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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Michel Zaidan Filho: Vida além da morte


           



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                        O filósofo alemão Theodoro Adorno escreveu que os sobreviventes do Holocausto não tinham direito de viver. Deveriam ser solidários com os judeus que morreram nos campos de concentração. Esta reflexão desesperada diante de uma catástrofe indizível tornou-se o ponto de partida de uma séria meditação sobre o destino comum de todos nós, mortais, sobretudo diante da morte dos outros e mais ainda, dos nossos entes queridos. Qual o sentido de sobreviver à morte daqueles que amamos?

                Sendo ateu, não acredito em vida eterna ou na ressureição dos mortos, no dia do Juízo Final. Como Strindberg, penso que o inferno é aqui. E que morrer é se libertar do sofrimento. Não vou dizer, como Sartre, que o inferno são os outros. Porque há muita coisa valiosa na convivência humana, social e familiar. Mas o problema é a morte de quem se ama. Dizia um hegeliano espanhol, que a morte é um problema para quem fica vivo, não para quem se foi. Buscamos através das religiões, filosofias e livros de autoajuda explicações, justificativas ou racionalizações para a morte. Houve até um autor que disse que somos um ser para a morte.

                  Eu não penso assim.  A vida é uma espécie de jardim e nós, de jardineiros. Ela será bela ou feia, dependendo do que formos capazes de fazer dela. Não fizermos nada de belo, digno, humano ou justo, ela será uma aventura melancólica que talvez não tenha valido a pena. Mas se cultivarmos o jardim, certamente a vida terá valido muito a pena. Tenho pensado muito o que fazer com o resto da vida que ainda tenho. Por certo lamentar a morte dos meus entes queridos não basta. É preciso sobreviver à morte, à morte de cada ser humano que morre hoje em dia e das pessoas de que gostamos.

                  E o sentido dessa vida pós-morte – para mim – é ajudar os que sofrem, as vítimas da injustiça cotidiana, os que são explorados, humilhados e ignorados pela sociedade. Não vejo a acumulação de bens, prestigio social ou um bom padrão de vida como o principal objetivo dessa minha sobrevida. Mas lutar ou me indignar contra a injustiça social e pessoal, buscar contribuir para dignidade do ser humano e para que todos tenham uma vida digna, isto sim.

Será esta a minha razão de existir, sem naturalmente deixar de honrar todos os dias a memória dos que foram e nos legaram a vida.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do NEEPD-UFPE 

P.S.: A foto acima é da senhora Elizabete Gomes Zaidan, mãe do autor do texto, falecida recentemente. 

domingo, 16 de fevereiro de 2020

NOTA DE PESAR DO BLOG



O Blog Contexto Político, juntamente com os inúmeros admirador@s, amig@s, alun@s e ex-alun@s, se solidariza com a família do prof. Michel Zaidan Filho, neste momento difícil, em razão do falecimento de sua genitora. Receba as condolências e os sinceros sentimentos do amigo José Luiz Gomes da Silva, editor deste blog.

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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sábado, 15 de fevereiro de 2020

Editorial: CPMI das Fake News




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Recentemente li um excelente artigo da filósofo Marcia Tiburi tratando das características do nosso incipiente projeto fascista. Como diria o teatrólogo Bertolt Brecht, o fascismo é uma cadela que está sempre no cio, com seus dispositivos prontos para serem acionados a qualquer momento. Marcia, no entanto, se referia a uma espécie de fascismo de um “novo tipo", caracterizado, entre outras coisas, pela velocidade com que suas teses são disseminadas junto à população, através dos instrumentos tecnológicos hoje disponíveis. Imaginem os leitores esse arsenal tecnológico de hoje disponível à época do Ministério da Propaganda Nazista, comandado pelo atarrancado Joseph Goebbels.

Acompanhei estarrecido a tentativa de censura a alguns autores clássicos da literatura brasileira - fato ocorrido em Rondônia - como Machado de Assis, Euclides de Cunha e até o insuspeito Franz Kafka, cujos livros estão empilhados na cabeceira da cama deste editor. Penso que se trata da primeira tentativa de censura ao maior escritor brasileiro, fundador da Academia Brasileira de Letras. Quanto ao livro “Os Sertões”, outro clássico de nossa literatura, trata-se de um texto, inclusive, que sofre severos reparos das inteligências do campo progressista, uma vez que foi escrito por um jornalista financiado por um jornal conservador e que se encontrava do lado "direito" da trincheira dos combatentes ao levante de Canudos, do Antonio Conselheiro. O livro de Euclides, por sinal, é usado em escolas militares. Li Machado ainda na adolescência, por recomendação de um professor de língua portuguesa, com quem debatemos seus textos. Um pouco depois, no CAC, da UFPE, inevitavelmente voltávamos à discussão sobre se Capitu, de fato, teria traído o Bentinho. Mas isso já são águas passadas. Privo os leitores das polêmicas suscitadas pelo texto machadiano. O que se condena aqui - de forma veementemente - é esta tentativa deliberada de censura, um precedente gravíssimo, que coloca nossa já fragilidade democracia na UTI, respirando com a ajuda de aparelhos.

