Michel Foucault (Foto: Reprodução)
O que é a modernidade ocidental? Quando começou? Ela já encontrou seu fim? E a que se refere este termo: moderno? Há muitas respostas, por certo; dificilmente um consenso. Mas partamos aqui desta proposição: a modernidade não é necessariamente um período histórico específico, determinado por marcos temporais estritos – marcos que, de resto, como sabemos, podem ser tão arbitrários como quaisquer outros. No entanto, ela pode ser pensada, sim, como um singular regime narrativo: um regime composto por diferentes vozes, assim plural.
À modernidade não corresponderia obrigatoriamente uma época, com seu antes e seu depois, seu “pré” e seu “pós”. Não seria, então, um intervalo de tempo preciso – desse modo delimitável, como outros, na longa cadeia da violenta história do Ocidente. Nesse sentido, portanto, não obedeceria a uma crono-logia: a uma ordenação lógica e objetiva, a partir de um evento algo datado (como – digamos – a queda de Constantinopla, ou as grandes navegações, ou os governos esclarecidos, ou a emergência da racionalidade científica, ou a revolução industrial, ou a formação dos Estados nacionais liberais etc.), evento que, uma vez inaugurado, seguiria um processo linear, até ser encerrado por outro, igualmente registrável (como o fim da Segunda Guerra Mundial, ou o começo da Guerra Fria, ou o ano de 1968, ou a queda do muro de Berlim, ou a constituição do capitalismo neoliberal etc.). Enfim – insisto –, nada disso.
De modo diverso – talvez mais complexo, mas sem dúvida mais interessante, ao menos neste presente que nos cabe – a modernidade poderia ser pensada, no que ela tem de mais característico, como uma singular rede de relatos. E o que tais relatos compartilhariam, isto é, o que eles teriam, com efeito, de moderno, seria o fato de que seus protagonistas (como sujeitos, intimamente ligados aos próprios relatos) se encontram diante de um mundo em que o sentido e a verdade do próprio ser, absolutamente contingentes, não mais se mostram garantidos de antemão. E mais que isso, se não estão no princípio, o sentido e a verdade tampouco se encontram, naturalmente, no fim da existência, de maneira que é o presente (moderno vem de modernus, termo que designa o “agora mesmo”, o “contemporâneo”) que se abre, como um desafio sem resposta, para o pensamento e a ação.
Essa modernidade descontínua, heterogênea e arriscada foi preparada, de diferentes maneiras, por inúmeros intérpretes, cujos nomes escapariam a estas linhas muito sumárias. Não obstante, interessa notar o que parece ser delineado, em traços ora mais ora menos decisivos, como o modo de ser moderno: trata-se do emergir de um sujeito que se faz presente, pensa, sente e age apenas na medida em que é marcado por essa falta de garantias, ao que tudo indica irremediável. Nesse lugar aparentemente vazio, onde não está mais pressuposta uma definição do que somos ou deveríamos ser, encontramos, sob uma luz crepuscular, as ruínas do que o Ocidente reivindicava como fundação, tradição, experiência, autoridade, Deus etc.
Em outras palavras, na modernidade destacam-se sujeitos cujas performances – para dizer deste modo – colocam em cena uma ausência estruturante dos homens e suas sociedades; uma ausência que, mesmo sendo reconhecida, não chega a ser apaziguada. Isso porque essa falta constitutiva, espécie de avesso da imemorial imaginação mítica que nos acompanha, continuamente retorna, reposta como a incessante emergência da nossa condição originária. E é essa a condição que nos colocaria, daí então, diante da necessidade de, uma e outra vez, nos inventarmos a nós mesmos, por meio de uma miríade de suplementos e técnicas, afinal como sujeitos ao mesmo tempo elaborados e interrompidos por arranjos de signos e de práticas contingentes.
Em linhas muito breves e provisórias, eis a modernidade. E se, como afirmei acima, ela foi anunciada por muitas vozes, talvez tenha sido Michel Foucault quem lhe deu uma formulação incontornável, já urdida nas proposições anteriores. A ideia se encontra de modo mais bem acabado nos cursos e textos tardios, quando a atenção do filósofo se desloca entre os exercícios do poder governamental e as práticas de subjetivação. E, de modo ainda mais pontual, nos comentários a um opúsculo de Kant publicado em dezembro de 1784, que tem como título Resposta à pergunta: Que é o esclarecimento?
