segunda-feira, 5 de agosto de 2019
sexta-feira, 2 de agosto de 2019
Ensaio: "O Brasil não é para principiante"
Celebrado na última Flip, o
angolano Kalaf Epalanga faz um balanço de sua passagem por aqui e
questiona: “até quando irá durar esse fla-flu?”
Kalaf Epalanga
31jul2019 15h10
O escritor angolano Kalaf Epalanga
A
frase título deste texto é atribuída ao maestro António Carlos Jobim, e
surgiu-me no momento em que as rodas do Boeing 777 que me levava de
regresso à Europa se desprenderam do asfalto de Guarulhos. A luz
crepuscular que cobre a selva urbana paulista revelou-se então em todo o
seu esplendor. Um momento melancólico que caracteriza as despedidas,
não fosse o Brasil, como todos os países que se expressam na língua de
Noémia de Sousa, um país tão íntimo da saudade. É um género de tristeza
que tanto ri como chora, confundindo gente bem-intencionada que a tenta
entender, mas que ainda desconhece este nosso gingado. Sou vosso
cúmplice, sei bem onde a melancolia começa e do que se alimenta, de
incerteza.
Que Brasil é este?
Que Brasil é este?
A pergunta leva até os mais céticos a coçarem a
cabeça diante de tanto absurdo, desconfiados de estarem a viver dentro
de um enredo saído do lápis de Dias Gomes. O frio da situação fazia-se
sentir nas noites de Paraty, onde a convite da sua Festa Literária
Internacional (Flip) pude testemunhar o aflorar das emoções sempre que o
tópico se esquivava da literatura e fugia para a política. Nasci no
país da Rainha Nzinga Mbande e, por lá, a discussão acabar em política
é-nos inevitável, até quando falamos de amor damos um jeito de
politizá-lo. Para nós, angolanos, o conceito de soberania saiu-nos caro,
foi conquistado, e levar política para todas as discussões tornou-se
uma forma de nos mantermos vigilantes, exercitando o músculo da
memória.
Diante das plateias que visitei no festival, pensei no quão jovens são os nossos estados democráticos, talvez por sentir a presença de uma nuvem bem carregada pairando sobre a cabeça dos presentes. Os nervos nem sempre foram de roer unha, mas a tensão foi sempre palpável. Assim foi no Auditório da Matriz, quando o ruído da rua invadiu a arena onde decorriam os debates da festa literária mais celebrada do Brasil. Alguém sussurrou, explicando, que eram ‘os pró-situação, protestando contra a presença de Glenn Greenwald’, que naquele momento discursava, junto à margem esquerda do rio Perequê-Açu, sobre os desafios do jornalismo em tempos de Lava Jato. O hino nacional começou a tocar no volume máximo para silenciar um dos pilares da democracia, o direito a uma imprensa livre. As ameaças de morte feitas ao gringo da Intercept destoavam dos versos da canção nacional, e até direito a foguetes o jornalista teve, como manobra explosiva para afastar a atenção da sua voz.
Diante das plateias que visitei no festival, pensei no quão jovens são os nossos estados democráticos, talvez por sentir a presença de uma nuvem bem carregada pairando sobre a cabeça dos presentes. Os nervos nem sempre foram de roer unha, mas a tensão foi sempre palpável. Assim foi no Auditório da Matriz, quando o ruído da rua invadiu a arena onde decorriam os debates da festa literária mais celebrada do Brasil. Alguém sussurrou, explicando, que eram ‘os pró-situação, protestando contra a presença de Glenn Greenwald’, que naquele momento discursava, junto à margem esquerda do rio Perequê-Açu, sobre os desafios do jornalismo em tempos de Lava Jato. O hino nacional começou a tocar no volume máximo para silenciar um dos pilares da democracia, o direito a uma imprensa livre. As ameaças de morte feitas ao gringo da Intercept destoavam dos versos da canção nacional, e até direito a foguetes o jornalista teve, como manobra explosiva para afastar a atenção da sua voz.
Dentro do auditório, Grada Kilomba,
a generosa xamã de voz serena, nos tocava fundo na alma a cada frase
proferida, expondo feridas e aplicando bálsamo da verdade, lembrando-nos
a todos de como se luta jogando limpo. Por um pouco, suspirou-se de
alívio. Eu, sentado no palco, ao lado de Grada e da historiadora Lilia
Schwarcz, com quem partilhei o privilégio de moderar a conversa com uma
das mais importantes vozes culturais do nosso tempo, respirei fundo.
Olhando para o rosto das pessoas que lotavam os 512 lugares daquela
arena, não pude deixar de me questionar: até quando irá durar esse
fla-flu entre brasileiros?
Tempo.
“Como soube bem”, partilhavam conosco os leitores
que nos chegavam, depois de enfrentarem longas filas de autógrafos.
Entre os sorrisos e confissões de gratidão, era possível
identificar-lhes o ar atordoado, fazendo lembrar um pugilista que
recupera no intervalo de um combate. As pessoas estão cansadas de
defender a punho os seus pensamentos e posicionamentos ideológicos e, em
Paraty, com os nossos livros nas mãos, ou num abraço afetuoso para a
obrigatória selfie, senti que aquele contacto com as autoras e autores
representavam a tão desejada pausa, o momento em que os lutadores estão
recolhidos no canto do ringue, com a cabeça a latejar da troca de socos.
Quase todos pareciam tentar lembrar-se de quando tudo isto começou e
como foi possível chegar onde se chegou.
A primeira vez que visitei a Flip foi em 2017, como
espectador, e lembro-me de me sentir maravilhado com a proximidade entre
autores e público. A minha atenção, na altura, foi sobretudo para a
participação de autoras negras, presença essa que se fez sentir na
edição seguinte, em 2018, e se refletiu também neste ano, onde não só
marquei presença enquanto autor, como acabei por fazer parte da lista de
livros mais vendidos. No topo da tabela, duas escritoras negras de
origem africana: Grada Kilomba e Ayọ̀bámi Adébáyọ̀. Depois delas, Ailton Krenak, um brasileiro original da tribo dos crenaques, e depois, eu e Gaël Faye,
parceiro de mesa com quem me encontrei ali pela primeira vez, mas que,
durante a nossa conversa, moderada por Marina Person, senti como se
tratasse de um reencontro de velhos amigos. ‘A Flip também é isso’,
confessavam-nos os veteranos do mercado literário.
Isso e muito mais.
Uma lista liderada por autoras e autores negros
suscita muitas perguntas e, quando questionado sobre o assunto por
jornalistas, não consegui deixar de reparar que, embora seja motivo de
celebração, essa possibilidade de festa existe devido ao conjunto de
politicas sociais — incluído o sistema de cotas nas universidades
brasileiras — que permitem o surgimento lento, mas consistente, de um
grupo de consumidoras e consumidores ávidos por uma cultura plural, que
até há bem pouco tempo não tinha acesso a espaços de produção e
celebração de pensamento.
No entanto, para celebrarmos esta lista feito bloco
Olodum a passar na avenida, faltam ainda, ao lado destas autoras e
autores, os nomes de editoras e editores negros, que nos garantirão, sem
mais desconfianças, que estes números de vendas não se tratam de uma
moda no mercado editorial brasileiro, reagindo a uma tendência global no
universo da literatura contemporânea. É preciso que em quantidades
ajustadas com a realidade social brasileira, as estórias e a história
dos 54% dos brasileiros - negras e negros - narradas por autores e
autoras de pele escura, como a de Conceição Evaristo, sejam visíveis e
recebidas por todos os amantes de literatura, só assim os dados
estatísticos dessa ordem deixarão de dominar as manchetes.
Numa sociedade onde nas suas Letras perfilam nomes
como os de Maria Firmina dos Reis e o de Machado de Assis, listas com
autores negros estrangeiros, ainda que importantes, não deveriam ser
motivo de manchete. Em destaque no jornal deveria estar o que, nos
últimos três anos, os leitores da Flip, ao colocarem na tabela dos mais
vendidos Lázaro Ramos, Djamila Ribeiro e Geovani Martins, demonstram: um
Brasil que, entre explosões e hinos em volume máximo, luta desde
sempre, e não aceita mais que a sua voz se pareça a um grito abafado
junto a um rio. Pede agora, e mais do que nunca, um Brasil brasileiro. E
dentro dele, sabemos que cabe o mundo.
Que se abra então a cortina do passado!
(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros Quatro Cinco Um)
Moradores do Recife em situação de rua
Fome
e frio, emergenciais para quem?
O
desamparo programado das pessoas em situação de rua na cidade do Recife
Michel Zaidan Filho *
Mauricio Ferreira **
Patrícia Félix***
Patrícia Félix***
A cidade
do Recife é um braço de mar – um longo braço de um mar de misérias. A frase é
do célebre geógrafo pernambucano Josué de Castro [1] em seu livro “Homens e
Caranguejos”, na busca de caracterização da capital pernambucana. Esta, segundo
o autor, chamada, igualmente Veneza e Amsterdã, cidade anfíbia, dada a razão de
ela ter nascido e crescido tendo por base “bancos de solo ainda mal consolidado
– mistura ainda incerta de terra e água”, numa vista aérea percebendo-se a
conformação de seus diferentes bairros “esquecidos à flor das águas” [2]. Sua
paisagem urbana moderna parida em mais de quatro séculos de aterramento de
alagados e manguezais.