Registro aqui o fato de que a filósofo Marcia Tiburi se encontrar fora do país, depois de sofrer violentos ataques difamatórios à sua honra, perpetrados pelas milícias digitais desses tempos bicudos que o país atravessa. Vocês podem calcular as infâmias dirigidas à então candidata a um cargo eletivo pelo Partido dos Trabalhadores num Estado como o Rio de Janeiro, onde a necropolítica ou o capitalismo gore estão irremediavelmente consolidados. Evito os detalhes porque eles são escabrosos, indignos de um mundo minimamente civilizado. Impublicáveis.

Este editor mantinha contato regular com o ex-presidente da Câmara dos Deputados, o gaúcho Ibsen Pinheiro, falecido recentemente. Acompanhei a via crucis deste cidadão - quando ainda ocupava o cargo de deputado federal - ao ser acusado injustamente de corrupção por uma revista de circulação nacional. À época, Ibsen foi vítima de uma espécie de “linchamento moral”, tendo perdido não apenas o cargo, mas a tranquilidade pessoal, em razão das injúrias a ele atribuída. Por razões naturais, incomodava-me bastante o drama vivido por Ibsen. Um pouco antes da revista sair às bancas, um checador observou que estava sendo cometida uma grande injustiça, mas seus editores calcularam os prejuízos materiais - e não morais infringidos ao cidadão Ibsen - e optaram por manter a matéria. Ibsen nunca processou a revista, tendo escrito uma longa mensagem para este editor explicando os motivos. Alguns trechos foram publicados aqui pelo blog. A revista, por sua vez, sequer soltou uma notinha reconhecendo o grave equívoco. Ibsen ainda tentaria uma volta à vida pública, mas sem a capilaridade de outrora, pela sua cidade de nascimento, São Borjas, no Rio Grande do Sul. Quando de sua morte, nenhum veículo de comunicação observou este fato. Fazemos justiça por aqui.

Tanto o caso da filósofa Marcia Tiburi quanto o caso de Ibsen Pinheiro ilustram bem os danos produzidos pela disseminação de notícias falsas, através da redes sociais, por expedientes hoje conhecidos  como milícias digitais. Este mecanismo contribuiu de forma decisiva para a eleição de alguns candidatos no último pleito, sendo, portanto, passível de uma rigorosa investigação pelos órgãos de fiscalização eleitoral, quiçá com a anulação de um pleito marcado por mentiras transformadas em verdade absolutas. Importante, igualmente, que esta CPI possa ter acesso irrestrito aos perfis e aos canais de veiculação dessas fake news, coibindo em definitivo essas práticas, com punição severa aos detratores profissionais, financiadas por empresas inescrupulosas, que pagaram os "disparos" de mentiras pelas redes sociais. Num país decente, sob regime democrático e ainda com as garantias de um Estado Democrático de Direito, um pleito "bichado" como este seria anulado. A questão é que, infelizmente, nós não vivemos num país decente.

Saiba mais sobre os autores quase censurados em Rondônia

De Machado de Assis a Franz Kafka, passando por várias obras de Rubem Fonseca
Redação Quatro Cinco Um 07fev2020 15h08
 
