados, inclusive pelos entes públicos.

Igualmente a ausência de um plano emergencial para abrigar as pessoas em situação de rua no período das chuvas, também nada foi providenciado emergencialmente referente à alimentação, haja vista o único restaurante popular co-administrado pela prefeitura do Recife, foi fechado há alguns anos e nunca reaberto outro que ofertasse alimentação a baixo custo. A Prefeitura já foi oficiada pelo Ministério Público do Estado, a partir de reivindicação de entidades da sociedade civil, no sentido de debater e providenciar o serviço após audiência pública realizada sobre o tema, mas até o momento somente apareceram promessas de distribuição de quentinhas que ainda não se efetivou [4]. Mesmo sabendo que quem tem fome, tem pressa, e também quem passa frio.
Mas, no atendimento às pessoas em situação de rua, que representam uma das faces da pobreza extrema no Brasil, e no Recife, a Prefeitura não tem se mostrado sensível às urgências dessa população, para além do discurso de apoio, esse sim, sempre há. Mas na administração pública julgam-se os feitos e não apenas o discurso, ainda que seja o mais bem intencionado. Quem está “na ponta” da administração, como é o caso dos representantes da gestão presentes no Comitê, independente do cargo, não tem como avançar sem que haja a chancela autêntica do mandatário municipal, Sr. Geraldo Júlio de Mello Filho.
E não é deveras por falta de cobrança, já que todas as entidades da sociedade civil que integram o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua do Recife (Comitê Pop Rua/Recife) [5], inclusive representantes das pessoas em situação de rua e o Grupo de Estudos Pobreza, Trabalho e Lutas Sociais do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia da Universidade Federal de Pernambuco [6], têm reivindicado insistentemente nos últimos meses, dentre várias outras pautas, pela elaboração desse plano emergencial, que atendesse no mínimo esses dois itens: alimentação e abrigo no período do inverno. Mas ambos foram negados, sempre com a justificativa orçamentária, ou seja, não se tem dinheiro para esse fim. Todavia, não resta dúvida de que a questão não é falta de dinheiro, mas sim de prioridade.

Uma equipe do Comitê PopRua, buscando viabilizar esse possível local para as pessoas em situação de rua no inverno, chegou a visitar no mês de junho um abrigo da Prefeitura situado no bairro de São José, à Travessa do Gusmão, nas imediações da Rua Imperial, este com a funcionalidade de acolher os possíveis desabrigados da chuva. Lá se diagnosticou condições favoráveis para receber as pessoas, no entanto, em reunião ocorrida em junho entre membros do Comitê e a Secretária Executiva Geruza Felizardo, vetou-se tal possibilidade por “não comportar nas contas da Prefeitura”.

As pessoas em situação de rua sofrem durante todo o ano nas ruas do recife – como em tantas outras cidades brasileiras, expostas às violências e insalubridades do ambiente da rua diuturnamente, e comumente sem proteção do estado, sobremodo à noite [7]. Para essas pessoas que tem no período das chuvas de enfrentar o alagamento de seus locais de dormida e a dura intensidade do frio, para elas não há qualquer plano emergencial neste período de inverno na cidade do Recife. Nem também para garantir sua alimentação a baixo custo ou gratuitamente.
É desolador chegarmos à conclusão que nem em demandas simples, mas urgentes e fundamentais, a gestão da Prefeitura tem dado a devida atenção à população em Situação de Rua. Um exemplo emblemático é o fato de que nas reuniões do Comitê, que ocorrem sempre à última quarta-feira de cada mês, normalmente das 14h às 17:30, não foram até o momento garantidas as condições dignas de participação das pessoas em situação de rua neste ambiente, já que várias vezes ocorreu de pessoas em situação de rua terem de se ausentar antes do término da reunião para conseguir se alimentarem a tempo, pois a Prefeitura nunca, até agora, garantiu neste momento de reunião alimentação à elas, para que pudessem participar sem a pressa de correr para pegar a fila da distribuição de alimentação gratuita realizada por organização filantrópicas, religiosas ou não.