No
período de inverno, diante do reconhecido estado de calamidade, sobremodo ao
travamento da mobilidade urbana e ao aumento da tensão nas áreas de risco, o
cidadão e a cidadã recifense e os de suas cidades vizinhas da Região
Metropolitana, que diariamente vem trabalhar em seu território enfrentando as
dificuldades do trânsito e do tempo, sempre se perguntam pela resistência, ou
falta de estrutura, da cidade no enfrentamento às fortes chuvas, questionando
esse dom anfíbio da cidade. A ameaça de possíveis deslizamentos nas áreas de
morro - onde via de regra mora somente povo pobre - e a possível e ameaçadora notícia
de uma tragédia com vítimas da decorrente também é, infelizmente, um ritual que
já é íntimo da população recifense.
Para
amortizar esse problema a Prefeitura do Recife conta, há muitos anos, com a
“Operação Inverno”, num trabalho conjunto coordenado pela Secretaria de Defesa
Civil, em parceria com a ENLURB, CTTU e outras secretarias, executando
atividades desde dezembro de monitoramento das áreas de risco, visitações às
residências ameaçadas, colocação de lonas plásticas para contenção de
barreiras, limpeza de canais, etc.,
Quando
há mais chuvas que o esperado, como neste ano de 2019, a situação se agrava. Apesar
dos esforços empreendidos, a Região Metropolitana do Recife, nestes dois
últimos meses, já registrou 23 mortes, cinco delas em Recife, uma das maiores
médias das últimas décadas.
Diante
dessa realidade trágica, como se sabe já existe, há muitos anos e gestões, no
Recife, um plano emergencial e uma estrutura preparada, ainda que insuficiente,
pela administração da prefeitura para o enfrentamento ao período de inverno. As
críticas de que algumas de suas medidas são tão somente paliativas, no trato às
raízes do problema habitacional e da pobreza é outra face da questão, ainda que
componha a mesma história. De todo modo é inegável a atenção e a alta destinação
orçamentária que a Prefeitura da Cidade do Recife realiza para este setor. Tendo
destinado mais de 80 milhões de reais para esse fim, segundo nota divulgada
pela própria instituição. O erário público deve ser gasto para cuidar das
pessoas, nada mais justo que assim o seja.
No
último 24 de julho, após uma das maiores precipitações pluviométricas do
período, a Prefeitura do Recife divulgou balanço sobre as chuvas no qual
reafirmava seu compromisso de assistência às vítimas, inclusivamente às que
ficaram desabrigadas seriam oferecidos abrigos a expensas da Prefeitura. Os
alertas de previsão de chuvas fortes são emitidos pela Agência Pernambucana de
Águas e Clima (APAC) e difundidos pelo Governo do Estado e demais municípios,
sempre com a orientação de buscar abrigo e um local seguro.
E se
a rua fosse a sua casa? Sr. Geraldo Júlio, Prefeito do Recife e - por compartida
de responsabilidade - o governador do estado, Sr. Paulo Câmara, seria ela, a
rua, um local seguro para se abrigar neste período do inverno, ou, na verdade,
o avesso disso?
O
período de chuvas traz novos perigos para além dos já existentes nas ruas do
Recife, do centro à periferia. E quem não tem para onde ir, quem vive nas ruas
o que pode fazer? As mulheres e homens, meninos e meninas que não tem lugar
seguro e casa para se abrigar, como indica a Prefeitura às suas cidadãs e
cidadãos que assim o façam durante as precipitações pluviométricas, a essas
pessoas lhes é garantido abrigo igualmente aos demais desabrigados das chuvas?
Foi elaborado algum plano emergencial nesse sentido?
Estas
perguntas não são nada absurdas, poderiam partir de cada uma das mais de mil
pessoas que vivem em situação de rua no Recife [3], certamente elas tem todo
direito de perguntar. Aliás, elas têm direitos por lei, ainda que sejam
constantemente violados, inclusive pelos entes públicos.
Igualmente
a ausência de um plano emergencial para abrigar as pessoas em situação de rua
no período das chuvas, também nada foi providenciado emergencialmente referente
à alimentação, haja vista o único restaurante popular co-administrado pela
prefeitura do Recife, foi fechado há alguns anos e nunca reaberto outro que
ofertasse alimentação a baixo custo. A Prefeitura já foi oficiada pelo Ministério
Público do Estado, a partir de reivindicação de entidades da sociedade civil,
no sentido de debater e providenciar o serviço após audiência pública realizada
sobre o tema, mas até o momento somente apareceram promessas de distribuição de
quentinhas que ainda não se efetivou [4]. Mesmo sabendo que quem tem fome, tem pressa, e também quem passa frio.
Mas,
no atendimento às pessoas em situação de rua, que representam uma das faces da
pobreza extrema no Brasil, e no Recife, a Prefeitura não tem se mostrado
sensível às urgências dessa população, para além do discurso de apoio, esse
sim, sempre há. Mas na administração pública julgam-se os feitos e não apenas o
discurso, ainda que seja o mais bem intencionado. Quem está “na ponta” da
administração, como é o caso dos representantes da gestão presentes no Comitê,
independente do cargo, não tem como avançar sem que haja a chancela autêntica do
mandatário municipal, Sr. Geraldo Júlio de Mello Filho.
E não
é deveras por falta de cobrança, já que todas as entidades da sociedade civil
que integram o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da
Política Municipal para a População em Situação de Rua do Recife (Comitê Pop
Rua/Recife) [5], inclusive representantes das pessoas em situação de rua e o
Grupo de Estudos Pobreza, Trabalho e Lutas Sociais do Núcleo de Estudos
Eleitorais, Partidários e da Democracia da Universidade Federal de Pernambuco [6],
têm reivindicado insistentemente nos últimos meses, dentre várias outras
pautas, pela elaboração desse plano emergencial, que atendesse no mínimo esses
dois itens: alimentação e abrigo no período do inverno. Mas ambos foram negados,
sempre com a justificativa orçamentária, ou seja, não se tem dinheiro para esse
fim. Todavia, não resta dúvida de que a questão não é falta de dinheiro, mas
sim de prioridade.
Uma
equipe do Comitê PopRua, buscando viabilizar esse possível local para as
pessoas em situação de rua no inverno, chegou a visitar no mês de junho um
abrigo da Prefeitura situado no bairro de São José, à Travessa do Gusmão, nas
imediações da Rua Imperial, este com a funcionalidade de acolher os possíveis
desabrigados da chuva. Lá se diagnosticou condições favoráveis para receber as
pessoas, no entanto, em reunião ocorrida em junho entre membros do Comitê e a
Secretária Executiva Geruza Felizardo, vetou-se tal possibilidade por “não
comportar nas contas da Prefeitura”.
As
pessoas em situação de rua sofrem durante todo o ano nas ruas do recife – como
em tantas outras cidades brasileiras, expostas às violências e insalubridades
do ambiente da rua diuturnamente, e comumente sem proteção do estado, sobremodo
à noite [7]. Para essas pessoas que tem no período das chuvas de enfrentar o
alagamento de seus locais de dormida e a dura intensidade do frio, para elas
não há qualquer plano emergencial neste período de inverno na cidade do Recife.
Nem também para garantir sua alimentação a baixo custo ou gratuitamente.
É
desolador chegarmos à conclusão que nem em demandas simples, mas urgentes e
fundamentais, a gestão da Prefeitura tem dado a devida atenção à população em
Situação de Rua. Um exemplo emblemático é o fato de que nas reuniões do Comitê,
que ocorrem sempre à última quarta-feira de cada mês, normalmente das 14h às
17:30, não foram até o momento garantidas as condições dignas de participação
das pessoas em situação de rua neste ambiente, já que várias vezes ocorreu de
pessoas em situação de rua terem de se ausentar antes do término da reunião
para conseguir se alimentarem a tempo, pois a Prefeitura nunca, até agora,
garantiu neste momento de reunião alimentação à elas, para que pudessem
participar sem a pressa de correr para pegar a fila da distribuição de
alimentação gratuita realizada por organização filantrópicas, religiosas ou
não.
O
POPULUS sempre cobrou veementemente, ao lado de outras organizações da
sociedade civil que compõem o Comitê, o dever da Prefeitura neste quesito,
sempre ficando com a promessa de que na próxima reunião seria garantida. As pessoas
em situação de rua que permanecem no espaço correm o risco, ou arcam com a
consequência, de ficarem com fome. Como dito, promessa houve, mas efetividade,
nenhuma.
Situações
como esta dizem muito da atual conformação da dinâmica e visão nutrida, até o
momento, pela gestão do prefeito Geraldo Júlio a respeito do Comitê PopRua instituído
por lei, o qual deveria, mas não tem, o poder de influir diretamente nas
decisões e fiscalizar as políticas públicas direcionadas para a população em
situação de rua. No entanto, esta prática é semelhante à obra “Legitimação pelo
Procedimento”, teorizada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann em 1969 [8], na
qual elabora um entendimento de que na administração dos conflitos de
interesses sociais o Estado/Gestão exerce a centralidade, enquanto a Sociedade
Civil a periferia, e as decisões, juridicamente reguladas e filtradas e sob a
estrutura procedimental, são legitimadas como emanadas da coletividade. No discurso
da administração municipal, o apoio a essa população está sempre posto como
prioritário, porém, na prática a realidade tem se mostrado bem diferente. A
análise do atendimento às pessoas em situação de rua em Recife partindo-se de
tal discurso estaria fadada ao equívoco.
Estão
muito distantes as condições que garantam paritariamente o poder ao Comitê Pop
Rua/Recife para cumprir com a finalidade maior para o qual foi criado, qual
seja, a de formular e monitorar a política de atendimento à população em
situação de rua no Município do Recife, bem como propor medidas que assegurem a
articulação das políticas públicas municipais para o atendimento à população em
situação de rua.