"Memórias de Brás Cubas", de Machado de Assis, foi uma das obras quase censuradas Joaquim Insley Pacheco/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
Nesta quinta-feira (6) circulou uma ordem do secretário de Educação de Rondônia, Suamy Vivecananda, determinando o recolhimento de 43 livros da rede publica de ensino. O motivo seria que as obras teriam “conteúdos inadequados a crianças e adolescentes”.
O secretário, em um primeiro momento, declarou que o ofício era falso, mas depois confirmou a informação, classificando o documento como sigiloso. Diante da polêmica, a secretaria recuou da medida.
Entre os autores a serem censurados estão grandes nomes da literatura, como Machado de Assis e Franz Kafka, além de um observação de que “todos os livros de Rubem Alves devem ser recolhidos”.
Saiba mais sobre os autores quase censurados em Rondônia
Clássicos brasileiros, que inclusive são leitura obrigatória em alguns vestibulares país afora, como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Macunaíma, de Mário de Andrade, estão entre os títulos a serem censurados, assim como dezoito obras de Rubem Fonseca , poemas de Ferreira Gullar e uma coletânea de contos de Caio Fernando Abreu. Carlos Heitor Cony também aparece com vários títulos a serem recolhidos, inclusive sua versão infantojuvenil da história de Aladim e O mistério da moto de cristal, escrito junto a Ana Lee.
Os sertões – A luta, de Euclides da Cunha, que foi o homenageado da Flip no ano passado, e títulos de Nelson Rodrigues (inclusive uma versão em graphic novel de Vestido de noiva, um dos grandes nomes do teatro brasileiro. O acesso à toda a obra do educador Rubem Alves também deveria proibida. Entre autoras mulheres, além de Ana Lee, estão mais dois nomes: Rosa Amanda Strausz (organizadora do livro 13 dos melhores contos de amor, que traz contos de autores como Luis Fernando Verissimo, Lygia Fagundes Telles e Carlos Drummond de Andrade) e Sonia Rodrigues (Estrangeira).
Entre os autores estrangeiros estão o clássico O castelo, de Franz Kafka, um retrato crítico sobre a burocracia, e Contos de terror de mistério e de morte, de Edgar Allan Poe. Carlos Nascimento da Silva, com o livro de contos A menina de cá; Ivan Rubino Fernandes, com seu Guia Millôr da história do Brasil, e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira com todos os volumes de Mar de histórias completam a lista.
Veja a lista completa dos autores que foram quase censurados:
Ana Lee: O mistério da moto de cristal (com Carlos Heitor Cony)
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira: Mar de Histórias
Caio Fernando Abreu: O Melhor De Caio Fernando Abreu – Contos e Crônicas
Carlos Heitor ConyA volta por cima, O irmão que tu me deste, O ventre, Rosa vegetal de sangue, O mistério da moto de cristal (com Ana Lee), Mil e uma noites, O ato e o fato, O harém das bananeiras
Carlos Nascimento da Silva: A menina de cá
Edgar Allan PoeContos de terror de mistério e de morte
Euclides da CunhaOs sertões da luta (sic)
Ferreira Gullar: Poemas escolhidos
Franz KafkaO castelo
Ivan Rubino Fernandes: Guia Millôr da história do Brasil
Machado de AssisMemórias póstumas de Brás Cubas
Mário de AndradeMacunaíma, o herói sem nenhum caráter
Nelson Rodrigues: Beijo no asfaltoO melhor de Nelson RodriguesVestido de noiva (graphic novel), A vida como ela é
Rosa Amanda Strausz: 13 dos melhores contos de amor
Rubem Alves: todas as obras
Rubem Fonseca: Diário de um fescenino, Bufo & Spallanzani, O melhor de Rubem Fonseca; Secreções, excreções e desatinos; Os prisioneiros, Agosto, Amálgama, O doente Molière, A coleira do cão, O seminarista, Histórias curtas, História de amor, O buraco na parede, Feliz ano novo, Calibre 22; Mandrake, a Bíblia e a bengala; Lúcia Mccartney, Romance negro e outras histórias
Sonia Rodrigues: Estrangeira

(Publicado originalmente na Quatro Cinco Um, a Revista dos Livros) 

Charge! Via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Editorial: Fios desencapados





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No jargão policial, a expressão acima é utilizada para identificar os atores que, por algum motivo - intencional ou não - acabam oferecendo os elementos para a polícia desvendar determinados crimes,desmontar esquemas de desvio de recursos da administração pública além, claro, de outros delitos. Uma das pistas mais importantes para se chegar aos envolvidos no grande assalto ao Banco Central de Fortaleza foi  uma folhinha de papel, deixada por uma desses descuidados, no túnel escavado, onde estava anotado um número de telefone celular. Hoje, de alguma forma, os chamados “delatores premiados” bem que poderiam entrar nessa categoria de “fios desencapados”. 