O POPULUS sempre cobrou veementemente, ao lado de outras organizações da sociedade civil que compõem o Comitê, o dever da Prefeitura neste quesito, sempre ficando com a promessa de que na próxima reunião seria garantida. As pessoas em situação de rua que permanecem no espaço correm o risco, ou arcam com a consequência, de ficarem com fome. Como dito, promessa houve, mas efetividade, nenhuma.

Situações como esta dizem muito da atual conformação da dinâmica e visão nutrida, até o momento, pela gestão do prefeito Geraldo Júlio a respeito do Comitê PopRua instituído por lei, o qual deveria, mas não tem, o poder de influir diretamente nas decisões e fiscalizar as políticas públicas direcionadas para a população em situação de rua. No entanto, esta prática é semelhante à obra “Legitimação pelo Procedimento”, teorizada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann em 1969 [8], na qual elabora um entendimento de que na administração dos conflitos de interesses sociais o Estado/Gestão exerce a centralidade, enquanto a Sociedade Civil a periferia, e as decisões, juridicamente reguladas e filtradas e sob a estrutura procedimental, são legitimadas como emanadas da coletividade. No discurso da administração municipal, o apoio a essa população está sempre posto como prioritário, porém, na prática a realidade tem se mostrado bem diferente. A análise do atendimento às pessoas em situação de rua em Recife partindo-se de tal discurso estaria fadada ao equívoco.

Estão muito distantes as condições que garantam paritariamente o poder ao Comitê Pop Rua/Recife para cumprir com a finalidade maior para o qual foi criado, qual seja, a de formular e monitorar a política de atendimento à população em situação de rua no Município do Recife, bem como propor medidas que assegurem a articulação das políticas públicas municipais para o atendimento à população em situação de rua.

Ou seja, nesse modus operandi os entes da sociedade civil compõem o “aparelho”, mas nada decidem, ainda que sejam elementos necessários e indispensáveis para tal legitimação. Nesta compreensão é improvável o exercício de um protagonismo da sociedade civil organizada como uma “força contra-hegemônica”, como pensou o filosofo italiano Antônio Gramsci [9].

Foi como força contra-hegomônica, através de muita luta e organização, protagonizadas pelos movimentos sociais compostos por pessoas em situação de rua, como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR, fundado em 1985) e o Movimento Nacional de População de Rua (MNPR, fundado em 2005), em conjunto com outras organizações da sociedade civil, que derivou um conjunto de conquistas para a Pop Rua, entre elas sua inclusão na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS (2005, Lei nº11.258), a realização da Pesquisa Nacional da População em Situação de Rua (2007/2008) e já citada Política Nacional para a População em Situação de Rua (2009), entre outras.

A agência desses atores insurgentes manifestou-se numa clara fissura com as seculares estruturas de exclusão dessa parte da população brasileira, tendo galgado progredir em sua saída da invisibilidade na atenção das políticas públicas ao garantir sua primeira contagem nacional, ainda que sem a abrangência do Censo Demográfico que, a despeito de ser realizado desde 1872, até a presente data mantém as pessoas em situação de rua de fora, inclusivamente do próximo, a ser promovido em 2020, ainda que figure entre os objetivos da Política Nacional para a População em Situação de “instituir a contagem oficial da população em situação de rua”. Mas a ruptura com tão profunda e entranhada exclusão é processual e comporta avanços e recuos em seu caminho, tendo que ser constantemente reafirmada pelos interessados. Constar na lei, não é garantia de efetividade. Aí está a distância entre o posto e o pressuposto do texto legal.

Na última reunião do Comitê PopRua/Recife fomos surpreendidos com a “novidade” de que pessoas em situação de rua já não haviam podido entrar no prédio da Prefeitura, em razão de uma normativa da administração de que pessoas de bermuda não podem entrar no edifício sede da administração municipal. Nem a autorização para a entrada havia sido providenciada. Um verdadeiro descalabro e insulto ao acesso dos mais interessados a um espaço que também é delas. E isso deveria e tem de ser garantido [10].