Ou
seja, nesse modus operandi os entes
da sociedade civil compõem o “aparelho”, mas nada decidem, ainda que sejam elementos
necessários e indispensáveis para tal legitimação. Nesta compreensão é
improvável o exercício de um protagonismo da sociedade civil organizada como
uma “força contra-hegemônica”, como
pensou o filosofo italiano Antônio Gramsci [9].
Foi como
força contra-hegomônica, através de muita luta e organização, protagonizadas pelos
movimentos sociais compostos por pessoas em situação de rua, como o Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR, fundado em 1985) e o Movimento
Nacional de População de Rua (MNPR, fundado em 2005), em conjunto com outras
organizações da sociedade civil, que derivou um conjunto de conquistas para a
Pop Rua, entre elas sua inclusão na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS
(2005, Lei nº11.258), a realização da Pesquisa Nacional da População em
Situação de Rua (2007/2008) e já citada Política Nacional para a População em
Situação de Rua (2009), entre outras.
A
agência desses atores insurgentes manifestou-se numa clara fissura com as
seculares estruturas de exclusão dessa parte da população brasileira, tendo galgado
progredir em sua saída da invisibilidade na atenção das políticas públicas ao
garantir sua primeira contagem nacional, ainda que sem a abrangência do Censo Demográfico
que, a despeito de ser realizado desde 1872, até a presente data mantém as
pessoas em situação de rua de fora, inclusivamente do próximo, a ser promovido
em 2020, ainda que figure entre os objetivos da Política Nacional para a
População em Situação de “instituir a contagem oficial da população em situação
de rua”. Mas a ruptura com tão profunda e entranhada exclusão é processual e
comporta avanços e recuos em seu caminho, tendo que ser constantemente
reafirmada pelos interessados. Constar na lei, não é garantia de efetividade.
Aí está a distância entre o posto e o pressuposto do texto legal.
Na
última reunião do Comitê PopRua/Recife fomos surpreendidos com a “novidade” de
que pessoas em situação de rua já não haviam podido entrar no prédio da
Prefeitura, em razão de uma normativa da administração de que pessoas de
bermuda não podem entrar no edifício sede da administração municipal. Nem a
autorização para a entrada havia sido providenciada. Um verdadeiro descalabro e
insulto ao acesso dos mais interessados a um espaço que também é delas. E isso deveria
e tem de ser garantido [10].
Mas
não é de se estranhar que até mesmo os representantes da gestão tenham se
admirado com essa “novidade” e dito não saber que havia ocorrido esse problema,
ainda que tivessem ciência desta norma, inclusive válida para servidores. Sabem,
também, tais representantes que as pessoas em situação de rua normalmente usam
bermudas. Mas essa concatenação não parece ter lhes ocorrido. Realmente,
integração das informações e secretarias, trabalhando e planejando de modo
articulado, e compartilhando os dados, como preceitua as diretrizes e objetivo
primeiro da Política Nacional Para População em Situação de Rua [11] – criada
em 2009 e com adesão da PCR em 2015 - está muito distante de ser uma característica
da gestão atual da Prefeitura da Cidade do Recife no atendimento a este setor.
Uma
contradição se acariado com o que foi firmado por Geraldo Júlio no primeiro “Plano
municipal de atenção integrada à população em situação de rua no Recife 2014 –
2017” no qual afirma que “A operacionalização desde plano se dará a partir da
articulação intra e intersetorial e da transversalidade no desenvolvimento de
ações prioritárias para promover o acesso da População em Situação de Rua ao
conjunto das políticas públicas. Para tanto, deve estar em consonância com os
princípios e diretrizes da Política Nacional instituída pelo Decreto
Presidencial n° 7.053/2009”.
Nesse
plano se observa em seus eixos 2 e 3 o compromisso dessa articulação intra e
intersetorial no sentido de “favorecer o processo de articulação e diálogo
entre as ações, os programas e projetos socioassistenciais do Sistema Único de
Assistência Social, para garantia da integralidade das proteções ofertadas aos
indivíduos e suas famílias; pactuar ações estratégicas para assegurar o acesso
amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas
públicas de saúde, educação, assistência social, habitação, segurança, cultura,
esporte, lazer, trabalho e renda. Estas ações visam à garantia dos direitos; o
resgate da autoestima e a reorganização dos projetos de vida das PSR.” Premissas
essas endossadas pelo texto da lei que instituiu o Comitê Municipal (18.503
/2018) quando trata da condução de seus trabalhos “As ações deverão ser executadas
de forma descentralizada e integrada, por meio da conjugação de esforços de
secretarias, órgãos e instituições da Administração Municipal, que atuarão numa
perspectiva de intersetorialidade e de interdisciplinaridade, garantido o
controle social e a participação da sociedade civil, observados os objetivos e
as diretrizes da Política Municipal de Atenção Integral à População em Situação
de Rua.” Ainda hoje esperamos, entes da sociedade civil, por essa integração
administrativa que lastimavelmente ainda não se concretizou, para além do
discurso estatal e da azeitada propaganda que indica isso.
São
muitos os casos que confirmam esta realidade, talvez o mais simbólico seja o
fato de, mesmo a criação do Restaurante Popular e do abrigo noturno e ampliação
dos serviços de atendimento à População em Situação de Rua, sendo
reivindicações centrais do Comitê PopRua, e assunto corrente de debate e cobrança
nas reuniões deste, nós e os gestores que participam do Comitê ficam sabendo
[assim disseram] pela imprensa da previsão de inauguração, em parceria com a
iniciativa privada, de três restaurantes populares, um abrigo noturno e criação
de quatro centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS),
obras tais anunciadas publicamente pela titular da Secretaria que coordena o
Comitê Pop. Rua/Recife, a Secretária de Desenvolvimento Social, Juventude,
Políticas sobre Drogas e Direitos Humanos, Ana Rita Suassuna.[12]
Nesta
política de dispersão, escassas são as possibilidades das organizações da
sociedade civil presentes no Comitê PopRua alcançarem cumprir com a meta do
Comitê, também estabelecida pela lei que o instituiu, de fiscalizar as
condições e funcionamento da rede de serviços ofertados à população em situação
de rua, ao mesmo tempo que realiza o controle social, por meio da fiscalização,
do emprego dos recursos financeiros consignados para os programas e políticas
para a população em situação de rua oriundos do Governo Federal, Estadual e
Municipal, pois além dos números de tais recursos não nos terem chegado até o
presente momento, sempre perdemos, não por acaso, o bonde do planejamento das
ações. O que nos chegam são somente as notícias, por vezes pela imprensa, das
obras prontas e projetadas para o futuro, sobre as quais não fomos consultados,
não colaboramos em sua forma, nem tampouco em seus prazos e escala de
prioridade.
Mas
há sentido no aparente caos. Não são poucos os que analisam que a protelação no
atendimento emergencial às demandas da população em Situação de Rua, em favor de
garantir essas grandes obras, além da falta de prioridade da gestão para este
setor, obedece a interesses de impacto eleitoral, já em horizonte o pleito de
2020, num alinhamento projetivo e articulado dos atuais Prefeito do Recife e
Governador de Estado, ambos afilhados políticos do ex-mandatário Eduardo Campos
[13]. A máquina propagandista noticiosa das obras da Prefeitura funciona muito
bem e com alto investimento, disso todos sabemos. Esta mesma que, na busca de
criação de um consenso social, tão somente narra, como é do perfil destes
aparelhos da indústria cultural, a versão triunfalista da história, nesse caso
da gestão.
Mas é
um preço demasiadamente alto a se pagar para assegurar dividendos eleitorais,
sobretudo quando quem arca com as consequências de sempre ser jogado para o
futuro e não ter atendidas suas demandas mais emergenciais no agora, mesmo que
estas sejam fome e frio, são as camadas menos favorecidas, que compõem a faixa
dos mais pobres, ou extremamente pobres, como é o caso da população em situação
de Rua do Recife.
A
negligência da Prefeitura em não atender os direitos de alimentação e abrigo dessas
pessoas consiste numa prática que fomenta a naturalização da pobreza e da
situação de rua, como se fosse aceitável a extrema pobreza ser parte da
paisagem urbana, independentemente da temperatura e do que alerte a APAC.
Fica-nos a ideia de que a melhoria na qualidade de vida das pessoas em situação
de rua não é prioridade da Prefeitura de Recife, talvez pelo reduzido ganho
político que ela possa obter.
Atender
às pessoas em situação de rua em suas demandas mais prementes. Não! Isto
Geraldo não fez.
NOTAS:
* Professor do Programa de
Pós-Graduação em Direito da UFPE. Coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais,
Partidários e da Democracia (NEEPD) da UFPE.
** Membro do POPULUS –
NEEPD/UFPE
*** Membro do POPULUS –
NEEPD/UFPE
[1]
- CASTRO, Josué de. Homens e Caranguejos.
2ª ed.. São Paulo: Editora Brasiliense, 1968, p.12.
[2]
- Castro, Josué de. Fatores de
localização da cidade do Recife: um ensaio degeografia urbana. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1948, p.15.
[3]
- Segundo conceito oficial, adotado em 2009, através do decreto nº 7.053 de 23
de Dezembro do mesmo ano, que formalizou a Política Nacional para População em
Situação de Rua, esta População é um “Grupo populacional heterogêneo que possui
em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares fragilizados ou rompidos e a
inexistência de moradia convencional regular. Caracteriza-se pela utilização de
logradouros públicos (praças, jardins, canteiros, marquises, viadutos) e de
áreas degradadas (prédios abandonados, ruínas, carcaças de veículos) como
espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como
das unidades de serviços de acolhimento para pernoite temporário ou moradia
provisória.” Em 2004, Recife contabilizou 653, em 2005, Recife contabilizou
1.390 pessoas em situação de rua, das quais 888 eram adultas. A grande
disparidade dos números entre esses dois anos deve-se ao fato de que em 2004
não foram contabilizadas as pessoas em situação de rua que se encontravam em
albergues e em casas de acolhida. (Silva, Patrícia Marília Félix da. Pessoas em Situação de Rua em Recife: Cidadania
através do trabalho como uma alternativa. Dissertação - Mestrado em Sociologia.
Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco.
Recife: 2015.)
[4]
- https://m.leiaja.com/noticias/2019/05/07/recife-restaurante-popular-nao-sai-do-papel-e-e-esquecido/
[5] - O Comitê
Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a
População em Situação de Rua do Recife (Comitê Pop. Rua/Recife), instituído
pela Lei municipal de Nº 18.503 de 7 de julho de 2018, teve a posse de sua
primeira gestão em 13 de março de 2019, formado (como dita seu art. 4º) pelas
seguintes secretarias e organizações: formado por representantes das seguintes
secretarias e organizações: I - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria
de Desenvolvimento Social, Juventude, Políticas sobre Drogas e Direitos
Humanos; II - 01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Saúde; III -
01 (um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Educação; IV - 01 (um)
titular e 01 (um) suplente da Secretaria de Infraestrutura e Habitação; V - 01
(um) titular e 01 (um) suplente da Secretaria da Mulher; VI - 01 (um) titular e
01 (um) suplente da Secretaria de Cultura; VII - 01 (um) titular e 01 (um)
suplente da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente; VIII -
02 (dois) representantes titulares e 02 (dois) suplentes da população em
situação de rua organizada, por meio de movimentos sociais, fóruns e comissões
de usuários de serviços; IX - 01 (um) representante titular e 01 (um) suplente
de instituições acadêmicas e de pesquisa; X - 02 (dois) representantes
titulares e 02 (dois) suplentes de instituições prestadoras de serviços
voltados para o atendimento da população em situação de rua; XI - 01 (um)
representante titular e 01 (um) suplente de instituições de assessoramento e
defesa dos direitos da população em situação de rua; XII - 01 (um)
representante titular e 01 (um) suplente de outras entidades, instituições,
organizações e associações interessadas em contribuir para o fortalecimento da
Política Municipal para População em Situação de Rua. Confiram o texto integram
da lei em:
https://www.jusbrasil.com.br/diarios/198333604/dom-rec-07-07-2018-pg-3. Antes desta lei, o comitê PopRua/Recife funcionava sob o decreto municipal 27.993, de 30 de maio de 2014.
https://www.jusbrasil.com.br/diarios/198333604/dom-rec-07-07-2018-pg-3. Antes desta lei, o comitê PopRua/Recife funcionava sob o decreto municipal 27.993, de 30 de maio de 2014.
[6]
– O Grupo de Estudos Pobreza, Trabalho e Lutas Sociais (POPULUS) do Núcleo de
Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia (NEEPD) da Universidade Federal
de Pernambuco ocupa, no Comitê, a representação da categoria “Instituições
acadêmicas e de pesquisa”. Os demais membros da sociedade civil eleitos para a
gestão do biênio 2019/2021, foram os seguintes: Titulares e suplentes da
população em situação de rua organizada - José Antônio de Souza, Jamelson
Manoel de Souza e Luiz carlos da Silva, Carlos Alberto Pinheiro e Natanael da
Silva; Instituições prestadoras de serviços voltados para o atendimento da
população em situação de rua - Samaritanos e Fundação Terra; Instituições de
assessoramento e defesa dos direitos da população em situação de rua - Pastoral
do Povo da Rua; Outras entidades, instituições, organizações e associações
interessadas em contribuir para o fortalecimento da Política Municipal para
População em Situação de Rua - A Casa da Rocha.
[7]
- Agregando-se dados da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua
realizada em 2007/2008, realizada em 71 minicipios brasileiros com mais de 300
mil habitantes, com dados de outras pesquisas promovidas à época em outros
quatro municípios (Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e São Paulo),
estimou-se que existiam naquele momento cerca de 50 mil pessoas em situação de
rua. Em 2016, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) realizou uma
estimativa do número de pessoas vivendo nas ruas no Brasil, chegando ao total
de 101.854 pessoas em situação de rua no Brasil.
[8]
- LUHMANN, Niklas [1969]. A Legitimação
pelo Procedimento. Tradução Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1980.
[9]
Cf. GRAMSCI, Antônio. Cartas do Cárcere.
4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991; GRAMSCI, Antônio. Concepção Dialética da História. 10ª edição. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1995.
[10]
– Art. 6º (do DL 7053/2009) - São diretrizes da Política Nacional para a
População em Situação de Rua: VI - participação da sociedade civil, por meio de
entidades, fóruns e organizações da população em situação de rua, na
elaboração, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas; VII -
incentivo e apoio à organização da população em situação de rua e à sua
participação nas diversas instâncias de formulação, controle social,
monitoramento e avaliação das políticas públicas.
[11]
– Art. 6º (do DL 7053/2009) - III - articulação das políticas públicas
federais, estaduais, municipais e do Distrito Federal; IV - integração das
políticas públicas em cada nível de governo. Art. 7o São objetivos da Política Nacional para a
População em Situação de Rua: I - assegurar o acesso amplo, simplificado e
seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde,
educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura,
esporte, lazer, trabalho e renda.
[12] – Cf. https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2019/06/prefeitura-anuncia-criacao-de-restaurantes-populares-e-abrigos-noturno.html;
https://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cidades/geral/noticia/2019/06/05/recife-tera-abrigo-noturno-para-moradores-de-rua-380337.php
[13]
– Sobre o governo Eduardo Campos cf. FILHO, Michel Zaidan. A Honra do Imperador: Reflexões críticas sobre a era eduardiana em
Pernambuco. Recife: NEEPD, 2014.
quarta-feira, 31 de julho de 2019
domingo, 28 de julho de 2019
Uma pensadora brasileira
A antropóloga, filósofa, escritora e feminista Lélia Gonzalez (Foto: Cezar Loureiro/ Reprodução)
“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardos etc.” Esse trecho está num depoimento de Lélia de Almeida Gonzalez, publicado em 1988.
Lélia foi filósofa, antropóloga, professora, escritora, intelectual, militante do movimento negro e feminista. Em sua trajetória – encerrada há 25 anos –, teoria e prática estiveram organicamente conectadas.
A sua produção autoral é de fundamental importância para o pensamento social brasileiro. A obra da autora enfatiza o protagonismo negro, particularmente das mulheres negras, na formação social-cultural do país. No entanto, a pensadora ainda é pouco lida e conhecida.
Nascida em Belo Horizonte, em 1935, numa família de poucos recursos econômicos, Lélia foi a penúltima de 13 filhos. Em 1942, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, porque seu irmão, o jogador de futebol Jaime de Almeida, foi contratado pelo Flamengo.
Perfazendo um percurso pouco usual para as mulheres negras na década de 1950, conseguiu ingressar na universidade. Cursou História e Geografia (1958) e Filosofia (1962) na antiga Universidade do Estado da Guanabara (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Militância
Lélia teve uma atuação de pioneirismo e liderança no movimento negro brasileiro. Participou do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, o IPCN, uma das primeiras organizações do movimento negro contemporâneo. Foi também umas das fundadoras do Movimento Negro Unificado, o MNU, tendo participado do ato histórico do movimento, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, no dia 7 de julho de 1978. Em 1983, formou com outras mulheres negras o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras, no Rio de Janeiro. Além disso, foi a primeira mulher negra a sair do país como representante do movimento negro, em 1979.
Em sua percepção, a política compreendia tanto a militância coletiva na base, nos movimentos sociais, como a dimensão institucional. Por essa razão, em duas ocasiões, tentou eleger-se a cargos legislativos. Em 1982, candidatou-se a deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores. Posteriormente, em 1986, a deputada estadual pelo Partido Democrático Trabalhista. Não se elegeu em nenhuma das tentativas, porém, teve uma expressiva votação na primeira eleição, tornando-se a primeira suplente da bancada. Também integrou a formação original do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado em 1985.
Por sua atuação e projeção, Lélia foi “observada” em algumas ocasiões pelo Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS. Encontram-se referências a ela em alguns documentos. No entanto, ela não chegou a ser interrogada, presa ou torturada.
O momento mais intenso de sua militância foi no período da Ditadura Militar (1964-1985), que proibiu, entre outras coisas, a organização política da sociedade civil. A Lei de Segurança Nacional, de setembro de 1967, em seu Artigo 39, parágrafo VI, definia que: era crime “Incitar publicamente ao ódio ou à discriminação racial”, com detenção de 1 a 3 anos. O que, na verdade, poderia ser usado contra o movimento negro, uma vez que denunciar o racismo, expor o mito da democracia racial, poderia ser considerado uma ameaça à ordem social, um estímulo ao antagonismo e incitação ao preconceito.
É importante reiterar que tanto Lélia como o movimento negro atacavam categoricamente o mito da democracia racial, que se baseava na ideia do “contato harmônico” entre portugueses, africanos e indígenas, apagava a violência dessas relações e negava a existência do racismo. O mito era um símbolo da identidade nacional, pautado em uma visão harmônica de nação, adotada pelos militares no comando do país, mas também idealizada pelos próprios brasileiros.
Pensamento
Quando iniciou a militância no movimento negro, em meados da década de 1970, Lélia já possuía uma carreira como professora, pesquisadora e uma boa circulação nos meios intelectuais e culturais cariocas. Em 1975, participou da fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, uma das primeiras instituições a divulgar o pensamento lacaniano no Brasil, e lecionou em várias instituições de ensino superior no Rio de Janeiro. Ela criou o primeiro curso institucional de Cultura Negra na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em 1976, no Rio de Janeiro, um espaço de reunião de artistas e intelectuais, que produziam uma visão crítica sobre a realidade brasileira.