Voltando de João Pessoa recentemente - onde acompanho com o comendador a edição do Guia Histórico e Sentimental de Jampa - tivemos a oportunidade de acompanhar todo o desdobramento da “Operação Calvário”, um grande esquema de desvio de recursos públicos ocorridos naquele Estado da Federação, envolvendo agentes públicos e privados, que colocou em mãos indevidas milhões de verbas destinadas à saúde e à educação. Neste caso específico, a ex-Secretária de Administração do Estado, Livânia Farias, assume a condição de "fio desencapado" ao revelar toda a engrenagem de desvio de recursos públicos implantados na máquina do Estado, oferecendo pormenores da operacionalização do esquema, identificando seus beneficiários, com uma riqueza de detalhes ao mesmo tempo hilária e impressionante.

Como afirmamos, acompanhamos alguns desses interrogatórios, sendo muito pouco provável que ela não esteja dizendo a verdade. Livânia aponta, inclusive, os locais onde as caixas com o dinheiro da propina eram destribuídas, precedidas de senhas, como, por exemplo, “chegaram as mangas de Santa Rita”. Morto recentemente numa operação policial no Estado da Bahia, um ex-capitão do BOPE - Batalhão de Operação Policiais Especiais - RJ - , cujo nome estaria associado ao assassinato da vereadora Marielle Franco, é um desses “fios desencapados”. Pela "experiência” adquirida - depois que foi afastado do BOPE sob a acusação de envolvimento com o Jogo do Bicho - era um arquivo vivo sobre as nuances que envolvem a atuação das milícias no Estado do Rio de Janeiro, notadamente suas ramificações com o poder público, especialmente o aparelho policial. Não à toa, pouco antes de morrer, ele havia informado à sua família e ao seu advogado que poderia ser vítima de uma “queima de arquivo”.

O mundo político pernambucano foi sacudido por um tsunami, logo após a publicação de uma extensa matéria na revista Época, sobre as intrigas na família Campos/Arraes depois da morte do ex-governador Eduardo Campos. Não vou aqui entrar nos “detalhes” dessa contenda, deixando que os órgãos competentes apurem o que está sendo denunciado, de forma sigilosa, pelo advogado e escritor Antonio Campos. Em tese, a julgar pelo ocorrido quando de sua candidatura à Prefeitura da Cidade de Olinda no último pleito, já se sabia que o clima era de grande animosidade entre os herdeiros políticos do espólio do clã familiar. O escritor não contou com o apoio do Palácio do Campo das Princesas ao seu projeto político, sendo claramente sabotado. 

Não desejo a ninguém um “linchamento” ou uma exposição à execração pública, através do expediente de fake news, prática recorrente nesses tempos bicudos de instabilidade democrática, insegurança jurídica e pós-verdade. A tarefa de enfrentar os interesses - nada republicanos - dessas oligarquias locais constitui-se num árduo esforço, de inevitáveis e nefastas consequências. Ao lado das oligarquias paulista e mineira, a oligarquia pernambucana é uma das mais infames, torpes, abjetas e perversas, forjada em séculos de exploração do regime de trabalho escravo, cevada nos vícios perniciosos da colonização portuguesa. Como diria o conselheiro Rosa e Silva, em tempos idos, aqui ou se é Cavalcanti ou se é cavalgado. 

Os princípios que deveriam nortear a administração pública são solenemente abandonados em razão da prevalência do poder oligárquico, dos interesses comezinhos, de grupelhos, da ocupação de espaços na máquina, do familismo amoral, tendo como uma das consequências o não atendimento às demandas da população mais socialmente fragilizada.   O mais surpreendente é que as chamadas "forças do campo progressista" sucumbiram a esse projeto, num arranjo unicamente orientado pelo pragmatismo de seus principais atores, ávidos pelo exercício do poder, pelas benesses ofertados pelo cargo na máquina e coisas assim. Lamento informar isso, mas a dita esquerda pernambucana - tão aguerrida no passado - hoje é uma vergonha. O que não diriam sobre ela um Paulo Cavalcanti, um Cristiano Cordeiro, um Gregório Bezerra e até mesmo o cronista Rubem Braga, que viveu aqui na província o seu período mais fértil de ativismo político?   


domingo, 9 de fevereiro de 2020

Michel Zaidan Filho: O que nos tem a dizer "A Origem do Drama Barroco Alemão?"