Mas não é de se estranhar que até mesmo os representantes da gestão tenham se admirado com essa “novidade” e dito não saber que havia ocorrido esse problema, ainda que tivessem ciência desta norma, inclusive válida para servidores. Sabem, também, tais representantes que as pessoas em situação de rua normalmente usam bermudas. Mas essa concatenação não parece ter lhes ocorrido. Realmente, integração das informações e secretarias, trabalhando e planejando de modo articulado, e compartilhando os dados, como preceitua as diretrizes e objetivo primeiro da Política Nacional Para População em Situação de Rua [11] – criada em 2009 e com adesão da PCR em 2015 - está muito distante de ser uma característica da gestão atual da Prefeitura da Cidade do Recife no atendimento a este setor.

Uma contradição se acariado com o que foi firmado por Geraldo Júlio no primeiro “Plano municipal de atenção integrada à população em situação de rua no Recife 2014 – 2017” no qual afirma que “A operacionalização desde plano se dará a partir da articulação intra e intersetorial e da transversalidade no desenvolvimento de ações prioritárias para promover o acesso da População em Situação de Rua ao conjunto das políticas públicas. Para tanto, deve estar em consonância com os princípios e diretrizes da Política Nacional instituída pelo Decreto Presidencial n° 7.053/2009”.

Nesse plano se observa em seus eixos 2 e 3 o compromisso dessa articulação intra e intersetorial no sentido de “favorecer o processo de articulação e diálogo entre as ações, os programas e projetos socioassistenciais do Sistema Único de Assistência Social, para garantia da integralidade das proteções ofertadas aos indivíduos e suas famílias; pactuar ações estratégicas para assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, assistência social, habitação, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda. Estas ações visam à garantia dos direitos; o resgate da autoestima e a reorganização dos projetos de vida das PSR.” Premissas essas endossadas pelo texto da lei que instituiu o Comitê Municipal (18.503 /2018) quando trata da condução de seus trabalhos “As ações deverão ser executadas de forma descentralizada e integrada, por meio da conjugação de esforços de secretarias, órgãos e instituições da Administração Municipal, que atuarão numa perspectiva de intersetorialidade e de interdisciplinaridade, garantido o controle social e a participação da sociedade civil, observados os objetivos e as diretrizes da Política Municipal de Atenção Integral à População em Situação de Rua.” Ainda hoje esperamos, entes da sociedade civil, por essa integração administrativa que lastimavelmente ainda não se concretizou, para além do discurso estatal e da azeitada propaganda que indica isso.

São muitos os casos que confirmam esta realidade, talvez o mais simbólico seja o fato de, mesmo a criação do Restaurante Popular e do abrigo noturno e ampliação dos serviços de atendimento à População em Situação de Rua, sendo reivindicações centrais do Comitê PopRua, e assunto corrente de debate e cobrança nas reuniões deste, nós e os gestores que participam do Comitê ficam sabendo [assim disseram] pela imprensa da previsão de inauguração, em parceria com a iniciativa privada, de três restaurantes populares, um abrigo noturno e criação de quatro centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), obras tais anunciadas publicamente pela titular da Secretaria que coordena o Comitê Pop. Rua/Recife, a Secretária de Desenvolvimento Social, Juventude, Políticas sobre Drogas e Direitos Humanos, Ana Rita Suassuna.[12]
Nesta política de dispersão, escassas são as possibilidades das organizações da sociedade civil presentes no Comitê PopRua alcançarem cumprir com a meta do Comitê, também estabelecida pela lei que o instituiu, de fiscalizar as condições e funcionamento da rede de serviços ofertados à população em situação de rua, ao mesmo tempo que realiza o controle social, por meio da fiscalização, do emprego dos recursos financeiros consignados para os programas e políticas para a população em situação de rua oriundos do Governo Federal, Estadual e Municipal, pois além dos números de tais recursos não nos terem chegado até o presente momento, sempre perdemos, não por acaso, o bonde do planejamento das ações. O que nos chegam são somente as notícias, por vezes pela imprensa, das obras prontas e projetadas para o futuro, sobre as quais não fomos consultados, não colaboramos em sua forma, nem tampouco em seus prazos e escala de prioridade.