Escreveu um número considerável de artigos e ensaios. Publicou dois livros: O lugar de negro, de 1982 (coautoria com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg) e Festas populares, de 1989. Entre suas outras publicações há textos e reflexões essenciais e fundamentais para a consolidação de uma teoria do feminismo negro brasileiro e do pensamento social brasileiro.
Ao longo de quase três décadas, Lélia percorreu um número significativo de temas, valendo-se das matrizes do pensamento ocidental e africano. Explorou teorias distintas como afrocentrismo, marxismo, existencialismo. Dialogou com áreas de conhecimento como antropologia, sociologia, história e filosofia. Desenvolveu um pensamento original sobre a formação social-cultural brasileira, a partir da centralidade de sujeitos negros, especialmente de mulheres negras.
Era um imperativo para ela e o outros intelectuais negros de sua geração criar um pensamento próprio do negro brasileiro. A partir de suas proposições, mostrou como as teorias tradicionais das Ciências Sociais não eram capazes de explicar a experiência negra brasileira. Por isso, desenvolveu categorias/conceitos próprios de análise.
As ideias de Lélia tinham relação com os movimentos sociais, o contexto histórico, os lugares pelos quais circulou e as pessoas com as quais dialogou. Seu pensamento não esteve afastado do momento em que viveu.
A pensadora era crítica da importação mecânica do discurso e da teoria negra estadunidense, para que não se reproduzisse uma lógica de dominação cultural, uma vez que a experiência brasileira era distinta. Para Lélia, era preciso que os negros brasileiros olhassem para dentro de si, para sua experiência e realidade cultural e não para o estrangeiro.
De acordo com ela, o modelo do negro brasileiro não estava nem na África nem nos Estados Unidos, mas em sua própria experiência histórica, local, nas resistências políticas, culturais, na lembrança do Quilombo dos Palmares. A autora não negava a importância da África para nós, mas considerava tratar-se de uma recriação possível. “A África é um barato muito diferente do que a gente imagina, diferente, principalmente, do que os negros americanos imaginam. Uma das coisas que eu chegava dando porrada em cima deles é isso: a África de vocês é sonho, não existe. Nós aqui, no Brasil, temos uma África conosco, no nosso cotidiano. Nos nossos sambas, na estrutura de um candomblé, da macumba…”
Sua produção refletiu criticamente sobre o lugar do negro na cultura brasileira, visto, tradicionalmente, como o lugar do folclore, do louco, da criança, do primitivo. Uma vez que os sujeitos africanos “trazidos” para o Novo Mundo foram tratados como uma massa anônima de pessoas sem cultura, que só possuíam uma capacidade: a força de trabalho.
Sob perspectivas inovadoras, a autora produziu uma interpretação para a cultura brasileira que rompia com a dicotomia colonizador vs colonizado. E conferia protagonismo ao colonizado na transmissão de valores civilizatórios para nossa formação cultural.
Ela conferiu à mãe preta, a folclorizada, a função materna da cultura brasileira, transmitindo valores africanos para os brasileiros. “A mulher negra é responsável pela formação de um inconsciente cultural negro brasileiro. Ela passou os valores culturais negros, a cultura brasileira é eminentemente negra, esse foi seu principal papel desde o início.”
A autora introduziu elementos pertinentes para a caracterização do racismo no Brasil, que se constituiu “como a ‘ciência’ da superioridade euro-cristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano de explicação (…) e direciona o olhar da produção acadêmica ocidental”.
Lélia é mais conhecida pelo seu papel pioneiro na criação de uma teoria do feminismo negro brasileiro, enraizado em referências e experiências históricas, em trocas com outras mulheres negras, articulando a raça, o gênero e a classe. Sustentando-se na teoria e na prática, preocupada em vincular a experiência do vivido (coletivamente) à observação e à teoria.
“Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a marca da libertação de todos e todas. Portanto, nosso lema deve ser: organização já!”
Legado
Há 25 anos, em julho de 1994, Lélia partiu para o Orun, local que segundo a tradição Iorubá corresponde ao mundo espiritual (o Ayé é o que corresponde ao mundo físico).
Apesar de sua relevância intelectual e política, ela continua sendo timidamente citada. A importância de sua produção autoral ainda não foi reconhecida. O que não é de se estranhar, uma vez que as referências acadêmicas das Humanidades permanecem profundamente marcadas por uma lógica eurocêntrica que hierarquiza o conhecimento e privilegia apenas uma vertente de pensamento, o Ocidental.
Vale ressaltar que no Brasil a presença negra, seja autoral ou intelectual, tem sido marcada por uma dualidade constante entre o apagamento e o embranquecimento. O escritor Machado de Assis é o caso mais notório de embranquecimento. Já os apagamentos foram inúmeros, decorrentes de uma política do esquecimento, que, segundo a socióloga Angela Paiva, é um “mecanismo pelo qual apagamos da memória das novas gerações a contribuição acadêmica de autores negros”.
Neste sentido, entende-se o porquê da ausência de referências à produção de Lélia e de outros pensadores como Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Eduardo de Oliveira e Oliveira, Guerreiro Ramos, Virgínia Bicudo e muitos outros.
Uma das prováveis razões para o apagamento reside no fato de esses pensadores serem acusados de produzir um conhecimento posicionalizado, ou seja, comprometido como uma enunciação política do lugar de onde se produz o conhecimento. Segundo Lélia, “É importante ressaltar que emoção, a subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam na renúncia à razão, mas, ao contrário, num modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão.”
Nestes 25 anos de sua passagem, a melhor forma de lhe prestar uma homenagem é reconhecer sua contribuição epistemológica para decolonizar os pressupostos eurocêntricos na produção do saber. E principalmente ler Lélia Gonzalez.
RAQUEL BARRETO é doutoranda em História pela UFF
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
Editorial: Você tem fome de que? ( O empobrecimento da linguagem nos regimes autoritários)
- Nesta semana, publicamos o segundo texto de uma série que objetiva discutir as categorias dos regimes autoritários, consoante uma apropriação original do livro 1984, do escritor inglês George Oswell, a partir de uma leitura do filósofo francês Michel Onfrey, discussão apresentada pelo jurista Rubens Casara, em artigo publicado no site da revista Cult. Ainda absorto com o texto da semana passada, nesta mesma linha de raciocínio, refleti bastante sobre um outro livro emblemático, do escritor americano, Ray Bradburry, 451, onde é demonstrado como os regimes fascistas perseguem os intelectuais, prendendo-os e queimando seus livros em praça pública. Em Ray Bradburry fica evidente o anti-intelectualismo característico dos regimes fechados de governo ou, para ser mais preciso e atual, as ditaduras de um novo tipo.
Hoje, no entanto, depois de uma autocensura imposta a um editorial contundente que já havia escrito - vamos tratar do empobrecimento ou dessimbolização da linguagem, ou seja, a perda de sentido de valores como "liberdade", "igualdade", "fraternidade", "verdade", "ética". Nos últimos dias, então, tivemos muito pano para as mangas. A semana foi pródiga nesses exemplos. George Oswell observa, afirma Rubens Casara, que nesses momentos de obscurantismo, quando o regime político vai se fechando, há uma espécie de eufeminização da linguagem, ou seja, coisas tidas antes como absurdas vão se tornando corriqueiras, triviais. Num país de miseráveis, onde seria uma excrescência desconhecer os milhões de famintos, pode-se, por exemplo, negar a existência da fome. Os nordestinos podem ser reduzidos a paraíbas, assim como a preocupação com o meio ambiente, reduzida a uma questão de veganos. Uma portaria que depõe contra os princípios de convivência democrática e da liberdade de expressão ganha o número fatídico da besta ferra do apocalipse: 666.
Não se constitui uma tarefa complexa entender as razões pelas quais os atores políticos identificados com projetos autoritários odeiam tanto os intelectuais. A razão mais óbvia é que os intelectuais, em princípio, são menos infensos a projetos políticos desta natureza, esboçando maiores resistências à sua consolidação. De qualquer forma, recomenda-se a prudência necessária, no entanto, quando se trata dos intelectuais brasileiros, cuja origem é notadamente a classe média e a elite, com os valores e vieses daí decorrentes. Em todo caso, anpassant, a principal razão parece ser mesmo o esboço da reação desse grupo social aos projetos autoritários.