Na verdade, seria mais acertado dizer que Kant se encontra no início e no fim do percurso intelectual de Michel Foucault. Como nos lembra Edgardo Castro, em 1959, encarregado da direção do Instituto Francês de Hamburgo, Foucault prepara sua tese secundária de doutorado, que inclui a tradução e uma longa introdução a Antropologia do ponto de vista pragmático, de Kant, introdução que é concluída com uma reflexão acerca das limitações da herança transcendental kantiana (e com uma aproximação a Nietzsche). Essa herança é a de uma “ilusão antropológica”, num sentido muito amplo, baseada no estabelecimento de regras de verdade universais; “uma filosofia analítica da verdade em geral” – segundo o registro de Foucault em O governo de si e dos outros (curso de 1982-1983) – que, nas palavras de Edgardo Castro, irá traduzir-se num “mal-estar”: “a disposição ou o sonho da cultura moderna de querer encontrar no homem o fundamento do próprio homem”.
No fim do seu percurso, Foucault retoma Kant, agora num duplo movimento. Por um lado, a fim de reforçar seu distanciamento dessa herança autotélica universalista, que para realizar a humanidade última do homem engendrou enormes equívocos e violências sem termo. Por outro, para formular, na leitura do opúsculo de 1784, o que se caracteriza como uma atitude-limite: uma via notadamente crítica, elaborada a partir do próprio questionamento de Kant sobre a atualidade, e que é, ao mesmo tempo, para Foucault, a melhor definição da modernidade ocidental. Lemos em O governo de si e dos outros:
Essa outra tradição crítica não coloca a questão das condições em que um conhecimento verdadeiro é possível, é uma tradição que coloca a questão de: o que é a atualidade? Qual é o campo atual das nossas experiências? Qual é o campo atual das experiências possíveis? Não se trata, nesse caso, de uma analítica da verdade. Tratar-se-ia do que poderíamos chamar de uma ontologia do presente, uma ontologia da atualidade, uma ontologia da modernidade, uma ontologia de nós mesmos.
Em texto publicado em 1984 – ano do seu falecimento –, Foucault voltaria ao opúsculo, dessa vez considerando, também, a figura de Baudelaire. Assim como Kant se interroga sobre o sentido da sua atualidade e os possíveis modos do agir livre (por meio do “uso público da razão”), Baudelaire, interrogando agudamente “o transitório, o fugidio, o contingente”, faz-se elemento e agente desse “êthos filosófico”. Trata-se de uma a atitude de modernidade, escreve Foucault, entendida como uma “crítica permanente de nosso ser histórico”. “Essa modernidade não liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe impõe a tarefa de elaborar a si mesmo”. E seu trabalho não se separa dos discursos e das práticas que nos constituem como elementos e como agentes históricos; não se separa, em suma, da contingência que nos fez ser o que somos.
Essa atitude é pensada afirmativamente, mas com uma finalidade disruptiva, como um “não mais”: afinal, essa ontologia histórica de nós mesmos, diz Foucault, “não deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer”; mas deduzirá, sim, “da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos”. Daí a proposta de transformarmos a crítica conduzida sob a forma da limitação necessária em “uma crítica prática sob a forma da ultrapassagem possível”.
Sem dúvida, em nossa situação latino-americana e brasileira, o desafio se coloca de forma específica. Aqui, a atitude de modernidade, se igualmente livre de uma cronologia estrita, deve confrontar-se, ainda, com a terrível herança da razão colonial e sua empresa exploratória, com a herança do genocídio de povos indígenas, a herança do racismo, da violência e da exclusão estruturantes da sociedade.
Ao questionarmos, sem garantias, nossa atualidade e o campo das nossas experiências, tais heranças talvez aumentem nosso desamparo. Talvez não. E não porque elas nos servem, necessariamente, como definição do que somos ou deveríamos ser. Mas porque elas demandam, uma e outra vez, nossa capacidade crítica, nossa maior inventividade, neste presente crepuscular que nos cabe. Talvez seja diante dos exercícios de uma política de morte que devamos, antes de tudo, reivindicar não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos. Isso se estiver em jogo na atualidade – como de fato creio que está – a invenção de um êthos capaz de “fazer avançar para tão longe e tão amplamente quanto possível o trabalho infinito da liberdade”.
Artur de Vargas Giorgi é professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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