Mas há sentido no aparente caos. Não são poucos os que analisam que a protelação no atendimento emergencial às demandas da população em Situação de Rua, em favor de garantir essas grandes obras, além da falta de prioridade da gestão para este setor, obedece a interesses de impacto eleitoral, já em horizonte o pleito de 2020, num alinhamento projetivo e articulado dos atuais Prefeito do Recife e Governador de Estado, ambos afilhados políticos do ex-mandatário Eduardo Campos [13]. A máquina propagandista noticiosa das obras da Prefeitura funciona muito bem e com alto investimento, disso todos sabemos. Esta mesma que, na busca de criação de um consenso social, tão somente narra, como é do perfil destes aparelhos da indústria cultural, a versão triunfalista da história, nesse caso da gestão.

Mas é um preço demasiadamente alto a se pagar para assegurar dividendos eleitorais, sobretudo quando quem arca com as consequências de sempre ser jogado para o futuro e não ter atendidas suas demandas mais emergenciais no agora, mesmo que estas sejam fome e frio, são as camadas menos favorecidas, que compõem a faixa dos mais pobres, ou extremamente pobres, como é o caso da população em situação de Rua do Recife.

A negligência da Prefeitura em não atender os direitos de alimentação e abrigo dessas pessoas consiste numa prática que fomenta a naturalização da pobreza e da situação de rua, como se fosse aceitável a extrema pobreza ser parte da paisagem urbana, independentemente da temperatura e do que alerte a APAC. Fica-nos a ideia de que a melhoria na qualidade de vida das pessoas em situação de rua não é prioridade da Prefeitura de Recife, talvez pelo reduzido ganho político que ela possa obter.

Atender às pessoas em situação de rua em suas demandas mais prementes. Não! Isto Geraldo não fez.
NOTAS:
* Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE. Coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia (NEEPD) da UFPE.
** Membro do POPULUS – NEEPD/UFPE
*** Membro do POPULUS – NEEPD/UFPE

[1] - CASTRO, Josué de. Homens e Caranguejos. 2ª ed.. São Paulo: Editora Brasiliense, 1968, p.12.

[2] - Castro, Josué de. Fatores de localização da cidade do Recife: um ensaio degeografia urbana. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948, p.15.

[3] - Segundo conceito oficial, adotado em 2009, através do decreto nº 7.053 de 23 de Dezembro do mesmo ano, que formalizou a Política Nacional para População em Situação de Rua, esta População é um “Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares fragilizados ou rompidos e a inexistência de moradia convencional regular. Caracteriza-se pela utilização de logradouros públicos (praças, jardins, canteiros, marquises, viadutos) e de áreas degradadas (prédios abandonados, ruínas, carcaças de veículos) como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como das unidades de serviços de acolhimento para pernoite temporário ou moradia provisória.” Em 2004, Recife contabilizou 653, em 2005, Recife contabilizou 1.390 pessoas em situação de rua, das quais 888 eram adultas. A grande disparidade dos números entre esses dois anos deve-se ao fato de que em 2004 não foram contabilizadas as pessoas em situação de rua que se encontravam em albergues e em casas de acolhida. (Silva, Patrícia Marília Félix da. Pessoas em Situação de Rua em Recife: Cidadania através do trabalho como uma alternativa. Dissertação - Mestrado em Sociologia. Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco. Recife: 2015.)