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    Por sugestão do meu amigo e blogueiro José Luiz, fui reler a tese de livre-docência de Walter Benjamin, "Origem do Drama Barroco Alemão". Texto reconhecidamente difícil de ler e entender, até mesmo para a banca que tentou examiná-lo. Mas a importância  e a atualidade do livro estão muito presentes hoje no debate sobre a crise da democracia brasileira; mais ainda depois da indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro do documentário de Petra Costa. Sabe-se  que o autor buscou, na época, um diálogo com o teórico conservador  Carl Schmidt, teórico do "estado de Exceção e do decisionismo político". O que a obra tematiza com bastante clareza é a relação  estreita  entre o estilo barroco e o absolutismo, como produto da Contrarreforma. As alegorias barrocas (para não dizer " a razão política barroca") referem-se  ao poder incontrastado dos monarcas e tiranos absolutistas, como já tinha assinalado uma das grandes autoridades da história da arte, Henrich Wolfflin, numa interpretação que se tornou clássica e que reabilitou o barroco, como escola artística de igual dignidade a do classicismo.
     
    O que chama a atenção no livro de Benjamin   é  que o Barroco alemão(e o geral) está associado à ocorrência de regimes políticos autocráticos, como em sua época estava por acontecer com o advento do regime nazista na Alemanha, com o fim da República Weimar. A terrível alegoria da obra, em sua aparente distância do momento presente vivido pelo autor, falava de sua época, da  crise política dos anos 20 e o advento de um regime de terror. Segundo  Benjamin,  a concepção barroca da História se caracteriza por um estado de exceção, onde o príncipe ou o monarca tem a história nas mãos e  sua finalidade  é  estabilizar politicamente a sociedade, combatendo as revoltas e a  oposição. O ideal do déspota absolutista é a naturalização da História e a estabilização da sociedade. Naturalmente que ele fará isso em nome da prosperidade econômica, cultural e científica da comunidade; mas à custa de um poder desmedido e da eliminação do contraditório e da oposição. Nisso, a concepção  absolutista do poder se identifica com a visão barroca  da própria natureza, representada pelas etapas de sua decadência e morte. A visão barroca do mundo é um amontoado de ruínas, de sofrimento e  tristeza.
    Tudo isso pareceria muito religioso e medieval se não fosse pelo fato de que nossa país ter sido acometido de um retrocesso  medieval na política,  na arte, na ciência e   nos costumes. É como se uma impostação do ascético Savonarola aparecesse, de saias, para purificar moralmente  a sociedade brasileira, enquanto  o simulacro de déspota vai fazendo o trabalho de sapa das instituições, dos direitos  e do patrimônio publico  do povo brasileiro. Estaríamos diante de um estado (caricato) de um tirano - moralmente conservador -  mas instrumentalizado pelo fundamentalismo do mercado internacional? - Deparamo-nos com um asceta a serviço de interesses econômicos antinacionais, antipopular es e antidemocráticos? - Neste aspecto, a benção e a sagração das igrejas pentecostais e neopentecostais viriam a calhar (em troca de favores) na beatificação desse ensaio de bonapartismo de direita.
     
    De  toda maneira, as sugestões do livro são muito eloquentes, comparando-as com as características fascistas, autoritárias e ultraliberais desse regime que  ora  nos desgoverna. Não deixa de ser tentador aplicar os elementos dessa concepção barroca da Política e da História ao  caso  brasileiro. Quem escreverá com êxito - este novo livro sobre o drama barroco brasileiro?                                            
    Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE


Regina Duarte e o marxismo cultural

 

Regina Duarte e o marxismo cultural
Regina Duarte, atriz e nova Secretária Especial de Cultura do governo federal (Foto: Governo do Estado de São Paulo)