Coincidentemente, atores políticos identificados com projetos autoritários são pessoas com sérios recalques e frustrações pessoais, não raro com a academia. A investida e o projeto de desmonte da estrutura pública universitária brasileira, assim como a queima de livros na obra de Ray Bradburry parecem evidenciar a assertiva acima, ou seja, o ódio ao conhecimento. Na próxima semana, daremos prosseguimento a essas reflexões, tratando da abolição da verdade ou o seu relativismo. Embora comprovadamente verdadeiros, o conteúdo dos áudios perdem em importância em relação aos métodos utilizados para obtê-los.
sábado, 27 de julho de 2019
Editorial: Você tem fome de que? ( ou o empobrecimento da linguagem)
- Duas declarações do presidente Jair Bolsonaro causaram muitas polêmicas nesta última semana. Numa delas, durante uma coletiva para jornalistas estrangeiros que atuam no país, o presidente afirmou que não havia fome no Brasil, afirmação que não contou nem mesmo com o aval dos seus partidários mais fiéis, pois, sabidamente, historicamente o país nunca superou o flagelo da fome. Num outro momento, num desses descuidos de áudio - onde sempre se revelam os atos falhos, meu caro Freud - Jair Bolsonaro observou que, "Daqueles governadores de paraíba, o pior é o Maranhão." Na realidade, ele quis dizer: entre os governadores nordestinos, o mais pior era o governador do Maranhão, Flávio Dino, um dos Estados da região Nordeste. Essas duas declarações renderam muitas postagens nas redes sociais e na blogosfera, assim como suscitaram artigos e reportagens na imprensa escrita.Algumas ponderações indignadas de nordestinos, que se sentiram ofendidos com a observação do presidente. Polemicas à parte, no nosso raciocínio, sempre ancorado numa caracterizado das ditaduras de um novo tipo, a partir de uma apropriação de Onfrey do livro do escritor inglês George Oswell, 1984, discutida num artigo de Casara, o artigo de hoje se concentra naquilo que George Oswell identifica como um empobrecimento ou eufemizacao ou desimboluzacao e perda de sentido da linguagem. Ou seja, aquilo que seria um absurdo inimaginável - alguem, por exemplo, - afirmar que não existe fome num país, onde cruanas morrem desnutridas todos os dias e que ostenta 9 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza - pede seu sentido, sempre com o objetivo de manipular a população e restringir o pensamento. Uma espécie de "novilíngua". Neste sentindo, ainda neste contexto, exempkufuca o que observamos as recentes " des importância " dada pelo presidente quando sevtrata dis dados de desmatamento da amazônia. Como afirmamos antes, essa nova língua está consorciada a um projeto dr sociedade autoritária, quiçá, classificada aqui como um subproduto ou consequência das categorias pos verdade e pos- democracia. Em 1944 um sócioligo pernambucano publicou um livro emblemático,,: Geografia da Fome. Este livro foi um verdadeiro divisor de agua sobre a análise dobprblema da fome no país. Talvez os senhores que assumiram o poder no país prefiram o termo carência alimentar ou Desnutricao, naquela preocupação com a de simbolização ,- eu, prefiro mesmo o termo fome. Com este trabalho Josué de Castro imprime ao drama da fome um.status político, ao asdicuala à questão das cknficoesy efetivas de acessibilidade AIS alimentos. Em ultima análise a fome é um fenômeno resultantes das engrenagens sociais perversas. A fome é produzida socialmente. 80 anos depois de lancado , o livro continua atalisimo. O Brasil ainsa ostenta taxas vergonhafas de pessoas que vivem nesta condição. Josué alcançou projeção e reconhecimento internacional com o seu trabalho, chegando a ocupar a presidência da FAO e ser indicado para o Nobel da Paz. Deu aulas na Soorbone, mas gostava mesmo era dis bairros alagados do Recife, cuja população vivia dis frutos do mangue. Foi nesses manguezal palafitas que ele começou a timar conhecimenu sobre o fenômeno da fome, observando cruancas alimentadas com leite de caranguejo. Depôs descobriria que existiria situações ainda piores, pois os paus desses criança eram oriundos da zona da mata ou do serão do estado, onde a situação era ainda maus grave. Até bem pouco tempo, im jornal local publicou um caderno especial sobre o assunto, concluind que crianas ainda tem o cristalino de seus olhos irremediavelmente comprometidos pela ausência de vitamina A na alimentação. studiosos como Tomaz Tadeu da Silva e Stuart Hall, cujos trabalhos de pesquisas estão vinculados aos estudos culturais, advogam a tese de que de a identidade não é algo estável, mas em processo constante de afirmações e de afirmações. As reações de nordestinos indignados com as declarações recentes DP presidente, que se referiu a nos como Paraíbas, talvez se constitua num bom exemplo da tese levantada por esses autores. Um momentos de ratificar uma identidade, a identidade de nordestino. Mas, afinal, o que significa ser nordestino? Para alguns autores, ser nordestino, não passa de construção discursiva, uma invenção. Sociólogos como Gilberto Freye, por exemplo, figuraruam nessa galeria de inventores. Para outros autores. Ha uma essência que caracteriza essa região. Alguns elementos distintivos e portanto identitários, uma vez que a identidade é bastante formada pela diferenças, ou déjà aquilo que não e. Ni caso DP Nordeste, aquilo que não é sulista, por exemplo. Por falar nesses elementos tipicamente regiobaisy, recomendo a leitura do texto do ciestusta político Michelv Zaidan Filho, aqui publicado. O reducionismo utilizado pelo presidente - ao se referir a nós como "paraíbas" - é outro exemplo de empobrecimento da kinguagrm, comuns meses momentos bicudos bicudos pelo país. Percebendo o grave rquivoco , ele tentou minimizar as declarações e, num evento na região, fez declaracoezy e até caracterizou se como um nordestino o, num figurino que não lhes caiu muito bem. Contextualizando o debate com a aproximada da obra de George Oswekl, 1984, o empobrecimento da linguagem carateruzase como uma categoria das ditaduras de um novo tipo, assunto que estamos tratando nesses edutiruaus, acompanhando o raciocínio do César a. Em artigo publicado no site da revista Cukt.
Michel Zaidan Filho: Nordestinados
Nos anos anos 80, um poeta armorial cunhou uma expressão muito
difundida nos meio literários da região: "nordestinado". O escritor e
teatrólogo Ariano Suassuna foi além e afirmou, certa vez, que não
conhecia uma terra tão trágica como o nordeste, em razão dos conflitos
existenciais e humanos de seus habitantes consigo mesmo, os outros e
natureza. E houve até ensaístas que "inventaram" o nordeste a partir do
imaginário das secas, do cangaço e do messianismo.
O ciclo da literatura regionalista dos anos 30 ajudou muito, partindo
daqueles elementos, a vender uma imagem de nordeste pobre, místico e
atrasado, dominados por coronéis de oligarcas. O Brasil passou a
conhecer o nordeste, por estes estigmas e trata-lo na poesia, na música,
no teatro e no cinema.
Não há nada de errado com o nordeste que não possa ser consertado com políticas públicas de desenvolvimento regional. O que passa necessariamente por um projeto de nação, povo, direitos e identidade nacional. O arremedo de política regional que nasceu com Celso Furtado e a Sudene foi rapidamente abortado pelos militares. Os governos neo-liberais de Collor/FHC desregionalizaram a economia, como forma de integrar (ou entregar) competitivamente o país na globalização. O governo LULA foi uma exceção, com grandes obras estruturadoras, investimentos, transferências voluntárias e universidades. O atual (des)governo não tem nenhum compromisso com a região. Como gerente do capitalismo internacional, seu objetivo é destruir o que resta de políticas regionais, sociais e ambientais para entregar nossas riquezas ao mercado.
Não sou nordestinado. Tenho minhas raízes culturais, mas tenho asas para voar bem alto. Orgulho-me muito dessas raízes e acho que podemos reconstruir a nossa identidade telúrica e social num registro planetário e sermos cidadãos e cidadãs do mundo.
Resistir, resistir, resistir contra essa iníqua política de terra(região) arrasada".
Não há nada de errado com o nordeste que não possa ser consertado com políticas públicas de desenvolvimento regional. O que passa necessariamente por um projeto de nação, povo, direitos e identidade nacional. O arremedo de política regional que nasceu com Celso Furtado e a Sudene foi rapidamente abortado pelos militares. Os governos neo-liberais de Collor/FHC desregionalizaram a economia, como forma de integrar (ou entregar) competitivamente o país na globalização. O governo LULA foi uma exceção, com grandes obras estruturadoras, investimentos, transferências voluntárias e universidades. O atual (des)governo não tem nenhum compromisso com a região. Como gerente do capitalismo internacional, seu objetivo é destruir o que resta de políticas regionais, sociais e ambientais para entregar nossas riquezas ao mercado.
Não sou nordestinado. Tenho minhas raízes culturais, mas tenho asas para voar bem alto. Orgulho-me muito dessas raízes e acho que podemos reconstruir a nossa identidade telúrica e social num registro planetário e sermos cidadãos e cidadãs do mundo.
Resistir, resistir, resistir contra essa iníqua política de terra(região) arrasada".
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD- UFPE
sexta-feira, 26 de julho de 2019
Do lugar da fala ao lugar da escuta
Perguntamos ao psicanalista Christian Dunker: é possível ter empatia com aqueles que achamos repugnantes?
Paulo Werneck
23jul2019 11h32
O psicanalista Christian Dunker na Flip 2015
Escutar
o outro deveria ser uma premissa de qualquer atividade intelectual, em
particular a edição de revistas, jornais e livros e a curadoria de
festivais, debates e outras programações culturais. Quanto mais falamos
em escuta, no entanto, mais difícil vem se tornando praticá-la de
verdade em meio à intolerância que parece dominar o debate no Brasil de
hoje.
Escritores sofrem ameaças e têm cancelada a sua
participação em eventos literários por razões de segurança; autores
enfrentam potentes caixas de som e saraivadas de rojões enquanto tentam
se apresentar em Paraty. Conservadores “raiz” não se dizem representados
por essas hordas e clamam por espaço igualitário no debate. Assustados
com as ameaças do governo e de setores da população, artistas e
intelectuais progressistas se fecham em copas por não verem condições de
diálogo em meio à barbárie.
Hegemônica no mercado editorial e nas universidades brasileiras, a intelectualidade de “esquerda” tem sido cobrada, inclusive por textos publicados na Quatro Cinco Um, a abrir os ouvidos
para compreender de fato o câmbio ideológico na cultura e na política.