[5] - O Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua do Recife (Comitê Pop. Rua/Recife), instituído pela Lei municipal de Nº 18.503 de 7 de julho de 2018, teve a posse de sua primeira gestão em 13 de março de 2019, formado (como dita seu art. 4º) pelas seguintes secretarias e organizações: formado por representantes das seguintes secretarias e organizações: I - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Desenvolvimento Social, Juventude, Políticas sobre Drogas e Direitos Humanos; II - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Saúde; III - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Educação; IV - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Infraestrutura e Habitação; V - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria da Mulher; VI - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Cultura; VII - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente; VIII - 02 (dois) representantes titulares e 02 (dois) suplentes da população em situação de rua organizada, por meio de movimentos sociais, fóruns e comissões de usuários de serviços; IX - 01 (um) representante titular e 01 (um) suplente de instituições acadêmicas e de pesquisa; X - 02 (dois) representantes titulares e 02 (dois) suplentes de instituições prestadoras de serviços voltados para o atendimento da população em situação de rua; XI - 01 (um) representante titular e 01 (um) suplente de instituições de assessoramento e defesa dos direitos da população em situação de rua; XII - 01 (um) representante titular e 01 (um) suplente de outras entidades, instituições, organizações e associações interessadas em contribuir para o fortalecimento da Política Municipal para População em Situação de Rua. Confiram o texto integram da lei em:
https://www.jusbrasil.com.br/diarios/198333604/dom-rec-07-07-2018-pg-3. Antes desta lei, o comitê PopRua/Recife funcionava sob o decreto municipal 27.993, de 30 de maio de 2014.
[6] – O Grupo de Estudos Pobreza, Trabalho e Lutas Sociais (POPULUS) do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia (NEEPD) da Universidade Federal de Pernambuco ocupa, no Comitê, a representação da categoria “Instituições acadêmicas e de pesquisa”. Os demais membros da sociedade civil eleitos para a gestão do biênio 2019/2021, foram os seguintes: Titulares e suplentes da população em situação de rua organizada - José Antônio de Souza, Jamelson Manoel de Souza e Luiz carlos da Silva, Carlos Alberto Pinheiro e Natanael da Silva; Instituições prestadoras de serviços voltados para o atendimento da população em situação de rua - Samaritanos e Fundação Terra; Instituições de assessoramento e defesa dos direitos da população em situação de rua - Pastoral do Povo da Rua; Outras entidades, instituições, organizações e associações interessadas em contribuir para o fortalecimento da Política Municipal para População em Situação de Rua - A Casa da Rocha.

[7] - Agregando-se dados da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua realizada em 2007/2008, realizada em 71 minicipios brasileiros com mais de 300 mil habitantes, com dados de outras pesquisas promovidas à época em outros quatro municípios (Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e São Paulo), estimou-se que existiam naquele momento cerca de 50 mil pessoas em situação de rua. Em 2016, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) realizou uma estimativa do número de pessoas vivendo nas ruas no Brasil, chegando ao total de 101.854 pessoas em situação de rua no Brasil.

[8] - LUHMANN, Niklas [1969]. A Legitimação pelo Procedimento. Tradução Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

[9] Cf. GRAMSCI, Antônio. Cartas do Cárcere. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991; GRAMSCI, Antônio. Concepção Dialética da História.  10ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

[10] – Art. 6º (do DL 7053/2009) - São diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua: VI - participação da sociedade civil, por meio de entidades, fóruns e organizações da população em situação de rua, na elaboração, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas; VII - incentivo e apoio à organização da população em situação de rua e à sua participação nas diversas instâncias de formulação, controle social, monitoramento e avaliação das políticas públicas.

[11] – Art. 6º (do DL 7053/2009) - III - articulação das políticas públicas federais, estaduais, municipais e do Distrito Federal; IV - integração das políticas públicas em cada nível de governo. Art. 7o  São objetivos da Política Nacional para a População em Situação de Rua: I - assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda.
[13] – Sobre o governo Eduardo Campos cf. FILHO, Michel Zaidan. A Honra do Imperador: Reflexões críticas sobre a era eduardiana em Pernambuco. Recife: NEEPD, 2014.

domingo, 28 de julho de 2019

Uma pensadora brasileira

  Raquel Barreto

Uma pensadora brasileira

A antropóloga, filósofa, escritora e feminista Lélia Gonzalez (Foto: Cezar Loureiro/ Reprodução)