A propósito do vídeo compartilhado pela atriz Regina Duarte, recentemente convidada pelo presidente Jair Bolsonaro para assumir a Secretaria Especial da Cultura, em que um ex-BBB faz declarações críticas contra o que ele (e muitos no atual governo) chama de “marxismo cultural”, me ocorreu, até para entender melhor esse depoimento que a atriz achou “bacana, profundo, super real”, perguntar: o que é o marxismo cultural?
No vídeo, o ex-BBB dá sua própria definição da expressão: o marxismo cultural, segundo ele, “coloca negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”. Segundo ele ainda, a esquerda identitária, aquela que trata de questões relativas a raça e gênero, seria uma exemplo clássico de marxismo cultural. Em suas palavras, como “o comunismo acabou”, “o proletariado contra a burguesia não existe”. O marxismo cultural teria assim surgido em uma mudança dentro do próprio marxismo, substituindo o “divisionismo” entre classes sociais, pelo divisionismo entre “classes étnicas, sexuais”. Ele conclui o seu depoimento dizendo que as pessoas que constituem o “marxismo cultural” são “pessoas que se colocam no lugar de vítima para massacrar as outras”. 
Eu gostaria de me deter no depoimento do ex-BBB porque creio que há muitos elementos importantes no modo como ele caracteriza o “marxismo cultural”. Como vimos, ele afirma que o “marxismo cultural” coloca “negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”. A frase tem a sua verdade, desde que possamos reescrevê-la assim: o marxismo cultural coloca oprimidos contra opressores, as vítimas contra os algozes. Negros foram e continuam a ser oprimidos pelos brancos, mulheres foram e continuam a ser oprimidas pelos homens, homossexuais foram e continuam a ser oprimidos pelos heterossexuais. Negros, mulheres e homossexuais foram historicamente objeto de violência por parte de seus opressores, os brancos, os homens e os heterossexuais, e continuam a sê-lo nos dias de hoje. Ao defender que essa violência deve cessar, o “marxismo cultural” estaria colocando esses grupos oprimidos contra seus opressores, o que, para o ex-BBB e a sua admiradora, a atriz Regina Duarte, seria inaceitável. Essas pessoas, os negros, as mulheres e os homossexuais, seriam, segundo eles, “pessoas que se colocam no lugar de vítima para massacrar as outras”, ou seja, elas não são vítimas de verdade. As pessoas que são brancas, homens e heterossexuais, essas pessoas sim é que são as verdadeiras vítimas, as vítimas do “marxismo cultural”. O “marxismo cultural” seria, então, esse massacre perpetrado pelas falsas vítimas contra os falsos opressores, as verdadeiras vítimas.
Aqui caberia perguntar: o ex-BBB, e sua admiradora, a atriz Regina Duarte, que acha seu depoimento “bacana, profundo, super real”,  estão dizendo que os negros, as mulheres e os homossexuais não são vítimas de violência por parte dos brancos, dos homens e dos heterossexuais? Ou estão dizendo que não há nada de errado no fato de que essas pessoas sejam objeto de tal violência e opressão?  A fala do ex-BBB parece ir na direção da primeira possibilidade ao afirmar que essas “pessoas se colocam no lugar vítimas”. Ou seja, para ele, essas pessoas não de fato são vítimas. Elas não sofrem qualquer tipo de violência ou opressão. Elas apenas se colocam nesse lugar para massacrar as outras, que elas consideram como opressores, mas que na verdade não o são. 
Mas eu diria que a verdade sobre a sua fala está muito mais na direção da segunda possibilidade: pessoas como o ex-BBB e como Regina Duarte não creem que os negros, as mulheres e o homossexuais sejam vítimas porque, para eles, não há nada demais no fato de que eles sejam tratados como são tratados. Já que, desde sempre, eles foram tratados assim. E que mal haveria nisso? A própria Regina Duarte, dois dias antes do segundo turno das últimas eleições, após encontrar o então candidato Jair Bolsonaro, deu o seguinte depoimento para o jornal O Estado de São Paulo: “Quando conheci o Bolsonaro pessoalmente, encontrei um cara doce, um homem dos anos 1950, como meu pai, e que faz brincadeiras homofóbicas, mas é da boca pra fora, um jeito masculino que vem desde Monteiro Lobato, que chamava o brasileiro de preguiçoso e que dizia que lugar de negro é na cozinha”. O depoimento da atriz desmente que Bolsonaro seja homofóbico e racista, assim como, ao corroborar o depoimento do ex-BBB sobre marxismo cultural, desmente que haja violência e opressão contra os negros, as mulheres e os homossexuais.