Mas haverá espaço para equilíbrio, compreensão e temperança intelectual
enquanto o bolsonarismo come solto? Muitos, como o colunista Paulo
Roberto Pires, não aceitam o adesismo de intelectuais “Nutella”
ao novo quadro mental do governo brasileiro e clamam em seus textos que
as coisas “sejam chamadas pelo nome”. Como desatar esse nó?
O psicanalista Christian Dunker esteve na Flip 2019, onde lançou, em programações paralelas, o seu novo livro: O psicanalista e o palhaço (Planeta),
escrito com o educador Claudio Thebas. Ambos estão costumados a
intervir em delicadas situações de conflito — tanto aqueles que afloram
no sigilo do consultório como os que explodem junto com as barragens de
Brumadinho e Mariana, deixando um rastro de lama e de traumas e dramas
humanos. Como se não bastasse observar tão de perto essas tragédias,
Dunker foi processado pelo escritor Olavo de Carvalho por causa de
críticas que fez a ele.
Para nos ajudar a nos situar nessa enxurrada de lama
ideológica que ameaça nos soterrar, convidamos Dunker para uma conversa
por email sobre lugares de fala e de escuta, palhaços e lideranças
políticas, empatia, fascismo, o que fazer no WhatsApp da família,
autores de esquerda e de direita que deveríamos escutar mais, na opinião
dele — e também, é claro, sobre a Flip, a Flipei, tins e bens e tais.
Qual é a diferença entre bagunçar o coreto e ver o circo pegar fogo?
“Bagunçar o coreto” é introduzir vozes dissonantes
na conversa, perturbar a ordem dos instrumentos que fazem parte da
banda, colocar a boca no trombone. Palhaços e psicanalistas adoram
bagunçar o coreto alheio, e de certa forma esta é a sua função enquanto
escutadores do mal-estar social e do sofrimento individual. Mas note que
o coreto continua lá, com os seus paramentos, no lugar central da
cidade.
“Ver o circo pegar fogo” é outra coisa, porque daí
você queima a lona, dissolve o encontro e deixa as pessoas com medo e
sem diversão. O coreto bagunçado é o que faz quase todo mundo rir, mas
quando o circo pega fogo, quase todo mundo chora, menos os que gostam de
olhar a desgraça alheia.
O que pensa do debate sobre ausência de autores conservadores na Flip?
Participei de quatro apresentações na Flip 2019 e
acompanhei outras tantas, em geral com o coreto tocando suas marchinhas e
chorinhos uma ou duas oitavas acima do usual. Quando quiseram calar a
fala do Glenn Greenwald com fogos de artifício, achei bem alegórico.
Afinal, se tem alguma coisa que caracteriza o nosso momento político é a
pirotecnia nas declarações erráticas e toscas. O circo pegou fogo e nem
a Sabrina nem o Glenn conseguiram fazer sua parte no Barco Pirata. Não
dá para comparar com as vaias contra [a blogueira cubana anticastrista]
Yoani Sanchéz em uma livraria [em 2017, em São Paulo], ou o bloqueio da
apresentação do filme [documentário sobre Olavo de Carvalho] O Jardim das Aflições em
uma universidade [em 2017, em Recife], como se agora fôssemos contar as
arbitrariedades assim como antes contávamos quem matou mais, Hitler ou
Stálin, para ver quem está mais errado.
A Flip sempre teve uma participação minoritária de
pensadores à direita, mas de uma forma ou outra sempre fez questão de
chamar autores representativos como [Christopher] Hitchens, homenagear
literatos conservadores, como Nelson Rodrigues, e ecoar fenômenos de
repercussão mais popular como o Pondé, aliás presente nesta edição.
Nisso, estou misturando o coreto com o circo, e o barco com o palanque.
Estou considerando tanto a programação principal da como a Flipei, a Off
Flip e a gama cada vez mais variada de editoras independentes e
organizações culturais como o Sesc.
O que significa esse movimento?
Para alguns isso significa que ela se tornou mais
extensa, representativa e menos elitista, ou seja, ela está indo da
direita para a esquerda em um momento no qual o vento sobre o navio
nacional em sentido posto. A Flip tinha mais mulheres, mais negros e
mais indígenas no coreto. Isso significa que ela fechou-se num circo
vermelho? Ou que ela está tentando incluir melhor a nossa diversidade?
Aqui a questão toca no fervente debate sobre a
hegemonia da esquerda na cultura, na educação e nas universidades.
Deveria a Flip, dadas as condições do palanque cultural que vivemos,
convidar mais teólogos conservadores, economistas do Instituto Millenium
e novas vozes emergentes da direita, como digamos... Kim Kataguiri,
Caio Coppola, sem falar em alguns discípulos de Olavo de Carvalho? Seria
esta a via régia para sair da bolha?
Você tem empatia intelectual para com autores conservadores? Quais?
Tenho sim, e devo dizer que devo isso ao meu querido
avô. Como bom liberal formado no Canadá, ele ficou com medo quando
entrei na USP e comecei a trazer umas ideias estranhas para casa.
Sabendo da minha pobreza de estudante e minha cobiça por livros ele se
comprometeu a me dar uma grana extra semanal, se eu em troca fizesse uma
lição de casa extra lendo The Economist, Paulo Francis, quase todos os
articulistas do Estadão nos anos 1980, sem falar em gente como
Tocqueville, Rush Limbaugh e naturalmente o ídolo dele, “Bob Fields”, o
Roberto Campos.
Por isso venho perguntando há anos, em colunas e ao
vivo e em cores, quando posso: o que aconteceu com a nobre tradição de
pensamento conservador brasileira? Não vejo linha de continuidade nem
arqueologia possa existir entre Merquior, os jesuítas hegelianos, os
economistas desde Roberto Simonsen, até gente como Bruno Tolentino,
Miguel Reale ou Luiz Werneck Viana, com esta trupe liderada por Olavo de
Carvalho, Rodrigo Constantino, Leandro Narloch ou Nando Moura. Onde foi
parar a boa direita brasileira? É uma pergunta que faço, genuinamente,
como convite para a discussão organizada. Pondé chegou a me dizer
diretamente: “Você está diante dela...”. Critiquei Olavo de Carvalho com
argumentos e o sujeito me processa judicialmente (e perde).
E autores estrangeiros?
Fora do Brasil há vários pensadores de direita
interessantes: Marc Lilla, Onfray, Michael Oakeshott, Scruton é “not
more then fine”, gosto particularmente dos scholarsingleses,
insuperáveis quando tratam dos clássicos. Vargas Llosa é bem legível.
Penso que aconteceu um sequestro do pensamento de direita no Brasil, uma
verdadeira ocupação de ocasião do um espaço deixado vago, que pode
custar muito caro e fazer demorar mais ainda para que as coisas se
equilibrem mais por aqui.
Como escutar aqueles que nos causam repugnância?
Tenho dito que um erro clamoroso do campo
progressista foi recusar reconhecer e dar cidadania a seus adversários.
Plutarco já dizia: é tão importante escolher seus amigos quanto seus
inimigos, e se você não o fizer eles farão por você, na pior hora e da
maneira mais cruel. Também, do ponto de vista psicopatológico, quando
deixamos de escutar a quem consideramos loucos, quando os deixamos falar
sozinhos, quando os destituímos de algum grão de verdade, o mais
provável é que ele comece a falar mais alto, mais convicto e mais bravo.
Depois de um tempo o sujeito está vociferando, amaldiçoando picadeiros e
coretos, colocando fogo na lona, simplesmente para dizer que ele quer
ver sua palavra reconhecida.
Nessa hora é preciso pensar se a nossa repugnância é
para com aquela pessoa ou com relação ao funcionamento de massa pelo
qual ela se deixou apossar. Daí a importância de, a mesmo tempo, ser
hospitaleiro e fazer uma geografia do hospital no qual estamos, contar
os mortos e feridos, as relações e os valores que deixamos queimar no
afã de ver alguma coisa diferente. Perguntar mais, ler mais (seus
opositores, biblicamente know thy enemies) e sobretudo entender a
geografia e história do debate.
As categorias como “esquerda” e “direita”,
“conservadorismo” e “progressismo”, “liberalismo” e “neoliberalismo”
volta e meia são postas em questão. Ainda valem para um debate como
esse?
Muita tolice sobre a dissolução de noções como
esquerda e direita foi evocada usando a geografia da Segunda Guerra
Mundial ou da guerra fria. Precisamos de mais do que isso. Precisamos
distinguir a direita liberal da direita neoliberal e da direita tosca.
Mas aqui há uma coisa importante a lembrar sobre o coreto. Ele tem uma
dupla função: vira palanque na época da eleição, mas na maior parte do
ano é o lugar de músicos. Por mais que existam músicos de direita e
músicos de esquerda, músico é músico. Na hora da festa o que importa é
como você toca seu instrumento e não só se você é amigo do prefeito. E
vamos lembrar que a Flip é uma festa, não uma feira ou um congresso
científico.
Uma comparação exagerada. Por que não temos mais
representantes de esquerda no encontro de Davos? Sempre que os
esquerdistas aparecem por lá eles vão para bagunçar o coreto ou para
tacar fogo no circo. Ora, para fazer parte da festa de Davos tem que
levar seu instrumento. Injusto que a esquerda vá tão pouco? Monte sua
festa alternativa em Porto Alegre! Essa seria uma narrativa na geografia
da direita. Ocorre que a esquerda cisma em dizer que a sua festa é
aberta, quando na verdade só entra músico profissional.
Como assim?
Faça você mesmo as contas sobre os homenageados da
Flip, desde que ela começou em 2003, volte na história e considere, no
crivo da época de cada um destes autores, se eles eram de direita ou de
esquerda. Se quiser troque por conservadores ou progressistas,
tradicionalistas ou liberais, ideológicos ou críticos: Vinícius de
Moraes, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Jorge Amado, Nelson
Rodrigues, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Oswald de
Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Millôr
Fernandes, Mario de Andrade, Ana Cristina Cesar, Lima Barreto, Hilda
Hist e Euclides da Cunha.