“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardos etc.” Esse trecho está num depoimento de Lélia de Almeida Gonzalez, publicado em 1988.
Lélia foi filósofa, antropóloga, professora, escritora, intelectual, militante do movimento negro e feminista. Em sua trajetória – encerrada há 25 anos –, teoria e prática estiveram organicamente conectadas.
A sua produção autoral é de fundamental importância para o pensamento social brasileiro. A obra da autora enfatiza o protagonismo negro, particularmente das mulheres negras, na formação social-cultural do país. No entanto, a pensadora ainda é pouco lida e conhecida.
Nascida em Belo Horizonte, em 1935, numa família de poucos recursos econômicos, Lélia foi a penúltima de 13 filhos. Em 1942, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, porque seu irmão, o jogador de futebol Jaime de Almeida, foi contratado pelo Flamengo.
Perfazendo um percurso pouco usual para as mulheres negras na década de 1950, conseguiu ingressar na universidade. Cursou História e Geografia (1958) e Filosofia (1962) na antiga Universidade do Estado da Guanabara (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Militância
Lélia teve uma atuação de pioneirismo e liderança  no movimento negro brasileiro. Participou do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, o IPCN, uma das primeiras organizações do movimento negro contemporâneo. Foi também umas das fundadoras do Movimento Negro Unificado, o MNU, tendo participado do ato histórico do movimento, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, no dia 7 de julho de 1978. Em 1983, formou com outras mulheres negras o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras, no Rio de Janeiro. Além disso, foi a primeira mulher negra a sair do país como representante do movimento negro, em 1979.
Em sua percepção, a política compreendia tanto a militância coletiva na base, nos movimentos sociais, como a dimensão institucional. Por essa razão, em duas ocasiões, tentou eleger-se a cargos legislativos. Em 1982, candidatou-se a deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores. Posteriormente, em 1986, a deputada estadual pelo Partido Democrático Trabalhista. Não se elegeu em nenhuma das tentativas, porém, teve uma expressiva votação na primeira eleição, tornando-se a primeira suplente da bancada. Também integrou a formação original do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado em 1985.
Por sua atuação e projeção, Lélia foi “observada” em algumas ocasiões pelo Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS. Encontram-se referências a ela em alguns documentos. No entanto, ela não chegou a ser interrogada, presa ou torturada.
O momento mais intenso de sua militância foi no período da Ditadura Militar (1964-1985), que proibiu, entre outras coisas, a organização política da sociedade civil. A Lei de Segurança Nacional, de setembro de 1967, em seu Artigo 39, parágrafo VI, definia que: era crime “Incitar publicamente ao ódio ou à discriminação racial”, com detenção de 1 a 3 anos. O que, na verdade, poderia ser usado contra o movimento negro, uma vez que denunciar o racismo, expor o mito da democracia racial, poderia ser considerado uma ameaça à ordem social, um estímulo ao antagonismo e incitação ao preconceito.
É importante reiterar que tanto Lélia como o movimento negro atacavam categoricamente o mito da democracia racial, que se baseava na ideia do “contato harmônico” entre portugueses, africanos e indígenas,  apagava a violência dessas relações e negava a existência do racismo. O mito era um símbolo da identidade nacional, pautado em uma visão harmônica de nação, adotada pelos militares no comando do país, mas também idealizada pelos próprios brasileiros.
Pensamento
Quando iniciou a militância no movimento negro, em meados da década de 1970, Lélia já possuía uma carreira como professora, pesquisadora e uma boa circulação nos meios intelectuais e culturais cariocas. Em 1975, participou da fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, uma das primeiras instituições a divulgar o pensamento lacaniano no Brasil, e lecionou em várias instituições de ensino superior no Rio de Janeiro. Ela criou o primeiro curso institucional de Cultura Negra na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em 1976, no  Rio de Janeiro, um espaço de reunião de artistas e intelectuais, que produziam uma visão crítica sobre a realidade brasileira.
Escreveu um número considerável de artigos e ensaios. Publicou dois livros: O lugar de negro, de 1982 (coautoria com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg) e Festas populares, de 1989. Entre suas outras publicações há textos e reflexões essenciais e fundamentais para a consolidação de uma teoria do feminismo negro brasileiro e do pensamento social brasileiro.
Ao longo de quase três décadas, Lélia percorreu um número significativo de temas, valendo-se das matrizes do pensamento ocidental e africano. Explorou teorias distintas como afrocentrismo, marxismo, existencialismo. Dialogou com áreas de conhecimento como  antropologia, sociologia, história e filosofia. Desenvolveu um pensamento original sobre a formação social-cultural brasileira, a partir da centralidade de sujeitos negros, especialmente de mulheres negras.