O marxismo cultural consistiria então em ver algo errado onde não há nada de errado e em convencer os negros, as mulheres e os homossexuais de que eles são vítimas, de que não devem aceitar o tratamento que lhes foi dado até hoje embora esse tratamento seja totalmente normal aos olhos do ex-BBB e da atriz e atual Secretária de Cultura. Nesse sentido, o que o “marxismo cultural” faria seria o que o ex-BBB entende por “colocar negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”, sem nenhuma razão real para isso. Dizer, portanto, que o “marxismo cultural” coloca negros contra brancos, mulheres contra homens e homossexuais contra heterossexuais é desmentir o fato de que existe violência contra negros, mulheres e homossexuais. O desmentido seria, assim, a característica fundamental do atual governo, o que mostra seu traço perverso. Não haveria, segundo eles, violência contra negros, mulheres e homossexuais, do mesmo modo como não há desmatamento na amazônia  e do mesmo modo como a terra não é redonda. 
Um outro elemento interessante na fala do ex-BBB é o fato de ele ver o marxismo cultural como o modo como o marxismo sobrevive em nossos dias. Segundo ele, como “o comunismo acabou” e como ““o proletariado contra a burguesia não existe” mais, então é preciso criar um “divisionismo” não entre classes sociais, no “antigo marxismo”, mas entre “classes étnicas, sexuais”. É o que ele chama de “esquerda identitária”.
Também aqui, creio que há algo de verdadeiro em sua fala. O fato de que o marxismo atual, sem dúvida alguma, vem denunciar, e muito, não só a exploração do proletariado, da classe trabalhadora, pela classe burguesa, detentora do capital e dos meios de produção, mas também todo e qualquer tipo de opressão, é uma grande verdade: não apenas a exploração dos pobres pelos ricos, mas a opressão dos negros (e índios) pelos brancos, das mulheres pelo homens, do homossexuais (e transexuais) pelos heterosexuais deve ser condenada. Talvez essa faceta do marxismo atual, essa que o ex-BBB chama de “marxismo cultural” e de “esquerda identitária”, tenha ganhado tal força nos últimos tempos que tenha obscurecido a luta original dos pobres contra os ricos, da classe trabalhadora contra a burguesia. Uma luta não pode, no entanto, ser dissociada da outra, e é por isso que, em nosso país, foram os partidos de esquerda que avançaram nas pautas chamadas de identitárias, contra o racismo, o sexismo e a homofobia, porque entenderam que esse era um desdobramento natural do movimento civilizatório e da perspectiva marxista.
Talvez, hoje, a força do capitalismo seja tão dominante que ninguém acredite mais na força da luta da classe trabalhadora contra a opressão do capital, como fica evidente na fala do ex-BBB; talvez hoje a luta só seja possível no campo chamado de identitário, na medida em que talvez alguns, dentro do capitalismo, almejem um capitalismo sem opressão dos negros, das mulheres e dos gays. Mas, no caso do ex-BBB, nem mesmo essa concessão poderia ser feita. A vitória dos ricos contra os pobres (a ideia de que os ricos têm o direito de explorar os pobres) seria também a vitória dos brancos contra os negros, dos homens contra as mulheres e dos heterossexuais contra o homossexuais. Essa talvez seja a diferença entre uma certa direita e a extrema direita. A direita, mesmo que defendendo a exploração da classe trabalhadora pelos detentores do capital, mesmo que defendo o capitalismo na sua forma atual, neoliberal, é capaz de aceitar as pautas do marxismo cultural. Por isso, até mesmo um político do PSDB poderia defender a parada gay de São Paulo, ou condenar o feminicídio ou apoiar uma política de cotas nas universidades. Ou seja, a direita tradicional seria crítica apenas em relação ao marxismo tradicional, aquele que representa um questionamento do capitalismo. Quanto ao marxismo cultural, não haveria nele nada que políticos de direita não possam aceitar. O passo para a extrema direita seria dado apenas quando nem mesmo as teses do marxismo cultural podem ser aceitas. O governo atual, de extrema direita, é, nesse sentido, não apenas anti-marxista no sentido tradicional, como contrário também ao “marxismo cultural”. O que gera problemas para alguns meios de comunicação, como a Rede Globo e a Folha de São Paulo, que defendem algumas ideias do marxismo cultural, mas são igualmente defensoras do neoliberalismo na política econômica.
É interessante a esse respeito ver como jornalistas nesses meios de comunicação apoiam abertamente a política econômica do governo Bolsonaro sem nem se pronunciar sobre questões relativas à cultura, à educação e aos direitos humanos. Recentemente a Fiesp, através de seu presidente, Paulo Skaf, afirmou: “Apoiamos Bolsonaro, que pôs o país no rumo certo”. 