Para mim esta contagem dá algo como 15 a 2, ou 14 a
3, mas podem os meus olhos, vermelhos... de sono. Isso pode significar
três coisas diferentes:
1. A Flip só escolhe parcialmente,
dentro da sua bolha narcísico-especular, portanto, esta lista não é uma
seleção representativa.
2. A hegemonia da esquerda nas
universidades, nas Flips e quejandos reflete a história da cultura
literária brasileira. Mas talvez não da economia, do direito ou do
pensamento de inflexão teológica.
3. O pensamento de direita tem o
tamanho que sempre teve, com a sua usual representação na Flip. Se agora
a direita está no poder, isso não implica que teriam assento garantido
no bonde da história, sem aprender a tocar um instrumento e formar uma
boa banda.
Existe empatia possível com o fascismo? E com fascistas?
Minha avó viveu na Alemanha na época do nazismo e
meu pai nasceu lá quando Hitler estava no poder. Sempre ouvi deles que
os nazistas eram pessoas vulgares e empobrecidas, com medo e que se
aproveitavam da situação para oprimir seus pequenos inimigos
históricos.
Nenhuma empatia com o fascismo, porque é fascismo é
um discurso e uma forma de vida covarde. Muita empatia com a maior parte
dos encapuzados, escondidos no coreto fascista, sentindo-se intimidados
pela retórica das armas e batendo bumbo para não escutar seus
fantasmas. Há verdadeiros fascistas no Brasil, mas eles são muito menos
do que os eleitores de Bolsonaro.
Tenho empatia pelos possuídos. Pelos que funcionam
em estrutura de “churrasco fascista”, protegendo-se uns aos outros em
ódio comum a um terceiro. Mas quando deitam no divã mostram-se como todo
mundo, falsos corajosos, valentes de ocasião e em geral pessoas que
precisam gritar mais alto, xingar os outros e partir para a baixaria,
para continuar acreditando, mais ainda, em suas pequenas certezas.
Como ter certeza de que as nossas discussões
sobre “lugar de fala” e “escuta” não estão sendo repetidas em loop para
a mesma bolha?
A teoria da bolha é muito aproximativa. Se quiser
falar em condomínios reais, com seus shoppings centers conexos e seus
muros de verdade, eu aceito. Bolhas se dissolvem no ar, como aquilo que
antes era sólido. Bolhas deixam ver de forma translúcidas quem está fora
e quem está dentro. Não saberia dizer se as bolhas brasileiras são
fenômenos reativos de retorno à excessiva exposição de diversidade, que
o Brasil efetivamente viveu nos últimos quinze anos, ou se são,
primeiras edições de um novo tipo de xenofobia digital.
Penso que os ganhos e excessos da prática do lugar
de fala foram percebidos fora da bolha, e infelizmente mal percebidos:
“se você pode ser feminista eu posso ser machista”, “se você pode ser a
favor da equidade de negros ou posso defender minha superioridade
branca”. Este tipo de justiçamento imaginário é muitas vezes confundido
com escutar os outros. Como dizemos em nosso livro: escutar não é
obedecer, nem representar, muito menos realizar uma comunicação perfeita
por meio de uma linguagem comum e benevolente.
Haveria então um “lugar de escuta” a ser mais valorizado?
Propomos, Claudio Thebas e eu, que ao lugar de fala
deve corresponder o lugar de escuta. Uma chamada para acolher o
antagonismo e organizar a contradição, não para dissolvê-la. Por outro
lado, sim, a teoria sobre isso pode ser feita em um contexto específico,
com maior ou menor densidade ética ou política. Mas a prática que estas
duas noções implicam é o que é mais importante.
A disposição a falar fora de lugar é o que define a
prática dos intelectuais, por isso há intelectuais nos coletivos, nas
periferias, nas universidades para as quais não foram convidados ou se
sentem estrangeiros. É nesta situação infamiliar que nos pomos a pensar,
o que pode acontecer numa festa literária ou no quintal da sua casa. Se
você leva sua casa bolha onde você vai? É sempre possível que isso
aconteça. Mas não vá colocar a culpa na agência de viagens.
E se estivermos falando apenas com a nossa turma, qual é o problema? Existe alternativa?
Existe alternativa a esta sensação de fechamento
sobre si e seu mundo. Chama-se boa literatura, mas pode ser também
reflexão crítica, práticas transformativas, e se quiser, pode ser
psicanálise também. Deveríamos ter aprendido com a nossa incrível
experiência de inclusão levada a cabo nas escolas brasileiras, mas
também pelas cotas nas universidades, nos aeroportos que se tornaram
mais diversos, nossas propagandas que se tornaram mais coloridas.
Deveríamos ter percebido que colocar muita gente que
viveu em currais e condomínios por tempo demais, de repente juntas, não
cria por si só uma comunidade. É preciso mediação, é preciso narrativa,
novos pactos, sacrifícios e enfrentamento de temores identitários. Mas
nunca em caso algum este processo poderia ter ocorrido como uma reta
triunfal de ganhos acumulados contínuos.
A alternativa à bolha está aí, chama-se realidade, e
nós tivemos doses excessivas dela, daí que estejamos sonhando e nos
refugiando e temendo bolhas. Creio que existe uma tensão entre novas
formas de comunidade e antigas equações institucionais que foram bem
aproveitadas por um projeto errático de poder e uma expressão tosca de
nossa própria cultura. Realmente o Brasil é muito mais do que isso, e
também muito menos do que isso.
Como lidar com o WhatsApp da família?
Nunca saia do WhatsApp. Há presenças que ainda que
silenciosas são muito importantes para manter o senso de que “as
crianças estão olhando” e impedir que a barbárie prospere em sua soberba
ignorância. Precisa variar o discurso, precisa entender a
recristianização do Brasil, exigir as explicações e justificativas
teológicas para colocar Cristo atrás da arma, que para meu espanto
existe sim, por São Isaías.
Precisa alternar o rigor e a paciência com conversas
longas. Quem xinga e grita geralmente está ficando nervoso porque a
conversa não terminou nos dois parágrafos iniciais. Leve em conta que
muito do que se diz não é exatamente para você, mas para a projeção
imaginária que você representa. E quando perceber que isso está
acontecendo, saia do lugar, responda de outro lugar. Não dê lição de
moral, nem menospreze, peça razões e prepare-se para ser xingado. Se
você leva a sério é porque há ainda um grão de pequeno fascista em você
mesmo.
O escutador profissional é como um canibal, ele
sempre quer devorar tios mais gordos e tias mais execráveis, como um
esporte de longo prazo. Quando começar a se repetir ou perder a calma,
saia e desanuvie. Pense que o desafio não é contra o outro, mas contra
você mesmo: a arte cavalheiresca de manter-se respirando.
Se você conseguir manter o humor com todos contra
você acredite, isso vai trazer alguns pontos para sua saúdem mental,
acredite. Não banque o herói nem o professor, as pessoas respeitam muito
quem está realmente a fim de escutar. Esteja preparado para enfrenar a
turma do deixa-disso, gente que vai aparecer de todos os lados querendo
manter as aparências e o Natal feliz.
Não, o Natal nunca mais será aquele. Aquele que
apanhou não esquece, o que bateu vai dizer para si mesmo: “Mas era só
política”. O silêncio e algumas notícias de jornal fazem milagres.
Nunca, em tempo algum diga: “Eu avisei”. (Isso fará a pessoa te odiar
para sempre, por uma razão que ela jamais vai admitir para você, e vai
trocar a sua razão pelo juízo de que você é arrogante e metido a
superior). Deixe a realidade impor-se soberana... lentamente. Nunca
diga: “eu sabia!” ou “tá vendo?”. Mas pensar, pode.
Obama foi retratado por direitistas com a
maquiagem do Coringa, Trump é visto como um clown, Boris Johnson segue o
mesmo caminho e Bolsonaro é chamado de Bozo. Por que o palhaço aparece
de forma tão sinistra em todas essas situações?
O palhaço é um símbolo de nossas ilusões infantis,
ele representa o adulto no qual não podemos confiar porque ele põe fogo
no circo ou balança o coreto. Só depois que descobrimos que os adultos
mentem, particularmente sobre sexo, morte e violência, nos reconciliamos
com o palhaço assassino da primeira infância e aprendemos a usá-lo para
tratar e suportar a hipocrisia representada pelo convívio humano.
Se isso é o que o imaginário do palhaço evoca, ele
mesmo, como palhaço real, simboliza a nossa condição perdedora, errante,
despossuída, o fato de que, olhando bem, estamos todos meio fora do
jogo dos interesses e das máscaras de poder. Os novos líderes populistas
são bem chamados de palhaços porque eles combinam estas duas
disposições, mas de maneira invertida. Eles encantam e amedrontam os
eleitores infantilizados à procura de um pai protetor, e que portanto
tem que ser um adulto que nos engana quando se apresenta como não
mentiroso.
Por outro lado, são o contrário dos palhaços reais e
despossuídos, eles nos vendem a promessa de que podemos voltar a ser
grandes, grandes como achávamos que éramos quando crianças e os nossos
pais nos enganavam prometendo-nos que tínhamos superpoderes. Afinal, se
os palhaços... e os psicanalistas são uma função de recusa e de ironizar
o exercício do poder, nada mais justo do que ofender os que foram
possuídos pela loucura do poder com esta alcunha.
(Publicado originalmente no site do Jornal Quatro Cinco Um)
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