Era um imperativo para ela e o outros intelectuais negros de sua geração criar um pensamento próprio do negro brasileiro. A partir de suas proposições, mostrou como as teorias tradicionais das Ciências Sociais não eram capazes de explicar a experiência negra brasileira. Por isso, desenvolveu categorias/conceitos próprios de análise.
As ideias de Lélia tinham relação com os movimentos sociais, o contexto histórico, os lugares pelos quais circulou e as pessoas com as quais dialogou. Seu pensamento não esteve afastado do momento em que viveu.
A pensadora era crítica da importação mecânica do discurso e da teoria negra estadunidense,  para que não se reproduzisse uma lógica de dominação cultural, uma vez que a experiência brasileira era distinta. Para Lélia, era preciso que os negros brasileiros olhassem para dentro de si, para sua experiência e realidade cultural e não para o estrangeiro.
De acordo com ela, o modelo do negro brasileiro não estava nem na África nem nos Estados Unidos, mas em sua própria experiência histórica, local, nas resistências políticas, culturais, na lembrança do Quilombo dos Palmares. A autora não negava a importância da África para nós, mas considerava tratar-se de uma recriação possível. “A África é um barato muito diferente do que a gente imagina, diferente, principalmente, do que os negros americanos imaginam. Uma das coisas que eu chegava dando porrada em cima deles é isso: a África de vocês é sonho, não existe. Nós aqui, no Brasil, temos uma África conosco, no nosso cotidiano. Nos nossos sambas, na estrutura de um candomblé, da macumba…”
Sua produção refletiu criticamente sobre o lugar do negro na cultura brasileira, visto, tradicionalmente, como o lugar do folclore, do louco, da criança, do primitivo.  Uma vez que os sujeitos africanos “trazidos” para o Novo Mundo foram tratados como uma massa anônima de pessoas sem cultura, que só possuíam uma capacidade: a força de trabalho.
Sob perspectivas inovadoras, a autora produziu uma interpretação para a cultura brasileira que rompia com a dicotomia colonizador vs colonizado. E conferia protagonismo ao colonizado na transmissão de valores civilizatórios para nossa  formação cultural.
Ela conferiu à mãe preta, a folclorizada, a função materna da cultura brasileira, transmitindo  valores africanos para os brasileiros. “A mulher negra é responsável pela formação de um inconsciente cultural negro brasileiro. Ela passou os valores culturais negros, a cultura brasileira é eminentemente negra,  esse foi seu principal papel desde o início.”
A autora introduziu elementos pertinentes para a caracterização do racismo no Brasil, que se  constituiu “como a ‘ciência’ da superioridade euro-cristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano de explicação (…) e direciona o olhar da produção acadêmica ocidental”.
Lélia é mais conhecida pelo seu papel pioneiro na criação de uma teoria do feminismo negro brasileiro, enraizado em referências e experiências históricas, em trocas com outras mulheres negras, articulando a raça, o gênero e a classe. Sustentando-se na teoria e na prática, preocupada em vincular a experiência do vivido (coletivamente) à observação e à teoria.
“Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a marca da libertação de todos e todas. Portanto, nosso lema deve ser: organização já!”
Legado
Há 25 anos, em julho de 1994, Lélia partiu para o Orun, local que segundo a tradição Iorubá corresponde ao mundo espiritual (o Ayé é o que corresponde ao mundo físico).
Apesar de sua relevância intelectual e política, ela continua sendo timidamente citada. A importância de sua produção autoral ainda não foi reconhecida. O que não é de se estranhar, uma vez que as referências acadêmicas das Humanidades permanecem profundamente marcadas por uma lógica eurocêntrica que hierarquiza o conhecimento e privilegia apenas uma vertente de pensamento, o Ocidental.
Vale ressaltar que no Brasil a presença negra, seja autoral ou intelectual, tem sido marcada por uma dualidade constante entre o apagamento e o embranquecimento. O escritor Machado de Assis é o caso mais notório de embranquecimento. Já os apagamentos foram inúmeros, decorrentes de uma política do esquecimento, que, segundo a socióloga Angela Paiva, é um “mecanismo pelo qual apagamos da memória das novas gerações a contribuição acadêmica de autores negros”.
Neste sentido, entende-se o porquê da ausência de referências à produção de Lélia e de outros pensadores como Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Eduardo de Oliveira e Oliveira, Guerreiro Ramos, Virgínia Bicudo e muitos outros.
Uma das prováveis razões para o apagamento reside no fato de esses pensadores serem acusados de produzir um conhecimento posicionalizado, ou seja, comprometido como uma enunciação política do lugar de onde se produz o conhecimento. Segundo Lélia, É importante ressaltar que emoção, a subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam na renúncia à razão, mas, ao contrário, num modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão.”
Nestes 25 anos de sua passagem, a melhor forma de lhe prestar uma homenagem é reconhecer sua contribuição epistemológica para decolonizar os pressupostos eurocêntricos na produção do saber. E principalmente ler Lélia Gonzalez.
RAQUEL BARRETO é doutoranda em História pela UFF