Ora, será que é tão difícil ver que se trata da mesma mesma coisa? Que não se pode criticar a violência contra as mulheres, os negros e os gays sem se criticar ao mesmo tempo a violência contra os pobres, os explorados, os oprimidos, os proletários? Nesse sentido, o depoimento do ex-BBB é mais coerente do que o desses jornalistas: para ele, poderíamos supor, pobres são falsas vítimas, tanto quanto negros, mulheres e homossexuais. Essa é uma verdade que vem da boca do atual ministro da economia, Paulo Guedes: pobres são pobres não por causa de um sistema econômico que os explora, eles são pobres porque gastam muito, porque não sabem poupar. O ministro foi ainda mais longe em recente declaração dada em Davos e culpou os pobres não apenas pela própria pobreza mas também pela destruição do meio ambiente. Ou seja: o ministro é o complemente econômico das palavras do ex-BBB que tanto comovem a atriz Regina Duarte. O ministro da economia e a secretária de cultura fazem parte de uma mesmo princípio fundamental que está presente em todos os níveis e áreas do atual governo e da sociedade que o elegeu e que ele representa.
Em outras palavras, os que defendem o atual governo são supremacistas que advogam abertamente a superioridade dos ricos em relação ao pobres, dos brancos em relação aos negros, dos homens em relação às mulheres, dos heterossexuais em relação aos homossexuais. É preciso que entendamos esse ponto: é o mesmo mecanismo que está em jogo na opressão dos pobres, dos negros, dos índios, das mulheres, dos homossexuais. Esse ponto é fundamental na discussão atual sobre o que está em curso no Brasil. Isto é, o que está em curso no Brasil é um capitalismo sem direitos humanos, sem feminismos, sem política de gênero, sem cotas raciais. Um capitalismo, portanto, que estende a opressão contra os pobres, para as mulheres, os negros e os homossexuais. Se você é pobre, mulher, negra e homossexual, então você terá todas as forças contra você. 
Mas há ainda um outro ponto quanto à expressão “marxismo cultural” para o qual eu gostaria de chamar atenção. Por que as lutas dos negros, das mulheres e dos homossexuais está associada à cultura? 
Na fala do ex-BBB que comove a atriz Regina Duarte, parece-me implícita a ideia de que o meio cultural é marxista. Ou seja, pessoas que lidam com arte e educação, artistas, intelectuais, cientistas e professores, são em geral “marxistas”. É claro que o ex-BBB acredita que eles sejam de fato marxistas, isto é, que sejam pessoas orientadas pelas teorias de Karl Marx. Mas podemos considerar que “marxistas” aqui indica apenas que são pessoas que lutam por relações de igualdade entre todos, entre negros e brancos, mulheres e homens, homossexuais e heterossexuais. Isso porque todo relacionamento com a cultura, com a arte, com a educação traz a ideia de que as pessoas devem ter direitos iguais, oportunidades iguais, para desenvolverem suas próprias singularidades. Ou seja, por trás da denominação “marxismo cultural” está presente a ideia não só de que o marxismo se torna cultural, portanto ligado às lutas de gênero e de raça, mas também a ideia de que a cultura se torna marxista, na medida em que é a cultura, enquanto processo civilizatório, que nos leva a condenar qualquer tipo de desigualdade e de violência, seja contra pobres, negros, índios, mulheres ou homossexuais. A ideia de que possa existir uma Secretária Especial de Cultura que ache “bacana, profundo, super real” o depoimento do ex-BBB sobre o marxismo cultural nos assusta, pois nos mostra uma Secretária de Cultura que não tem Cultura, que não partilha de princípios civilizatórios mínimos. Trata-se, portanto, como muitos já apontaram, de um retrocesso civilizatória em curso no país.
Em O Mal-estar na Civilização, Freud nos mostrou que o processo civilizatório implica várias formas de frustração para as pulsões de morte, ou seja, para os impulsos de violência, destruição e agressividade que constituem todos os seres humanos. Para ele, “é necessário levar em conta o fato de que em todos os seres humanos se acham tendências destrutivas, ou seja, antissociais e anticulturais, e de que estas, em grande número de pessoas, são fortes o bastante para determinar sua conduta na sociedade humana”. Como essas tendências não são totalmente elimináveis pelo processo civilizatório, suas esperanças em uma civilização completamente livre delas são pequenas, mas ele acredita que “se for possível converter em minoria a maioria que hoje é hostil à cultura, muito se terá alcançado, talvez tudo o que se pode alcançar”.
No Brasil de hoje, vemos um movimento contrário ao que Freud defende, em que a maioria se tornou hostil à cultura, e em que a Secretária de Cultura é contra a cultura e o “marxismo cultural”. No Brasil de hoje, as tendências destrutivas, agressivas, violentas, em suma, anticulturais, se encontram no poder. A namoradinha do Brasil, que acaba de assumir a Secretaria Especial de Cultura, é, na verdade, a namoradinha do Brasil da extrema direita. Mas isso, todos nós sempre soubemos, pelo menos desde que ela veio a público dizer que tinha medo diante da possibilidade de eleição para presidente de um representante da classe trabalhadora, a classe oprimida por excelência.

Cláudio Oliveira é filósofo, tradutor e professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)