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: Você tem fome de que? ( O empobrecimento da linguagem nos regimes autoritários)

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    Nesta semana, publicamos o segundo texto de uma série que objetiva discutir as categorias dos regimes autoritários, consoante uma apropriação original do livro 1984, do escritor inglês George Oswell, a partir de uma leitura do filósofo francês Michel Onfrey, discussão apresentada pelo jurista Rubens Casara, em artigo publicado no site da revista Cult. Ainda absorto com o texto da semana passada, nesta mesma linha de raciocínio, refleti bastante sobre um outro livro emblemático, do escritor americano, Ray Bradburry, 451, onde é demonstrado como os regimes fascistas perseguem os intelectuais, prendendo-os e queimando seus livros em praça pública. Em Ray Bradburry fica evidente o anti-intelectualismo característico dos regimes fechados de governo ou, para ser mais preciso e atual, as ditaduras de um novo tipo.

    Hoje, no entanto, depois de uma autocensura imposta a um editorial contundente que já havia escrito - vamos tratar do empobrecimento ou dessimbolização da linguagem, ou seja, a perda de sentido de valores como "liberdade", "igualdade", "fraternidade", "verdade", "ética". Nos últimos dias, então, tivemos muito pano para as mangas. A semana foi pródiga nesses exemplos. George Oswell observa, afirma Rubens Casara, que nesses momentos de obscurantismo, quando o regime político vai se fechando, há uma espécie de eufeminização da linguagem, ou seja, coisas tidas antes como absurdas vão se tornando corriqueiras, triviais. Num país de miseráveis, onde seria uma excrescência desconhecer os milhões de famintos, pode-se, por exemplo, negar a existência da fome. Os nordestinos podem ser reduzidos a paraíbas, assim como a preocupação com o meio ambiente, reduzida a uma questão de veganos. Uma portaria que depõe contra os princípios de convivência democrática e da liberdade de expressão ganha o número fatídico da besta ferra do apocalipse: 666.

    Não se constitui uma tarefa complexa entender as razões pelas quais os atores políticos identificados com projetos autoritários odeiam tanto os intelectuais. A razão mais óbvia é que os intelectuais, em princípio, são menos infensos a projetos políticos desta natureza, esboçando maiores resistências à sua consolidação. De qualquer forma, recomenda-se a prudência necessária, no entanto, quando se trata dos intelectuais brasileiros, cuja origem é notadamente a classe média e a elite, com os valores e vieses daí decorrentes. Em todo  caso, anpassant, a principal razão parece ser mesmo o esboço da reação desse grupo social aos projetos autoritários. 

    Coincidentemente, atores políticos identificados com projetos autoritários são pessoas com sérios recalques e frustrações pessoais, não raro com a academia. A investida e o projeto de desmonte da estrutura pública universitária brasileira, assim como a queima de livros na obra de Ray Bradburry parecem evidenciar a assertiva acima, ou seja, o ódio ao conhecimento. Na próxima semana, daremos prosseguimento a essas reflexões, tratando da abolição da verdade ou o seu relativismo. Embora comprovadamente verdadeiros, o conteúdo dos áudios perdem em importância em relação aos métodos utilizados para obtê-los.